Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | DR. OLIVEIRA MENDES | ||
| Descritores: | PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR CRIME NO EXERCÍCIO DA CONDUÇÃO DE VEICULO COM MOTOR | ||
| Data do Acordão: | 10/01/2003 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | ALCOBAÇA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Área Temática: | CÓDIGO PENAL | ||
| Legislação Nacional: | ART.º 69º DO C.P. | ||
| Sumário: | Após a entrada em vigor da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, e como decorre da redacção dada à al. a), do n.º1, do art.69, do Código Penal, deixou de ser aplicável a pena acessória de proibição de conduzir por crime no exercício da condução de veículo motorizado com grave violação das regras do trânsito rodoviário, passando aquela pena acessória a ser aplicável, apenas, por crime previsto no art. 291° (condução perigosa de veículo rodoviário) ou no art. 292° (condução de veículo em estado de embriaguez). | ||
| Decisão Texto Integral: | Recurso n.º 2053/03 *** Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra. No processo comum singular n.º 369/01, do 3º Juízo da comarca de Alcobaça, após a realização do contraditório foi proferida sentença que condenou o arguido M..., com os sinais dos autos, como autor material, em concurso real, de um crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo art.137º, n.º1, do Código Penal, e de uma contra-ordenação prevista e punível pelo art.13º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada, na pena de 12 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 18 meses e na coima de 200 €. Interpuseram recurso Ministério Público e arguido. É do seguinte teor a parte conclusiva da motivação apresentada pelo Ministério Público: 1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença a quo na parte em que, não obstante ter condenado o arguido M... pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de 1 (um) crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137º, n.º1, do Código Penal e de 1 (uma) contra-ordenação, p. e p. pelo art.13º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada, não o condenou na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, p. e p. pelo art.69º, n.º1, al.b), do Código Penal, pois foi essa a intenção do legislador. 2. É inconcebível, inaceitável e intolerável entender que o Legislador tivesse desejado, contrariamente ao que sucede na prática de crimes abstractos ou na prática de contra-ordenações graves e/ou muito graves (nos quais o resultado não faz parte do tipo de crime) que o agente fosse punido, respectivamente, com a sanção acessória de proibição de conduzir, p. e p. pelo art.69º, n.º1, al.a), do Código Penal, ou na inibição de conduzir veículos motorizados, p. e p. pelo art.139º, n.º 2, do Código da Estrada, enquanto que o agente que pratica um crime de resultado, v.g. no caso sub judicie, o crime de homicídio por negligência, dissociado da prática de um contra-ordenação grave ou muito grave, pudesse ser “isento” da punibilidade na referida sanção acessória, p. e p. na al.b), do primeiro preceito legal citado. 3. A ser assim, nenhum agente condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência – apenas cometido, em concurso efectivo, com a prática de uma contra-ordenação simples – seria punido com tal sanção acessória, facto que, sem quaisquer dúvidas a mens legis e a mens legislatoris, sobretudo em matéria de sinistralidade automóvel, verdadeiro flagelo nacional, como é o caso dos autos. 4. A alteração legislativa (Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho), às disposições conjugadas dos arts.69º, 291º e 292º, todos do Código Penal, impõe que o âmbito da interpretação e de aplicação e, em especial, da al.b), do n.º1, do art.69º, do Código Penal, tenha necessariamente de ser outro, tenha necessariamente de no contextualizado face a todo o Sistema Penal e, no caso sub judice, aos crimes rodoviários, sob pena de quebra de harmonia e concordância prática na sua aplicação, face às fortes exigências de prevenção especial e, sobretudo, de prevenção geral que, neste campo, se fazem sentir. 5. A factualidade dada como provada na douta sentença a quo impõe que o arguido seja condenado na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados p. e p. pelo art.69º, n.º1, al.b), do Código Penal, quer na redacção vigente na altura dos factos, quer depois da alteração legislativa efectuada pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, uma vez que a redacção daquele preceito legal permaneceu inalterada com a entrada em vigor da referida lei, desta feita tendo em conta o novo quadro legislativo, onde não é permitido ao aplicador da Lei distinguir o que o legislador não quis fosse distinguido. 6. Encontra-se sobejamente provado e é incontroverso que o arguido conduziu o veículo automóvel e que este foi o instrumento do crime, uma vez que a sua condução/utilização esteve estruturalmente ligada à comissão do crime de homicídio por negligência pelo qual o arguido foi condenado, pelo que se encontra preenchida a primeira parte da previsão normativa do referido art.69º, n.º1, al.b), do Código Penal – punido por crime cometido com utilização de veículo. 7. No caso sub judice, o crime de homicídio por negligência pelo qual o arguido foi condenado, não poderia ter existido e/0u ter sido cometido, sem a condução, por parte daquele, do referido veículo automóvel e, por outro lado, a forma, o modo, as circunstâncias em que a condução do referido veículo foi efectuada pelo arguido – que circulou muito próximo da berma, em desconformidade com o preceituado no art.13º, n.º1, do Código da Estrada – foram, foram determinantes e foram essenciais para causar a morte da infeliz vítima, pelo que se encontra preenchida, cumulativamente, a segunda parte da previsão normativa do referido art.69º, n.º1, al.b), do Código Penal – e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante. 8. Fazendo apelo a critérios de justiça, adequação e proporcionalidade, atendendo à gravidade do crime, à ilicitude, à culpa e personalidade do arguido, à inexistência de circunstâncias que legitimem a atenuação especial da pena, atendendo a que a prevenção geral e especial, deveria a Mm.ª Juiz a quo ter condenado o arguido Manuel Maria Ferreira Sintra na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, p. e p. pelo art.69º, n.º1, al.b), do Código Penal, por período não inferior a 6 meses. 9. Não tendo assim decidido, violou a sentença a quo o disposto nos arts.40º, 69º, n.º1, al.b), 70º e 71º, todos do Código Penal e no art.9º, n.º3, do Código Civil. 10. Pelo que a douta sentença a quo deverá ser substituída, nesta parte, por outra que condene o arguido na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, p. e p. pelo art.69º, n.º1, al.b), do Código Penal, por período não inferior a 6 meses. Por sua vez, o arguido formulou as seguintes conclusões na sua motivação: 1. O art.13º, n.º1, do Código da Estrada diz o seguinte: “O trânsito deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes”. Sendo certo que a via tinha 7,40 metros de largura e presumindo-se que cada faixa de rodagem tivesse 3,70 metros, não tendo ficado provado qual a dimensão do veículo e a que distância da berma circulava, em concreto, o arguido, não se pode concluir que o mesmo circulava próximo da berma ou se seria exigível ou não ao arguido circular mais distante da mesma. 2. Apesar de ter ficado provado que a berma por onde circulava o Manuel Pinheiro tinha 2,50 metros de largura, não se provou a que distância caminhava ele da faixa de rodagem quando o veículo conduzido pelo arguido nele embateu. 3. Ficado provado que o arguido circulava a uma velocidade não superior a 80 km/hora, com os médios ligados (luzes que, nos termos do art.60º, 1, b), do Código da Estrada, apenas iluminam a via a uma distância de 30 metros) e que a vítima não usava qualquer sinal luminoso ou reflector que assinalasse a sua presença, pelo que não era exigível ao arguido em especial dever de cuidado na medida em que não podendo ver a vítima e não infringindo qualquer regra de trânsito (pois não se provou a que distância em concreto distava o veículo da berma) o arguido confiava no cumprimento dos deveres legais de trânsito que se impõem aos outros condutores e peões. 4. A ratio legis do art.13º, n.º1, do Código da Estrada, visa não só facilitar o trânsito de peões mas também “facilitar a manobra de ultrapassagem e o trânsito em sentido contrário” (in Código da Estrada Anotado, José da Costa Pimenta, Livraria da Universidade, Coimbra, 1995, p. 55 e 56). 5. Pelo que deve o condutor circular mais próximo da berma direita que do eixo da via (o que fez o arguido), conservando da berma uma distância que permita evitar acidentes (distância essa que não ficou provada nos autos). 6. De acordo com o Acórdão da Relação de Évora de 25.03.1976, “Os casos em que a estrada não tenha bermas (ou que não sejam transitáveis, ou que existam soluções de continuidade), pondo a possibilidade de o peão surgir licitamente na faixa de rodagem, ou em que este pode surgir para a travessia da via pública, criam um quadro previsível dos perigos de trânsito, a impor um cuidado de condução – distância da berma, que permite evitar qualquer acidente” (in BMJ, n.º 257, p. 204). 7. Ora, no caso sub judice, havendo bermas, não existia aquele “quadro previsível dos perigos de trânsito”, pelo que, não sendo previsível o perigo, não era exigível ao condutor um especial dever de cuidado, pelo que se exclui a culpa do arguido devendo o mesmo ser desresponsabilizado criminalmente. 8. É do conhecimento geral (pelo que, nos termos do art.514º, n.º1, do C.P.C. é um facto que não carece de ser provado) que a Estrada Nacional n.º1 é uma rodoviária com muito tráfego e conhecida até por ser uma via perigosa dado elevado número de acidentes que nela ocorrem, pelo que era exigível à vítima um cuidado redobrado ao caminhar naquela via, nomeadamente, assinalando a sua presença com qualquer artifício. 9. O acidente ficou a dever-se exclusivamente a culpa da vítima porque: - a berma por onde caminhava a vítima tinha 2,50 metros de largura; - a vítima não assinalou a sua presença com qualquer iluminação ou reflector, muito embora seja do conhecimento geral que aquela via é de perigosidade acentuada; - sendo o local uma recta com cerca de 200 metros de comprimento e circulando o arguido a uma velocidade não superior a 80 km/hora, a vítima poderia e deveria ter visto o veículo conduzido pelo arguido. 10. Caso se não entenda que a culpa do arguido deve ser excluída, sempre se deverá atenuar a pena de prisão cominada, nos termos dos arts.72º e 73º, do Código Penal, atendendo às referidas circunstâncias do acidente. 11. Quanto à contra-ordenação cominada por violação do art.13º, n.º1, do Código da Estrada, atendendo à factualidade provada e aos factos que não o foram, resulta que não se apurou se o acidente ocorreu devido à conduta do arguido ou à conduta da vítima, pelo que não se pode concluir que o arguido conduzisse com falta de atenção ou muito próximo da berma. 12. Não estão, pois, preenchidos os elementos do tipo contra-ordenacional, pelo que dela deve ser desresponsabilizado o arguido. 13. Na douta sentença recorrida foi incorrectamente interpretado o art.137º, do Código Penal e o art.13º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada por, face à matéria de facto provada, existir uma causa de exclusão da culpa que desresponsabiliza criminalmente e contra-ordenacionalmente o arguido ou que, pelo menos, atenua especialmente a pena de prisão cominada, nos termos dos arts.72º e 73º, do Código Penal. Os recursos foram admitidos. Respondeu o Ministério Público, tendo extraído da respectiva contra-motivação as seguintes conclusões: 1. Face à matéria de facto assente, que o arguido/recorrente não impugna, é inequívoco que, sem quaisquer dúvidas, a vítima Manuel Pinheiro caminhava na berma da estrada e o veículo do arguido muito próximo desta, pois só assim se compreende que apenas o veículo daquele tenha embatido neste com o “varão de suporte do espelho retrovisor exterior direito do dito veículo na cabeça do Manuel Pinheiro” – e apenas nesta, só nesta e só com aquela única peça metálica do veículo. 2. É incontroverso que, como diz o arguido/recorrente, também é facto notório (pelo que nos termos do art.514º, n.º1, do Código de Processo Civil, é um facto que não carece de ser provado) no dia em que ocorreram os factos – 13 de Outubro de 2001 – a Estrada Nacional n.º1 é abundantemente frequentada, nas bermas, por peregrinos que se dirigem, ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima, daí que fosse exigido ao arguido/recorrente “mais cautelas e cuidados redobrados na condução”. 3. Uma vez que a luz de cruzamento é “destinada a iluminar a via para a frente do veículo numa distância de 30 metros”, se o arguido/recorrente seguisse com as cautelas e cuidados que lhe eram impostos no exercício da condução, redobradamente exigidos face às circunstâncias e de dia supra indicados, teria de ter avistado, com antecedência a vítima e era exigível tê-la antecipadamente avistado. 4. Se a ratio legis do art.13º, n.º1, do Código da Estrada é, também, facilitar a manobra de ultrapassagem e o trânsito em sentido contrário, o certo é que, no caso sub judice, não só não circulava ninguém em sentido contrário ao do arguido, nem o arguido, naquele momento, se encontrava a ser ultrapassado, pelo que se lhe impunha circular “o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permitisse evitar acidentes”. 5. Sendo que a conduta do arguido/recorrente é a única causal do resultado morte da vítima Manuel P... que, por sua vez, em nada, contribuiu ou concorreu para a sua produção. 6. Razão pela qual se mostram preenchidos, quer os elementos objectivos, quer os elementos subjectivos do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137º, n.º1, do Código Penal e contra-ordenação, p. e p. pelo art.13º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada e pelos quais o arguido foi condenado. 7. Ponderando os bens jurídicos violados (o direito à vida e a segurança nas comunicações terrestres), a gravidade do ilícito criminal e a moldura penal que lhe é abstractamente aplicável, a personalidade do arguido, a medida da sua culpa e as necessidades de reprovação e de prevenção de futuros crimes, mostra-se bem doseada a pena de prisão e a coima em que o mesmo foi condenado, o mesmo não sucedendo quanto à ausência de condenação na sanção acessória de proibição de conduzir, facto já objecto de recurso pelo Ministério Público. 8. Inexistindo razões de facto – bem pelo contrário – que legitimem a atenuação especial da pena principal de prisão em que o arguido/recorrente foi condenado. 9. Pelo que a douta sentença a quo – no que ao objecto do recurso ora interposto pelo arguido/recorrente – procedeu ao correcto e criterioso enquadramento jurídico-penal da matéria de facto ali dada como provada, pelo que não violou o disposto nos arts.137º, n.º1, do Código Penal e 13º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada. O Exmo. Procurador-Geral da República emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da improcedência dos recursos, por entender que ao arguido competia providenciar pela circulação do veículo guardando uma distância da berma por onde seguia o peão que evitasse a produção de acidentes, e por considerar que, actualmente, de acordo com a jurisprudência predominante desta Relação, o Código Penal não contempla a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir para casos como o vertente. No entanto, defende que deve ser aplicada sanção acessória de inibição de conduzir ao arguido, face à condenação do mesmo pela prática de contra-ordenação, a qual, em função do disposto no art.136º, n.º1, do Código da Estrada, implica a cominação àquele da sanção em questão. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre agora decidir. *** Começando por delimitar o objecto dos recursos o qual nos é dado pelas conclusões extraídas das respectivas motivações, verifica-se serem submetidas à nossa apreciação e julgamento as seguintes questões: Recurso do arguido: a) Errada subsunção dos factos ao direito aplicável, porquanto do quadro factual provado decorre que a morte do peão não resultou de comportamento culposo do arguido, mas sim da própria vítima; b) Desajustada dosimetria da pena, posto que as circunstâncias ocorrentes devem conduzir à aplicação do instituto da atenuação especial da pena; Recurso do Ministério Público: a) Omissão de aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, uma vez que a situação ou caso dos autos deve ser subsumido ao disposto no art.69º, n.º1, al.b), do Código Penal. *** É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados): «No dia 13 de Outubro de 2001, cerca das 02h25m, o arguido conduzia o veículo pesado de mercadorias, de matrícula 39-13-QR, pertença de “Lusia....”, pela Estrada Nacional n.º1, ao km 97,150, área deste concelho e comarca de Alcobaça, no sentido de marcha Leiria/Benedita, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha e muito próximo da berma direita. Por sua vez, Manuel ... caminhava nessa berma direita da EN n.º1, atento o sentido de marcha seguido pelo arguido. E caminhava no sentido de marcha Benedita/Leiria, com destino ao Santuário de Fátima. Quando o veículo conduzido pelo arguido passava pelo Manuel Pinheiro, o varão de suporte do espelho retrovisor exterior do dito veículo bateu na cabeça do Manuel P.... Em consequência do embate o corpo do Manuel P... foi projectado após o que tombou para a berma, para o lado esquerdo, atento o sentido de marcha Benedita/Leiria. Simultaneamente, um espelho exterior, colocado acima do espelho retrovisor do veículo do arguido, desprendeu-se do mesmo e tombou no solo junto de João P...., que caminhava à retaguarda do Manuel P.... Do solo à extremidade inferior do varão que suporta o espelho retrovisor do veículo do arguido distam 1,60 metros. No local a estrada é uma recta com cerca de 200 metros de comprimento. E com a largura de 7,40 metros. As bermas da estrada eram em terra batida, com cerca de 2,50 metros de largura. O piso encontrava-se seco e limpo e o tempo estava bom. Era noite escura. O arguido circulava a velocidade não superior a 80 km/hora. E com as luzes médias do veículo ligadas. O Manuel P... não trazia consigo qualquer sinal luminoso ou reflector que assinalasse a sua presença. Cerca de 20 metros atrás do Manuel P... caminhava na mesma berma da Estrada Nacional n.º 1 um grupo de peregrinos. Em consequência do embate e subsequente queda ao solo, o Manuel P... sofreu as lesões descritas e examinadas no relatório de autópsia de fls.106-109 dos autos – cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido –, designadamente lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, toraco-abdominais e de bacia, as quais foram causa adequada, directa e necessária da sua morte. O arguido agiu com falta de cuidado e atenção na condução. O arguido aufere a quantia mensal de 798 €. A sua mulher aufere a quantia mensal de 400 €. Tem a seu cargo dois filhos menores. Vive em casa própria, adquirida através de empréstimo bancário, para amortização do qual despende a quantia mensal de 250 €. Tem carta de condução há cerca de 17 anos. É reputado como um condutor prudente e como uma pessoa pacata, séria, trabalhadora e honesta. Tem os antecedentes estradais do registo individual de condutor de fls.261, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais ( - De acordo com o documento de fls.261 o arguido foi condenado pela prática de três contra-ordenações cometidas em 1998, 1999 e Setembro de 2001, em sanções acessórias de inibição de conduzir pelos períodos de 30, 30 e 45 dias, respectivamente, tendo sido suspensas na sua execução as duas primeiras.). É delinquente primário». *** Errada Subsunção dos Factos ao Direito Aplicável Alega o arguido que dos factos provados em sentença resulta que o acidente objecto do processo se ficou a dever a comportamento culposo da vítima porque: a) A berma por onde caminhava a vítima possuía 2,50 metros de largura; b) A vítima não assinalou a sua presença com qualquer iluminação ou reflector, muito embora seja do conhecimento geral que a via onde o acidente ocorreu é de perigosidade acentuada; c) O local onde o acidente se verificou é constituído por uma recta com cerca de 200 metros de comprimento e circulando o arguido a uma velocidade não superior a 80 km/hora, a vítima poderia e deveria ter visto o veículo pesado. Concomitantemente, alega não poder ser assacada a si qualquer culpa na produção do evento ou acidente, posto que não infringiu qualquer regra ou norma de trânsito, consabido não se haver provado a que distância seguia da berma o veículo por si conduzido, para além de que confiava que a vítima cumprisse os deveres legais de trânsito. Observação prévia a fazer é a de que o trânsito ou circulação de pessoas – peões – nas vias de domínio público encontra-se submetido, tal como o trânsito de veículos ou de animais, às regras constantes do Código da Estrada (arts.2º e ss. deste diploma legal). De acordo com as normas previstas naquela codificação reguladoras do trânsito de peões (arts.99º a 104º), sobre os peões não impende qualquer obrigação ou dever de utilização de iluminação ou de reflectores, a não ser aquando da constituição de cortejos ou formações organizadas, casos em que é obrigatório assinalar a respectiva presença com, pelo menos, uma luz branca dirigida para a frente e uma luz vermelha dirigida para a retaguarda, ambas do lado esquerdo do cortejo ou formação (art.102, n.º1). Deste modo, não seguindo a vítima Manuel Pinheiro em cortejo ou formação organizada, é evidente que à mesma não era exigível o uso de qualquer iluminação ou de reflectores, pelo que a circunstância de aquela não haver feito uso de iluminação ou reflectores não deve nem pode, obviamente, ser motivo de culpabilização relativamente à produção do acidente. Por outro lado, das normas ou regras em apreço não resulta a imposição de os peões circularem o mais afastados possível do limite da faixa de rodagem, mas tão só que transitem pela direita dos locais que lhes são destinados para tal, isto é, pela direita dos passeios, pistas, passagens ou bermas (arts.99º e 100º). Ora, seguindo a vítima pelo lado direito da berma por onde circulava, como claramente decorre dos factos provados em sentença, posto que transitando pela berma da estrada e em sentido inverso ao seguido pelo arguido foi embatida pelo varão de suporte do espelho retrovisor exterior do veículo conduzido pelo arguido, não pode tal facto constituir, como também vimos relativamente ao anterior, motivo de culpabilização relativamente à produção do evento ( - Como doutamente refere Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado (3ª edição), 137: «Os peões, devendo embora transitar pela direita das bermas, suposto que o trânsito a pé seja possível nos dois sentidos, não podem ser responsabilizados, ainda que parcialmente, pelo acidente que os vitime, causado por veículo automóvel que siga muito próximo da berma. Os peões, nas bermas ou passeios, devem poder circular tranquilamente, tal como o automobilista na faixa de rodagem, pois confiam na presunção de inexistência de circulação rodoviária naquele espaço que lhes está reservado».). Por outro lado, ainda, como aliás alega o próprio arguido, certo é que em matéria de circulação estradal vigora e preside o princípio da confiança, segundo o qual qualquer utente das vias deve poder confiar que os demais utentes se comportam de acordo com as normas ou regras de trânsito, ou seja, de que não é exigível a qualquer utente das vias deva contar com a conduta contra-ordenacional ou negligente dos demais utentes, a significar que sobre a vítima Manuel P.... não recaía, obviamente, qualquer dever de previsão relativamente à conduta do arguido ao permitir que o varão de suporte do espelho retrovisor exterior do veículo por si conduzido circulasse pela berma da estrada. Nesta conformidade, ao contrário do alegado pelo arguido, dúvidas não restam de que o acidente que aos autos subjaz não é imputável ao comportamento da vítima Manuel P..., a qual para a produção do mesmo em nada concorreu ou contribuiu. Ao invés, como se verá de seguida, certo é que aquele evento pode e deve ser imputado ao arguido. Vejamos. De acordo com o art.13º, n.º1, do Código da Estrada, o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes. Trata-se de regra primordial cuja observância impõe aos condutores, por um lado, absterem-se de invadir a faixa de rodagem do seu lado esquerdo, a qual se destina aos veículos que circulam em sentido inverso, bem como de invadirem espaços adjacentes às vias, os quais em regra se não destinam ao trânsito rodoviário e, por outro, absterem-se concretamente de circular, não só pelas bermas, passeios e demais espaços adjacentes, mas também a uma distância destes necessária e suficiente para, por si, não provocarem qualquer acidente, o qual pode vir a ocorrer por efeito da circulação de peões naqueles espaços, ou devido à existência de qualquer obstáculo (sinais de trânsito, veículos estacionados, postes de iluminação, árvores, etc.). Com efeito, o trânsito nas vias de dois sentidos implica necessariamente a existência de duas hemi-faixas de rodagem, sendo certo que a regular circulação de veículos só é possível se por cada uma delas apenas for permitida, em regra, o trânsito de veículos que circulam no mesmo sentido de marcha. Por outro lado, destinando-se as bermas, passeios e demais espaços adjacentes, prioritariamente, à circulação de peões (art.99, n.º1, do Código da Estrada) e, subsidiariamente, ao acesso por parte de veículos aos prédios contíguos e vice-versa, isto é, à sua saída (art.17º, n.º1, do Código da Estrada), e utilizando-se uns e outros como pontos privilegiados de colocação de sinais reguladores do trânsito, certo é não se poder processar pelos mesmos o trânsito de viaturas, devendo ainda os veículos circular a uma distância de segurança que permita evitar a produção de qualquer acidente. Ora, vindo provado que o arguido conduzia o pesado de mercadorias pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, e que seguia com aquele posicionado muito próximo da berma direita, local onde o varão de suporte do espelho retrovisor exterior do dito pesado bateu na cabeça da vítima Manuel P..., que por aquela berma caminhava, dúvidas não existem de que é imputável ao arguido a morte do peão, por violação clara da regra imposta pelo art.13º, n.º1, do Código da Estrada, tanto mais que vem provado também que a estrada naquele local tem 7,40 metros de largura, o que tornava mais fácil ao arguido posicionar o veículo por si conduzido relativamente à berma da estrada à apelidada distância de segurança. Acresce que o arguido, como vem provado, agiu com falta de atenção, o que facilmente se percebe, posto que circulando por via com a configuração de uma recta com 200 metros de comprimento, estando o tempo bom, devia ter avistado a vítima a 30 metros de distância, consabido que seguia com os faróis da viatura na posição de médios (art.60º, n.º1, al.b), do Código da Estrada), o que não sucedeu, pois caso contrário teria, necessariamente, inflectido a marcha do veículo para a sua esquerda, posicionando-se de forma a não embater naquela. Deste modo, não merece qualquer reparo a sentença impugnada ao haver considerado o arguido como único responsável (culpado) pela produção do acidente e, por via disso, como autor material do crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo art.137º, n.º1, do Código Penal e de uma contra-ordenação prevista e punível pelo art.13º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada. *** Desajustada Dosimetria da Pena Entende o arguido que, mesmo a considerar-se que o acidente se ficou a dever ao seu comportamento, isto é, a conduta negligente na sua condução, deve ser aplicado o instituto da atenuação especial da pena. Como é sabido, o instituto da atenuação especial da pena tem em vista aqueles casos em que a moldura penal fixada pelo legislador para o facto cometido se mostra inadequada, face à ocorrência de uma atenuação extraordinária da responsabilidade do agente, isto é, face à ocorrência de circunstâncias que diminuem de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando transparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva (- Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime (1993), 302). No caso vertente é manifesto não ocorrer qualquer circunstância que diminua, acentuadamente ou não, a ilicitude do facto, a culpa do arguido ou a necessidade da pena. Nesta conformidade, é evidente não dever nem poder ser especialmente atenuada a pena ao arguido. *** Omissão de Aplicação da Pena Acessória de Proibição de Conduzir Alega o Digno Procurador Adjunto que ao arguido deveria sido aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados nos termos do art.69º, n.º 1, al. b), do Código Penal, com o fundamento de que é inaceitável entender-se que o legislador de 2001 (Lei n.º 77/01, de 13 de Julho), afastou a possibilidade de aplicação daquela pena acessória aos casos de condenação de arguido no crime de homicídio por negligência cometido na condução de veículos motorizados, tanto mais que a prática de meras contra-ordenações (graves e muito graves) cometidas no exercício da condução de veículos implica, de acordo com o Código da Estrada, a cominação de sanção acessória de inibição de conduzir. Por sua vez, entende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que, conquanto não deva nem possa ser aplicada ao arguido a pena acessória de proibição de conduzir prevista no art.69º, do Código Penal, posto que aquela pena acessória deixou de ser cominável aos crimes cometidos no exercício da condução, sendo apenas aplicável aos crimes dos arts.291º e 292º (condução perigosa de veículo rodoviário e condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas), deve-lhe ser aplicada a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art.139º, do Código da Estrada, uma vez que foi condenado pela prática de contra-ordenação que em função do disposto no art.136º, n.º1, daquele diploma legal, implica a cominação da sanção em questão. Decidindo, dir-se-á. Pela publicação da Lei n.º 77/01, de 13 de Julho, foi alterada a redacção do art.69º, n.º 1 e respectivas alíneas do Código Penal, com aditamento de mais uma alínea – c) ( - A pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados foi introduzida no Código Penal pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, tendo sido o art.69º discutido nas 7ª, 16ª e 41ª sessões da CRCP, em 29 de Maio e 21 de Setembro de 1989 e 22 de Outubro de 1990.). Por efeito da alteração operada, a al.a) passou a ter redacção segundo a qual a pena acessória de proibição de conduzir é apenas aplicável por crime previsto nos artigos 291º e 292º (condução perigosa de veículo rodoviário e condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas), quando é certo que anteriormente ali se previa a aplicação daquela pena acessória por crime cometido no exercício da condução de veículos motorizados com grave violação das regras de trânsito rodoviário. Por sua vez, a al.b) manteve a redacção originária e a al.c) foi introduzida prevendo a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir por crime de desobediência cometido mediante a recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para a detecção de condução de veículo sob o efeito do álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo. Face a esta alteração introduzida à al.a), do n.º1, do art.69º, do Código Penal, tem vindo esta Relação a decidir, maioritariamente, que após a entrada em vigor da Lei n.º 77/01, de 13 de Julho, deixou de ser aplicável a pena acessória de proibição de conduzir por crime cometido no exercício da condução de veículos motorizados com grave violação das regras de trânsito rodoviário, passando aquela pena acessória a ser aplicável, apenas, por crime previsto no art.291º (condução perigosa de veículo rodoviário) ou no art.292º (condução de veículo em estado de embriaguez) ( - Cf. entre muitos outros os acs. de 02.01.23, relatado pelo ora relator, e de 02.04.17, publicados nas CJ, XXVII, I, 43 e XXVII, II, 57.). Entende o Digno Magistrado recorrente, porém, que aos crimes de homicídio por negligência cometidos no exercício da condução de veículos motorizados é aplicável a pena acessória em questão por efeito da aplicação da al.b), do n.º1, do art.69º. Será que assim é? Cremos que não. Com efeito, a letra da lei ao aludir a crime cometido com a utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante refere-se a factos típicos em que o veículo é utilizado para os cometer e em que a respectiva execução foi pelo veículo facilitada de forma relevante, o que significa que o veículo surge aqui como simples meio de comissão do crime, muito embora se exija, ainda, que a execução do facto haja sido relevantemente facilitada pelo uso daquele. Estamos, pois, perante situações em que o veículo é (mero) instrumento do crime, isto é, em que o veículo não é essencial para a sua prática. No entanto, no caso objecto do processo o veículo não deve nem pode ser considerado como simples meio de comissão do crime, posto que é a sua condução (culposa) que integra e preenche o crime, pelo que o veículo é condição necessária da prática do crime. Uma coisa é crime cometido com a utilização de veículo, outra é crime cometido no exercício da condução. Como diz Germano Marques da Silva ( - Crimes Rodoviários -Pena Acessória e Medidas de Segurança (1996), 30/31.), crimes cometidos no exercício da condução são todos aqueles em que a acção viola as regras do trânsito rodoviário, sendo elemento da sua estrutura típica, como sucede nos crimes previstos nos arts.291º e 292º, do Código Penal, ou causa do evento, como acontece em muitos crimes materiais em que a violação das regras da condução é a causa do evento típico – v.g. homicídio ou ofensas corporais negligentes causados por excesso de velocidade, ultrapassagem e demais manobras perigosas. Crimes cometidos com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por esta facilitada de forma relevante são aqueles em que o uso do veículo é instrumento relevante para a prática do crime; a lei não exige que o uso do veículo tenha sido condição necessária da prática do crime, basta-se com que esse uso tenha sido instrumento relevante, isto é, tenha contribuído de modo importante para a sua prática. Assim, se sem o uso do veículo a prática do crime tivesse sido bastante mais difícil, já é aplicável a sanção acessória. Prova cabal, aliás, da essencialidade da redacção originária da al.a), do n.º1 do art.69º, na parte em que aludia a grave violação das regras do trânsito rodoviário, é o facto de este inciso haver sido aditado ao texto do Anteprojecto (art.69º-A) pela Comissão Revisora, sendo que na respectiva Acta (acta n.º 7) ficou exarado o seguinte comentário: «Por último foi abordada a pena de proibição de condução de veículos motorizados (novo art.68º-A), que deverá prever, ao contrário do art.69º-A do Anteprojecto, uma menção a grave violação das regras de trânsito rodoviário, pena esta que não poderá ser acumulada com a medida de segurança da apreensão de carta de condução». Nesta conformidade, dúvidas não restam de que ao caso ora em recurso, tal qual se decidiu na 1ª instância, não é aplicável a pena acessória de proibição de conduzir. Tal como não é aplicável a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art.139,º do Código da Estrada, por efeito do que esta codificação dispõe no art.136º, n.º1, uma vez que a contra-ordenação cometida pelo arguido não é muito grave ou grave – arts.13º, n.º1, 146º e 147º, daquele diploma legal. *** Termos em que se acorda negar provimento aos recursos. Custas pelo arguido/recorrente – 10 UCs. d e taxa de justiça. *** |