Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3409/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO-
REGIME LEGAL APLICÁVEL A CADA CONTRATO
Data do Acordão: 12/07/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 239º E 1028, Nº 3, DO C. CIV.
Sumário: I Não resultando explicitamente de dois contratos de arrendamento urbano celebrados pelas mesmas partes, na mesma ocasião, e relativos ao mesmo prédio, um para habitação e outro para comércio, que exista subordinação de um arrendamento ao outro, haverá que tentar refazer a vontade ( hipotética ) das partes ao celebrarem os contratos, de harmonia com o disposto no artº 239º do C. Civ. .
II – Porém, deverá ser aplicado o regime próprio do fim subordinado desde que isso não contrarie o regime correspondente ao fim principal e a aplicação dele não se mostre incompatível com este fim – artº 1028º, nº 3, in fine, do C. Civ .
Decisão Texto Integral: 14

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A... e mulher B..., residentes na Rua 1º de Dezembro, 39, Seia, propõem contra C... e mulher D..., residentes na Quinta da Raposeira, Seia, a presente acção de condenação com processo sumário, pedindo que os RR. sejam condenados a verem resolvido o contrato de arrendamento relativo ao 1º e 2º andares do prédio identificado no art. 1º da p.i., condenando-se os mesmos a despejarem o arrendado, entregando-o livre e devoluto a eles, AA.
Fundamentam o pedido, em síntese, no facto de serem proprietários do prédio que identificam, sendo que o A. marido deu de arrendamento ao R. o 1º e 2º andares do prédio com destino à habitação. Sucede que os RR. não residem no locado, há cerca de 3 anos, sendo que a partir do momento em que deixaram de habitar no local, passaram a utilizar o espaço como armazém do estabelecimento de café-restaurante que exploram no r/c do prédio. Há cerca de 2 meses passaram os RR. a usar o local arrendado para recepção de aposta mútuas desportivas e lotarias, mantendo a porta de acesso à habitação aberta para recepção ao público. Também há cerca de 2 meses e sem sua autorização, os RR. fizeram na parede da casa e ao lado da porta de entrada uma grande abertura, tendo aí construído um anexo ou armário em tijolo, para instalações de botijas de gás, obras que alteram, de forma substancial, a estética da fachada exterior da casa, motivos que lhes conferem o direito de resolverem o contrato de arrendamento, nos termos do nº 1 al. b), d) e i) 2ª parte do art. 64º do RAU.
1-2- Os RR. contestaram, referindo, também em síntese, que fazem dos locais arrendados exactamente o mesmo uso do arrendamento, tal como os anteriores locatários. O imóvel, desde o início do contrato, tem vindo a ser afecto à exploração do negócio de café e restaurante, destinando-se os andares a repouso e dormida dos arrendatários e seus familiares, à guarda de objectos e à gestão do estabelecimento comercial. Fizeram as obras no r/c, café/restaurante, com autorização dos AA. Não existiu pois mudança de ramo ou fim, nem cessação da actividade permitida, nem falta de residência permanente.
Terminam pedindo a improcedência da acção.
1-3- Os AA. responderam à contestação, sustentando que não existe qualquer dependência ou subordinação do r/c aos andares. Os AA. celebraram com o R. marido dois contratos distintos, o 1º e 2º andares foram dados ( de arrendamento ) com destino à habitação e o r/c com destino ao exercício do comércio, sendo que os andares e o r/c e cave têm entradas separadas.
Termos em que concluíram como na p.i..
1-4- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu ao questionário e se proferiu a sentença.
1-5- Nesta considerou-se improcedente por não provada a acção e, em consequência, absolveu-se os RR. do pedido.
1-6- Não se conformando com esta sentença, dela vieram recorrer os AA., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-7- Os recorrentes alegaram, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões úteis:
1ª- Na sentença recorrida, em face da matéria produzida, decidiu-se que aquela matéria permitia concluir com segurança que os RR. deixaram de ter na parte habitacional, a sua residência permanente, sendo que tal situação constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento ( arts. 63º e 64º do RAU ) e consequente procedência da acção.
2ª- Todavia o Sr. Juiz, reconhecendo que se estava em presença de um só arrendamento e que a parte habitacional do imóvel está subordinado ao arrendamento comercial, por imposição e aplicação do art. 1028º nº 3 1ª parte do C.Civil, julgou a acção improcedente.
3ª- A matéria provada não permitia tal conclusão.
4ª- O Sr. Juiz deveria discriminar os factos que considerou provados e após isso interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pelo decisão final.
5ª- Porém sem analisar a matéria de facto, logo concluiu, sem mais, que a factualidade provada permite concluir pela insubsistência da tese dos AA. e subsistência da tese dos RR..
6ª- E acabou por concluir pela acessoriedade da parte habitacional como algo de acessório em relação à sua ligação principal com o prédio dos RR., locação que também diz respeito à exploração do estabelecimento.
7ª- Encontra-se demonstrado nos autos que os AA. deram de arrendamento ao R. marido para habitação o 1º e 2º andares do prédio, subscrevendo o doc. de fls. 8, tendo subscrito igualmente os AA. e RR. o contrato de arrendamento para comércio de fls. 29, este e o anterior confessados pelo R. em sede de depoimento de parte, como contratos de arrendamentos distintos.
8ª- Das respostas aos quesitos 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 11º e 27º, os AA. não lograram provar, cujo ónus lhes incumbia, que havia tão só um arrendamento, destinado á realização de um fim principal, sendo o 1º e 2º andares dependentes ou subordinados a tal fim, ou que tal acontecesse como aos anteriores inquilinos e que sempre tivesse sido das partes tal propósito.
9ª- A acção terá que proceder.
10ª- O contrato promessa de fls. 64 sujeita apenas o contrato de arrendamento para habitação a uma cláusula resolutiva e pessoal “intuitu personae”, mas não manifestando, como diz a sentença, qualquer expressão de subordinação de um fim a outro.
11ª- Foram violados os arts. 1028º, 236º e 239º, 342º nº 2 do C.Civil e 264º, 493º nº 3 e 659º nº 2 do C.P.Civil e 63º e 64º do RAU.
Termos em que deve ser concedido provimento à apelação, revogando-se a sentença recorrida.
1-8- A parte contrária respondeu a estas alegações sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- Após as respostas à matéria de facto da base instrutória, ficaram assentes os seguintes factos:
1- Os AA. são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano sito no Largo Dr. Borges Pires, à Rua 1º de Dezembro, nº 81.
2- A... e C... celebraram o contrato de arrendamento de fls. 8.
3- A... e C... celebraram o contrato de arrendamento de fls. 29.
4- A renda actual, em virtude das sucessivas actualizações, é de 22.338$00.
5- Os RR. construíram uma casa de habitação à Quinta da Raposeira, em Seia, composta de cave, garagem, rés-do-chão e sótão.
6- Que os RR. mobilaram e apetrecharam para sua residência própria, tendo-lhe sido concedido, para o efeito, a isenção da contribuição autárquica a partir de 1995 e pelo período de 10 anos.
7- Há um só contador de luz e água e ligação interior de todas as partes arrendadas, concretamente entre o r/c e andares superiores.
8- Os andares arrendados e o r/c e cave afectos ao restaurante, têm entradas separadas.
9- A entrada do restaurante é feita pelo Largo da Câmara.
10- Desde a conclusão da sua casa, em 1995, os RR. passaram a pernoitar habitualmente na mesma, na companhia do filho.
11- Os RR. fora dos tempos em que não estão no café/restaurante que exploram, após as 23 horas de 2ª a sábado e aos domingos, confeccionam e tomam as suas refeições na sua casa.
12- Nas circunstâncias temporais referidas no quesito 3º, os RR. convivem e recebem os amigos na sua casa.
13- Os RR., tal como sempre sucedeu desde a altura referida em B) e C), sempre tomam as suas refeições no estabelecimento comercial, já que a habitação não está dotada de cozinha e de sala de jantar, durante o período de abertura do estabelecimento, sendo que os RR., por ocasiões esporádicas, pernoitam ainda na habitação.
14- Os RR. desde sempre utilizaram e utilizam a habitação para aí guardarem alguns artigos para uso do café e restaurante, como caixas com toalhas, guardanapos e vasilhame, aí tendo um pequeno escritório onde guardam os documentos referentes à exploração do estabelecimento, aí também tendo estado uma arca frigorífica de apoio do estabelecimento.
15- Há cerca de 2 meses usaram o local arrendado para recepção de aposta mútuas desportivas e lotarias, mantendo a porta de acesso à habitação aberta para a recepção ao público, aí instalando um “placar” publicitário.
16- Tendo aí construído um anexo ou armário em tijolo para instalação de botijas de gás.
17- Tendo essa construção de dimensões de cerca de 1,80 x 0,80 metros e sobressaindo da dita parede para a rua cerca de 0,50 metros, sendo a construção mostrada pelas fotografias de fls. 12-13.
18- O que consta da resposta dada ao quesito 22º e ao que consta dos docs. juntos a fls. 30-33, 57-59 e 60-63.
19- O que consta da resposta dada ao quesito 27º e ao que consta dos docs. juntos a fls. 8, 29, e 64.
20- O que consta das respostas dadas aos quesitos 11º e 27º e ao que consta dos docs. juntos a fls. 8, 29 e 64.
21- Os RR. fizeram encostado à casa, já na rua, um anexo imposto pela Câmara Municipal para colocação de duas botijas.
22- Anexo esse dotado de todas as normas de segurança, exterior da casa e do qual sai a tubagem para o estabelecimento.
23- Cessado o contrato com o Sr. José Campos dos Santos, entre o A. marido e o R. marido foram celebrados e por eles subscritos, os contratos juntos a fls. 8 e 29, datados de 27-1-83, tendo previamente, entre o A. marido e o R. marido, sido celebrado o contrato junto a fls. 64, datado de 20-1-83, dando por reproduzido o que deles consta.
24- O acesso aos andares é feita quer pela Rua 1º de Dezembro, quer por uma porta de acesso ao referido andar existente no interior do estabelecimento comercial de café/restaurante.-------------------------------
2-3- Na douta sentença recorrida e para o que interessa para o conhecimento do recurso, o Mº Juiz considerou, em síntese, que, no caso vertente, pese embora tenham sido celebrados dois contratos de arrendamento pelas partes, sendo um de arrendamento comercial e outro de arrendamento urbano, o certo é que existe a subordinação deste contrato ( acessório ) àquele ( principal ), pelo que deve prevalecer o regime correspondente ao fim principal, de acordo com o disposto no art. 1028º nº 3 do C.Civil. Assim sendo, tendo-se embora apurado que os RR. deixaram de ter residência permanente na parte habitacional do prédio, o certo é que existindo a dita subordinação, não existindo fundamento para resolução do contrato de arrendamento da parte comercial, fica afastada a resolução do contrato de arrendamento da parte habitacional. Por isso e quanto a esse fundamento, considerou a acção improcedente.
Abra-se aqui um parêntesis para dizer que o Mº Juiz também considerou não existir fundamento de resolução do contrato em relação ao outro fundamento invocado pelos AA. ( obras alteradoras da estrutura externa do prédio - art. 64º nº 1 al. d) do RAU -), mas sobre este fundamento nada diremos visto que na apelação os correspondentes fundamentos e decisão não foram impugnados.
No recurso, os apelantes, essencialmente, debatem-se contra a posição assumida no aresto recorrido em relação à subordinação do contrato habitacional, em relação ao contrato comercial.
Começam, porém, por sustentar que o Mº Juiz, em contradição com o disposto no art. 659º nº 2 do C.P.Civil, em vez de subsumir a lei aos factos, começou ao contrário invertendo a sequência lógica.
Evidentemente que aqui carecem os apelantes de qualquer razão, já que como se vê compulsando a sentença, o Mº Juiz começou precisamente pela enunciação dos factos provados, procedendo de seguida à integração jurídica desses factos no direito e terminando com a decisão. Cumpriu pois, com rigor, o que estabelece a dita disposição legal.
Passando à questão essencial debatida, indaguemos, então se, na realidade, de pode considerar existir uma subordinação entre os contratos.
Provou-se que o A. marido e o R. marido celebraram os contratos de arrendamento, com a data de 1-2-83 a que respeitam os docs. de fls. 8 e 29.
O contrato de fls. 8 diz respeito à casa de habitação, 1º e 2º andares da Rua 1º de Dezembro nº 18 em Seia, sendo que e o prédio se destina a habitação do arrendatário. A renda estabelecida foi de 12.500$00.
O contrato de fls. 29 diz respeito ao rés-do-chão e cave do Largo Borges Pires em Seia, sendo que o locado se destinou ao desenvolvimento da actividade comercial de café/restaurante ( apesar de no escrito - pré impresso - ter ficado a constar que o prédio se destinava à habitação do arrendatário ). A renda estabelecida foi de 7.500$00.
Temos pois que as partes celebraram, na data indicada, dois contratos de arrendamento. Como resultou provado, os arrendamentos incidiram sobre o mesmo prédio, tendo destinado os andares de cima para habitação e o rés-do-chão e cave à dita actividade comercial. Como igualmente ficou provado, a entrada para a habitação e para o estabelecimento comercial, faz-se por duas portas independentes.
Igualmente se demonstrou que os RR., tal como sempre sucedeu desde a altura da celebração dos contratos, sempre tomam as suas refeições no estabelecimento comercial, já que a habitação não está dotada de cozinha e de sala de jantar, durante o período de abertura do estabelecimento, sendo que os RR., por ocasiões esporádicas, pernoitam ainda na habitação. Os RR. desde sempre utilizaram e utilizam a habitação para aí guardarem alguns artigos para uso do café e restaurante, como caixas com toalhas, guardanapos e vasilhame, aí tendo um pequeno escritório onde guardam os documentos referentes à exploração do estabelecimento, aí também tendo estado uma arca frigorífica de apoio do estabelecimento.
Ficou também provado que, cessado o contrato com o Sr. José Campos dos Santos ( anterior arrendatário ) e previamente aos contratos de arrendamento já aludidos, o A. marido e o R. marido celebraram o contrato-promessa, junto a fls. 64, datado de 20-1-83, donde consta, para além do mais, na sua cláusula 4º, que o contrato (de arrendamento habitacional ) se manterá em vigor enquanto o 2º outorgante ( o R. marido ) estiver a explorar directamente e por conta própria o estabelecimento de café e restaurante, instalado no rés-do-chão e cave do mesmo e que lhe vai ser trespassado por José Campos dos Santos, caducando logo que aquele efectue por seu turno o trespasse do estabelecimento ou conceda a sua exploração ou delegue ainda a mesma exploração em terceiro ou procurador bastante.
Como se vê, dos termos dos contratos não resulta que haja subordinação de um contrato ao outro, já que nada neles foi estabelecido sobre o assunto.
Portanto a pergunta que haverá a formular será se os elementos factuais provados, concretamente os agora salientados, inculcam no sentido da subordinação dos contratos, mais concretamente a subordinação do arrendamento habitacional ao arrendamento comercial ?
Vejamos:
Nos termos do art. 1028º nº 1 do C.Civil “se uma ou mais coisas forem locadas para fins diferentes, sem subordinação de uns aos outros, observar-se-á, relativamente a cada um deles, o regime respectivo”.
Acrescenta o nº 2 da disposição que “as causas de nulidade, anulabilidade ou resolução que respeitem a um dos fins não afectam a parte restante da locação, excepto se do contrato ou das circunstâncias que o acompanham não resultar a discriminação das coisas ou partes da coisa correspondentes às várias finalidades, ou estas forem solidárias entre si”.
Por fim, refere o nº 3 da disposição que “se, porém, um dos fins for principal e os outros subordinados, prevalecerá o regime correspondente ao fim principal; os outros regimes só são aplicáveis na medida em que não contrariem o primeiro e aplicação deles não se mostre incompatível com o fim principal”.
Daqui resulta para além do mais e para o que aqui importa, que não havendo subordinação de um fim a outro, aplicam-se os dois regimes. Isto é, se o imóvel for arrendado para mais que um fim, aplicam-se em princípio, a cada um o regime respectivo ( teoria da combinação, vide Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª edição, pág. 248 ).
Assim não sucederá se existir subordinação de um fim a outro, ou se do contrato ou das circunstâncias que o acompanham não resultar a discriminação das coisas ou partes da coisa correspondentes às várias finalidades, ou se houver solidariedade de fins a que as coisas se aplicam.
Para o caso dos autos haverá que fazer ressaltar que não se aplicará a cada um dos contratos o regime respectivo, se existir a subordinação de um fim a outro. Neste caso deve-se aplicar o regime do fim principal dos contratos. No dizer de Antunes Varela “ o regime correspondente à prestação principal que integra o contrato, absorve as partes restantes do negócio” ( Contratos Mistos, 1968, pág. 14, referenciado no C.Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. II, pág. 373 ). É a chamada teoria da absorção ( vide ainda Arrendamento Urbano, Aragão Seia, pág. 110 ).
Voltando à vexata questio diremos que, não resultando explicitamente dos contratos tal subordinação ( visto que isso não foi neles estipulado ), haverá que tentar refazer o querido para partes ( vontade hipotética ) ao celebrarem o contrato, de harmonia com o disposto no art. 239º do C.Civil.
Não temos dúvidas que a subordinação de que vimos falando, deveria ser provada pela parte que a invocou e que lhe aproveita, isto é pelos RR. ( art. 342º nº 2 do C.Civil ).
E será que os RR. lograram fazer tal prova ?
Recorde-se que se provou que, tal como sempre sucedeu desde a altura da celebração dos contratos, sempre os RR. tomaram as suas refeições no estabelecimento comercial, já que a habitação não está dotada de cozinha e de sala de jantar. Daqui decorre que sendo estas, divisões indispensáveis aos actos de residir ou habitar ( mais especialmente a cozinha ), somos em crer que o carácter autónomo do arrendamento sofre um sério revés. Em virtude destas faltas os RR. tiveram sempre que tomar as suas refeições no estabelecimento comercial, o que tornou o uso do espaço comercial imprescindível à vivência dos RR.
Além disso, os RR. desde sempre utilizaram a parte habitacional para aí guardarem alguns artigos para uso do café e restaurante, aí tendo também um pequeno escritório onde guardam os documentos referentes à exploração do estabelecimento, circunstâncias que inculcam igualmente a predominância da parte comercial em relação à vertente habitacional.
A dependência do arrendamento habitacional em relação ao pendor comercial é ainda evidenciada pelo teor da cláusula terceira do contrato promessa celebrado entre as partes que precedeu a formalização dos contratos em causa e acima referenciada, segundo a qual o contrato de arrendamento habitacional só se manterá em vigor enquanto o R. marido estiver a explorar directamente e por conta própria o estabelecimento de café e restaurante. Isto é, segundo este contrato, a habitação no locado, está dependente da exploração do estabelecimento e correspondente manutenção do contrato de arrendamento comercial, donde se conclui ter sido intenção dos contraentes, atribuir o fim principal ao arrendamento comercial e o acessório ao arrendamento habitacional.
Assim sendo, somos em crer que os RR. lograram provar a dita subordinação. Neste contexto deveria aplicar-se, no caso, o regime correspondente ao fim principal, isto é, o regime atinente ao arrendamento comercial.
Deverá, porém, aplicar-se o regime próprio do fim subordinado, desde que isso não contrarie o regime correspondente ao fim principal e aplicação dele não se mostre incompatível com este fim ( nº 3 in fine do mencionado art. 1028º do C.Civil ). Ou seja, nestas condições, pese embora haja uma subordinação de fins, deve-se aplicar o regime próprio do fim subordinado ou acessório, no caso vertente, o regime do arrendamento habitacional.
Portanto tudo se reconduz saber se a aplicação do regime do arrendamento habitacional ( à parte do locado destinado a habitação ), contraria ou não o regime correspondente ao fim principal e, em caso negativo, se a sua aplicação se mostra ou não incompatível com esse fim.
No caso vertente, está em causa a resolução do contrato de arrendamento em relação à habitação, por falta de habitação permanente por parte dos arrendatários (art. 64º nº 1 al. i) do RAU ). Não vislumbramos como este regime possa contraditar ou contender com o regime do arrendamento principal, visto que os arrendamentos incidiram sobre duas realidades autónomas e expressamente especificadas ( os andares superiores e o rés do chão e cave ), com portas de acesso separadas, existindo, consequentemente, a real possibilidade de continuidade do arrendamento comercial, embora cessando o habitacional. Portanto, por este aspecto nada impede que se aplique o regime do contrato subordinado, isto é, o regime do arrendamento habitacional. Mas este regime, como já se disse, só poderá ter aplicação, caso essa aplicação se não mostre ( também ) incompatível com a finalidade principal. E no caso dos autos, a nosso ver, tal não sucede, porque, pese embora se tenha provado que os RR. têm utilizado o local destinado a habitação para aí guardarem alguns artigos para uso do estabelecimento e ainda para aí terem um pequeno escritório onde guardam os documentos referentes à exploração do actividade comercial, não está provado que esse espaço seja imprescindível à laboração do estabelecimento. Se é certo que se pode aceitar que o espaço destinado à habitação dá alguma conveniência aos RR., não quer isso dizer que a actividade comercial desenvolvida no r/c e cave se não se continue a desenrolar com toda a normalidade. O espaço em causa foi dado de arrendamento para habitação e não para dar apoio ao estabelecimento. Se esse apoio fosse imprescindível para o desenrolar da actividade comercial, certamente não se deixaria de tal estabelecer e reconhecer aquando da elaboração do contrato. Assim, somos em crer, que a aplicação do regime do arrendamento habitacional, não se mostra incompatível com o fim principal.
Nada obsta pois que esse regime, nos termos da norma evidenciada, se aplique
Como se disse e agora se repete, no caso vertente, está em causa a resolução do contrato de arrendamento em relação à habitação, por falta de habitação permanente por parte dos arrendatários (art. 64º nº 1 al. i) do RAU ), resolução pedida pelos AA.
Na douta sentença recorrida o fundamento da resolução ocorre, aceitando nós sem hesitação o que aí se diz sobre o assunto. Não aceitamos porém, na totalidade, a construção jurídica que depois se desenvolveu, concretamente no que toca à não resolução do contrato de arrendamento habitacional, por aplicação ao caso o regime do arrendamento comercial, nos termos da 1ª parte do nº 3 do art. 1028º ( entendemos ser de aplicar ao caso, a 2ª parte desta disposição, com resultados diversos ).
Concretamente aceitamos o que na douta sentença a quo se diz a fls. 105 última parte e 106 1ª parte, no que toca à circunstância de os RR. terem deixado de ter a residência permanente no 1º e 2º andares da habitação, o que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento, nos termos dos arts. 63º e 64º nº 1 al. j) do RAU. Damos aqui por reproduzido o expendido sobre o assunto.
Por tudo o dito a resolução do contrato de arrendamento ( da parte habitacional ) impõe-se, o que significa que o recurso terá provimento, se bem que pelas razões expostas.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, dá-se provimento à apelação, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, declarando-se a resolução do contrato de arrendamento relativo ao 1º e 2º andares do prédio identificado no art. 1º da p.i., condenando-se os RR. a despejarem esse espaço, entregando-o livre e devoluto aos AA.,
Custas na acção e na apelação pelos RR. e apelados.