Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1540/05.0TAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
EXTRAVIO
FALSIDADE INTELECTUAL
CARTA DE CONDUÇÃO
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
Data do Acordão: 02/07/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 255º E 256º DO C. PENAL
Sumário: Integra o crime de falsificação de documento o preenchimento e assinatura de requerimento, apresentado na D. G. V., onde se declara que a carta de condução se extraviou quando, na verdade, ela estava apreendida por autoridade estrangeira para cumprimento de inibição de conduzir, facto que o declarante bem sabia.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

Em processo comum singular do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por sentença datada de 06.09.19 foi, além do mais:
Condenado o arguido A..., pela prática, em autoria material de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº 256º nºs 1 b) do CP, na pena de 90 dias de multa à razão diária de cinco euros.
Inconformado o arguido interpôs recurso, concluindo na sua motivação:
“ 1ª - O requerimento a pedir a emissão de 2ª via da carta de condução, por motivo de extravio, é documento particular genuíno, que não foi alterado ou adulterado. Apenas contém declarações que não correspondem à verdade.
Como tal, não integra o conceito de falsidade de documento, não tendo relevância penal, já que a falsidade é a falta de genuinidade do documento, não a falta de veracidade do seu conteúdo.
2ª - O arguido não cometeu, assim, o crime de falsidade de documento por que foi condenado.
3ª - Violou a douta sentença o disposto no artº 256º, nº 1, al. a) e b) do C. Penal.”
O Ministério Público respondeu, concluindo pelo improvimento do recurso.
O Exmº Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer é igualmente do entendimento de que o recurso não deve merecer provimento.
Colhido os vistos, cumpre decidir, após a realização da audiência, levada a cabo com a observância do formalismo legal como da acta consta.

FUNDAMENTAÇÃO

Factos provados:
“ O arguido é titular da carta de condução n° AV-6467, emitida em 29/04/2003.
No dia 27 de Maio de 2004, o arguido requereu na DGV de Aveiro a emissão de 2ª via da carta de condução de que é titular, com o n° AV-6467, por motivo de extravio.
Além disso, o arguido preencheu e assinou o documento constante de fls. 5, onde referiu que a carta de condução de que é titular se extraviou por perda de carteira.
Pelo que a DGV de Aveiro emitiu nova carta de condução no dia 3/06/2004.
Acontece que, o arguido não perdeu a carta de condução. A mesma encontrava-se apreendida pelas autoridades alemãs com vista ao cumprimento de uma pena de inibição de conduzir pelo período de 15 meses, o que o arguido bem sabia.
O arguido actuou, voluntária, livre e consciente, com intenção de obter uma 2ª via da carta de condução emitida pela DGV, de forma a poder continuar a beneficiar das faculdades inerentes à detenção de carta de condução.
O arguido sabia que ao actuar desta forma estava a induzir em erro os funcionários daquela Delegação.
O arguido não se absteve de tal conduta, mesmo sabendo que a mesma é proibida e punida por lei.
O arguido tem a 4ª classe.
Está desempregado há cerca de dois anos.
Aufere um subsídio social de cerca de 600€ mensais.
Vive com a esposa, doméstica.
O arguido já foi condenado, na Alemanha, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez e outro de condução sem habilitação legal.
Manifestou arrependimento pelos factos praticados.”.
Motivação de facto:
“ A convicção do Tribunal alicerçou-se nos seguintes meios de prova:
- documentos juntos aos autos, nomeadamente a fls. 4 a 18 e o certificado de registo criminal do arguido junto a fls. 47 e 48;
- declarações do próprio arguido, que confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe eram imputados.”.
*
Conforme resulta das conclusões da motivação, com o presente recurso pretende-se apenas o reexame da matéria de direito, havendo tão só que apreciar se a conduta do arguido integra ou não o crime por que foi condenado.
Para começar chamemos à colação as normas aplicáveis.
Estabelece o artº 256º CP:
“ 1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:
a) .........
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou
c)...........
................ .
2. ..........
3. ..........
4. ........... .”
Por seu lado o conceito de documento para efeitos de crime de falsificação é dado pelo artº 255º CP, na sua alínea a), segundo o qual e no que ora interessa, deve entender-se, por documento, “ a declaração corporizada em escrito .... inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente;...”
Do aludido preceito, decorre pois, como escreve Helena Moniz[ Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 667.] que “ Documento, para efeitos de direito penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano”.
Ainda segundo a mesma autora, integra o referido tipo legal de crime não só a falsificação material, como a falsificação ideológica.
E acrescenta[ Obra citada, pág. 676.] “Constituindo a falsificação de documentos uma falsificação da declaração incorporada no documento cumpre distinguir as diversas formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsi-ficação material o documento é falsificado na sua essência material.”.
Ora a falsificação intelectual é justamente aquela que vem prevista no artº 256º nº 1 b) CP, a qual se verifica quando se faz constar de documento verdadeiro um facto falso, desde que este facto seja como é evidente juridicamente relevante.
Quer dizer a falsificação intelectual abrange as hipóteses em que o conteúdo do documento diverge da declaração emitida ou em que a declaração feita é falsa.
Ora no caso dos autos provado que está que o arguido ao preencher e assinar o documento em causa, declarou falsamente que a sua carta de condução se havia extraviado, o que bem sabia não corresponder à verdade e induzindo por essa forma em erro os funcionários da DGV onde requereu a emissão de 2ª via, tornou o documento em causa inverídico.
É que a sua declaração, pese embora gere um documento genuíno ou materialmente verdadeiro, tem na sua génese um conteúdo intelectual que não corresponde à realidade.
O arguido mentiu para o obter.
Por essa razão preenchida está a aludida falsidade intelectual, o que aliado ao elemento subjectivo decorrente da matéria de facto dada como provada, e por se tratar de facto juridicamente relevante, pois só desse modo obteria a 2ª via,, leva a concluir ter o arguido cometido o crime de falsificação de documento por que foi condenado
Por isso, improcede, sem necessidade de mais considerações, o recurso interposto.

DECISÃO

Nestes termos, os Juizes desta Relação acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o douto acórdão recorrido.
Fixar a taxa de justiça devida pelo recorrente em sete Ucs (Artº 87º nº 1 b) CCJ).