Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1536/04.0TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
CESSAÇÃO
DESOCUPAÇÃO
DEFERIMENTO
INDEMNIZAÇÃO PELO FSSIGFSS
Data do Acordão: 03/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÁGUEDA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 102º A 106º DO RAU
Sumário: I – Dos artºs 102º a 106º do RAU resulta que é legítimo o diferimento da desocupação de um local arrendado para habitação quando este é motivado pela cessação do respectivo contrato fundado em razões sociais imperiosas que assim o aconselhem.

II - Nos termos do artº 105º, nº 5, do RAU, “a decisão que diferir a desocupação é oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao FSSIGFSS”, comunicação esta cuja finalidade e apenas a de dar conhecimento a este Fundo de que deve “indemnizar o senhorio pelas rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora, ficando subrogado nos direitos do dito senhorio”, como resulta do artº 106º, nº 2, do RAU.

III - As rendas que podem ser indemnizadas são apenas as resultantes do diferimento da desocupação, quando esse diferimento se baseie em razões de carência económica do inquilino e pelo período decidido para o efeito, pois apenas é este aspecto que se acautela no referido instituto jurídico – do diferimento das desocupações.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

No Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, A.... e marido B..., residentes no lugar do Garrido, freguesia de Aguada de Cima, comarca de Águeda, instauraram contra C.... e mulher D..., residentes no lugar do Garrido, freguesia de Aguada de Cima, concelho de Águeda, a presente acção declarativa, com processo sumário, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento de uma casa de habitação que liga as partes, condenando os R.R. a despejarem imediatamente o locado e a pagarem aos autores as rendas vencidas e não pagas até ao despejo, acrescidas de juros de mora.
Para tanto e muito em resumo, alegaram que são donos de uma casa para habitação sita no Garrido, inscrita na correspondente matriz predial sob o artigo 1421, casa essa que foi dada em arrendamento aos R.R. em 1/06/1998, pelo prazo de 5 anos, mediante a renda mensal de € 200,00.
Que os R.R. deixaram de pagar as rendas devidas desde Outubro de 2003, o que constitui fundamento para o despejo requerido.

II

Os R.R. não apresentaram contestação e limitaram-se a requerer o diferimento da desocupação do local arrendado por seis meses, nos termos do artº 105º do RAU, alegando, muito em resumo, que o não pagamento de rendas se deve a uma situação de desemprego dos elementos do seu agregado familiar e a uma manifesta incapacidade para pagarem o montante das ditas.


III

Terminados os articulados foi proferido despacho saneador-sentença, no qual foi considerada como processualmente regular a tramitação da presente acção e, conhecendo do mérito da causa, foi proferida decisão a julgar acção procedente, declarando resolvido o contrato de arrendamento em questão e condenando os R.R. a despejarem o local arrendado, deixando-o livre de pessoas e bens, assim como a pagarem aos autores as rendas vencidas e não pagas relativas aos meses de Novembro e Dezembro de 2003, e Janeiro a Julho de 2004, no valor global de € 1.800,00, bem como as vincendas até efectivo despejo, no quantitativo mensal de € 200,00, com o acréscimo de juros de mora, mas sendo o pagamento das rendas vencidas e respectivos juros de mora suportados pelo Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, nos termos do artº 106º, nº 2, do RAU.
Mais foi decidido diferir a desocupação do locado pelo prazo de 6 meses, ao abrigo do disposto nos artºs 102º, nº 1, e 103º, nºs 1, al. b), e 2, do RAU.

IV

Dessa sentença interpôs recurso o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, recurso esse que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.

Nas alegações que apresentou o Apelante concluiu da seguinte forma:
1ª - Ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social cabe indemnizar os recorridos apenas pelas rendas vencidas e não pagas durante o período do diferimento da desocupação do local arrendado.
2ª - Relativamente às rendas anteriores ou posteriores ao período do diferimento, a responsabilidade do FSSIGFSS inexiste, e não parece razoável que sejam suportadas por um organismo do Estado, já que tais dívidas inserem-se no âmbito de uma relação jurídica de natureza e âmbito privados, decorrente de um contrato de arrendamento, cujo cumprimento ou incumprimento apenas pode responsabilizar as partes nele intervenientes.
3ª - A decisão recorrida violou o artº 106º, nº 2, do RAU, pelo que deve ser revogada, nesta parte, e ser substituída por outra que limite a indemnização a pagar pelo FSS aos recorridos ao montante das rendas correspondente ao período de diferimento da desocupação do local arrendado por 6 meses.

V
Não foram apresentadas contra-alegações e nesta Relação foi aceite o recurso interposto e tal como foi admitido em 1ª instância, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais.
Nada obsta, pois, a que se conheça do objecto do dito recurso, objecto esse que se restringe à condenação proferida contra o Recorrente, decisão esta no sentido de este dever pagar aos A.A. o montante das rendas vencidas até à data dessa sentença (portanto desde Novembro de 2003 até Fevereiro de 2005, à razão de € 200,00 / mês), contra o que se revela o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, defendendo que o seu dever de indemnizar só tem lugar em relação ao período de diferimento da desocupação do local arrendado e não fora dele, como foi decidido na sentença recorrida.
Apreciando, afigura-se que a razão está do lado do Apelante, como foi decidido nos Acórdãos por ele citados nas suas alegações de recurso, isto é, nos Acórdãos da Relação do Porto de 2/05/2001 e de 5/11/2002, e da Relação de Lisboa de 21/05/1996, disponíveis na base de dados da DGSI, in www.dgsi.pt.
Com efeito, dos artºs 102º a 106º do RAU, artigos estes que integram uma subsecção da secção relativa à cessação do contrato de arrendamento urbano para habitação – subsecção que regula apenas o diferimento das desocupações em tais situações -, resulta que é legítimo o diferimento da desocupação de um local arrendado para habitação, sendo este motivado pela cessação do respectivo contrato, quando haja razões sociais imperiosas que assim o aconselhem.
Foi o que aconteceu no presente processo, onde foi decidida a resolução do contrato de arrendamento urbano que ligava as partes na acção, por falta de pagamento de rendas, ao abrigo do artº 64º, nº 1, al. a), do RAU, como foi peticionado pelos donos do imóvel, tendo, porém, sido decidido o diferimento da desocupação do locado por 6 meses, a pedido dos inquilinos, que alegaram carência de meios económicos para poderem suportar o pagamento quer das rendas vencidas e não pagas, quer de quaisquer outras rendas, dado o muito reduzido montante do rendimento disponível familiar.
Não está em causa neste recurso a decisão que foi tomada acerca de tal diferimento, decisão essa já transitada em julgado, a qual colheu o seu fundamento no disposto nos artºs 103º, nº 1, al. b), e 104º, nº 1, do RAU – por se tratar de uma resolução do contrato de arrendamento por não pagamento de rendas e a falta desse não pagamento se dever a carência de meios económicos do inquilino e sua família.
O que está apenas em causa é a parte dessa sentença que decidiu caber ao aqui Recorrente o dever de indemnizar o senhorio pelas rendas vencidas e não pagas, mais juros de mora…
Ora, conforme já se disse, o conjunto dos citados preceitos insere-se numa subsecção que apenas trata do tema “diferimento das desocupações”, pelo que é a esta luz que tais preceitos têm de ser entendidos, ao abrigo do artº 9º do C. Civ.
Assim, nos termos do artº 105º, nº 5, do RAU, “a decisão que diferir a desocupação é oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao FSSIGFSS”, comunicação esta cuja finalidade e apenas a de dar conhecimento a este Fundo de que deve “indemnizar o senhorio pelas rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora, ficando subrogado nos direitos do dito senhorio”, como resulta do artº 106º, nº 2, do RAU.
Mas, quais são estas rendas que cumpre serem indemnizadas pelo referido Fundo?
Apenas podem ser as resultantes do diferimento da desocupação, quando esse diferimento se baseie em razões de carência económica do inquilino e pelo período decidido para o efeito, pois apenas é este aspecto que se acautela no referido instituto jurídico – do diferimento das desocupações.
Neste instituto não está já em causa a resolução do contrato de arrendamento propriamente dita e as razões que conduziram ao seu decretamento, mas apenas a desocupação do local arrendado, ou seja a efectivação do despejo propriamente dito e ordenado, o qual pode ser diferido por uma dado período de tempo, a pedido e no interesse do inquilino, por razões sociais, pelo que é apenas em ordem destas razões e relativamente a esse período que deve ser acautelado o direito do senhorio a receber as rendas correspondentes, já que as demais rendas vencidas e não pagas apenas respeitam à relação contratual discutida na acção de despejo, o que está fora da intervenção do Fundo de Socorro Social.
É o que também defende Jorge Alberto Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano anotado e comentado” em notas ao artº 105º, onde escreve : «se a desocupação tiver como fundamento as rendas vencidas na pendência da acção e que não foram pagas ou depositadas nos termos gerais, o FSS, no caso da al. b) do nº 1 do artº 103º, não as tomará a seu cargo».
Mas mais convincentes são os já citados acórdãos, para os quais se remete, onde muito clara e fundamentadamente se defende que “o nº 2 do artº 106º do RAU deve interpretar-se no sentido de caber ao FSSIGFSS indemnizar o senhorio no montante correspondente ao das rendas que vigoravam à data da resolução do contrato de arrendamento mas apenas durante a moratória resultante do diferimento da desocupação concedida, acrescidas de juros de mora, quando não pagas tempestivamente (e ao abrigo do DL nº 293/77, de 20/07)”.
E tem de ser assim interpretado o citado nº 2 do artº 106º do RAU, na medida em que tal preceito proveio do DL nº 293/77, de 20/07, em cujo relatório se fez expressamente constar que “…(o senhorio) é ressarcido sempre que o inquilino não pague as rendas, pelo período correspondente à duração da moratória, através do Instituto da Família e Acção Social do Ministério dos Assuntos Sociais”.
E no artº 16º desse diploma previa-se que “1. O IFAS indemnizará o autor pelas rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento, acrescidas de juros de mora, ficando subrogado nos direitos daquele. 2. A indemnização poderá ser paga, em termos a regulamentar, no termo do prazo de diferimento e de uma só vez ou à medida que as rendas se vencerem”.
Donde a conclusão óbvia de que o nº 2 do artº 106º do RAU deve ser interpretado no sentido de que o FSSIGFSS apenas é responsável pelo pagamento ao senhorio das rendas correspondentes ao período de diferimento da desocupação e enquanto esta não se der, acrescidas de juros de mora, caso não tenham sido pagas pelo inquilino, ficando o referido Fundo subrogado nos direitos do senhorio em relação ao inquilino.
Face ao que procede o recurso interposto, em consequência do que se impõe alterar a sentença recorrida nos sobreditos termos.

VI
Decisão:
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto, em consequência do que se altera a sentença recorrida, na parte respeitante ao Recorrente, passando essa decisão a ter a seguinte redacção quanto a este aspecto:
“Cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social indemnizar o senhorio (o Autor na acção) pelas rendas correspondentes ao período de diferimento da desocupação (6 meses) e se tal período tiver ocorrido, à razão de € 200,00 /mês, acrescidas de juros de mora, caso não tenham sido pagas pelo inquilino, ficando o referido Fundo subrogado nos direitos do senhorio em relação ao inquilino”.

Sem custas, nos termos do artº 105º, nº 6, do RAU.