Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ARTUR DIAS | ||
Descritores: | PRIVILÉGIO CREDITÓRIO HIPOTECA | ||
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Data do Acordão: | 05/12/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU – 2º JUÍZO CÍVEL | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTº 749º, Nº 1, DO C.CIV. E 108º DO CIRC | ||
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Sumário: | I – O privilégio imobiliário de que goza a Fazenda Nacional por créditos provenientes de IRC (artº 108º do CIRC) tem natureza geral. II – No confronto entre créditos beneficiados com esse privilégio e créditos garantidos por hipoteca tem aplicação não o artº 751º do C. Civ., mas antes o artº 749º, nº 1, do mesmo diploma legal. III – A alteração dos artº 735º, nº 1, e 751º do C. Civ., resultante do D.L. nº 38/2003, de 8/03, que entrou em vigor em 15/09/2003, veio tornar claro que, embora os privilégios imobiliários estabelecidos no C. Civ. sejam sempre especiais, pode haver, e há, privilégios imobiliários estabelecidos em legislação avulsa que, incidindo não sobre bens concretos e determinados mas antes sobre todos os bens de que o devedor seja titular à data da penhora ou outro acto equivalente, têm natureza geral. IV – Como tal, os créditos garantidos por hipoteca preferem aos créditos beneficiados com privilégio imobiliário geral, sendo, portanto, aqueles graduados à frente destes. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
1. RELATÓRIO Por apenso à execução em que é exequente A...e executada B... – na qual se encontram penhoradas a fracção autónoma identificada pela letra “J” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em S. Salvador, inscrito na matriz sob o artigo 1837 e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu com o nº 1193/20010216, da freguesia de S. Salvador e a fracção autónoma identificada pela letra “G” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em S. Salvador, inscrito na matriz sob o artigo 1848 e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu com o nº 1194/20010216, da freguesia de S. Salvador – foram deduzidas as seguintes reclamações de créditos: a) Pela C...., um crédito de € 732.636,82, de capital (€ 722.990,05), juros (€ 9.638,77) e comissões (€ 8,00), relativos a um empréstimo concedido à executada, garantido por hipotecas sobre os prédios onde as fracções autónomas penhoradas se inserem, incidindo também sobre estas; b) Pelo Instituto de Segurança Social, I.P., um crédito de € 8.733,27, de contribuições para a segurança social relativas ao período de Janeiro de 2007 a Janeiro de 2008 (€ 7.530,94) e de juros de mora vencidos (€ 1.202,33), beneficiário de privilégio creditório imobiliário; c) Pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, um crédito de € 3.948,20, de IRC respeitante ao ano de 2006 (€ 3.743,96) e de juros de mora (€ 204,24), beneficiário de privilégio mobiliário geral e imobiliário. Não tendo qualquer das reclamações sido objecto de impugnação, foi proferida a sentença de fls. 68 a 71, reconhecendo todos os créditos reclamados, com juros vencidos e vincendos e procedendo à sua graduação pela forma seguinte: 1º - Crédito privilegiado da Fazenda nacional; 2º - Crédito hipotecário da C...; 3º - Créditos da Segurança Social; 4º - Crédito exequendo. Inconformada, a C.... interpôs recurso, logo oferecendo a pertinente alegação que encerrou com as seguintes conclusões: (…) O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. O Ministério Público apresentou douta resposta, reconhecendo razão à recorrente e opinando no sentido de que o recurso merece provimento. Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.
*** Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se, encontrando-se penhorados numa execução bens imóveis e tendo sido reclamados créditos de IRC e créditos garantidos por hipoteca sobre os imóveis penhorados, devem ser graduados em primeiro lugar os créditos de IRC ou os créditos hipotecários.
*** 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. De facto É a seguinte a factualidade relevante para a decisão do recurso fornecida pelos autos: (…) *** 2.2. De direito Foi na sentença sob recurso entendido que “a Fazenda Nacional, para cobrança dos créditos relativos a impostos indirectos, como é o caso do IRC, goza de privilégio creditório mobiliário geral e imobiliário, para garantia dos seus créditos – artºs 736º, nº 1, 1ª parte do C. Civil e artº 108º do CIRC – em relação aos impostos inscritos para cobrança no ano da penhora ou nos três anos anteriores, que no caso concreto se reporta ao ano de 2005, tendo presente a data a partir da qual se vencem juros de mora – ver citados preceitos. E o identificado privilégio estende-se aos juros de mora relativos aos três últimos anos”. E, com o argumento de que “em caso de concurso sobre a mesma coisa imóvel, o privilégio imobiliário é graduado em primeiro lugar, seguindo-se o direito de retenção e a seguir a hipoteca e a consignação de rendimentos (…)”, graduou-se o crédito reclamado pela Fazenda Nacional antes do crédito hipotecário reclamado pela C.... A recorrente, não pondo em causa que a Fazenda Nacional goza, relativamente ao crédito de IRC, de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário, sustenta, contudo, que o privilégio imobiliário em questão deve classificar-se de privilégio geral e, por isso, no confronto com o crédito hipotecário também reclamado, não tem aplicação o disposto no artº 751º do Cód. Civil, antes se aplicando o artº 749º do mesmo diploma legal, pelo que é o crédito hipotecário que deve prevalecer e ser graduado prioritariamente. A entender-se, continua a recorrente, que o privilégio imobiliário geral de que beneficia a Fazenda Nacional relativamente ao crédito de IRC prevalece sobre o crédito garantido por hipoteca, incorrer-se-ia em inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança ínsito na noção de Estado de direito democrático consagrada no artº 2º da Constituição. Como muito bem reconheceu o Ministério Público na sua douta contra-alegação, não pode deixar de dar-se razão à recorrente. A difícil compatibilização das normas dos artºs 735º, nº 3 e 751º do Cód. Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 38/2003, de 08/03[1] com a consagração em numerosa legislação avulsa de privilégios imobiliários de natureza claramente geral[2], conduziu a que surgissem dúvidas sobre a graduação dos créditos beneficiados com aqueles privilégios, levando mesmo à prolação dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 362/2002 (referido na alegação da recorrente e na contra-alegação do Mº Pº) e nº 363/2002 (referido na sentença recorrida). A alteração dos mencionados artºs 735º, nº 1 e 751º do Cód. Civil, operada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 08/03[3]e[4], veio tornar claro que, embora os privilégios imobiliários estabelecidos no Código Civil sejam sempre especiais, pode haver – e há – privilégios imobiliários estabelecidos em legislação avulsa que, incidindo não sobre bens concretos e determinados mas antes sobre todos os bens de que o devedor seja titular à data da penhora ou outro acto equivalente, têm natureza geral. É inquestionavelmente o caso do privilégio imobiliário consagrado no artº 108º do CIRC, norma segundo a qual “Para pagamento do IRC relativo aos três últimos anos, a Fazenda Nacional goza de privilégio geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente”. Ora, assente que o privilégio imobiliário em questão tem natureza geral e não especial, fica claro que não tem aplicação in casu o preceituado no artº 751º do Cód. Civil, norma legal que se refere apenas aos privilégios imobiliários especiais. Antes se aplica o disposto no artº 749º, nº 1 do Cód. Civil, de acordo com o qual o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente[5]. As hipotecas de que é titular a recorrente recaem sobre as coisas abrangidas pelo privilégio e são oponíveis ao exequente. Consequentemente, o privilégio imobiliário geral de que goza a Fazenda Nacional não vale contra a C..., não podendo o crédito de IRC daquela prevalecer contra o crédito hipotecário desta[6].
Se não se entendesse assim e se considerasse que o privilégio imobiliário geral de que goza a Fazenda Nacional relativamente aos créditos de IRC prevalece sobre os créditos garantidos por hipoteca, incorrer-se-ia em inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança ínsito na noção de Estado de direito democrático consagrada pelo artº 2º da Constituição. É o que, por identidade de razões, claramente resulta dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 362/2002 e 363/2002, publicados no D.R. nº 239, Série I-A, de 2002/10/16, que declararam a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do CIRS (Ac. 362/2002) e dos artºs 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 09/05 e 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 03/07 (Ac. 363/2002), na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido à Fazenda Nacional, no caso dos créditos de IRS, ou a Segurança Social, no caso dos créditos por contribuições, prefere à hipoteca, nos termos do artº 751º do Cód. Civil.
Logram êxito, portanto, as conclusões da alegação da recorrente, o que conduz à procedência da apelação, à revogação da sentença na parte impugnada e à graduação do crédito hipotecário da C.... à frente do crédito privilegiado da Fazenda Nacional.
Cumprindo o disposto no artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário: I – O privilégio imobiliário de que goza a Fazenda Nacional por créditos provenientes de IRC (artº 108º do CIRC) tem natureza geral. II – No confronto entre créditos beneficiados com esse privilégio e créditos garantidos por hipoteca tem aplicação não o artº 751º do Cód. Civil, mas antes o artº 749º, nº 1 do mesmo diploma legal. III – Como tal, os créditos garantidos por hipoteca preferem aos créditos beneficiados com privilégio imobiliário geral, sendo, portanto, aqueles graduados à frente destes.
*** 3. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em, mantendo-a no mais, revogar em parte a sentença recorrida, de forma que a graduação dos créditos reclamados fique pela ordem seguinte: 1º - Crédito hipotecário da C....; 2º - Créditos privilegiados da Fazenda Nacional e da Segurança Social; 3º - Crédito exequendo. As custas da apelação são a cargo da C...., nos termos do artº 449º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, já que o recorrido não deu causa ao recurso e na sua contra-alegação reconheceu razão à apelante.
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