Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | SEGURO AUTOMÓVEL CRIME DOLOSO | ||
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Data do Acordão: | 02/29/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE MIRA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART.ºS 8º, N.º 2, DO DECRETO-LEI N.º 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO E 15º, N.º 2, DO DECRETO-LEI N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO | ||
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Sumário: | A interpretação do artigo 8º, n.º 2, 2ª parte, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro (“O seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de … acidentes dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte”) - em tudo paralelo à norma actual do artigo 15º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 291/2007 -, em conformidade com o direito comunitário, alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes, bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida». Parece evidente nestas normas o intuito de protecção de terceiros, como resulta das delimitações previstas nos n.ºs 3 dos citados artigos. Seria, aliás, dificilmente compreensível que a lei deixasse as vítimas de actos dolosos, posto que praticados com recurso a veículos de circulação terrestre abrangidos pelo seguro obrigatório, numa situação de maior desprotecção do que deixa as vítimas de actos meramente negligentes. | ||
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Decisão Texto Integral: | I - RELATÓRIO
1. No processo comum colectivo n.º 109/07.0GBMIR do Tribunal Judicial de Mira, foi decidido, em termos de acórdão final, datado de 3 de Maio de 2011: «Por tudo o exposto, julgando a acusação pública procedente, por provada, este Tribunal decide: SEGMENTO A SEGMENTO B SEGMENTO C
2. Inconformada, recorreu a W..., COMPANHIA DE SEGUROS, SA, impugnando a decisão proferida sobre a matéria civil, com os seguintes argumentos (em tom de CONCLUSÕES): «1ª- Face aos factos provados, o Colectivo de Juízes não teve dúvidas em afirmar que o Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de molestar fisicamente o corpo dos ofendidos e conhecedor da capacidade de agressão ao corpo humano do veículo que conduzia. 2ª- Com a sua conduta cometeu não só os crimes de ofensa à integridade física qualificado como também os crimes de omissão de auxilio. 3ª- A ora Recorrente W... celebrou com o proprietário do veículo de matrícula 91-18-QV, o aqui Arguido, um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice número 004510257350, válido e eficaz à data dos factos aqui em discussão. 4ª- Na ausência de uma definição de contrato de seguro no âmbito do D.L. 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), a doutrina tem adiantado alguns conceitos, entre os quais os que assim se transcrevem - “o seguro de responsabilidade civil automóvel tem por finalidade cobrir o risco que consiste na ameaça do património do segurado em razão de acontecimento futuro, incerto e danoso, independente da sua vontade – um acidente de trânsito que causará prejuízos nos bens materiais ou morais de terceiros ou pessoas transportadas no veículo”. - “um acordo de vontades entre o tomador do seguro e o segurador, mediante o qual o primeiro se obriga a pagar uma quantia em dinheiro, designada por prémio, e o último se obriga a manter indemne o segurado dos prejuízos eventualmente decorrentes de sinistros por si causados no exercício da condução de veículos terrestres a motor, isto é, obriga-se a suportar o risco de circulação daqueles veículos”. - “um negócio jurídico através do qual uma das partes, a seguradora, assume perante a outra, o segurado, a obrigação de indemnizar os danos causados a terceiros por força de um acidente de viação, mediante o pagamento pelo segurado de uma prestação certa e periódica (o prémio), sendo predominantemente a sua qualificação como contrato a favor de terceiro”. 5ª- Ponto comum a todas as definições é a remissão das mesmas para outro conceito: o de acidente de viação/ acidente de trânsito/ sinistro, também este sem resposta no âmbito da legislação relativa ao Seguro Obrigatório. 6ª- O Dicionário da Língua Português define “acidente” como acontecimento fortuito; percalço; desastre; infelicidade; revés; acesso repentino; síncope. 7ª- A doutrina refere-se ao conceito de acidente de viação como: - “evento futuro, involuntário, incerto e potencialmente gerador de danos para terceiros.” - “acontecimento futuro, incerto e danoso, independente da sua vontade”. 8ª- A realidade factual em apreciação nestes autos não tem este carácter casual e fortuito indissociável do conceito de acidente de viação. 9ª- Não estamos perante um acidente de viação mas sim perante a prática de um crime perpetrado com recurso ao uso de um veículo automóvel, assim como o poderia ter sido por meio de qualquer outro objecto de natureza contundente. 10ª- O veículo QV embate directamente nos corpos dos Demandantes cíveis C... e B... porque foi para isso direccionado pelo Arguido num acto voluntário e totalmente consciente. 11ª- Os próprios Demandantes cíveis nunca configuraram a situação de que foram vítimas como um acidente de viação e, como tal, nunca participaram/reclamaram o mesmo junto da Seguradora do veículo automóvel em causa, ora Recorrente. 12ª- Ao longo de todo o inquérito não há qualquer referência à existência de um acidente de viação. O Digníssimo Ministério Público, quando deduz a Acusação Pública, não enquadra os factos praticados pelo Arguido como um acidente de viação. 13ª- Os factos que se apuraram, e que constituem a matéria em apreciação nestes autos, não consubstanciam a existência ou verificação de um risco – elemento essencial do contrato de seguro. 14ª- Assim, não pode considerar-se como válida e operante a garantia contratada pelo seguro por força do qual a Demandada, ora Recorrente, é condenada e que cobria os riscos da circulação do veículo automóvel de matricula 91-18-QV. 15ª- “Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo; os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais; os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel.” (Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo 07A197 (in www.dgsi.pt):
16ª- Por via do contrato de seguro, a Seguradora está obrigada a indemnizar os danos causados por via da utilização do veículo garantido. As lesões dos Demandantes foram provocadas não pela normal circulação da viatura mas sim “pela sua utilização desviada do fim a que se destinava, como utensílio ou arma, idónea a desferir lesões corporais, encontram-se fora dos riscos que a recorrente considerou quando da celebração do contrato de seguro.” 17ª- Resulta inequívoco de todos os factos supra transcritos, devidamente provados, que todas as lesões/danos sofridas pelos Demandantes C..., B...e HUC, ficam a dever-se a uma conduta dolosa do condutor do veículo automóvel … , ora Arguido, que o utilizou para ofender corporalmente as vitimas como poderiam ter utilizado qualquer outro instrumento de natureza contundente. 18ª- Além do mais, aceitarmos que os seguros obrigatórios de responsabilidade civil automóvel cobrem os danos resultantes de todos e quaisquer actos criminosos, por mais torpes e dolosos que o sejam, desde que na sua prática sejam utilizados veículos automóveis é aceitar a celebração de negócios ostensivamente contrários à ordem pública e aos bons costumes. 19ª- O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou as disposições conjugadas dos artigos 4º; 11º; 15º; 64º; todos do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto e ainda os artºs. 9º; 280º e 562º todos do Código Civil. * TERMOS EM QUE Devem as presentes conclusões proceder e, em consequência revogar-se a decisão recorrida absolvendo-se a recorrente dos pedidos de indemnização deduzidos pelos demandantes C...; B… e Hospitais da Universidade de Coimbra».
3. Não houve respostas.
4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu VISTO.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271). Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, incidente exclusivamente sobre a decisão cível, a questão a resolver consiste no seguinte: · Estamos perante um «acidente de viação» que possa justificar a legitimidade passiva da recorrente seguradora neste pedido cível?
2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO 2.1. No acórdão recorrido, é este o rol de FACTOS PROVADOS (em transcrição): 2.2. São estes os FACTOS NÃO PROVADOS: «Não se provaram quaisquer outros para além ou em contradição com a factualidade que foi considerada assente, designadamente, NÃO SE PROVOU: i. Que à data dos factos supra descritos B... fizesse da agricultura o seu modo de vida e sustento. ii. Que à data dos factos supra descritos C... fizesse da agricultura e dos trabalhos de serralharia e mecânica o seu modo de vida e sustento. iii. Que as sequelas que sobrevieram aos actos acima descritos para C... (Edema residual do joelho direito; Limitação dos últimos cinco graus de flexão do joelho direito) o impossibilitem de exercer com a mesma aptidão as tarefas pessoais, profissionais e lúdicas».
2.3. Não se vê necessidade de aqui colocar a motivação de facto pois o recurso não incide sobre este segmento.
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1. O recurso incide exclusivamente sobre a decisão civil e apenas sobre MATÉRIA DE DIREITO. Recorre a W... das 3 condenações de que foi alvo. No que diz respeito aos princípios gerais atinentes à tramitação dos recursos ordinários, adianta o artigo 400°, n.° 2 do CPP que «o recurso da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada», sendo tais requisitos cumulativos.
3.2. Quanto a tal decisão civil, rezou assim o texto da 1ª instância: «c) Do Pedido Cível Com base nos factos descritos na acusação, C... e B... deduziram um pedido de indemnização civil, com vista à condenação do arguido A... e de W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., enquanto seguradora para a qual havia sido transferida a responsabilidade pelos danos causados a terceiros pelo veículo referido na acusação, no pagamento da quantia global de €: 27.720,40, sendo €: 7.660,30 devidos ao primeiro demandante e €: 20.061,10 ao segundo, acrescida de juros desde a notificação até efectivo e integral pagamento. Alegaram, para tanto, que por força da actuação do arguido, descria na acusação, sofreram danos de natureza patrimonial e não patrimonial, cujo ressarcimento pretendem através do pagamento da indemnização peticionada. Vieram, também, com base nos mesmos factos, os HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, E.P.E. deduzir um pedido de indemnização civil, com vista à condenação do arguido e da referida companhia seguradora no pagamento da quantia de €: 4.027,25, acrescida de juros desde a notificação até efectivo e integral pagamento. Alegaram, para tanto, que por força da actuação do arguido, C... deu entrada nos serviços de urgência daquela unidade hospitalar, ali tendo recebido assistência médica, cujas despesas ascenderam à quantia peticionada. Cumpre apreciar. Nos artigos 71º e 72º, do Código de Processo Penal encontra-se consagrado o princípio da adesão obrigatória da acção civil ao processo penal, segundo o qual, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal deve ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento civil a tal destinado na estrutura do procedimento criminal em curso. Ora, de acordo com o artigo 129º, do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime será regulada pela lei civil, encontrando-se o regime da responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de actos ilícitos estabelecido no artigo 483º, número 1, do Código Civil, nos termos do qual, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Como é sabido, consagra-se nesta disposição legal o princípio básico da responsabilidade civil por factos ilícitos, à luz do qual a imposição ao lesante da obrigação de indemnizar depende da verificação dos seguintes pressupostos: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante - culpa; d) o dano; e) nexo de causalidade entre o facto e o dano [vd. ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 4a edição, p. 364; ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em geral”, 8a edição, vol. I, p. 533; PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, anotação ao artigo 483º, p. 416]. Nestes termos, o nascimento da obrigação de indemnizar assenta, antes de mais, sobre um facto do lesante, dominável ou controlável pela vontade, quer esse facto se traduza numa acção (violação de um dever geral de abstenção), quer consista numa omissão ou abstenção (violação de um dever jurídico especial de praticar o acto que teria impedido a consumação do dano). Do segundo elemento constitutivo da obrigação de indemnizar – ilicitude – decorre que só será gerador de responsabilidade o facto que seja ilícito ou antijurídico, ou seja, que esteja em oposição com a ordem jurídica, podendo esta ilicitude consistir na lesão de direitos de outrem ou na violação de norma destinada a proteger interesses alheios [RUI DE ALARCÃO, “Direito das Obrigações”, polic., 1983, p. 240]. Pressuposto ou condição da obrigação de indemnizar é ainda a imputação desse facto ao lesante a título de culpa (“dolo ou mera culpa”), entendendo-se por comportamento culposo aquele que merece a censura ou reprovação do direito. A culpa exprime, assim, um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente que, dadas as suas capacidades pessoais e em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter agido de outro modo, sendo justamente neste juízo de censura que reside a causa ou fundamento da deslocação do dano da esfera jurídica do prejudicado para a do lesante [RUI DE ALARCÃO, op. cit., p. 224]. Ao nascimento desta obrigação de indemnizar é ainda essencial a existência de um dano, ou seja, que o facto ilícito praticado tenha causado um prejuízo a alguém, sendo certo que a obrigação de indemnização que emerge da responsabilidade civil tem precisamente em vista tornar indemne (sem dano) o lesado, colocando-o na situação em que estaria sem a ocorrência do facto danoso [vd. MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 1992, p. 114]. Como acima se deixou dito, o último elemento constitutivo da responsabilidade civil por facto ilícitos consiste no nexo de causalidade entre o facto e o dano, que se traduz no juízo de imputação objectiva do dano ao facto que lhe deu causa, ou seja, no estabelecimento de um elo de ligação entre a conduta do agente e o embate que se lhe seguiu e os danos nesse seguimento provocados, uma vez que, nos termos do artigo 563º, do Código Civil, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Relativamente à obrigação de indemnizar, dispõe o artigo 562º, do Código Civil, que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização, adiantando o artigo 563º, do mesmo diploma, que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Englobam-se nesses danos quer o concreto prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. Estabelece, ainda, o artigo 566º, do Código Civil, que a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, tendo a indemnização em dinheiro como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. No que respeita aos danos não patrimoniais, o artigo 496º, número 1, do Código Civil, prescreve que só serão atendidos aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, reparando-se apenas os danos que afectem profundamente os valores ou interesses da personalidade moral [ANTUNES VARELA, op. cit., p. 628]. Na avaliação de tais danos, não pode o Tribunal deixar de ter presente que, como acima se deixou dito, a obrigação de indemnização tem aqui uma natureza mais compensatória do que indemnizatória, não se podendo deixar de ter presente a sua vertente sancionatória [ANTUNES VARELA, op. cit., p. 630]. Neste particular, impõe-se referir que não é fácil o cálculo de um montante indemnizatório sempre que se trata de compensar dores e prejuízos de ordem moral, seguindo-se, normalmente, o critério pelo qual a quantia em dinheiro há-de permitir alcançar situações ou momentos de prazer ou alegria bastantes para neutralizar, na medida do possível, a intensidade da dor. Com efeito, é sabido que os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podendo ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro. Não se trata, pois, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses [MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 1992, p. 115]. Com vista à quantificação de tais danos remete a lei para juízos de equidade, haja culpa ou dolo [cf. artigo 496º, número 3, do Código Civil], tendo em atenção os factores referidos no artigo 494º, do Código Civil (grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e quaisquer outras circunstâncias, podendo aqui referir-se a idade e sexo da vítima, a natureza das suas actividades, as incidências financeiras reais daqueles danos, possibilidades de melhoramento, reeducação e de reclassificação). Nestes termos, deverá o Tribunal ter em consideração todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer a natureza mista da reparação, pois que se visa não só reparar o dano mas igualmente punir a conduta que o causou [SOUSA DINIS, Avaliação e Reparação do Dano Patrimonial e Não Patrimonial, Revista Julgar, 9, p. 32-33]. Feito este excurso pelos pressupostos da obrigação de indemnizar e analisado, nos seus rasgos principais, o conteúdo da obrigação de indemnizar, importa agora analisar a concreta pretensão indemnizatória dos demandantes. Ora, nessa sede, importa começar por referir que se mostram integralmente verificados os indicados pressupostos da responsabilidade civil, uma vez que o facto praticado pelo arguido A... é ilícito (integrando, do ponto de vista penal, a prática do crime de ofenda à integridade física qualificada), culposo (praticado a título doloso), tendo sido causa directa e necessária de danos, designadamente, das lesões provocadas nos demandantes B... e C... e das despesas originadas pela assistência médica que reclamaram as lesões infligidas a este último. Verificados os pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao arguido A..., dada a circunstância de o facto constitutivo de tal responsabilidade ter sido produzido ao volante do veículo de matrícula … e uma vez que, à data de tal facto, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros pela referida viatura, se encontrava transferida para a demandada W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. através de acordo denominado de “contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, titulado pela apólice número 004510257350, urge perguntar quem responderá pelo pagamento da indemnização adequada ao ressarcimento dos danos desencadeados pelo facto gerador daquela responsabilidade. Ora, o contrato de seguro é, no âmbito do seguro automóvel, um negócio jurídico através do qual uma das partes, a seguradora, assume perante a outra, o segurado, a obrigação de indemnizar os danos causados a terceiros por força de um acidente de viação, mediante o pagamento pelo segurado de uma prestação certa e periódica (o prémio), sendo predominante a sua qualificação como contrato a favor de terceiro [vd., respectivamente, GUERRA DA MOTA, “O contrato de seguro terrestre”, 1o, p. 271; MOTA PINTO, “Cessão da Posição Contratual”, 1970, p. 33, e LEITE DE CAMPOS, “Seguro de responsabilidade civil fundada em acidente de viação”, 1971, p. 152 e sgts.]. Por outro lado, importa ainda referir que, nos termos do artigo 4º, número 1, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, aplicável ao caso destes autos, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que cubra tal responsabilidade. Importa, ainda, referir que o seguro de responsabilidade previsto no citado artigo 4º, número 1, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, abrange, relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil [cf. artigo 11º, número 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto]. Finalmente, importa ter presente que, nos termos do artigo 64º, número 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório. A este respeito, pugnou a ré pela sua irresponsabilidade no que tange ao pagamento das indemnizações reclamadas nestes autos, invocando a circunstância de não se ter tratado de um acidente de viação mas antes de um facto dolosamente provocado pelo arguido, em que o veículo segurado foi utilizado apenas como instrumento da agressão. Afigura-se, todavia, com o respeito devido, que tal entendimento não será de sufragar. Na verdade, e antes de mais, o citado artigo 4º, número 1, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, impõe a obrigação de segurar a toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre, não estabelecendo qualquer diferenciação consoante tais danos sejam causados a título doloso ou negligente. Por outro lado, o citado artigo 11º, número 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, ao definir a abrangência do seguro de responsabilidade previsto no citado artigo 4º, número 1, do mesmo diploma, limitou-se a remeter para a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil, não tendo especificado se se tratava apenas da obrigação de indemnizar baseada em negligência ou se incluía também a baseada em dolo, de onde será de concluir, por apego ao princípio do legislador razoável [cf. artigo 11º, do Código Civil] que se teve ali em vista toda a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil, independentemente de estar fundada na culpa (negligente ou dolosa) ou no risco. Ademais, também se impõe referir que seria dificilmente compreensível que a lei deixasse as vítimas de actos dolosos, posto que praticados com recurso a veículos de circulação terrestre abrangidos pelo seguro obrigatório, numa situação de maior desprotecção do que deixa as vítimas de actos meramente negligentes. Finalmente, prevendo-se no artigo 27º, número 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, que satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente, forçoso é de concluir que também caem no âmbito da responsabilidade das seguradoras o pagamento das indemnizações devidas por acidentes provocados dolosamente, que foi justamente o que sucedeu no caso em apreço. Assim, contendo-se as indemnizações peticionadas nos limites do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório [cf. artigo 12º, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto], pelo seu pagamento apenas responderá a demandada W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.. Concluindo-se pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e definida a responsabilidade da ré pelo pagamento da consequente obrigação de indemnizar, resta apenas proceder á quantificação desta indemnização. Entrando especificamente no pedido formulado pelos demandantes B... e C..., afastada a existência de danos patrimoniais, por não ter sido provada qualquer perda de rendimento ou de ganho em consequência das lesões provocadas pelo arguido (dado que, como naquela se disse em sede de decisão sobre a matéria de factos, aqueles não provaram que tivessem qualquer actividade remunerada ao tempo do acidente), a obrigação de indemnizar abrange aqui exclusivamente os danos não patrimoniais causados pela conduta geradora de responsabilidade, designadamente, as dores, inquietações, perturbações e sequelas. A situação dos demandantes apresenta aqui diferenças consideráveis por ter sido diferente a gravidade das lesões causadas, pelo que as indemnizações a atribuir deverão espelhar a diferente situação de um e outro. Assim, tendo presentes os factos acima elencados (designadamente os que se prendem com a descrição das lesões, suas consequências médico-legais e seu impacto sobre a vida dos demandantes), vertendo aqui as considerações tecidas a propósito do fundamento da indemnização por danos não patrimoniais, atendendo a que os danos cujo ressarcimento se pretende merecem a tutela do direito [cf. artigo 496º, número 1, do Código Civil] e apelando à natureza (moral) destes danos e a esta ideia de compensação supre sucintamente delineada, afigura-se justo e equitativo atribuir: ao demandante B..., a indemnização de €:2.500,00 [dois mil e quinhentos euros]; ao demandante C..., a indemnização de €:10.000,00 [dez mil euros]. Pediram os demandantes a condenação da demandada no pagamento de juros desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento. Assim, os juros de mora da indemnização relativa aos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes devem ser contados desde a data da presente sentença e não desde a data da notificação do pedido aos demandados. Ora, nos termos do disposto no artigo 23º, número 1, alínea c), do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (aprovado pelo Decreto-lei número 11/93, de 15 de Janeiro), a demandada responderá pelos encargos resultantes da prestação os cuidados de saúde no quadro do Serviço Nacional de Saúde, ocasionados por força do dito acidente em que interveio o seu segurado e cuja falta de culpa na produção de tal facto não logrou demonstrar. Assim, estando provada a culpa do segurado da demandada na produção do evento que gera a obrigação de indemnizar e porque, nos termos do artigo 4º, número 1, do Decreto-lei 218/99, de 15 de Junho, as entidades referidas nas alíneas b), c) e d) do número 1 do artigo 23º, do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, podem ser directamente demandadas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde, deverá o pedido formulado por aquele demandante ser julgado procedente. Sobre a quantia pedida, vencer-se-ão juros contados 30 dias após a interpelação, nos termos do artigo 2º, do Decreto-lei 218/99, de 15 de Junho, conjugado com o artigo 805º, número 1, do Código Civil. Assim, no caso destes autos, uma vez que a demandada apenas foi interpelada para proceder ao pagamento da quantia peticionada com a notificação do pedido de indemnização, sobre tal quantia deverão ser calculados os juros vencidos trinta dias após essa notificação e vincendos até efectivo e integral pagamento». 3.3. No fundo, o recurso incide sobre a parte assinalada em rectângulo e sob sombreado, ou seja: - tem razão a recorrente em pugnar pela sua irresponsabilidade no que tange ao pagamento das indemnizações reclamadas nestes autos, invocando a circunstância de não se ter tratado de um acidente de viação mas antes de um facto dolosamente provocado pelo arguido, em que o veículo segurado foi utilizado apenas como instrumento da agressão?
3.4. A questão não é nova. E tem sido decidida de várias formas, dissonantes algumas entre si, ao longo dos anos. A jurisprudência do STJ tem evoluído neste particular. O Acórdão citado nas alegações de recurso data de 13/3/2007 e pugnou o seguinte: «Tendo as lesões sofridas pelo recorrido ficado a dever-se não a um acidente de viação, em que se funda o seguro obrigatório de responsabilidade civil, mas a uma conduta dolosa do seu condutor que utilizou a viatura para ofender corporalmente a vítima como poderia ter utilizado qualquer outro tipo de instrumento adequado a provocar lesões de contornos contundentes, encontram-se as mesmas fora dos riscos que a recorrente considerou quando da celebração do contrato de seguro». Contudo, posteriormente a esse aresto, surgiram outros oriundos do STJ e que dão conta de posição contrária. Falamos dos Acórdãos de 18/12/2008 (Pº 08P3852), de 7/5/2009 (Pº 09A0512) e o muito recente de 6/7/2011 (Pº 3126/07.6TVPRT.P1.S1). Vejamos as posições assumidas em cada um deles: 1º- «I - A referência à não exclusão do âmbito da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel dos danos resultantes de «acidentes de viação dolosamente provocados» está inscrita desde o diploma que primeiramente instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (DL 408/79, de 25-09) – e já também em diploma de 1975 (DL 165/75, de 28-03) que, por circunstâncias do seu tempo histórico, nunca chegou a entrar em vigor. II - E mantém-se, sempre em formulação verbal constante, no regime actualmente vigente, aprovado pelo DL 291/2007, de 21-08, justificado pela transposição da Directiva 2005/14/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11-05 – 5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel, que procedeu à «actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes e viação» baseado no seguro obrigatório, «seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis», como se refere no art. 1.º («Objecto») do diploma. III - No que respeita à definição das garantias, o art. 15.º, n.º 2, retomando ipsis verbis a redacção do art. 8.º, n.º 2, do DL 522/85, de 31-12, dispõe que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados (…)». IV - Em tais casos, e como nos anteriores diplomas, «satisfeita a indemnização», a «empresa de seguros» tem direito de regresso «contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente» (art. 27.º, n.º 1, al. a)). V - A interpretação do art. 8.º, n.º 2, 2.ª parte, do DL 522/85, de 31-12, tem obtido no Supremo Tribunal decisões (na aparência) não coincidentes, embora construídas metodologicamente através de uma diferente perspectiva sobre a interpretação e a qualificação da base factual sobre que recaíram. VI - Com efeito, enquanto que nos Acs. de 01-04-1993 e de 18-12-1996 (in BMJ 426.º/132 e 462.º/223, respectivamente) foi decidido que os factos sobre que incidiram, dolosamente provocados, constituíam «acidente de viação», como «fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo», e como tal abrangidos pelo âmbito e garantias da obrigação de indemnização através do seguro obrigatório, o acórdão de 13-03-2007 (in CJSTJ, tomo 1, pág. 108) decidiu, perante os factos que estavam em causa, que «não se encontra[va] caracterizado um acidente de viação», consequentemente, por isso, fora do âmbito da garantia do seguro obrigatório. VII - Na proposição teleológica do regime do seguro obrigatório a perspectiva está centrada na garantia dos lesados, terceiros estranhos à utilização ou condução do veículo causador de danos, ou, em sucessivos afinamentos do conteúdo da garantia, mesmo qualquer ocupante do veículo que não seja o condutor (cf., v.g., várias implicações do direito comunitário no âmbito da garantia analisadas nos Acs. de 16-01-2007, Proc. n.º 2892/06, e de 22-04-2008, Proc. n.º 742/08), e por isso, quando utilizadas as expressões «sinistro» ou «acidente», o plano de apreensão tem de ser considerado primeiramente do ponto de vista do lesado, e não tanto facto-centrado, no plano puro, e de certo modo neutro, do acontecimento. VIII - Para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena e não esperada (inesperada), ou, do seu plano e perspectiva, fortuita. IX - Deste ponto de vista, de que parte o regime da garantia de seguro obrigatório (protecção e centralidade do lesado), a ocorrência voluntariamente provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circulação, na via pública, em movimento, em circunstâncias aparentemente típicas de circulação, constitui, neste sentido, um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado». X - Não pode, por outro lado, nesta matéria, ser desconsiderado o saliente argumento de ordem sistemática já referido no aludido Ac. do STJ de 01-04-1993, retirado do regime jurídico de protecção de vítimas de crimes violentos, constante do DL 423/91, de 30-10: a exclusão pelo art. 5.º, n.º 1, da aplicabilidade do regime aos «danos causados por um veículo terrestre a motor», só pode ter sentido se o dano «dolosamente» causado por um veículo terrestre a motor estiver contemplado em outra previsão. XI - Pode referir-se também, em perspectiva idêntica, o Ac. do STJ de 17-10-2007, Proc. n.º 3395/07, sobre o direito do lesado por acidente provocado com dolo a demandar o Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do art. 24.º, n.º 2, do DL 522/85, de 31-12. XII - A interpretação do art. 8.º, n.º 2, 2.ª parte, do DL 522/85, de 31-12, em conformidade com o direito comunitário, alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida» (cf. Moitinho de Almeida, Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, pág. 14, disponível em www.stj.pt). XIII - Há, nesta matéria, que ter presentes os direitos e as garantias da pessoa lesada, e o princípio de que a garantia do seguro obrigatório não significa, em certos casos, sempre transferência de responsabilidade, nem exonera a pessoa responsável pelo acidente. XIV - No caso de «acidentes dolosamente provocados» existe o direito de regresso da seguradora contra o causador do acidente, como dispunha, ao tempo dos factos, o art. 19.º, al. a), do DL 522/85, de 31-12, e actualmente o art. 27.º, n.º 1, al. a), do DL 291/2007, de 21-08».
2º- I- O segmento do art. 8.º, nº 2, do DL 522/85, de 31/12, na parte em que dispõe que “o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de...acidentes de viação dolosamente praticados...”, deve ser objecto duma interpretação declarativa (não restritiva, nem extensiva), pois o sentido que dele imediatamente resulta traduz na perfeição o pensamento legislativo (art. 9.º, nºs 1 e 2, do CC); há coincidência entre a letra e o espírito da lei. II - Sendo o objectivo central do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel garantir a protecção das vítimas de acidentes de viação, assegurando da forma mais alargada possível o ressarcimento dos danos por elas sofridos, esse desiderato subsiste mesmo naqueles casos em que os danos resultam de acidente dolosamente provocado, porquanto o conceito de acidente tem de ser perspectivado a partir da vítima. III - Esta interpretação da norma em causa é a que se coaduna com o direito comunitário e a jurisprudência do Tribunal de Justiça. IV - Ademais, esta interpretação não viola o disposto no art. 280.º, n.º 2, do CC, que diz ser nulo o negócio contrário à ordem pública; desde logo porque no seguro obrigatório de responsabilidade civil a componente negocial, enquanto expressão da autonomia privada, está fortemente esbatida sendo nula a possibilidade que as partes têm de conformar o conteúdo do seguro obrigatório; depois porque o art. 19.º do DL referido em I prevê, tW...tivamente, as únicas situações em que a seguradora, satisfeita a indemnização, tem direito de regresso. V - Este direito de regresso é mais propriamente um direito de reembolso do que a seguradora teve que pagar em circunstâncias que tornam o risco assumido legalmente inaceitável; é um direito que, deixando incólume o objectivo social do seguro obrigatório, de algum modo repõe o equilíbrio contratual rompido pela obrigatoriedade deste e evidencia que, contrariamente ao alegado pela ré, o legislador não “pactua” com contratos de seguro “que dão cobertura a actos criminosos».
3º- I - A expressão “acidente de viação” não é utilizada, no ordenamento jurídico nacional, no sentido tradicional, mas antes na acepção mais geral de fenómeno ou acontecimento estradal, anormal, fortuito e casual, decorrente da circulação de um veículo, que, manifestamente, comporta o acidente, dolosamente, provocado, porquanto, em ambos os casos, é idêntico o interesse que a lei quer tutelar, isto é, o interesse do lesado na indemnização pelos danos sofridos. II- O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, face ao condicionamento imposto pela lei do seguro obrigatório, reveste a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir, directamente, da seguradora a concretização do seu direito à reparação ou à indemnização. III - A exclusão da previsão dos acidentes que, envolvendo a circulação de veículos, constituam a prática de crimes, esvaziaria o conteúdo da norma do art. 8.º, n.º 2, do DL n.º 522/85, de 31-12, ou, actualmente, do art. 27º, n.º 1, al. a), do DL n.º 291/2007, de 21-08, reduzindo-a às situações factuais em que ocorresse o dano meramente culposo. IV- A exclusão da cobertura legal, no âmbito do contrato de seguro obrigatório, quanto ao dano, dolosamente, causado, por um veículo terrestre a motor, só se compreende se o mesmo já se encontrar acautelado, por outra disposição legal. V- Sendo o dolo directo a expressão mais grave da culpa, lato sensu, quando o resultado danoso querido acaba por coincidir com aquele que resulta do próprio acidente, como seu processo causal, esse nexo de imputação do facto danoso à condução do agente excluiria, necessariamente, a mera culpa, idealmente, imputável à condução do lesado».
3.5. Lendo os respectivos argumentos e olhando para a letra da lei (e note-se que, ao nosso caso, ao contrário do que sustenta a decisão recorrida, ainda é aplicável o regime do DL 522/85 de 31/12, na medida em que o novo diploma de 2007 – DL 291/2007 de 21/8 - só entrou em vigor em 21/10/2007, tendo o nosso «acidente» ocorrido em 18/10/2007 – cfr. artigo 95º do DL 291), não temos qualquer dúvida em adoptar como mais correcta a doutrina dos 3 arestos posteriores ao invocado no recurso.
3.6. Não vêm discutidos os pressupostos da responsabilidade civil do autor dos factos provados: facto ilícito; dano; nexo de causalidade entre o facto e o dano (artigo 483º do Código Civil), estando os danos demonstrados, não constituindo, pois, objecto do recurso. O objecto do recurso está, assim, restrito à determinação da relação entre o facto gerador da responsabilidade e da obrigação de indemnizar e os limites e o âmbito do contrato de seguro celebrado com a Companhia de Seguros recorrente. O contrato de seguro titulado pela apólice n.º 004510257350, válida à data da ocorrência, transferia para a Companhia recorrente a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo tripulado pelo arguido, com a matrícula 91-18-QV. O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o respectivo regime constava, ao tempo dos factos, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro. A chave da solução está na interpretação do segmento da norma do artigo 8º, nº 2, 2ª parte, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, que determina que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas» a terceiros por «acidentes de viação dolosamente provocados». Na noção de “acidente de viação”, quando visto como acontecimento por si, como facto da dinâmica ou na interpretação do sentido comum, como acontecimento casual, fortuito, do qual resulta prejuízo para as pessoas ou para as coisas, o centro de referência está no facto em si, independentemente dos pólos genético e consequencial. Mas esta noção de “acidente”, que se encontra por vezes reflectida na consideração dinâmica das ocorrências na circulação automóvel, só valeria, no rigor das coisas, para as ocorrência fortuitas ou de força maior, às quais seja estranha um factor humano desencadeante qualificável como uma qualquer forma de culpa – mesmo a simples negligência. Nestas, diversamente, a noção de “acidente” já participa de elementos centrados na qualificação de acções humanas, alargando-se, consequentemente, o sentido de acontecimento casual e fortuito. Há, assim, diversas possibilidades de enquadramento da noção de “acidente”, conforme o plano de apreciação que esteja em causa ou do qual se deva partir. Pela parte do lesado, um facto exterior do qual resultem consequências lesivas constitui um acidente, no sentido de acontecimento que involuntariamente suporta, que lhe é estranho, que não prevê, que não condiciona e que escapa à sua capacidade de influência ou domínio. Logo, uma devida conclusão - a noção de “acidente” ou “sinistro”, no sentido pressuposto pelo regime do seguro obrigatório do direito comunitário – e do direito nacional que assume o regime – tem, pois, de ser considerada e integrada pelo ponto de vista e pela posição do lesado: a «protecção», na expressão da intencionalidade legislativa, «dos legítimos interesses dos lesados». Como bem acentua o exemplar aresto, assinado por Henriques Gaspar, «para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena e não esperada (inesperada), ou, do seu plano e perspectiva, fortuita. Deste ponto de vista, que é a perspectiva de que parte o regime da garantia de seguro obrigatório (protecção e centralidade do lesado), a ocorrência voluntariamente provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circulação, na via pública, em movimento, em condições aparentemente típicas de circulação, constitui, neste sentido, um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado». Não pode, por outro lado, nesta matéria, ser desconsiderado o saliente argumento de ordem sistemática já referido no acórdão do STJ, cit., de 1/4/93, retirado do regime jurídico de protecção de vítimas de crimes violentos, constante do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro. A exclusão pelo artigo 5º, nº 1 da aplicabilidade do regime aos «danos causados por um veículo terrestre a motor», só pode ter sentido se o dano «dolosamente» causado por um veículo terrestre a motor estiver contemplado em outra previsão. Pode referir-se, também, em perspectiva idêntica, o acórdão do STJ, de 17/10/2007, proc. 3395/07, sobre o direito do lesado por acidente provocado com dolo a demandar o Fundo de garantia Automóvel, nos termos do artigo 24º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro». Diremos mais: Esta interpretação permite a congruência, sem soluções de continuidade, entre o regime europeu e a disciplina normativa nacional. A interpretação do artigo 8º, nº 2, 2ª parte, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro – em tudo paralelo à norma actual do artigo 15º/2 do diploma de 2007 -, em conformidade com o direito comunitário, alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes, bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida» (cfr. Moitinho de Almeida, “Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, p. 14, disponível em www.stj.pt). Parece evidente nessas normas o intuito de protecção de terceiros, como resulta das delimitações previstas nos nºs 3 dos citados artigos. Veja-se ainda que seria dificilmente compreensível que a lei deixasse as vítimas de actos dolosos, posto que praticados com recurso a veículos de circulação terrestre abrangidos pelo seguro obrigatório, numa situação de maior desprotecção do que deixa as vítimas de actos meramente negligentes. E que não se venha defender a desconformidade desta solução com o artigo 46º da Lei do Contrato de Seguro (decreto-lei nº 72/2008, de 16 de Abril. Como forma de mitigação do risco moral inerente ao contrato de seguro e por razões de ordem pública, estipula-se, de forma expressa, nesse normativo, que os actos ou omissões dolosos do beneficiário que tenham dado causa ao sinistro determinam a exclusão de qualquer direito à prestação resultante do contrato, arvorando em princípio geral aplicável a todos os seguros a regra constante do art. 458.º do CCom, nos termos do qual: «O segurador não é obrigado a pagar a quantia segura: (...) 2.º Se aquele que reclama a indemnização for autor ou cúmplice do crime da morte da pessoa, cuja vida se segurou». O mesmo princípio é aplicável no caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado, não se encontrando o segurador obrigado a efectuar a prestação acordada. Admite, no entanto, o n.º 1 do art. 46.º que este regime possa ser afastado por disposição legal ou regulamentar ou por convenção entre as partes não ofensiva da ordem pública (respeitando, designadamente, os limites fixados no art. 14.º) e se a natureza da cobertura o permitir (por designadamente não implicar uma coincidência entre o tomador do seguro ou o segurado e o beneficiário, caso do NOSSO seguro de responsabilidade civil). Como tal, temos lei expressa em diploma específico, não havendo que invocar a norma geral, assente ainda que não estamos perante qualquer caso de exclusão de garantia do seguro.
3.7. Improcedem, pois e assim, as conclusões deste recurso, tendo razão o tribunal recorrido em considerar a recorrente como responsável civil pelo pagamentos dos danos causados pelo arguido segurado aos demandantes em causa.
III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5 ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: · negar provimento ao recurso interposto pela demandante W... – COMPANHIA DE SEGUROS, SA, mantendo o teor do acórdão recorrido, também em termos civis.
Condena-se a recorrente em custas, com a tW... de justiça fixada em 6 UCs [artigos 520º/a) e 523º do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ, ainda aplicável aos autos].
Paulo Guerra (Relator) Alberto Mira
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