Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
317/05.8TBMLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
DIVÓRCIO
Data do Acordão: 03/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1407º Nº7 DO CPC
Sumário: I. A providência de fixação do regime provisório de utilização da casa de morada de família prevista no art.1407º nº 7 do CPC distingue-se, no plano processual ou adjectivo, do incidente de atribuição da casa de morada de família, regulado no art.1413º do CPC, destinando-se, apenas, a acautelar a protecção da habitação de um dos cônjuges durante a pendência do processo de divórcio.

II. Situando-se no âmbito da jurisdição voluntária, na sua decisão o juiz possui a máxima amplitude, tanto na aplicação do direito, como na investigação e avaliação fáctica, sendo totalmente incompatível com o ónus da impugnação especificada.

III. Na fixação de um regime provisório da casa de morada de família não são relevantes os fundamentos do divórcio nem a culpa de qualquer dos cônjuges, devendo o tribunal determinar qual dos cônjuges, sopesado o condicionalismo pessoal e dos filhos, suporta maior sacrifício com o afastamento da sua morada de família.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... deduziu incidente de atribuição provisória da casa de morada de família, na pendência de acção de divórcio que intentou contra B.....

Alegou, em síntese, que se encontra a viver com os filhos em casa de pessoas amigas que a acolheram, não dispondo de condições económicas que lhe permitam arrendar uma casa, pois é doméstica, tendo como única fonte de rendimento uns dias por semana em que faz limpezas para terceiros. Juntou prova documental do alegado.

Após a frustração da conciliação, veio o Requerido deduzir oposição à atribuição da casa à Requerente, dizendo que foi esta que abandonou o domicílio conjugal, levando consigo os filhos do casal, passando a viver no apartamento de uns primos que não lhe exigem renda. Acresce que ambos os cônjuges auferem do seu trabalho valores próximos dos € 500,00 mensais, não tendo o Requerido sítio para onde ir e não tendo sequer parentes a residir na zona.

Termina pedindo a improcedência do incidente, requerendo que lhe seja atribuída casa de morada de família e, caso seja provada a propriedade da Requerente, lhe seja fixada uma renda.

Considerando-se habilitada a decidir a M.ma Juiz julgou o incidente procedente e atribuiu à Requerente o reclamado direito à utilização da casa de morada família.

Inconformado, recorreu o Requerido, recurso admitido como agravo a subir em separado.

No termo das respectivas alegações formulou o agravante as seguintes conclusões:

A) Os factos dados como provados na decisão recorrida sob os números 3, 4 e 5 estão impugnados pelos factos alegados nos pontos 7 e 9 da oposição do Requerido e ora recorrente, pois o Requerido impugnou que a Requerente vivesse em casa de uns amigos, mas são uns primos, ou seja, familiares seus e alegou que a requerente ganha 500 Euros por mês, o suficiente para se sustentar, pelo que não estão provados por acordo os factos referidos.

B) A decisão recorrida em sede de facto, não deu qualquer relevo aos factos, naturalmente alegados pelo ora recorrente, nomeadamente que nessa casa viveram Requerente e requerido, com os filhos do casal que entretanto nasceram, até que a requerente abandonou o lar e que a requerente….. é que, sem causa justificativa abandonou o domicílio conjugal, arrastando consigo os filhos do casal, bem como que o ora requerente não tem mais qualquer casa para onde ir, não tendo sequer parentes a residir na Pedrulha, razão pela qual, se fosse obrigado a sair de casa, passaria a viver na rua, por serem necessários à boa decisão da causa, para se avaliar as necessidades de ambos os cônjuges, os seus rendimentos, as consequências que para cada um resultarão da decisão, etc.

C) A lei, no art°. 1407°, n° 7 do Cod. Proc. Civil, permite ao Juiz que "previamente, ordene a realização das diligências que considerar necessárias", pelo que, perante as questões concretas em análise – a atribuição da casa à requerente, implicaria colocar na rua o requerido – deveria ter levado a que, com um pouco mais de senso comum, se tivesse ordenado a averiguação da real situação das partes.

D) A questão objecto dos presentes autos não se resolve pelo recurso a critérios de legalidade estrita, mas critérios de equidade, bom senso e adequada ponderação aos em causa, pois "A atribuição da casa de morada de família não se traduz em ordenar-se a saída de um dos cônjuges para ali residir o outro, antes em atribuir a casa àquele dos cônjuges que mais carecido dela se mostrar, podendo para isso o tribunal impor ao senhorio como arrendatário o cônjuge que o não era como constituir uma nova relação de arrendamento contra a vontade do ex-cônjuge proprietário da casa de família, estabelecendo os termos do contrato".

E) Provado que a requerente tem uma casa onde vive – eventualmente sem as comodidades de sua casa - falta averiguar se, como alega o requerido, essa casa é gratuita e também carece de prova a alegação do requerido de que não tem casa para ir viver, se tiver de sair da casa onde vive e ponderando todos estes interesses não pode ser deferida a pretensão da requerente.

F) A decisão recorrida não pode manter-se, razão pela qual, a mesma tem de ser revogada, por violar de forma flagrante a letra e o espírito do art°. 1407° do Cod. Proc. Civil, como o exige a lei e a JUSTIÇA.

A Requerida contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

O despacho recorrido foi sustentado.

Corridos os vistos cumpre decidir.

*

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

1 – A... e B... contraíram, entre si, casamento católico, em 19/08/1989.

2 – Deste casamento existem dois filhos menores, C... e D..., nascidos em 14 de Abril de 1990 e l de Janeiro de 1992, respectivamente.

3 – A Autora encontra-se a viver com os filhos em casa de pessoas amigas que a acolheram.

4 — Tal situação é temporária e a Autora é doméstica, tendo como única fonte de rendimento, uns dias por semana em que faz limpezas para terceiros.

5 – O Réu aufere como produto do seu trabalho cerca de € 500,00 (quinhentos euros) mensais.

*

São estas as questões levantadas no agravo:

1 – Se devem ser dados por não provados dois factos tomados como assentes pela decisão (A Autora encontra-se a viver com os filhos em casa de pessoas amigas que a acolheram; e tem como única fonte de rendimento uns dias por semana em que faz limpezas para terceiros);

2 – Se necessitam de averiguação, por força ao art.º 1407, nº 7 do CPC, os factos invocados pelo Requerido de que foi a Requerente quem abandonou o domicílio conjugal, arrastando consigo os filhos do casal e que aquele não tem mais qualquer casa para onde ir, não tendo sequer parentes a residir na Pedrulha, razão pela qual, se obrigado a sair de casa, passaria a viver na rua;

3 – Se diante dos pressupostos de facto a modificar o Requerido deve ter o direito à casa de morada por ser o cônjuge mais carecido.

Quanto à 1ª questão.

Insurge-se o agravante contra a consignação na matéria assente da decisão recorrida de factualismo alegado pela agravada ao arrepio da respectiva impugnação na oposição oportunamente carreada para os autos.

Vejamos.

A providência de fixação do regime provisório de utilização da casa de morada de família prevista no nº 7 do art.º 1407 do CPC distingue-se, no plano processual ou adjectivo, do incidente de atribuição da casa de morada de família, regulado no art.º 1413 do mesmo diploma. Visando este último a definição duradoura do regime de ocupação da morada do desmembrado casal, a vigorar subsequentemente à decisão final de divórcio, aquele destina-se apenas a acautelar a protecção da habitação de um dos cônjuges durante o processo de divórcio, em função do condicionalismo que a lei tem por pertinente.

A fixação do aludido regime provisório, apesar de ter um fim cautelar, não corresponde estruturalmente ao decretamento de uma providência cautelar nos moldes dos art.ºs 381 e seguintes do CPC, dado que não procura, como acontece com esta, "assegurar a efectividade do direito ameaçado".

As possibilidades de o juiz avançar para o estabelecimento desse regime provisório ex officio e de o rejeitar caso não o considere conveniente, previstas no art.º 1407, nº 7 do CPC, acrescem ao propósito do legislador de conferir ao julgador a máxima amplitude tanto na aplicação do direito (pelo apelo à equidade) como no campo da avaliação fáctica, aqui quer na livre investigação dos factos quer na sondagem das provas, afastando a intervenção da ritologia específica da jurisdição contenciosa. A concessão à capacidade inventiva e autonomia de indagação do juiz, à sua experiência e senso, que individualizam a jurisdição voluntária (art.º 1409 do CPC) não pode deixar de aqui ter pleno cabimento em função da delicadeza e particularidade das questões submetidas à apreciação do tribunal. Esta feição dos temas a tratar pelo juiz, justificando a recusa da rigidez dos mecanismos de formação da prova próprios da jurisdição contenciosa, é também totalmente incompatível com o ónus da impugnação especificada plasmado pelo art.º 490, nºs 1 a 3 do CPC. O contraditório do requerido desempenha neste tipo de providência mais o papel de uma fonte de esclarecimento complementar do juiz – com a adução de matéria nova e provas confluentes no círculo fáctico decisivo – do que um instrumento da consolidação dos interesses do autor-requerente, desenvolvidos com a acção.

Feita esta introdução, importa dizer que o agravante, quanto à questão levantada, tão-pouco contraria ou nega os factos em apreço através da atitude que assumiu na oposição.

Realmente o agravante admite ter reconhecido que a Requerente vive por favor, não interessando se vive em casa de amigos ou familiares; e não desmente o facto de a mesma sobreviver graças a actividade de limpeza "a dias", mesmo que lhe queira imputar um rendimento de € 500 por mês.

Assim sendo, ainda que se aceitasse a eficácia da possível impugnação, esta não afectaria aquele núcleo que foi tido como assente na decisão.

Donde que não colha o concluído em A.

Quanto à 2ª questão.

Prosseguindo, quer ainda o agravante que se dê sem efeito o decretado de forma a ser ordenada a averiguação sobre os factos por ele invocados: ter sido a agravada-Requerente o cônjuge que sem causa justificativa abandonou o domicílio conjugal, arrastando consigo os filhos do casal; e ser apenas ele agravante quem não tem para onde ir.

Mas sem razão.

No que respeita à culpa na separação do casal deve contrapôr-se que na apreciação da providência sob referência não há que pré-judicar uma questão que tem a sua sede natural e própria na acção de divórcio, ainda pendente. A fixação de um regime provisório da casa de morada tem como simples desiderato responder à necessidade de solucionar o problema objectivo da habitação dos cônjuges - cuja convivência no mesmo local é compreensívelmente perturbada pela pendência processo - mediante a ponderação das condições de vida objectivas de cada um deles, incluindo a situação dos filhos que integram o agregado. Não tem que nele interferir - ainda que perfunctóriamente - qualquer indiciação sobre os fundamentos do divórcio e, nomeadamente, sobre a culpa de qualquer dos cônjuges.

Já no que concerne à circunstância – que o agravante entende que deveria ter sido apurada e confirmada pelo tribunal - de o Requerido não ter para onde ir, é óbvio que foi esse mesmo o pressuposto de que partiu a decisão. O que é normal é que os cônjuges apenas disponham da casa de morada do casal; o que deve ser invocado e investigado é o que sai dessa regra da experiência, ou seja, se algum deles (ou porventura ambos) dispõe de alternativa. Partindo-se do princípio de que não dispõem, a tarefa do tribunal é a de determinar qual dos cônjuges, supesado o condicionalismo pessoal e dos filhos, suporta maior sacrifício com o afastamento da sua morada de família. Foi apenas com isso que a M.ma Juiz se preocupou e – há que dizê-lo – correctamente.

3ª e derradeira questão.

Os requisitos da utilização provisória da casa de morada de família não são inteiramente coincidentes com os da atribuição definitiva, desde logo, porque naquela se configura, como já se sublinhou, uma providência meramente interina, prévia à declaração da eventual apreciação da culpa dos cônjuges na situação de facto que conduziu ao divórcio.

É que, buscando-se não a atribuição definitiva mas tão só a providência judicial provisória (isto é, transitória) para a utilização da casa (cfr. a expressão literal do nº 7 do art.º 1407 do CPC) – isto é, durante a pendência da acção e até à respectiva decisão – nem há que estabelecer qualquer regime para a fruição da habitação pelo cônjuge contemplado pela providência, ainda que ele não seja o proprietário. A providência vale temporariamente para o período do processo e nada assegura que a atribuição definitiva vá beneficiar o mesmo cônjuge, ou que esta atribuição não lhe venha a exigir contrapartidas.

Em qualquer caso haverá que lançar mão do critério de ponderação do circunstancialismo peculiar das necessidades de cada um dos cônjuges (em função de respectiva situação patrimonial, de saúde, profissional, etc.) sempre conjugado com o interesse dos filhos, que agora passam a ficar integrados na economia singular de um deles, e, bem assim, de quaisquer outras razões atendíveis (apontadas pelo legislador a propósito do arrendamento, no art.º 84 do RAU, mas a levar em conta no caso da casa ser própria de um deles ou comum).

Ora, tomando as premissas de facto dos autos, é de relevar que, trabalhando a Requerente em limpezas a dias e achando-se os filhos do casal a viver consigo, é de crer que, em tais condições, por não dispor de outra habitação nem de meios para a adquirir ou arrendar, estará aquela certamente fragilizada perante as possibilidades Requerido, tendo este uma actividade profissional remunerada com € 500 mensais. O cônjuge efectivamente mais carecido é, em tal quadro, a Requerente, pese o desconforto decorrente para o Requerido de ser obrigado a procurar a respectiva habitação. Mostrando-se, por isso, parcimoniosa a decisão de provisoriamente conceder àquela a utilização da casa de morada de família (independentemente de esta ser bem próprio ou arrendado da Requerente).

Em consequência, não se enxergam nas conclusões do recurso argumentos válidos para a inversão da decisão atacada.

Pelo exposto, negam provimento ao agravo.

Custas pelo agravante.