Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4371/07.0TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO DE JESUS
Descritores: OBRIGAÇÃO NATURAL
REQUISITOS
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 12/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 402º DO C. CIV.
Sumário: I – O artº 402º do C. Civ. consagra a “obrigação natural” como uma figura de carácter geral, compreendendo no seu âmbito todos os deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento não seja judicialmente exigível, mas corresponda a um dever de justiça.

II – Em geral, são dados como exemplos de deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento corresponde a uma ordem de justiça (comutativa), o caso típico do cumprimento da obrigação prescrita ou do dever legal que haja caducado ou da percentagem remitida pelos credores ao devedor concordado, e não um simples pensamento de piedade, de caridade, de cavalheirismo ou a um sentimento de escrúpulo de carácter individual.

III – São seus pressupostos – ou requisitos positivos – o basear-se a obrigação num dever moral ou social e ao seu cumprimento corresponder um dever de justiça.

IV – É requisito negativo da obrigação natural, e constitui ponto líquido, a sua não coercibilidade – há plena liberdade de incumprir por o direito do credor não ser accionável.

V – O dever de ordem moral ou social em que se funda a obrigação não é definido por lei, nem o podia ser – cabe aos tribunais determinar, em relação a cada caso, se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação como natural.

VI – A existência de uma declaração escrita do Réu no sentido de “se obrigar a pagar as despesas da Universidade da filha da autora, até à conclusão do curso”, não podia ser entendida por qualquer pessoa medianamente diligente e sagaz senão no sentido de o réu estar a assumir essa obrigação como um vínculo e como uma contrapartida para alcançar algo da autora – pelo que tal declaração tem de ser entendida como a assumpção de uma obrigação civil, não como uma obrigação natural.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO


           

A..., divorciada, residente…., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra B...., divorciado, residente…., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 1 838,00€ correspondente a prestações da mensalidade escolar da filha da autora C...., relativas à frequência do Curso de Medicina Veterinária na Universidade Vasco da Gama, em Coimbra, e demais vincendas até à conclusão do curso, e numa sanção compulsória não inferior a € 250,00 por cada dia de atraso do réu no cumprimento do pagamento daquela propina.

Para tanto, alega, em síntese, que o réu assumiu tal obrigação na sequência de acordo para divórcio, que consubstancia verdadeiro contrato-promessa de separação de meações, que se encontra a ser escrupulosamente cumprido. Estranhamente, e tendo cumprido até Agosto de 2007, o réu cessou o pagamento em Setembro de 2007, violando assim a obrigação natural assumida livremente, sendo contrapartida económica da divisão dos bens comuns do casal a que prometeram proceder.

Tratando-se de obrigação de prestação de facto, deve fixar-se uma sanção compulsória por cada dia de atraso.

Contestou o réu, alegando, em síntese, que em 13 de Abril de 1989, autora e réu contraíram entre si casamento civil, em primeiras núpcias do réu e terceiras da autora, sob o regime da separação de bens, tendo a autora já a filha C.... fruto de um dos seus anteriores casamentos, nascida em 25 de Agosto de 1985, que se encontrava à sua guarda e cuidados.

No final do mês de Abril de 2006, o autor saiu da casa de morada de família, na …., instalando-se, a partir do dia 1 de Maio de 2006, em…., onde passou a viver no apartamento que então arrendou e onde ainda hoje reside.

A autora reconhecia que a relação conjugal com o réu estava degradada, e sabia também que o réu tudo faria para tentar resolver a situação do casal de forma consensual, sem recurso às vias judiciais.

Aproveitando-se destas circunstâncias, a autora impôs ao réu um conjunto de condições, sob ameaça de não concordar com o divórcio por mútuo consentimento, que plasmou num documento por si exclusivamente elaborado, e que em 06 de Maio de 2006 apresentou ao réu para este assinar.

Assinou em consequência da pressão psicológica resultante, por um lado, do facto de querer ver dissolvida a relação conjugal que estava desfeita e, por outro, da ameaça da autora de, caso o réu não assinasse, não lhe conceder o divórcio.

Com tal documento, visava a autora tão somente obter do réu a declaração de que eram propriedade exclusiva da autora um conjunto de bens (carro e recheio da casa) que haviam sido todos eles adquiridos com o produto do salário do réu, e que nessas circunstâncias, atento o regime de bens do casamento, pertenciam efectivamente ao réu.

Durante todo o tempo de duração do casamento sempre o réu tinha tratado a filha da autora como sua própria filha e sempre esta tinha tratado o réu como um “segundo pai”, constituindo o dever de prestação de alimentos uma verdadeira obrigação natural que o réu cumpriu enquanto lhe foi possível; mas que desde o mês de Julho de 2007 não tem possibilidade de continuar a cumprir, sem pôr em causa a sua própria subsistência e a das pessoas actualmente a seu cargo.

 Após o divórcio, o réu veio a estabelecer um relacionamento em tudo análogo ao dos cônjuges com outra pessoa e desta relação de união de facto veio a nascer em 13-4-2007 um filho pelo que viu aumentar substancialmente os seus encargos, mantendo-se os rendimentos.

Conclui pugnando pela improcedência do pedido por qualquer das seguintes razões:

- Por emitida sob pressão psicológica, a declaração é anulável, à luz dos artigos 255º e 256º do Código Civil;

- mesmo que assim se não entenda, sempre tal acordo seria nulo por alterar, em violação clara do disposto no Artigo 1714º do Código Civil, as regras que valem acerca da propriedade dos bens, modificando em concreto o estatuto dos bens móveis que compunham o recheio da casa, do carro, da própria casa de habitação e do dinheiro depositado em contas bancárias;

- ainda que se entenda que o “acordo para divórcio” era válido não poderia proceder o pedido formulado pela autora, a obrigação de prestação de alimentos a favor de pessoas que não tenham o direito de exigi-los, como é o caso presente, constitui uma obrigação natural, não sendo o seu cumprimento judicialmente exigível, como dispõe o Artigo 402º do Código Civil;

- a entender-se estarmos perante uma obrigação civil de prestação de alimentos – a esta obrigação sempre seriam aplicáveis, por força do disposto no Artigo 2014º do Código Civil, as disposições previstas nos artigos 2003º a 2013º daquele Código, designadamente, o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 2013º (a obrigação de prestar alimentos cessa quando quem os presta não possa continuar a prestá-los).

A autora deduziu resposta, na qual, em súmula, impugnou a matéria de excepção, requerendo, a final a condenação do réu em litigância de má fé.

Saneado e condensado o processo, realizou-se a audiência de discussão e julgamento vindo a acção a ser julgada parcialmente procedente nos seguintes termos:

a) condeno o réu no pagamento à autora da quantia de € 1838,00 ( mil oitocentos e trinta e oito euros) - correspondendo a prestações da mensalidade escolar da filha (da mesma), relativas à frequência do Curso de Medicina Veterinária, na Universidade Vasco da Gama, em Coimbra, e demais vincendas, até à conclusão do curso.

b) absolvo o réu do pedido de aplicação de sanção compulsória não inferior a € 250,00 por cada dia de atraso do réu no cumprimento do pagamento daquela propina.”.

Inconformado, apelou o réu que das suas alegações tira as seguintes conclusões:

[…………………………………………………………….......].

A autora contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

ªªª

            As conclusões do recorrente – balizas delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cod. Proc. Civ.) – consubstanciam as seguintes questões:

a) Se a cláusula 12ª do acordo celebrado consubstancia uma obrigação natural;

b) Interpretação da declaração negocial.

ªªª

                                                               


I I – FUNDAMENTAÇÃO

 DE FACTO

Vem dada por provada a seguinte matéria fáctica:

1. Autora e réu foram casados entre si no regime de separação de bens, tendo-se divorciado por mútuo consentimento em Julho de 2006, na Conservatória de Registo Civil de Coimbra.

2. Autora e réu assinaram um acordo para divórcio (datado de 6 de Maio de 2006) onde figuram como primeiro outorgante o réu e como segunda outorgante a autora.

3. Tal acordo contém entre outras as seguintes cláusulas:

- cláusula décima primeira:” fica o primeiro outorgante obrigado e aceita pagar à segunda, para a mesma fazer face a encargos da vida doméstica, as seguintes prestações;

a) 2000,00 €, mensalmente e até ao dia 8 do respectivo mês, até à concretização da escritura pública de compra e venda da casa de morada de família, …..”

-cláusula décima segunda: “ não estão incluídas nas verbas acima referidas, as despesas da Universidade Vasco da Gama da filha da segunda outorgante, C...., que serão pagas, até à conclusão do curso, pelo primeiro outorgante, como tem vindo a acontecer até aqui, e se compromete a continuar a fazer através de transferência da sua conta bancária”.

4. Em Agosto de 2007, o réu não pagou a prestação mensal da filha da autora C.... na Universidade Vasco da Gama.

[…………………………………………………………]


ªªª

            DE DIREITO

A) Se a cláusula 12ª do acordo celebrado consubstancia uma obrigação natural

A questão a dirimir nos presentes autos traduz-se em se saber se, face à matéria dada como provada e que não vem posta em causa pelo que se deve considerar como definitivamente assente (art. 712º do C.P.C.), dever-se-á considerar que a obrigação contida na cláusula 12ª do Acordo para Divórcio constante do documento de fls. 4 a 6 configura uma mera obrigação natural, ou se estamos na presença de uma obrigação de alimentos contratualmente estabelecida.

A sentença recorrida sustenta que estamos na presença de uma obrigação civil de alimentos tendo como fonte um negócio jurídico.

Para o apelante os factos provados integram uma obrigação natural, donde não ser judicialmente exigível.

Vejamos, então.

Dispõe o artigo 402º do Código Civil que "a obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça."

Consagra este artigo a obrigação natural como uma figura de carácter geral, pondo termo à controvérsia suscitada em face do Código anterior sobre se tinha essa amplitude ou só era admitida em determinados casos, compreendendo no seu âmbito todos os deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento não seja judicialmente exigível, mas corresponda a um dever de justiça.

A obrigação natural compreende, então, tudo o que não é nem uma mera obrigação civil munida de acção, nem uma pura liberalidade.

Geralmente são dados como exemplo de deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento corresponde a uma ordem de justiça (comutativa), o caso típico do cumprimento da obrigação prescrita ou do dever legal que haja caducado ou da percentagem remitida pelos credores ao devedor concordado, e não um simples pensamento de piedade, de caridade, de cavalheirismo ou a um sentimento de escrúpulo de carácter individual[1].

São seus pressupostos - ou requisitos positivos - o basear-se a obrigação num dever moral ou social e ao seu cumprimento corresponder um dever de justiça.

"Para que haja obrigação natural é necessário que exista como fundamento da prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas cujo cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses (ditames da justiça)", de que constitui um caso típico referido na lei a prestação de alimentos (art. 495º, nº 3 do Código Civil) efectuada a favor de certas pessoas que não tenham direito de exigi-los mas que por laços de sangue, relações de convívio ou de serviços prestados ao devedor imponham como um dever de justiça o encargo da sustentação, habitação e vestuário da pessoa a quem são facultados[2].

É requisito negativo da obrigação natural, e constitui ponto líquido, a sua não coercibilidade. Há plena liberdade de incumprir por o direito do credor não ser accionável.

Ora, o dever de ordem moral ou social em que se funda a obrigação não é definido por lei, nem o podia ser. Cabe aos tribunais determinar, em relação a cada caso, se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação como natural[3].

Não é tarefa fácil definir, no plano prático, os seus contornos jurídicos, mas aplicando e integrando estes conceitos nos factos dados como provados, afigura-se-nos que se não está aqui perante uma situação que possa ser definida como de obrigação natural.

Com efeito, dos factos provados resulta que:

- Quando a autora e réu casaram em 13/04/89, já a primeira tinha a filha C.... nascida em 25 de Agosto de 1985 (doc. fls. 49/50 e 21 dos factos provados);

- Durante todo o tempo de duração do casamento entre a autora e o réu, sempre este tratara a filha da autora como sua própria filha e sempre esta o tratara como pai, acarinhando-a, apoiando-a nas mais diversas actividades, acompanhando o seu percurso escolar, acompanhando-a nos seus tempos de lazer, em passeios, brincadeiras e jogos, bem como nas suas doenças, ajudando a suportar os encargos com a sua saúde e formação (13 dos factos provados).

Assim tendo acontecido, sem dúvida que enquanto durou o casamento as prestações prestadas pelo réu custeando as despesas da filha da autora no seu curso de veterinária correspondem a verdadeira obrigação natural. A relação conjugal com a autora, a ambiência e harmonia familiar vivida, a especial relação de afecto que se estabeleceu entre o réu e a filha da autora, que ele reconhece e invoca, tratando o réu aquela como se fosse sua filha e esta aquele como se fosse seu pai, até porque do casamento da autora e réu não advieram filhos, e a natural dependência económica da C.... da mãe, justificam perfeitamente o dever moral, social e o dever de justiça de que o réu suportasse essas despesas como se ela sua filha fosse.

Porém, esse quadro familiar, essa harmonia de afectos e de sustentos, desmoronou-se com a degradação da vida conjugal, a saída do réu da casa de morada de família, e a dissolução do casamento.

Como atrás evidenciámos, no essencial, a obrigação natural trata-se de uma obrigação que, embora não provida de acção pelo direito positivo, se considera suficientemente fundada para constituir obrigação jurídica.

É bem diferente o caso sub júdice após o divórcio das partes.

A partir da rotura conjugal e da dissolução do casamento o réu deixou de estar vinculado a qualquer dever de ordem moral ou social de pagar ou se responsabilizar pelo pagamento dos estudos da filha da autora, cujo cumprimento constituísse um dever de justiça.

O que o recorrente pretendeu foi obter a aceitação por parte da autora do divórcio por mútuo consentimento e, para tanto, propôs-se assumir pessoalmente a responsabilidade pelo pagamento dessas despesas.

Não se trata, portanto, de um mero dever de ordem moral ou social correspondente a um dever de justiça.

Depois, do conteúdo da cláusula 12ª do Acordo para Divórcio resultam para o recorrente prestações não só futuras como periódicas às quais é fixado um termo ad quem, a conclusão do curso da C.....

A necessidade de preservar a incoercibilidade da obrigação natural a que já aludimos tem como consequência, quanto ás prestações periódicas, que a realização da prestação relativa a certo período não vincula o devedor ao cumprimento das prestações correspondentes aos períodos subsequentes[4].

O espírito da lei, ao reconhecer os deveres de ordem moral ou social que estão na base das obrigações naturais, é o de manter a espontaneidade do cumprimento....Até ao momento da prestação, a pureza do vínculo exige que o devedor conserve a plena liberdade de cumprir ou deixar de cumprir...”[5].

Daí que se se tratasse de uma obrigação natural, teria de emanar daquela cláusula que a prestação do réu se manteria enquanto ele o considerasse conveniente, ou seja, ter-lhe-ia sido dada uma redacção que lhe conferiria a plena liberdade de deixar de efectuar essa prestação quando o entendesse. Mas não, ao contrário, a cláusula vincula-o ao pagamento das despesas da filha da autora na Universidade Vasco da Gama, enquanto ela aí se mantiver a estudar e até à conclusão do curso.

Temos, pois, não se tratar de uma obrigação natural, mas de uma obrigação civil, voluntariamente assumida, dentro da liberdade estatuída no art. 405º do Código Civil, visto que após a dissolução do casamento nenhum dever de justiça lhe impunha o pagamento de tais despesas.

Foi, neste contexto, que o aludido acordo foi celebrado, e da análise do mesmo, constata-se que se rege por estipulações, fixadas pelas partes, de harmonia com o princípio da liberdade negocial consagrado no art. 405º do Código Civil.

B) Interpretação da declaração negocial

Mas, a resolução da questão colocada passa também pela ponderação dos princípios legais respeitantes à interpretação das declarações negociais, e parece-nos que igualmente virá em apoio da ideia de que se trata de uma obrigação civil.

A interpretação dos negócios jurídicos - e sobretudo das declarações negociais que os enformam - rege-se pelas disposições dos arts. 236º a 238º do Código Civil, que em tal sede consagram, de forma mitigada, o princípio da impressão do destinatário.

Assim, a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se ela for conhecida do declaratário (art. 236º, n.º 2); não o sendo, valerá com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do declaratário real, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (n.º 1 do mesmo artigo).

Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha no texto do documento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, n.º 1,); mas esse sentido pode valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa realidade (nº 2 do mesmo artigo).

Isto é, nos negócios formais, como acontece no caso em apreço, a determinação do sentido juridicamente relevante das declarações negociais obedece à disciplina decorrente dos arts. 236º, n.º 1, e 238º, n.º 1, do Código Civil, pelo que o critério interpretativo segundo a impressão de um declaratário normal colocado na posição do real declaratário encontra-se limitado por um mínimo literal constante do texto do documento.

Haverá, porém, como é óbvio, para proceder à interpretação, que atender a todos os factos que a permitam realizar e a todos os elementos de prova atendíveis, tendo nomeadamente em atenção que é permitido o recurso a prova extrínseca para interpretação de um documento como está expresso no nº 3 do art. 393º do mesmo código.

Ou seja, há que apurar o que as partes efectivamente pretenderam com a celebração do acordo para divórcio, pois é a vontade das partes que há, em primeira linha, que ter em conta, tal como se entendeu no Ac do STJ de 13-12-2000, na Revista n.º 3170/00 - 7.ª Secção: “ Na interpretação do sentido normal de uma declaração deve levar-se em conta todo o conjunto de circunstâncias atendíveis, nomeadamente as precedentes relações entre declarante e declaratário sobre o assunto objecto da declaração, a envolvência do conjunto negocial em que, porventura, ela esteja inserida, os interesses em jogo, os usos da prática em matéria terminológica, e o modo como, posteriormente, foi dada execução ao negócio, além de outras.”[6].

Partindo do pressuposto de que esse “declaratário normal” é uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente, consagra-se, pois, a doutrina de impressão do destinatário, considerada a mais razoável e justa, por melhor tutelar a “legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração”[7].

Só em caso de dúvida, ou seja, só quando permanecer equívoco ou ambíguo o resultado da actividade interpretativa, é que deverá dar-se prevalência, nos negócios onerosos, ao sentido “que conduzir ao maior equilíbrio das prestações” (art. 237º).

Ora, refere o recorrente que tal declaração corresponde tão só ao reconhecimento da obrigação natural de alimentos.

Interessa, assim, averiguar qual o sentido com que foi inserta aquela cláusula, e não nos parece que à mesma possa ser atribuído tal significado.

A cláusula 12ª encontra-se integrada num contexto negocial mais amplo, num acordo para o divórcio por mútuo consentimento que foi discutido entre a autora e o recorrente e cujas condições acertadas foram plasmadas no documento referido, para que ficassem com transparência definidos os respectivos vínculos.

Não é assim compreensível a inserção num conjunto de compromissos e contrapartidas prevalentemente de natureza económica do que se pretende seja unicamente o reconhecimento de uma prestação que o réu só prestaria se e enquanto o entendesse. Nenhuma utilidade ou vantagem conferiria ao outro celebrante, nem se divisa que tal pudesse ser objecto de controvérsia e negociação a justificar perpetuação e memória documental.

A sua inclusão só se entende, só tem sentido útil, se for para vincular o réu.

Os termos literais empregues claramente o inculcam - “as despesas da Universidade Vasco da Gama da filha da segunda outorgante, C...., que serão pagas, até à conclusão do curso, pelo primeiro outorgante, como tem vindo a acontecer até aqui, e se compromete a continuar a fazer através de transferência da sua conta bancária” -, indo ao detalhe de pormenorizar a forma de satisfazer o pagamento, através de transferência da sua conta bancária.

Portanto, a própria letra da cláusula em apreciação aponta, desde logo, para a interpretação dada pela sentença recorrida.

Depois, essa interpretação resulta igualmente dos interesses compreendidos no negócio, do seu tratamento mais razoável e dos objectivos visados pelas partes.

Sintomático e conveniente será a leitura da motivação e justificação da resposta dada ao quesito 25 para melhor se entender a justificação para o pagamento daquelas despesas. O tribunal escreve que: “ …na sequência da sua decisão unilateral do divórcio comunicada pelo réu em 1 de Abril de 2006…, ambos procederam à discussão e acerto das condições, e que seriam também a contrapartida da “concessão” do divórcio por mútuo consentimento pela autora”.

Sendo certo que é sobre os pais que incumbe o dever de “prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação” se estes, no momento em que se tornam maiores, não tiverem “completado a sua formação profissional” (artigos 1879º e 1880º do Código Civil), com tal compromisso é a autora a real beneficiária imediata e directa daquela cláusula 12ª.

A declaração do réu/recorrente no sentido de pagar as despesas da Universidade Vasco da Gama da filha da autora, C...., até à conclusão do curso, não podia ser captado por qualquer pessoa medianamente diligente e sagaz senão no sentido de o réu estar a assumir essa obrigação como um vínculo e como uma contrapartida para alcançar a disponibilidade da autora para o divórcio por mútuo consentimento.

Reforça esta leitura, a circunstância de logo no início da redacção da aludida cláusula se advertir que no montante de 2 000,00€ que o réu se obrigou a pagar mensalmente para a autora fazer face aos encargos da vida doméstica, constante da cláusula 11ª, não se incluíam as despesas da universidade da sua filha, o que bem evidencia que estas constituíam um mais a suportar pelo réu, não se tratando de um dever de ordem moral ou social.

Daí que, tenhamos como certo que o réu, enquanto o fez após a dissolução do casamento com a autora, não pagou aqueles montantes para realizar ou praticar um acto que simplesmente integrasse “um dever de ordem moral ou social” fixado no art. 402º do C. Civil, podendo o seu cumprimento até ser integrado e corresponder a um “dever de justiça”, mas antes por ter assumido uma obrigação civil pretendendo ver desfeito o seu casamento[8].

Em suma, a obrigação assumida pelo apelante é uma obrigação civil, parecendo-nos que essa conclusão resulta, com certa clareza, da cláusula referida.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação do recorrente.


III-DECISÃO


Termos em que se julga improcedente a apelação, confirmando-se consequentemente a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


[1] Cfr. P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I, pág.352.
[2] Cf. Prof. Antunes Varela, "Das obrigações em geral", 9ª ed., vol. I, págs. 748 e segs.
[3] Cfr. P. Lima e A. Varela, loc. cit., pag. 351.
[4] A. Varela, loc. cit., pág. 758.
[5] A. Varela, loc. cit., pág. 760 e 761.
[6] No mesmo sentido Vaz Serra, na Rev. Leg. Jur., Ano 111º, pág. 220.
[7] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed.,, pág. 447.
[8] O réu poderá ter tido primordialmente em conta ao aceitar aquele vínculo as vantagens que pretendia obter a curto prazo, desvalorizando os inconvenientes que daí lhe poderiam advir no longo prazo.