Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2/05.0TBPNL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
PROMESSA UNILATERAL
FORMA
SINAL
Data do Acordão: 04/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PENELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 238º, NºS 1 E 2; 410º, NºS 1, 2 E 3; E 441º C.CIV.
Sumário: I – O contrato-promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato - artº 410º, nº 1, C.Civ.

II – Ao contrato-promessa são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido (princípio da equiparação), exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se lhe devam considerar extensivas – artº 410º, nº 1.

III – Quando para o contrato prometido seja legalmente exigível documento, autêntico ou particular, o contrato-promessa só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, conforme se trate de contrato-promessa unilateral ou bilateral – artº 410º, nº 2.

IV - Tendo em conta o disposto no artº 238º, nº 1, C.Civ., se do documento que formaliza o contrato-promessa apenas consta a obrigação de uma das partes celebrar o contrato prometido estar-se-á perante um contrato-promessa unilateral.

V – Não importa que ambas as partes o tenham assinado ou que a parte que não se vinculou à celebração do contrato prometido tenha assumido a obrigação de efectuar outra ou outras prestações, nomeadamente no caso do promissário se obrigar a entregar uma ou mais quantias pecuniárias.

VI – Não é possível procurar nas negociações havidas a hipotética vontade real das partes quanto à assunção da obrigação de celebrar o contrato definitivo, já que se está perante um negócio formal e as razões determinantes da forma opõem-se à validade duma promessa de compra (ou de venda) que não tenha no texto do documento um mínimo de correspondência.

VII – “Sinal” é a coisa entregue por um dos contraentes ao outro no momento da celebração do contrato ou em data posterior, como garantia do cumprimento.

VIII – Estipula o artº 441º C.Civ. que no contrato-promessa de compra e venda se presume que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.

IX – No contrato-promessa unilateral de venda a quantia entregue pelo promissário ao promitente não poderá ter a natureza de sinal, uma vez que aquele não assumiu a obrigação de comprar.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
“A....”, com sede na Zona Industrial de ..., ...., intentou acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra o MUNICÍPIO DE B..., com sede na Praça do Município, em ....B...., pedindo que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial do R.
Para tanto, a A. alegou, em síntese, que celebrou com o R. um contrato promessa relativo a dois pinhais, sitos em Vale Centrão, freguesia de Santa Eufémia, do concelho de B..., inscritos na matriz rústica sob os artºs 14621 e 14622, em que o R. figura como promitente vendedor; que os terrenos prometidos vender, em cuja posse logo entrou, se destinavam à construção pela A. de um centro de transferência e reciclagem para resíduos industriais; e que o R. se recusa agora a celebrar o contrato prometido.
O R. contestou sustentando, a final, a procedência das excepções deduzidas e, em todo o caso, a improcedência da acção.
Com vista a tal, alegou, em síntese, erro sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, alteração anormal das circunstâncias e insusceptibilidade de execução específica do contrato.
A A. respondeu, pugnando pela improcedência das excepções e concluindo como na petição inicial.
Saneada, condensada e instruída a acção, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 234 a 237 decidindo a matéria de facto controvertida.
Foi depois proferida a sentença de fls. 240 a 246, julgando a acção improcedente e absolvendo o R. do pedido.
Irresignada, a A. interpôs recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Na alegação apresentada a apelante formulou as conclusões seguintes:
(……………)
O apelado respondeu defendendo a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.

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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:
a) Saber se o contrato promessa celebrado entre a A. e o R. é unilateral ou bilateral;
b) Saber se a quantia de € 328,00 paga pela A. no acto da celebração do contrato tem ou não a natureza de sinal;
c) Saber se o artº 830º nº 2 do Código Civil estabelece uma presunção juris tantum que a Autora ilidiu;
d) Saber se o R. actuou com abuso de direito.

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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Não tendo sido impugnada a decisão de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada na 1ª instância e que é a seguinte:
(……………)

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3.2. De direito
3.2.1. Se o contrato é unilateral ou bilateral
O contrato-promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato (artº 410º, nº 1 do Código Civil [1]) e, embora habitualmente revista a natureza, ou assuma a estrutura, de promessa bilateral, também pode ficar-se pela mera promessa unilateral. A distinção está em terem ambas as partes contratantes, ou só uma delas, assumido a obrigação de celebrar o contrato prometido (artºs 410º nºs 2 e 3 e 411º).
Ao contrato-promessa são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido (princípio da equiparação), exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se lhe devam considerar extensivas (artº 410º, nº 1).
Quando para o contrato prometido seja legalmente exigível documento, autêntico ou particular, o contrato-promessa só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, conforme se trate de contrato-promessa unilateral ou bilateral (artº 410º, nº 2).
Assim, tendo em conta o disposto no artº 238º, nº 1, se do documento que formaliza o contrato-promessa apenas consta a obrigação de uma das partes celebrar o contrato prometido, estar-se-á perante um contrato-promessa unilateral. Mesmo que, estando em causa a transferência da propriedade sobre imóveis, as partes lhe chamem «PROMESSA DE COMPRA E VENDA», pois o que releva não é o nome que lhe deram, mas o conteúdo que o enforma. Como igualmente não importa que ambas as partes o tenham assinado ou que a parte que não se vinculou à celebração do contrato prometido tenha assumido a obrigação de efectuar outra ou outras prestações, nomeadamente, no caso do promissário, a de entregar, imediata e/ou posteriormente, uma ou mais quantias pecuniárias. E não é possível procurar, nomeadamente nas negociações havidas, a hipotética vontade real das partes quanto à assunção da obrigação de celebrar o contrato definitivo, já que se está perante um negócio formal e as razões determinantes da forma opõem-se à validade duma promessa de compra (ou de venda) que não tem no texto do documento um mínimo de correspondência (artº 238º, nºs 1 e 2).

Tendo em consideração a factualidade provada, constata-se que apenas o Município de B... se obrigou a vender os dois pinhais referidos em 3.1.7., não tendo a “A..., Lda” – apesar de ter assinado o contrato-promessa e, por isso, o ter aceite, designadamente na parte em que previa a forma de pagamento, com a entrega imediata de um quinto do valor global e o restante no acto da escritura do contrato prometido – assumido a obrigação de comprar[2 ].
Por isso, com todo o respeito, discordamos da sentença recorrida e consideramos que o contrato-promessa celebrado pelas partes nesta acção é um contrato-promessa unilateral.

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3.2.2. Se a quantia entregue tem ou não a natureza de sinal
Os artºs 440º a 442º, bem como o artº 830º, referem várias vezes a palavra «sinal», sem que, contudo, a definam.
Recorrendo, porém, a Abel Delgado[ 3 ], diremos que o sinal é a coisa entregue por um dos contraentes ao outro (arras entregues por uma parte à outra), no momento da celebração do contrato ou em data posterior, como garantia do cumprimento.
A figura jurídica do sinal tem a sua origem nas arras que eram a quantidade de dinheiro ou a coisa fungível que uma das partes entregava à outra, após a celebração duma venda não imediatamente executada e que, no direito Justinianeu tinham apenas uma função confirmatória, eram o sinal de que se realizara um contrato definitivo, a que faltava apenas a execução.
Com o evoluir dos tempos alguns autores foram atribuindo às arras outros significados ou funções, sendo habitual classificá-las, na doutrina actual, de confirmatórias, penais e penitenciais. Confirmatórias são as que funcionam como prova da celebração do contrato; penais, as que estabelecem uma garantia do cumprimento do contrato, mediante a sua perda ou devolução em dobro no caso de incumprimento; e penitenciais as que dão às partes contratantes a faculdade de se arrependerem, de desistirem do contrato, mediante a sua perda ou devolução em dobro.
No nosso direito o sinal reúne as características de arras confirmatórias e de arras penais, não tendo, a não ser que as partes, dentro da sua liberdade contratual, expressamente lho atribuam, o carácter de arras penitenciais.
Com efeito, sendo o contrato-promessa um verdadeiro contrato, deve o mesmo, de acordo com o artº 406º, nº 1, ser pontualmente – ou seja, ponto por ponto – cumprido pelas partes, não havendo qualquer disposição legal que dê a estas o direito de se arrependerem.

Estipula o artº 441º que no contrato-promessa de compra e venda se presume que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.
Porém, no contrato-promessa unilateral de venda a quantia entregue pelo promissário ao promitente não poderá, salvo o devido respeito por opinião contrária, ter a natureza de sinal.
Com efeito, não tendo o promissário assumido a obrigação de comprar, ou seja, de celebrar o contrato definitivo, a entrega da quantia não pode ter função confirmatória de uma promessa de compra que não foi feita. Nem função penal ou de sanção pelo incumprimento duma obrigação que não se tem. Nem mesmo função penitencial de arrependimento pela desistência de um compromisso inexistente.
Conclui-se, portanto, que a quantia entregue pela “A..., Lda” ao Município de B... não tem a natureza de sinal[ 4].

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3.2.3. Presunção estabelecida no nº 2 do artº 830º
No artº 830º, nº 1 preceitua-se que se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.
No seguimento, o nº 2 do mesmo dispositivo esclarece que se entende haver convenção em contrário se existir sinal ou tiver sido fixada uma pena para o caso de não cumprimento da promessa.
Parece-nos claro que o aludido nº 2 estabelece uma presunção[ 5 ]: a de que, com excepção dos casos ressalvados no nº 3, que aqui não estão em causa, existindo sinal ou tendo sido fixada uma pena para o não cumprimento da promessa, se presume que as partes quiseram afastar a execução específica.
Como nada na lei proíbe a prova em contrário, a aludida presunção é relativa ou juris tantum, podendo, pois, ser ilidida (artº 350º, nº 2).
Esta discussão, contudo, bem como a de saber se, a existir sinal, a presunção dele decorrente estaria ou não ilidida, é estéril e está prejudicada, já que, como atrás se viu, dada a estrutura unilateral do contrato-promessa celebrado, a quantia entregue pela “A..., Lda” não tem carácter de sinal.

Mas há uma outra questão que não pode ser escamoteada e de cuja apreciação e solução dependerá a possibilidade ou não de execução específica do contrato-promessa em causa nos autos.
É ela a de saber se a natureza da obrigação assumida pelo Município de B... se opõe à execução específica do contrato[6 ].

Resulta da factualidade provada que o contrato unilateral de venda se inseriu num conjunto de negociações havidas entre a “A...” e o Município de B..., visando a construção de um Centro de Transferência e Reciclagem para Resíduos Industriais numa zona industrial do concelho de B....
A proposta formal foi feita pela “A..., Lda” e o Município mostrou-se interessado, dado tratar-se de um investimento com algum significado e prever-se a criação de 35 postos de trabalho.
Esse interesse traduziu-se na disponibilização, para o efeito, de um lote de terreno na Zona Industrial de B..., o que foi comunicado à “A..., Lda”, a quem se advertiu também que deveria ter em consideração o Plano de Apoio ao Investimento, que se anexava, bem como a informação do Técnico de Saúde Ambiental.
O referido Plano de Apoio ao Investimento consta de fls. 17 a 19 dos autos e dele resulta (cfr. artºs 2º, 3º e 5º) que uma das formas de o Município de B... apoiar o investimento consistia na cedência de terreno ao preço simbólico de € 0,25/m2.
O Município, através dos seus órgãos, tomou a pertinente deliberação e surgiu o contrato promessa unilateral de venda que consta de fls. 21 a 23, o qual foi celebrado unicamente para a instalação nos terrenos do centro de transferência de resíduos e unidade de regeneração de solventes que fora apresentado ao R., não se tratando de um mero negócio imobiliário, mas antes esse concreto projecto de investimento (cfr. ponto 3.1.13., supra).
O contrato-promessa referido foi celebrado pela Câmara porque estava convencida e confiava que os terrenos em causa seriam destinados à instalação de uma empresa de gestão de resíduos industriais, com a construção de um centro de transferência de resíduos e a uma unidade de regeneração de solventes (cfr. pontos 3.1.14. e 3.1.15., supra).
Caso os prédios se destinassem a outro fim a Ré exigiria um preço superior (sem ter sido possível apurar o montante respectivo) ao constante do contrato promessa de venda (cfr. ponto 3.1.16., supra).
Sucedeu, porém, que com o evoluir de todo o processo o Município de B... mudou de opinião quanto ao interesse do investimento projectado, constando os fundamentos de tal atitude das deliberações das reuniões da Câmara Municipal de 30/06/2004 (fls. 30 a 37) e de 24/01/2005 (fls. 109 e 110), das quais resultou, para além da revogação da deliberação de 17/02/2003 (fls. 69 a 76) que havia aprovado a reserva de terrenos para a “A..., Lda”, a não aprovação da localização do Centro de Transferência de Resíduos, a “desobrigação” do contrato promessa de venda e a devolução da quantia paga no acto de assinatura do contrato promessa (designada, na sequência do artº 2º, nº 2 do Plano de Apoio ao Investimento, de “depósito de caução”).
Sobre a validade ou invalidade de tais deliberações e respectiva repercussão na esfera jurídica da “A..., Lda” não se cuida, nem se podia cuidar, por falta de competência material, nos presentes autos.
Não havendo notícia de que tenham sido objecto de impugnação, há que partir do princípio de que aquelas deliberações são válidas e eficazes e, consequentemente, que obstam definitivamente à instalação do Centro de Transferência de Resíduos nos terrenos inicialmente reservados para o efeito, prometidos vender pelo R.
Ou seja, a admitir-se a execução específica, os terrenos prometidos vender entrariam no património da A. mas esta não poderia neles instalar o investimento que foi a causa e justificação da promessa de venda. Dito de outro modo, a promessa de venda, a preço simbólico, tinha como escopo o investimento da R. através da instalação do Centro de Transferência de Resíduos, pelo que, inviabilizada a dita instalação, inviabilizado fica o cumprimento da promessa. Isto é, a obrigação de venda assumida pelo Município de B... não pode ser desligada do destino[7 ] previsto para os terrenos prometidos vender e, afastado tal destino, é a natureza da obrigação que se opõe à execução da promessa.
Ainda que com diferente fundamento, conclui-se como a primeira instância no sentido de que, “in casu”, não é legalmente possível a execução específica do contrato promessa.

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3.2.4. Abuso de direito
Dispõe o artº 334 do Código Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como refere Rodrigues Bastos[ 8 ], “se se ocasiona um prejuízo a uma pessoa, exercendo um direito que se tem em relação a ela, não existe, em princípio, responsabilidade por esse facto. É o que já se continha no aforismo romano qui iure suo utitur neminem laedit . Porém, como os direitos subjectivos são concedidos para satisfação de necessidades humanas, o seu exercício tem de estar orientado para essa finalidade, pelo que seria contraditório com o próprio conceito de direito subjectivo que o ordenamento jurídico protegesse o exercício de um direito sem interesse algum para o seu titular, ou fora dos limites da equidade, ou contra os princípios da boa fé.”
Continua o autor citado explicando que a fórmula adoptada pelo Código Civil de 1966 é mais vasta do que a que vinha sendo aceite pela doutrina e pela jurisprudência, compreendendo “não só o caso de emulação, como também o exercício de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular, e as consequências que outros têm de suportar”.
Como ensina o Prof. Almeida Costa[9 ], o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais.
As concepções que procuram precisar o conteúdo do abuso do direito reduzem-se basicamente a duas directrizes opostas: uma subjectivista e outra objectivista.
A teoria subjectiva considera decisiva a atitude psicológica do titular do direito, ter ele agido com o único propósito de prejudicar o lesado (acto emulativo).
A teoria objectiva, pelo contrário, desliga-se da intenção do agente, dando antes relevância aos dados de facto, ao alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública.
Segundo P. Lima - A. Varela[ 10 ], “a concepção adoptada de abuso de direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.”
Da mesma opinião é o Prof. Castro Mendes[11 ] que, depois de se referir aos sentidos subjectivo e objectivo da ideia de abuso de direito, diz: “a teoria objectiva tem sobre a subjectiva a vantagem de evitar o problema da relevância das finalidades psíquicas de loucos ou incapazes. Parece ser esta a aceite pelo artº 334 do Código Civil, na sua parte final que qualifica de ilegítimo o acto pelo qual o titular de um direito o exerce, quando exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito.”
Segundo o legislador, a determinação da legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, ou seja da existência ou não de abuso do direito, afere-se a partir de três conceitos: a boa fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito.
A doutrina distingue dois sentidos principais da boa fé. “No primeiro, ela é essencialmente um estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude, resultando de tal estado consequências favoráveis para o sujeito do comportamento. Neste sentido, a boa fé insere-se nas normas jurídicas como elemento constitutivo da sua previsão, da hipótese. No segundo sentido, já se apresenta como princípio (normativo e/ou geral de direito) de actuação. A boa fé significa agora que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”[12 ].
“Contudo, dizer-se que a boa fé, neste segundo sentido, exige um comportamento «honesto, correcto e leal» é dizer ainda muito pouco, é confirmar o carácter indeterminado, de «norma em branco», desta cláusula geral - o que acontece, aliás, com quase todas as outras. Por isso, a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem elaborado, com base na jurisprudência dos tribunais, uma série de «hipóteses típicas» ou «figuras sintomáticas» concretizadoras da cláusula geral da boa fé. Podemos assim destacar a proibição de venire contra factum proprium, impedindo-se uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente; aquilo que os alemães designam por Verwirkung, com que se veta o exercício de um direito subjectivo ou duma pretensão quando o seu titular, por não os ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal ou intolerável); o abuso da nulidade por vícios formais - é inadmissível a impugnação da validade dum negócio por vício de forma por quem, apesar disso, o cumpre ou aceita o cumprimento realizado pela outra parte; a proibição de o credor recusar a prestação apta a satisfazer o seu interesse, apesar de não estar inteiramente de acordo com as estipulações contratuais (v.g., ligeira ou insignificante ultrapassagem do prazo ou falta de entrega de diminuta importância em dinheiro numa vultosa obrigação pecuniária - cfr. artº 802, nº 2 do Código Civil); a interdição de se invocar a «excepção de não cumprimento do contrato» (artº 428), quando a falta do inadimplente não seja de tal modo grave que justifique a recusa em cumprir da outra parte”[ 13 ].
Em suma, os conceitos de boa fé e de abuso de direito têm conteúdo e extensão diferentes, sendo que a ideia de abuso de direito pode muitas vezes estar incluída na violação da boa fé. “É o que se dará, em regra, no domínio contratual, onde as partes devem proceder segundo a boa fé: aí, o abuso do direito será frequentemente uma ofensa da boa fé devida”[ 14 ].
Por bons costumes há-de entender-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente.
O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.
“Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade.
Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados (como sucede no poder paternal, no poder tutelar, etc.), a par de outros em que se reconhece maior liberdade de actuação ou decisão ao titular (direitos potestativos, direito de propriedade, dentro de certos limites, etc.)”[ 15 ]
O exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto. É isso que resulta expressamente do artº 334 e é também essa a lição de todos os autores e de todas as legislações[ 16 ].

“In casu”, não se vê que possa existir qualquer excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito no facto de o R., tendo deliberado não aprovar a localização do Centro de Transferência de Resíduos nos prédios prometidos vender, ter decidido revogar a deliberação de reservar os terrenos para o investimento da “A..., Lda” e considerar-se desobrigado da promessa de venda.
Com efeito, o que eventualmente poderia questionar-se[17] seria a validade ou invalidade da deliberação de não aprovação da localização do Centro de Transferência de Resíduos e as repercussões da mesma na esfera jurídica da “A..., Lda”. Consumada essa não aprovação, apresenta-se-nos como consequência lógica que a promessa de venda, feita exclusivamente na perspectiva daquele investimento e não como mero negócio imobiliário, ficava sem justificação e condições para ser cumprida.
Não há, portanto, abuso de direito do R. ao considerar-se desobrigado de cumprir a promessa de venda.

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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em, com os fundamentos acima explanados, manter a sentença recorrida.
As custas são a cargo da apelante.
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[1] Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem outra menção.
[2] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 17/01/2006 (Relator: Des. Freitas Neto), in www.dgsi.pt.
[3] Do Contrato Promessa, 3ª edição, pág. 169 e seguintes, que na exposição subsequente, com a devida vénia, se seguirá de perto.
[4] De resto, no artº 2º, nº 2 do Plano de Apoio ao Investimento referido no ponto 3.1.4. da matéria de facto assente, onde está previsto o pagamento pelo “investidor” da quantia em causa, designa-se a mesma como “depósito de caução”.
[5] Presunções são, nos termos do artº 349º, as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
[6] Cfr. artº 830º, nº 1, in fine.
[7] Esse destino não foi objecto de menção expressa no contrato promessa, mas resulta inquestionavelmente dos autos que corresponde à vontade real das partes ao contratarem. E, não se lhe estendendo as razões determinantes da forma do negócio (artº 238º), nada obsta a que seja considerado.
[8] Das Relações Jurídicas segundo o Código Civil de 1966, vol. V, pág. 9.
[9] Direito das Obrigações, pág. 58.
[10] Cód. Civil Anotado, 2ª ed., vol. I, pág. 277
[11] Direito Civil, Lições dadas ao 2º ano jurídico de 1972-1973, pág. 77.
[12] Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, pág. 55.
[13] Idem, Ob. cit., págs. 59 e 60.
[14] cfr. Prof. Vaz Serra, Do Abuso do Direito, págs. 265-266.
[15] Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 297.
[16] P.L.-A.V., ob. cit., pág. 296.
[17] Noutra sede, que não neste processo.