Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00048/13.5BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/18/2020
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:ACIDENTE DE VIAÇÃO; ITINERÁRIO PRINCIPAL; JAVALI; ART.º 12.º DA LEI 24/2007; PRESUNÇÃO DE CULPA; ARTIGOS 493, N.º1 DO CC E 10.º, N.º3 DA LEI 67/2007.
Sumário:I- A presunção mista de culpa e de ilicitude que em caso de acidente em autoestrada, impende sobre a concessionária, decorrente do ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança que recai sobre aquela, estabelecido no art.º 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18/07, aplica-se a acidentes ocorridos em IP ou IC, quando esses itinerários, no local do acidente, se apresentarem dotados de perfil transversal com faixas separadas e, no mínimo, com duas vias em cada sentido.

II- Nas ações de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por factos ilícitos, funciona a presunção de culpa in vigilando estabelecida no n.º 1, do art.º 493.º do Código Civil e no art.º 10.º, n.º3 da Lei 67/2007.

III- O art.º 493.º, n.º1 do CC responsabiliza por culpa presumida quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar, relativamente aos danos por ela causados, sendo de integrar no conceito de coisa móvel ou de coisa imóvel, nos termos do art.º 493.º, n.º1 do CC, não só as faixas de rodagem, como as portagens, zonas de descanso, sinalização vertical diversa, as vedações e tudo o mais que esteja sob a alçada da concessão, recaindo sobre a concessionária a presunção de culpa quando, por falta de vigilância do imóvel, ocorra um acidente.

IV- Não ilide a presunção de culpa decorrente da introdução de um javali numa via com as características do IP3, a concessionária que não alegue, nem prove, factos dos quais decorra que nenhuma culpa houve da sua parte, para o que não lhe basta alegar e provar que cerca de um mês antes da verificação do acidente efetuou a manutenção da rede de vedação do IP e que existia um sinal de perigo de animais selvagens a 750 m do local do acidente. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:J.
Recorrido 1:ESTRADAS DE PORTUGAL, SA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo do Norte.

I - RELATÓRIO.

1.1. J., residente na Rua (…), (…), (…), propôs a presente ação administrativa comum contra a ESTRADAS DE PORTUGAL, SA, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 9.574,61 (nove mil quinhentos e setenta e quatro euros e sessenta e um cêntimos), a título de danos patrimoniais sofridos em consequência de um acidente rodoviário, acrescida de juros vincendos à taxa legal desde a citação até total e efetivo pagamento.
Alegou para tanto, em síntese, que no dia 23 de dezembro de 2011, pelas 20.45 horas, no itinerário principal IP3, em Treixedo, Santa Comba Dão, no distrito de Viseu, sentido Coimbra-Viseu, ao km 91,2, ocorreu um acidente de viação com o veículo ligeiro de passageiros de matrícula XX-XX-XX, sua propriedade, que era conduzido por F., que embateu contra um javali que atravessou a sua faixa de rodagem.
O acidente ficou a dever-se ao facto do condutor ter sido surpreendido pelo aparecimento de um javali que se atravessou na sua faixa de rodagem e no qual embateu, causando-lhe danos no veículo, concluindo que a responsabilidade do acidente é imputável á Ré, porquanto não cumpriu o seu dever de assegurar as boas condições de segurança e fiscalização da via, uma vez que não acautelou a possibilidade de a via poder vir a ser atravessada por animais.
Por força disposto no art.º 12.º da Lei 24/2007, aplicável também aos itinerários principais, existe uma presunção de culpa que no caso impende sobre a Ré, para além de impender ainda sobre a Ré a presunção de culpa prevista no art.º 493.º, n.º1 do Cód. Civil, pelo que, verificando-se todos os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos nos termos dos artigos 483.º, 564.º e 566.º, n.º3 do C.C, tem direito a ser indemnizado quanto aos danos sofridos, devendo a ação ser julgada procedente.
1.2. A Ré contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção invocou a incompetência absoluta do Judicial de Santa Comba Dão, em razão da matéria (tribunal onde ação foi inicialmente proposta, uma vez que os fundamentos em que a autora sustenta a presente ação prendem-se com a responsabilidade civil extracontratual que envolve uma pessoa coletiva de direito público e, por via disso, a presente ação é da competência dos tribunais administrativos.
Por outro lado, impugnou todos os factos e conclusões respeitantes à descrição do acidente inovados pela autora, aduzindo não constar dos documentos juntos com a p.i. qualquer elemento que comprove que o condutor do veículo foi surpreendido por um animal de raça suína e que perante tão inopinado aparecimento não conseguiu evitar o embate.
Invocou não existir qualquer responsabilidade da sua parte, por não existir qualquer violação de obrigações legais, qualquer infração de regras de ordem técnica ou de qualquer dever objetivo de cuidado, sendo o aparecimento do animal um caso fortuito, tratando-se de animal que não se encontrava à sua guarda , não lhe incumbindo qualquer dever de vigilância, sendo uma realidade da vida o trânsito de animais sem dono nas vias pelo que todos e qualquer condutor pode e deve sempre contar com tal possibilidade.
Pugnou pela improcedência da ação.

1.3. O autor respondeu, sustentando a competência dos tribunais comuns porquanto a Ré é uma pessoa coletiva de direito privado, apesar de ser detida por capitais públicos.

1.4. Por decisão de 11 de dezembro de 2012 proferida pelo Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, foi julgada procedente a exceção dilatória invocada pela Ré, tendo os autos sido remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, nos termos do disposto no art.º 105.º, n.º2 do CPC .

1.5. Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, conforme ata de fls. 91/96 e as partes notificadas para apresentarem alegações escritas, tendo a Ré apresentado alegações escritas e o autor informado dar «por integralmente reproduzida toda a matéria de facto e de direito já alegada em sede dos articulados...».

1.6. Proferiu-se sentença em que se julgou a presente ação totalmente improcedente e se absolveu a Ré pedido formulado, a qual consta da seguinte parte dispositiva:
«Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente e, consequentemente, absolvo a Ré Estradas de Portugal, S.A., do pedido.
Fixo à presente ação o valor de €6.478,65 (artigo 32.º do CPTA).
Custas a cargo do A.»

1.7. Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:
«1. Dos presentes autos resultou provado que o acidente se deu conforme alegado pelo então A., ora Apelante, isto é, que aconteceu no dia 23/12/2011 pelas 20:45h, no Itinerário Principal IP3 - Treixedo, ao km 91,200 no sentido Coimbra» Viseu, que a GNR se deslocou ao local após o acidente, que o veículo de matrícula XX-XX-XX, propriedade do Apelante, era conduzido por F., seu filho a uma velocidade entre os 80/90 km/hora, velocidade permitida no local, que era de noite e estava bom tempo, mas não havia iluminação pública quando surgiu de forma inesperada e a uma distância inferior a 5 metros do veiculo um animal de raça suína - javali - que efectuava o atravessamento da faixa de rodagem da esquerda para a direita em relação ao sentido de marcha do veículo não tendo o condutor do veículo como evitar o embate no animal.
2. Resultou ainda provado que do acidente resultaram danos materiais no veículo e este teve de ser sujeito a não tendo o Apelante podido utilizar o veículo durante cerca de 2 meses e que a rede de protecção da Estrada foi objecto de intervenção/ reparação em finais de Novembro de 2011 - ou seja um mês antes do acidente.
3. Resultou não provado que o animal (javali) se tenha introduzido na via pelo buraco avistado pelo condutor do veículo na Rede de protecção e segurança junto ao local onde o acidente se deu.
4. Sucede que, pese embora invocado pelo A., ora Apelante, não se pronunciou a sentença de que se recorre sobre a presunção de culpa decorrente do artigo 12.º da Lei 24/2007.
5. Alegou ainda o ora Apelante que a responsabilidade do acidente recai nos termos do disposto no artigo 493.º, n.º 1 do C. Civil sobre a aqui Apelada, porquanto não cumpriu o dever de assegurar as boas condições de segurança e fiscalização da via, uma vez que não acautelou a possibilidade de a via poder vir a ser atravessada por animais.
6. Invocou que resulta do disposto no artigo 12.º da Lei 24/2007 (aplicável também aos Itinerários Principais, nos termos do disposto no artigo 1.º da mesma Lei) uma presunção de culpa que impendia, sobre a Apelada quando dispõe que “Nas auto - estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a (...) b) atravessamento de animais”.
7. E que a jurisprudência se tem pronunciado em casos semelhantes no sentido de que “(...) a Concessionária só afastará essa presunção, se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem. Terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento”. Ac. STJ de 09-09-2008, in www.dgsi.pt. Acórdão onde se lé ainda que “Não basta (...), para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, a demonstração genérica de ter cumprido as suas obrigações de vigilância e de conservação das redes laterais da via. (...) apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram a intromissão do animal na via é que poderão conduzir a um juízo conclusivo de que ela não deixou de realizar o cumprimento das suas obrigações.”
8. E pacífico na jurisprudência que o artigo 12.º da Lei 24/2007 constitui norma interpretativa da presunção que decorre do disposto no artigo 493.º/1 do C. Civil - norma esta que a sentença aplica. Veja-se, nesse sentido, Ac. T. Relação do Porto de 16/12/2009, in www.dgsi.pt.
9. Pelo que ainda que se entenda que a Lei 24/2007 não é directamente aplicável ao caso concreto, uma vez que nos termos do disposto no artigo 2.º da mesma Lei, para as disposições dela constantes serem aplicáveis aos Itinerários Principais é necessário que os mesmos tenham, pelo menos, duas vias para cada sentido de marcha, o que não é o caso no local do sinistro, a norma constante do artigo 12º da Lei 24/2007 deveria ter servido de base interpretativa ao disposto no artigo 493º/1 do C. Civil.
10. Pelo que deveria a sentença de que se recorre ter apreciado a invocada norma interpretativa constante do artigo 12.º da Lei 24/2007.
11. Acresce que a sentença de que se recorre não se pronunciou quanto à obrigação de vigilância cujo incumprimento presumido decorre igualmente cio disposto no artigo 493º/1 do C. Civil.
12. Ora, tal dever de vigilância resulta autónomo do dever de manutenção e de forma clara na Base 40 do contrato de concessão da EP - Estradas de Portugal, SA (DL 380/2007), que obriga a concessionária a elaborar e respeitar um manual de operação e manutenção que deve conter as regras (entre outras) de funcionamento dos serviços de vigilância e apoio e de monitorização e controlo ambiental.
13. Ora, tendo o dever de vigilância sido objecto de prova, como ao diante preconiza o Apelante, e não tendo sido provado pela Ré - o ónus da prova a ela incumbia - que tenha havido vigilância c, ainda que tivesse havido, com que frequência e em que moldes ela foi realizada no dia do acidente, há que retirar como consequência, no que respeita à presunção de ilicitude e de culpa do artigo 493º/1 C Civil e no que ao dever de vigilância respeita, que esta não foi ilidida.
14. Sendo certo que há jurisprudência firmada que considera que “Não basta (...), para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, a demonstração genérica de ter cumprido as suas obrigações de vigilância e de conservação das redes laterais da via. (...) apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram a intromissão do animal na via é que poderão conduzir a um juízo conclusivo de que ela não deixou de realizar o cumprimento das suas obrigações” in Ac. STJ de 09-09-2008, in www.dgsi.pt.
15. É certo que se está a pronunciar sobre a presunção decorrente do artigo 12.º da Lei 24/2007, mas aplica-a a uma situação que ocorreu antes da entrada em vigor da Lei 24/2007 por considerar o artigo 12.º uma norma interpretativa da Lei pré-existente. Nesse sentido, sobre o critério definidor das Leis interpretativas refere que “Quanto ao critério definidor destas leis, têm-se vindo a aceitar depender da existência cumulativa de dois elementos: a) a lei regular um ponto de direito acerca do qual se levantam dúvidas e controvérsias na doutrina e jurisprudência; b) a lei consagrar uma solução que a jurisprudência pudesse tirar do texto da lei anterior, sem intervenção do legislador (vide Emídio Pires da Cruz, obra citada, pág. 246). No mesmo sentido o Prof. Batista Machado (in Sobre a Aplicação no Tempo do novo Código Civil, 1968, págs. 286 e segs.)”
16. Ou seja, no que ao caso concreto se refere, a Lei 24/2007, no seu artigo 12.º, permite-nos interpretar o disposto no artigo 493.º n.º 1 do C. Civil no que se refere ao dever de vigilância que impende sobre as concessionárias no sentido de que há uma presunção de incumprimento do dever de vigilância quando um animal se introduz numa via sob sua alçada de vigilância.
17. E assim, conforme Ac. STJ de 09-09-2008 supra referido,” (...) apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram a intromissão do animal na via (...)” é que poderá levar à elisão da presunção decorrente do artigo 493.º, n.º 1 cio C. Civil.
18. Acresce que a sentença de que se recorre não se pronunciou sobre a ilisão ou não da culpa presumida quanto à mesma presunção do artigo 493.º, n.º 1 do C. Civil no que respeita ao mesmo dever de vigilância. O que deveria ter acontecido se tivesse apreciado a presunção que decorre do artigo 493.º, n.º 1 do C. Civil no que respeita ao dever de vigilância que sobre a concessionária impendia também.
19. O que, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, al. d) do C. P.C. constitui causa de nulidade da sentença.
20. Ainda quanto à mesma presunção resultante do artigo 493º, n.º 1 do C. Civil, a sentença de que se recorre considerou elidida a presunção de ilicitude no que respeita ao dever de manutenção, do que se discorda, face à análise dos factos dados como provados e não provados e dos que se preconiza serem dados como provados e não provados.
21. A sentença de que se recorre pronunciou-se sobre a presunção do artigo 493.º, n.º 1 do C. Civil, mas considerou, quanto ao dever de manutenção da rede, que a R. ilidiu a presunção, ao considerar que não omitiu o seu dever de manutenção - tinha reparado toda a rede do IP3 um mês antes - não se podendo qualificar a conduta da R. como ilícita, uma vez que, além do mais, não deu como provado que o animal tenha entrado por aquele buraco e não por qualquer outro local e nem que o tipo de rede era o mais adequado para impedir a passagem de animais selvagens.
22. Pelo que, não considerando ilícita a conduta - do que se discorda - não apreciou a culpa que se presumia também.
23. Ora, a sentença de que se recorre deu como ilidida a presunção de ilicitude resultante do artigo 493.º n.º 1 do C. Civil no que respeita ao dever de manutenção com base no facto dado como provado de que um mês antes do sinistro ter ocorrido, a concessionária ter reparado toda a rede de protecção da estrada concessionada.
24. Discorda o Apelante que a Ré, ora Apelada, tenha conseguido ilidir a presunção da ilicitude da sua conduta por várias razões:
25. Primeiro porque a reparação da rede de protecção sem manutenção e limpeza dos túneis de passagem de animais selvagens - que, como ao diante se verá, pese embora tenha sido objecto de prova, não se encontra mencionado na sentença - de pouco serve. Já que estes, impedidos de passar pelos locais que na construção se previram para a sua passagem, não encontrarão nunca outro caminho para atravessar a estrada que não seja rompendo as redes ou usando as entradas dos veículos. Acrescendo que, no caso de estradas com a envolvente florestal e fauna protegida (javalis), acarreta ou devia acarretar obrigações acrescidas de vigilância e reforço ou melhor adequação de redes de vedação àquele tipo de animais selvagens.
26. Segundo, porque uma manutenção 1 mês antes não garante que a rede entretanto não tenha sido rompida por aquele javali ou por outro(s) naquele local ou noutro(s) - não é o facto de a rede estar nova que impede que um animal selvagem de grande porte a rompa;
27. Terceiro porque aquele tipo de rede não é o mais adequado para impedir o atravessamento da estrada por animais selvagens de grande porte, como o Apelante preconiza que se dê por provado.
28. Por último porque a frequência das passagens (3 vezes por semana) que a Ré, ora Apelada, logrou provar fazer, para manutenção das redes protectoras é manifestamente insuficiente para assegurar o dever de manutenção permanente da segurança na estrada a que o contrato de concessão obriga a Ré.
29. Relativamente à não apreciada culpa, que se presumia também, não se poderá de modo algum considerar que esta foi ilidida, dada a forma negligente com que a manutenção e vigilância da estrada, redes e túneis subterrâneos destinados ã passagem de animais selvagens era feita à época do acidente no caso concreto do IP3: passagem de uma carrinha 3 vezes por semana.
30. A sentença não deu como provados ou não provados alguns factos que foram objecto de prova e que, a serem tomados em consideração, implicariam, salvo melhor opinião, decisão diversa.
31. Não deu como provado que o tipo de rede utilizada na vedação fosse o tipo mais adequado para a evitar a intrusão de animais selvagens. Tal facto foi discutido na audiência de discussão e julgamento (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30) e é referido no texto da decisão, a pag. 15.
32. Não deu como provada a frequência e o modo como era feita a fiscalização da via e da rede, tendo no entanto sido produzida prova sobre isso (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30; depoimento da testemunha H., desde o n.º 47:15 a 01:02:40): duas testemunhas referiram que a fiscalização da via no IP3 à época dos factos era feita 3 vezes por semana com a passagem de uma carrinha.
33. Não deu como não provado que no dia em questão a Apelada tenha feito algum tipo de fiscalização ã via ou à rede de vedação - nenhuma das testemunhas da Ré referiu que qualquer funcionário da empresa tenha nesse dia efectuado a passagem com a carrinha (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30; depoimento da testemunha H., desde o n.º 47:15 a 01:02:40; depoimento da testemunha C., desde o n.º 01:28 a 01:43:30).
34. Não deu como provado que é frequente aparecerem javalis no local, como referido pela testemunha P., (gravação desde o n.º 01:28 a 01:43:30);
35. Não deu como não provado que Ré fizesse uma vigilância e conservação regular (muito menos permanente) aos túneis de passagem de animais selvagens (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30; depoimento da testemunha H., desde o n.º 47:15 a 01:02:40; depoimento da testemunha C., desde o n.º 01:28 a 01:43:30).
36. Não deu como não provado que a Ré tivesse elaborado, como a lei a obriga, um manual de operação e manutenção que deve conter as regras (entre outras) de funcionamento dos serviços de vigilância e apoio e de monitorização e controlo ambiental - o que resulta da ausência de cópia do mesmo nos autos, ou de qualquer referência ao mesmo na Contestação que a Ré apresentou ou nos depoimentos das testemunhas por ela apresentadas (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30; depoimento da testemunha H., desde o n.º 47:15 a 01:02:40; depoimento da testemunha C., desde o n.º 01:28 a 01:43:30).
37. Se a sentença tivesse dado como provados e não provados os factos supra referidos - frequência e modo como era feita a fiscalização da via, da rede de protecção e dos túneis de passagem de animais selvagens, e a que no dia do acidente nenhuma carrinha fazia fiscalização da via e muito menos da rede - a decisão sobre se houve ou não ilicitude e culpa na vigilância e manutenção da estrada seria necessariamente outra.
38. Mal se compreendendo, além do mais, que tenha afastado a presunção decorrente do artigo 493.º, n.º 1 do C. Civil, face a ter dado como provado que o animal (javali) se tenha introduzido na via pelo buraco avistado pelo condutor do veiculo na Rede de protecção e segurança junto ao local onde o acidente se deu.
39. Já que, conforme Ac. STJ de 09-09-2008 supra referido, “(...) apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram a intromissão do animal na via é que poderão conduzir a um juízo conclusivo de que a concessionária não deixou de realizar o cumprimento das suas obrigações.” A douta sentença deu como não provado.
40. Quanto ao valor dos danos que a sentença também não seu como provados, uma vez que a sua quantificação estará dependente de uma condenação, considera o Apelante relevante que, a modificar-se a decisão de 1.ª instância se modifique também, no que respeita à quantificação, no sentido de se condenar a Apelada de forma genérica devendo a quantificação ser objecto de incidente de liquidação de sentença – 358º/2 CPC.

ASSIM DECIDINDO, SENHORES JUIZES DESEMBARGADORES, declarando nula a douta Sentença recorrida e reapreciando a prova com a consequente alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS, UMA VEZ MAIS, J U S T I Ç A.»

1.8. A apelada contra-alegou pugnando pela improcedência da apelação e concluindo as suas contra-alegações nos seguintes termos:
«I - O Recorrente alega que ao circular no IP 3 ao km 91+200 embateu num animal (javali) que invadiu inesperadamente a via, causando danos no veículo.
II - A Recorrida era e é a responsável pela conservação e manutenção da via por força de contrato de concessão celebrado com o Estado português.
III - Decorrente do contrato de concessão está o dever legal da Recorrida em assegurar as boas condições de segurança e fiscalização da via, nomeadamente impedindo a possibilidade daquela ser atravessada por animais.
IV - O TAF de Viseu deu como provado que a Recorrida cumpriu na íntegra o dever de manutenção da rede de vedação da via e absolveu-a do pedido.
V - O Recorrente entende que aquele dever não se restringe somente à reparação da vedação, mas também à fiscalização da mesma de modo contínuo, por exemplo no próprio dia do acidente.
VI - Defende, assim, que incumbia à Recorrida demonstrar que antes do acidente tinha fiscalizado a rede, ou seja, o cumprimento do dever de manutenção da rede mostrava-se insuficiente para acautelar os interesses do Recorrente
VII – Ora, não é de todo exigível aos serviços da Requerida ou de outra entidade concessionária da manutenção de vias vedadas, que se organizem por forma a assegurar, minuto a minuto, e nos milhares de kms de faixas de rodagem do país, que não exista um qualquer obstáculo (lençol de água, óleo ou animal) que possa pôr, de algum modo, em perigo a circulação de veículos automóveis.
VIII – Aliás, é o próprio Recorrente que admite que: não é o facto de a rede estar nova que impede que um animal selvagem de grande porte a rompa.
IX – Deste modo, a Recorrida conseguiu afastar a presunção de culpa que sobre si pendia, pois atuou no estrito exercício das suas atribuições e obrigações e em função dos meios que tinha ao seu dispor, mas não obstante esta atuação, no caso vertente, tal acidente sempre teria ocorrido, como o próprio Recorrente admite.

Nestes termos e nos mais de direito que V. Ex.as mui doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida, por ser de JUSTIÇA.».

1.9. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público não emitiu parecer ( cfr. fls. 146 do processo físico).

1.10. Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões o que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem são as de saber:
a- se a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronuncia (al. d) n.º1, art.º 615.º do CPC);
b- se a sentença recorrida padece de erro de julgamento sobre a matéria de facto por não ter julgado como provados, sequer como não provados, um conjunto de factos sobre os quais foi produzida prova e que alegadamente serão determinantes quanto à decisão de mérito a proferir.
c- se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento quanto ao mérito da decisão por ter absolvido o Réu do pedido, ao julgar não verificado o pressuposto do nexo de causalidade entre a conduta da Ré e os danos alegados pelo apelante, por considerar que tendo apenas sido violado um dever de sinalização, o acidente sempre ocorreria, desconsiderando a presunção de ilicitude e de culpa do art.º 12.º da Lei 24/2007 que impende sobre a Ré e, bem assim, a presunção de culpa prevista no art,º 493.º, n.º1 do Cód. Civil quanto à inobservância pela Ré dos seus deveres de vigilância, tendo erradamente absolvido a Ré do pedido indemnizatório quando se impunha a sua condenação.
**
III. FUNDAMENTAÇÃO
A- DE FACTO
3.1. A 1ª Instância julgou provada a seguinte factualidade:
«A) Em 23/12/2011, pelas 20H45, no ITINERÁRIO PRINCIPAL IP3 – TREIXEDO, ocorreu um acidente de viação, conforme participação elaborada pela Guarda Nacional Republicana, Destacamento de Trânsito de Viseu (doc. nº 1 junto com a petição inicial).
B) Depois do acidente, apareceu no local a GNR, que tomou conta da ocorrência.
C) No acidente identificado em A), foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula XX-XX-XX, propriedade do Autor.
D) O veículo era conduzido por F., filho do Autor.
E) O condutor do veículo circulava no sentido Coimbra/Viseu, com destino a casa dos seus pais.
F) Estava bom tempo, era de noite, não havia iluminação, mas a visibilidade era boa.
G) No local e hora identificado em A), no sentido Coimbra/Viseu, ao km 91,200, surgiu, de forma inesperada e a uma distância inferior a 5 metros de distância do veículo, um animal de raça suína (javali), que efetuava o atravessamento da faixa de rodagem da esquerda para a direita em relação ao sentido de marcha do veículo.
H) Não tendo permitido ao condutor do veículo a possibilidade de evitar o embate no animal.
I) O veículo circulava a uma velocidade entre os 80/90 km/hora, velocidade permitida no local.
J) Quando o veículo embateu no animal o air-bag acionou.
K) O animal morreu no local e foi recolhido pelos Bombeiros Voluntários de Santa Comba Dão.
L) Do acidente resultaram danos materiais no veículo.
M) O condutor do veículo viu a rede de vedação e proteção danificada na zona junto ao solo e que se notava que não se devia a ação humana.
N) O veículo propriedade do A. teve de ser sujeito a reparação.
O) O A. não pôde utilizar o veículo durante cerca de dois meses.
P) Pelo menos desde setembro de 2009, o sinal A19b foi afixado à margem do IP3, sentido Coimbra/Viseu ao km 90+440 (Lado direito = sentido crescente da estrada), mantendo-se no mesmo local.
Q) Não se registaram ocorrências de que o sinal referido na alínea anterior tivesse sido danificado, alterado ou subtraído e que justificassem a intervenção do Centro Operacional Centro Norte, da Direção de Desenvolvimento, Ambiente e Segurança Rodoviária da Ré, com vista à sua reparação, recolocação ou substituição.
R) No local do acidente a via estava vedada com rede tipo caça.
S) A rede de vedação do PK 91+200 do IP3 foi reparada pela Ré nos finais de Novembro de 2011.

FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou qual foi a quantia despendida pelo A. para reparar o veículo, a testemunha Filipe Ferreira referiu apenas que a despesa ascendeu a cerca de € 8.000,00. As vendas a dinheiro juntas pelo A. foram impugnadas pela Ré e a A. não demonstrou nos autos a sua veracidade.
Não se provou que o animal tenha entrado na estrada através da rede, forçando-a.»
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III. B. DE DIREITO

3.2.1- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Imputa o apelante nulidade à sentença sob sindicância, por omissão de pronúncia, sustentando que nela a 1ª Instância não se pronunciou sobre parte da matéria de direito alegada na p.i., concretamente, sobre a presunção de culpa que impendia sobre a apelada nos termos do disposto no art.º 12.º da Lei 24/2007 e a resultante do art.º 493.º, n.º1 do C. Civil, apreciando se houve ou não cumprimento do dever de vigilância.
Analisados os invocados fundamentos de nulidade da sentença recorrida, por alegada omissão de pronúncia, e compulsado o teor da sentença, antecipe-se, desde já, falecer qualquer razão ao apelante.
Vejamos.
Conforme é pacífico, as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causas distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade, a saber: a) por se ter errado no julgamento dos factos e/ou do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e b) como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e/ou estruturação, ou as que balizam o conteúdo e/ou os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art.º 615.º do CPC . Cfr. Ac. STA. de 09/07/2014, Proc.00858/14, in base de dados da DGSI;
As causas determinativas de nulidade das decisões judiciais encontram-se taxativamente elencadas no art.º 615º do CPC ex vi arts. 1º e 95º do CPTA e reportam-se a vícios formais da sentença em si mesma considerada, decorrente de na respetiva elaboração e/ou estruturação não terem sido respeitadas as normas processuais que regulam essa sua elaboração e/ou estruturação e/ou as que balizam os limites da decisão nela proferida (o campo de cognição do tribunal fixado pelas partes e de que era lícito ao último conhecer oficiosamente não foi respeitado, ficando a decisão aquém ou indo além desse campo de cognição), tratando-se, por isso, de defeitos de atividade ou de construção da própria decisão judicial em si mesma considerada, ou seja, reafirma-se, vícios formais que afetam essa decisão de per se ou os limites à sombra dos quais esta é proferida.
Diferentemente desses vícios são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com vícios quanto ao julgamento da matéria de facto nela realizado ou à decisão de mérito nela proferida, decorrentes de o juiz ter incorrido numa distorção da realidade factual julgada provada e/ou não provada, em virtude da prova produzida impor julgamento de facto diverso do realizado pelo tribunal a quo (error facti) e/ou por ter incorrido em erro na aplicação do direito (error iuris).
Nos erros de julgamento assiste-se ou a uma deficiente análise crítica da prova produzida e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicáveis aos factos provados e não provados, sendo que esses erros, por já não respeitarem a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença em si mesma considerada (vícios formais) ou aos limites à sombra dos quais aquela é proferida, não a inquinam de invalidade, mas sim de
error in iudicando, atacáveis em via de recurso. Cfr. Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGS).

Entre as causas de nulidade da decisão judicial elencadas no art.º 615º, n.º 1 do CPC, conta-se a omissão e o excesso de pronúncia (al. d)).

Trata-se de nulidade que se relaciona com o preceituado nos artigos 608º, n.º 2 do CPC e 95º, n.º 1 do CPTA, que impõe ao juiz a obrigação de resolver na sentença (despacho ou acórdão – artigos 613º, n.º 3 e 666º, n.º 1 do CPC) todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e que lhe veda a possibilidade de conhecer questões não suscitadas pelas partes, exceto se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Com efeito, devendo o tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos pelas partes com fundamento em todas as causas de pedir por elas invocadas para ancorar esses pedidos e de todas as exceções invocadas com vista a impedir, modificar ou extinguir o direito invocado pela sua contraparte e, bem assim de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou de exceção (desde que suscitada/arguida pelas partes, pelo que não integra nulidade da sentença a omissão de pronúncia quanto a exceção de conhecimento oficioso do tribunal, mas não arguida pelas partes e de que este não conheceu) cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade por omissão de pronúncia, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, n.º 3 do CPC). Neste sentido Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 142 e 143, onde pondera: “Esta nulidade está em correspondência direta com o 1º período da 2ª alínea do art. 660º. Impõe-se aí ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” e onde aponta como exemplo de nulidade por omissão de pronúncia, o seguinte caso retirado da prática judiciária: “Deduzidos embargos a posse judicial com o fundamente de posse baseada em usufruto, se o embargado alegar que este não podia produzir efeitos em relação a ele por não estar registado à data em que adquiriu o prédio e a sentença ou acórdão deixar de conhecer desta questão, verifica-se a nulidade (…). O embargado baseara a sua defesa na falta de registo do usufruto; pusera, portanto, ao tribunal esta questão de direito: se a falta de registo do usufruto tinha como consequência a ineficácia, quanto a ele, da posse do usufrutuário, o tribunal estava obrigado, pelo art. 660º, a apreciar e decidir esta questão; desde que a não decidiu, a sentença era nula”.
Ac. RC. de 22/07/2010, Proc. 202/08.1TBACN-B.C1, in base de dados da DGSI: “…O juiz deve, antes de tudo, tomar em consideração as conclusões expressas nos articulados, já que a função específica destes é a de fornecer a delimitação nítida da controvérsia. Mas não só; é necessário atender, também aos fundamentos em que essas conclusões assentam, ou, dito de outro modo, às razões e causas de pedir invocadas (…). Em última análise, questão será, pois, tudo o que respeite ao litígio existente entre as partes, no quadro, tanto do pedido e da causa de pedir, como no da defesa por exceção”..

Inversamente, o conhecimento de pedido, causa de pedir ou de exceção não arguidos pelas partes e que não era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente, configura nulidade por excesso de pronúncia.
A invalidade da decisão por omissão ou excesso de pronúncia consubstancia uma decorrência do princípio do dispositivo, segundo o qual, na sua dimensão tradicional, “o processo é coisa ou negócio das partes”, é “uma luta, um duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas”, cumprindo ao juiz arbitrar “a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado”, princípio esse de que entre outras consequências, decorre que cabe ao autor instaurar a ação (art. 3º do CPC) e, através do pedido e da causa de pedir que invoque na petição inicial para ancorar a pretensão de tutela judiciária que formula (pedido), delimitar subjetiva (quanto às partes) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) a relação jurídica material controvertida submetida a julgamento e, assim, circunscrever o thema decidendum Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e 374. do tribunal, tema esse que é ainda delimitado objetivamente pela defesa que o réu venha a apresentar na contestação a título de exceções, com vista a extinguir, impedir ou modificar o direito que o autor pretende exercer (exceções perentórias) e das contra exceções que o autor venha a opor a essas exceções invocadas pelo réu na contestação para extinguir, impedir ou modificar o efeito jurídico que o réu pretende extrair da exceção que opôs ao direito que o autor pretende exercer no processo, mas é, também, uma decorrência do princípio do contraditório, o qual, na sua atual dimensão positiva, proíbe a prolação de decisões surpresa (art. 3º, n.º 3 do CPC), ao postergar a indefesa e ao reconhecer às partes o direito de conduzirem ativamente o processo e de contribuírem positivamente para a decisão a ser nele proferida.
Acresce precisar que como já alertava Alberto dos Reis, in ob. cit., 5º vol., págs. 55 e 143., impõe-se distinguir, por um lado, entre “questões” e, por outro, “razões ou argumentos”. “…. Uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”.
Apenas a não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas pelas partes determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, mas já não a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões. No mesmo sentido Ferreira de Almeida, “Direito de Processo Civil”, vol. II, Almedina, 2015, pág. 371, em que reafirma que “questões” são todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas, integrando “esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico processuais); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de qualquer elemento de retórica argumentativa produzida pelas partes”.

Do mesmo modo, apenas o conhecimento pelo tribunal de questões não suscitadas pelas partes nos seus articulados e de que aquele não possa conhecer oficiosamente, determina a invalidade da sentença por excesso de pronúncia.

“Questões”, reafirma-se, não se confundem com os “argumentos” que as partes invocam em defesa dos seus pontos de vista ou para afastar o ponto de vista da parte contrária.
Dir-se-á que “questões” são os pontos de facto e/ou de direito centrais, nucleares, relevantes ou importantes submetidos pelas partes ao escrutínio do tribunal para dirimir a controvérsia existente entre elas e cuja resolução lhe submetem, atentos os sujeitos, os pedidos, causas de pedir e exceções por elas deduzidas ou que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, e não os simples argumentos, opiniões, motivos, razões, pareceres ou doutrinas expendidos no esgrimir as teses em presença. Acs. STJ. 30/10/2003, Proc. 03B3024; 04/03/2004, Proc. 04B522; 31/05/2005, Proc. 05B1730; 11/10/2005, Proc. 05B2666; 15/12/2005, Proc. 05B3974, todos in base de dados da DGSI.
Revertendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis, “…assim como a ação se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir (…), também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objeto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)”. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 5º vol., pág. 54.

Neste mesmo sentido propugnam Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha Mário Aroso Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 760. que “as questões a resolver são as que constituem os fundamentos autónomos da ação e, como tal, podem conduzir à procedência do pedido ou pedidos, e as que tenham sido alegadas pela defesa como facto extintivo, impeditivo ou modificativo do direito que o autor se pretende arrogar. Entre as questões que têm de ser analisadas pelo juiz contam-se, não apenas as arguidas na petição e na contestação, mas as que resultem eventualmente de um pedido reconvencional (art.º 85º-A) ou de um articulado superveniente (art. 86º), ou que tenham sido invocadas pelo Ministério Público, no exercício do poder processual que lhe confere o art.º 85º. Não pode falar-se, porém, em omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não tome em consideração um qualquer argumento alegado pelas partes no sentido da procedência ou improcedência da ação; do mesmo modo que não se verifica um excesso de pronúncia apenas porque o juiz, ao analisar a matéria da causa, retire uma certa ilação de direito que a parte não invocou ou considera não ter pertinência ao caso”.

Acresce precisar que apenas ocorre nulidade por omissão de pronúncia quando o tribunal, na decisão, silencie, total e absolutamente, qualquer pronúncia quanto à questão que lhe é colocada e não quando a aprecia de forma sintética e escassamente fundamentada. Cfr. Acs. STA. de 07/11/2012, Proc. 01109/12; STJ. de 20/06/2006, Proc. 06A1443; 13/07/2007; Proc. 07A091, in base de dados da DGSI.
Também não existe nulidade por omissão de pronúncia quando o juiz tenha erroneamente considerado que o conhecimento de uma outra questão de que conheceu e decidiu prejudicou a apreciação daquela outra em relação à qual se acusa a falta de pronúncia.
Nesse caso, o que existe é uma situação de erro de julgamento (uma decisão que do ponto de vista jurídico está errada), atacável em via de recurso, onde esse erro, a verificar-se, terá de ser corrigido pelo tribunal
ad quem. Ac. STJ. de 28/10/2008, Proc. 08A3005; 21/05/2209, na mesma base de dados..

Na situação em juízo, o apelante assaca vício de nulidade por omissão de pronúncia à sentença recorrida por, recorde-se, pese embora tenha invocado impender sobre o Réu a presunção de culpa prevista no art.º 12.º da Lei 24/2007, também aplicável aos Itinerários Principais nos termos do art.º 1.º dessa lei, a sentença não se pronunciou sobre essa questão, nem sobre o facto do art.º 12 constituir norma interpretativa da presunção que decorre do disposto no artigo 493.º, n.º1 do CC, embora aplique esta norma, quando se devia ter pronunciado sobre essa matéria.
Mais alega, que a sentença recorrida não se pronunciou sobre a obrigação de vigilância cujo incumprimento presumido decorre igualmente do disposto no artigo 493.º, n.º1 do CC, o que, tudo, constitui causa de nulidade da sentença.
Muito sinteticamente, dir-se-á que a decisão recorrida não padece da apontada nulidade uma vez que foram analisadas as questões que ao Tribunal de 1.ª Instância se impunha conhecer e que no caso, estando em causa uma pretensão indemnizatória com fundamento na responsabilidade aquiliana, se reconduziam à decisão sobre a verificação ou não de cada um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, a saber: o facto, a ilicitude, a culpa, o nexo de causalidade entre o facto e os danos e, o dano.
Lida a decisão sob sindicância, verifica-se que a mesma não deixou de conhecer cada um e todos os pressupostos de que dependia a procedência do direito indemnizatório invocado pela autora, tendo julgado a ação improcedente por considerar que inexistia o necessário nexo causal entre o comportamento ilícito e culposo da Ré - que circunscreveu apenas à violação duma obrigação de sinalização- e os danos sofridos pelo autor. Entendeu a 1.ª Instância, que os danos sofridos pelo autor foram resultado do embate do seu veículo automóvel contra um javali que invadiu a sua faixa de rodagem, quando circulava no IP3, de forma inesperada, mas em relação á invasão da faixa de rodagem pelo javali, não se apurou que a Ré tivesse atuado ilícita e culposamente no sentido de não evitar a entrada desse animal no IP3, o que, associado ao facto de ter considerado que a existência de uma correta sinalização não impediria, no caso, o acidente, dada a entrada inopinada daquele animal, levou a que o Tribunal a quo julgasse excluída a responsabilidade da Ré.
O facto da sentença não ter analisado os pressupostos da ilicitude e da culpa, nos termos da presunção estabelecida no art.º 12.º da Lei 24/2007, de 18.07, não constitui omissão de pronúncia mas apenas a desconsideração de um argumento jurídico no qual o autor se apoia em sustentação do seu direito indemnizatório, não estando o Tribunal obrigado a considerar e a analisar todos os argumentos invocados pela parte mas sim a decidir a sua pretensão. E caso, a desconsideração de um argumento jurídico se revele pertinente á boa decisão da causa, então a sua desconsideração poderá, isso sim, configurar uma situação de erro de julgamento, a tratar noutra sede.
Desde modo, outra conclusão não podemos retirar que não seja a de que o Tribunal a quo decidiu a pretensão do Autor, decidindo todas as questões sobre as quais se devia debruçar. Diferente, é saber, se as decidiu corretamente ao desconsiderar o regime legal do art.º 12.º da Lei 24/2007, o que cai no âmbito da apreciação do erro de julgamento.
Decorre do que se vem dizendo, que o acórdão sob sindicância não padece de nenhuma causa de invalidade, por pretensa omissão de pronúncia que a apelante lhe assaca.Improcede este fundamento de recurso.
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3.3. Do erro de julgamento sobre a matéria de facto

Nas conclusões 30 a 37, o apelante assaca erro de julgamento à sentença recorrida decorrente da incorreta análise dos elementos de prova em que a seu ver incorreu o Tribunal de 1.ª Instância, não dando como provada matéria que resulta provada e como não provada matéria que devia assim ter julgado, e que, caso tivesse julgado corretamente a matéria de facto, nos termos que preconiza, a decisão teria sido outra, implicando a sua consideração necessariamente decisão diversa da recorrida.
Antes mais, enuncie-se que da conjugação do regime jurídico estabelecido nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPTA, tendo o recurso por objeto a impugnação do julgamento da matéria de facto, o tribunal ad quem tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada pelo recorrente, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade Cfr. Acs. STJ de 17/12/2019, Proc. 603/17.4T8LSB,L1.S1; de14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; e RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI..
De acordo com esses critérios, para além do recurso da matéria de facto se restringir à matéria de facto impugnada António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 153., estando subtraída ao campo de cognição do Tribunal ad quem a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação, tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo dos princípios da auto responsabilidade, cooperação, lealdade e boa-fé processuais, mas também, com vista a conferir efetividade ao uso do contraditório que assiste ao recorrido, que apenas poderá, com propriedade, exercer esse seu direito ao contraditório quando lhe for dada a conhecer a lógica de raciocínio seguida pelo recorrente na valoração e conjugação deste ou daquele meio de prova e, assim ficar cabalmente habilitado a poder contrariá-lo, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu a 1ª Instância ao decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a concreta matéria de facto que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, reclama que tivesse sido proferida, os concretos meios de prova que ancoram esse julgamento de facto diverso que impugna, com a respetiva análise crítica, isto é, com a indicação do porquê dessa prova impor decisão diversa daquela que foi julgada provada ou não provada pelo tribunal a quo (art. 640º, n.º 1, al. a)).
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 640º).
Acresce que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial de delimitação do objeto do recurso (art. 635º, n.º 4 do CPC), fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem Acs. STJ. de 06/06/2018, Proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1; 27/10/2016, Proc. 110/08.6TTGDM.P2.S1; RG. de 2/11/2017, Proc. 212/16.5T8MNC.G1, in base de dados da DGSI., daqui deriva que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que impugna e a concreta resposta que, na sua perspetiva, deve ser dada a essa facticidade.
Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do objeto do recurso, mas se destinam a fundamentar o último, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.
Deste modo, sintetizando, sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; e e) o recorrente deixará expressa, nas conclusões, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos.
Assente nestas premissas, analisadas as alegações de recurso apresentadas pelo apelante, cumpre referir que este não cumpriu com todos os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância que impugna, indicando designadamente a concreta decisão que deve recair sobre essa matéria, e pese embora indique os meios de prova que, na sua perspetiva, impõem esse julgamento de facto diverso que propugna, não faz uma análise crítica desses meios de prova de molde a demonstrar o porquê de, perante eles, se impor esse julgamento diverso que propugna.
Tal significa que, no caso, sempre existiria este óbice processual que impediria a reapreciação da prova produzida e, assim, analisar a sindicância que o apelante faz em relação ao julgamento da matéria de facto efetuado pela 1ª Instância que impugna.
Acontece que, para além do enunciado óbice, sempre o erro de julgamento teria de improceder, uma vez que a matéria sobre a qual o apelante pretende que seja proferida decisão por este Tribunal ad quem, ou é de natureza conclusiva, ou configuram factos essenciais que não foram alegados nos respetivos articulados.
Vejamos, muito sinteticamente, quais são os erros de julgamento sobre a matéria de facto que vêm invocados pelo apelante:
(i)O Tribunal a quo não deu como provado que o tipo de rede utilizada na vedação fosse o tipo mais adequado para a evitar a intrusão de animais selvagens, não obstante esse facto ter sido discutido na audiência de discussão e julgamento, conforme resulta da consideração do depoimento da testemunha P.- ver gravação, desde o n.º 01:28 a 01:43:30- e é referido no texto da decisão, a pág. 15.
Não só se trata de matéria conclusiva, e portanto insuscetível de sobre ela ser produzida prova ( o considerar-se que a rede é adequada é uma conclusão que se tem de extrair de factos que permitam afirmar essa adjetivação), como em parte alguma da petição inicial ou da contestação foi alegado qualquer facto que visasse descrever as características do tipo de rede que a Ré utilizou na vedação do IP3, designadamente, no troço onde se deu o acidente decorrente do embate do veiculo contra o javali que entrou no IP3. Frise-se que a quem competia alegar as características da rede era à Ré considerando que o autor fundou a ação na existência de uma presunção de ilicitude e de culpa contra a concessionária, tratando-se, assim de matéria de exceção destinada a afastar aquela presunção, e nesse contexto, tal matéria configura facto essencial não alegado.
(ii) O Tribunal a quo não deu como provada a frequência e o modo como era feita a fiscalização da via e da rede, tendo no entanto sido produzida prova sobre isso (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30; depoimento da testemunha H., desde o n.º 47:15 a 01:02:40): duas testemunhas referiram que a fiscalização da via no IP3 à época dos factos era feita 3 vezes por semana com a passagem de uma carrinha.
(iii) O Tribunal a quo não deu como não provado que no dia em questão a Apelada tenha feito algum tipo de fiscalização à via ou à rede de vedação - nenhuma das testemunhas da Ré referiu que qualquer funcionário da empresa tenha nesse dia efectuado a passagem com a carrinha (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30; depoimento da testemunha H., desde o n.º 47:15 a 01:02:40; depoimento da testemunha C., desde o n.º 01:28 a 01:43:30).
(iv) O Tribunal a quo não deu como provado que é frequente aparecerem javalis no local, como referido pela testemunha P., (gravação desde o n.º 01:28 a 01:43:30);
(v) O Tribunal a quo não deu como não provado que Ré fizesse uma vigilância e conservação regular (muito menos permanente) aos túneis de passagem de animais selvagens (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30; depoimento da testemunha H., desde o n.º 47:15 a 01:02:40; depoimento da testemunha C., desde o n.º 01:28 a 01:43:30).
(vi) O Tribunal a quo não deu como não provado que a Ré tivesse elaborado, como a lei a obriga, um manual de operação e manutenção que deve conter as regras (entre outras) de funcionamento dos serviços de vigilância e apoio e de monitorização e controlo ambiental - o que resulta da ausência de cópia do mesmo nos autos, ou de qualquer referência ao mesmo na Contestação que a Ré apresentou ou nos depoimentos das testemunhas por ela apresentadas (gravação, depoimento da testemunha P., desde o n.º 01:28 a 01:43:30; depoimento da testemunha H., desde o n.º 47:15 a 01:02:40; depoimento da testemunha C., desde o n.º 01:28 a 01:43:30).
Em relação a toda esta matéria, a mesma não vem alegada, seja da p.i., seja na contestação, e tratando-se factos essenciais que deviam ter sido alegados pela Ré, porque fulcrais em ordem a afastar a presunção de culpa invocada a mesma, ainda que nenhum óbice processual impedisse a análise do invocado erro de julgamento, essa matéria, por força do princípio do dispositivo, não podia ser objeto de prova.
Termos em que se indefere, in totum, o invocado erro de julgamento da matéria de facto, mantendo-se como matéria de facto assente a que vem apurada na sentença sob recuso.
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3.4. Do erro de julgamento de direito.
3.4.1.O autor propôs a presente ação administrativa comum contra a Estradas de Portugal, S.A. pretendendo ser indemnizado pelos prejuízos patrimoniais que alega ter sofrido, que se cifram no montante de € 9.574,61, em consequência do acidente de viação que ocorreu no itinerário principal IP3, no dia 23 de dezembro de 2011, pelas 20.45 quando o seu filho conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula XX-XX-XX, propriedade do autor, no sentido Coimbra- Viseu, a uma velocidade não superior a 90 km/hora, em consequência de ter sido surpreendido por um javali que se atravessou na faixa de rodagem e no qual embateu, do que adveio também a morte do animal e danos no veículo automóvel.
Segundo o autor, o acidente ficou a dever-se exclusivamente ao súbito aparecimento de um animal na estrada cuja vigilância incumbe á Estradas de Portugal, S.A., a qual incumpriu o seu dever de assegurar as boas condições de segurança e fiscalização da via, uma vez que não acautelou a possibilidade de a via poder vir a ser atravessada por animais, o que constitui violação do disposto no art.º 493.º, n.º1 do CC, resultando ainda do art.º 12.º da Lei 24/2007, uma presunção de ilicitude e de culpa que impende sobre a ré, pelo que tem direito, a ser indemnizado.
Na contestação, o Réu sustentou que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada pela ocorrência do aludido acidente, desde logo porque o referido animal selvagem não se encontrava à sua guarda, tão pouco o utilizava no seu próprio interesse, pelo que não lhe incumbia qualquer dever de vigilância sobre o mesmo.
O dano terá sido causado devido à não observância do dever de vigilância sobre o animal e tendo o mesmo aparecido de súbito ele não andaria a deambular pela estrada, o que impossibilitava a Ré de poder ter conhecimento da existência de um animal que poderia causar perigo para os utentes da via da estrada o que impediu, assim, qualquer tipo de intervenção por parte dos serviços da Ré.
A seu ver, o acidente ficou a dever-se a um facto fortuito ou de força maior, pelo que a Ré nunca poderia ser responsabilizada, quer por ação, quer por omissão.
O Tribunal a quo, depois de precisar que o Autor demanda a Ré com base no instituto de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas por facto ilícito praticado no exercício da função administrativa, nos termos dos artigos 7º a 10º da Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro e de discorrer sobre os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa por factos ilícitos- o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano-, salientando que se trata de uma forma de responsabilidade que no essencial corresponde ao conceito vertido no nº 1 do artigo 483º do Código Civil (CC), afirmando tratar-se de pressupostos que carecem de ser alegados e provados pelo autor, os quais condicionam, no caso geral da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, decidiu o caso concreto, julgando não verificado o pressuposto do nexo de causalidade, nos seguintes moldes:
« (…)No caso sub judice, a sinalização não era a adequada (alíneas A) e P) do probatório), apesar do sinal “A19b” se encontrar afixado à margem do IP3, sentido Coimbra/Viseu ao km 90+440 (Lado direito = sentido crescente da estrada), encontrava-se a uma distância do local do acidente de 760 metros [o acidente ocorreu ao km 91,200 e o sinal está colocado ao km 90+400], não se provando a existência de qualquer painel adicional indicador da distância, conforme é exigido pelo artigo 20º, nº 1 do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de outubro.
Pelo exposto, a Ré não cumpriu adequadamente o seu dever de sinalização.
Prosseguindo. No local do acidente a via estava vedada com rede tipo caça (alínea R) do probatório).
A rede de vedação do PK 91+200 do IP3 foi reparada pela Ré nos finais de Novembro de 2011 (alínea S) do probatório) e no dia do acidente o condutor do veículo viu a rede de vedação e proteção danificada na zona junto ao solo e que se notava que não se devia a ação humana (alínea M) do probatório).
Não se provou que o animal tenha entrado na estrada através da rede, forçando-a.
Nem se provou que a rede utilizada pela Ré era a adequada para impedir a passagem de animais selvagens para a estrada.
Tendo a Ré cumprido o seu dever de manutenção da rede em Novembro de 2011, a sua conduta não pode ser qualificada como ilícita por falta de cumprimento de tal dever.
Ante o exposto, a conduta da Ré apenas tem de ser qualificada como ilícita, por não ter cumprido o seu dever de sinalização de forma adequada.
Da factualidade apurada resultou e ficaram efetivamente demonstrados os factos de que a lei faz depender a presunção de culpa da Ré.
Competia à Ré provar, então, que não houve culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua (parte final do nº 1, do artigo 493º do Código Civil).
Ora, a Ré não cumpriu corretamente o seu dever de fiscalização (alíneas P) e Q) do probatório).
Ficou, pois, demonstrada nos autos a omissão culposa do dever indicado.
Quanto ao nexo de causalidade entre os factos e danos, o artigo 563º do Código Civil deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz, adequada desse efeito» (Pires Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. IV, 4ª ed. pág. 579).
Ora, o nexo de causalidade afere-se em função da idoneidade abstrata da conduta imputável à Ré para a produção do acidente, sendo que existe tal idoneidade sempre que o resultado seja previsível e de verificação normal. Ora, a finalidade objetivamente considerada pelo próprio legislador ao regulamentar a sinalização nas vias públicas foi a de prevenir os utentes de perigos existentes na via. Está assim no âmbito de proteção das normas violadas com a falta de sinalização evitar os acidentes causados pelos citados perigos na via pública.
No caso dos autos, a sinalização não cumpria o disposto no artigo 20º, nº 1, do Decreto Regulamentar nº 22 -A/98, de 1/10, isto é, o sinal A19b encontrava-se colocado a uma distância superior àquela que a lei determina e não existia qualquer painel adicional indicador da distância.
Porém, a Tribunal tem de concluir que o cumprimento adequado do dever de sinalização pela Ré não teria, com toda a probabilidade, impedido o resultado. Mesmo que a aproximação do perigo estivesse adequadamente sinalizada [cf. é exigido pelo artigo 20º, nº 1, do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1/10], o acidente não seria com toda a probabilidade evitável e teria acontecido na mesma.
O javali apareceu de forma inesperada e a uma distância inferior a 5 metros do veículo (alínea G) do probatório), que circulava dentro da velocidade permitida no local (alínea I) do probatório).
Mesmo com a sinalização adequada e podendo o condutor do veículo circular à velocidade que seguia, foi o aparecimento inesperado do javali que provocou o acidente.
Nem a sinalização adequada era capaz de evitar o acidente.
O problema está no tipo de vedação que a Ré utiliza para impedir a passagem de animais selvagens para a estrada, mas quanto a esta nada se provou, nem sequer se o animal entrou na estrada através da vedação.
Nessa medida, não pode o Tribunal dar como verificado o pressuposto do nexo de causalidade, porque foi o aparecimento inesperado do javali que causou o acidente.
Em conclusão, sendo os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas de verificação cumulativa, inexistindo nexo de causalidade, improcede o pedido.»

3.4.2. O apelante discorda da decisão sob sindicância, assacando-lhe erro de julgamento por não ter dado como verificada a presunção de ilicitude e culpa prevista no art.º 12.º da lei 24/2007 e art.º 493.º, n.º1 do CC, relativamente à falta de cumprimento por parte da Ré dos seus deveres de vigilância do IP3 e de manutenção da rede de vedação, que sobre si impendiam e que, a seu ver, a Ré não conseguiu ilidir.
Entende que o Tribunal a quo não podia dar como cumprido o dever de manutenção da rede por parte da Ré, como deu, só pelo facto de em novembro de 2011- um mês antes do acidente- a mesma ter reparado toda a rede do IP3 e invoca quatro razões que no seu entender demonstram que a Ré não ilidiu a presunção de ilicitude e de culpa que a onerava nos termos do art.º 12.º da Lei n.º 24/2007 e art.º 493.º, n.º1 do CC: ( i) a reparação da rede de proteção sem manutenção e limpeza dos túneis de passagem de animais selvagens de pouco serve; (ii) uma manutenção 1 mês antes não garante que a rede entretanto não tenha sido rompida por aquele javali ou por outro (s) naquele local ou noutro (s), não sendo o facto de a rede estar nova que impede que um animal selvagem de grande porte a rompa; (iii)aquele tipo de rede não é o mais adequado para impedir o atravessamento da estrada por animais selvagens de grande porte ( facto que o apelante pretendia que fosse dado como provado); (iv) a frequência das passagens ( 3 vezes por semana) que a Ré provou efetuar, para manutenção das redes protetoras é manifestamente insuficiente para assegurar o dever de manutenção permanente da segurança na estrada a que o contrato de concessão obriga a Ré.
Quanto ao pressuposto da culpa, o apelante aduz que a sentença não se pronunciou sobre a presunção de culpa da Ré decorrente do art.º 12.º da Lei 24/2007, em relação ao qual a jurisprudência é pacífica em considerar essa norma como interpretativa da presunção que decorre do disposto no art.º 493.º, n. º1 do C. Civil, norma esta que a sentença aplica. Segundo o apelante, mesmo que se entenda que a Lei n.º 24/2007 não é diretamente aplicável ao caso concreto, considerando o disposto no art.º 2.º dessa Lei e tendo presente que no caso, no local do sinistro, o IP não tinha duas vias para cada sentido de marcha, ainda assim aquela norma devia ter servido de base interpretativa ao disposto no art.º 493.º, n. º1 do C. Civil.
Por fim o apelante sustenta que a sentença não se pronunciou sobre o dever de vigilância cujo incumprimento presumido decorre também do art.º 493.º, n. º1 do C.C., que é autónomo do dever de manutenção, o que resulta de forma clara da Base 40 do Contrato de Concessão, que obriga a concessionária a elaborar e respeitar um manual de operação e manutenção que deve conter regras de funcionamento dos serviços de vigilância e apoio e de monitorização e controlo ambiental.
Tendo este dever sido objeto de prova e não tendo disso provado pela Ré, cujo ónus da prova lhe incumbia, que tenha havido vigilância, não foi ilidida a presunção de ilicitude e de culpa do art.º 493/1 CC, quanto ao mesmo.
Quanto ao art.º 12.º da Lei n.º 24/2007 sustenta que o mesmo permite interpretar o artigo 493.º, n.º1 do CC no que se refere ao dever de vigilância que impende sobre as concessionárias no sentido de que há uma presunção de incumprimento do dever de vigilância quando um animal se introduz numa via sob a sua alçada de vigilância, pelo que apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram à intromissão do animal na via poderá levar à elisão da presunção decorrente do art.º 493.º, n.º1 do CC.
E conclui que tendo a sentença dado como não provado que que o javali se tivesse introduzido na via pelo buraco avistado pelo condutor do veículo na rede de proteção e segurança junto ao local onde se deu o acidente, não se compreende que tenha afastado a presunção do art.º 493.º, n.º1 do CC, já que conforme Ac. do STJ de 09-09-2008 «…apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram á intromissão do animal na via é que poderão conduzir a um juízo conclusivo de que a concessionária não deixou de realizar o cumprimento das suas obrigações».
3.4.3. Está em causa apurar se as razões invocadas pelo apelante determinam a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que julgue a ação procedente, o que, considerando os erros de julgamento que lhe vêm assacados, impõe prima facie dilucidar se ao caso se aplica o regime do art.º 12.º da Lei n.º 24/2007.
Caso se entenda não ser aplicável ao caso a presunção de culpa e de ilicitude consagrada no art.º 12.º daquele diploma, haverá que verificar se os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos estão preenchidos de modo a reconhecer o direito que vem reclamado na ação, o que passa também por dilucidar a questão de saber se ao caso se aplica a presunção de culpa do art.º493 do Cód. Civil, atendendo ainda ao disposto no n,º3 do art.º 10.º do RRCEEP.
3.4.4. Sobre a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas a Constituição da República Portuguesa estabelece, no art.º 22.º, o princípio geral segundo o qual o Estado e as demais entidades públicas «…são civilmente responsáveis (…) por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem…».
No plano da lei ordinária, o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEEP), encontra-se atualmente plasmado na Lei n.º 67/2007, de 31/12.
O Decreto- Lei n.º 110/2009, de 18.05, que procedeu à segunda alteração do Decreto-lei 380/2007, de 13.11., que atribui à EP-Estradas de Portugal, S.A., a concessão do financiamento, conceção, projeto, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, e que aprovou o respetivo contrato de concessão, rege no capítulo XXI sob a epígrafe “ responsabilidade perante terceiros”, estabelecendo na Base 73 que « A concessionária responde perante terceiros nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados no exercício das atividades que constituem o objeto da concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito.»
Também no art.º 1.º, n.º 5 do RREEP, se prevê que as disposições que regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa « são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de pode público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo».
Assim, no caso, não oferece dúvida que por força do contrato de concessão celebrado entre a EP-Estradas de Portugal, S.A. e o Estado, que lhe confere prerrogativas de poder público, aquela passou a estar sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais entidades públicas por factos ilícitos, que corresponde, no essencial, ao conceito civilístico da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito que tem consagração no artigo 483.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Quanto ao regime da Lei n.º 67/2007 (RRCEEP), esse diploma, para além da responsabilidade por facto ilícito (artigos 7.º a 10.º), prevê e regula a responsabilidade pelo risco ( art.º 11.º), a que decorre do exercício da função jurisdicional ( artigos. 12.º a 14.º) e do exercício da função político- legislativa (cf. art.º 15.º) e ainda a indemnização pelo sacrifício (art.º 16.º).
Quanto à responsabilidade civil por factos ilícitos, a que releva para o caso em juízo, prescreve-se no n.º 1, do art.º 7.º do RRCEEP que «…o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício…».
A definição do que se deverá entender por exercício da função administrativa é facultada pelo art.º 1.º, n.º 2 do RRCEEP, consistindo nas «ações e omissões adotadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo», conceito a que é subsumível o desempenho das funções da Ré enquanto concessionária do Estado.
No caso em juízo, está em causa uma situação de culpa in vigilando da apelada por alegada violação das obrigações de manutenção, vigilância e fiscalização das vias concessionadas que àquela estão acometidas.
A responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito do Estado e demais pessoas coletivas públicas e privadas às quais tal regime seja aplicável funda-se, tal como consensualmente tem sido afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, nos mesmos pressupostos da responsabilidade extracontratual prevista no direito civil, estabelecidos no art.º 483.º do Código Civil (CC), com as especificidades resultantes do RRCEEP.
Por conseguinte, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por atos ilícitos e culposos, pressupõe a existência de um facto ilícito, imputável a um órgão ou agente e a existência de danos que tenham resultado como consequência direta e necessária daquele.
Segundo o n.º 1, do art.º 8.º do RRCEEP «…os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, por eles cometidas, com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles que estavam obrigados em razão do cargo...», dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que «…o Estado e demais pessoas coletivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os respetivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as ações ou omissões referidas no número anterior tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício...».
Quanto á ilicitude, de acordo com o art.º 9.º do diploma em apreço, «…consideram-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos…”.
O ato ilícito pode, pois, consubstanciar-se quer num ato jurídico quer numa operação material, podendo traduzir-se num comportamento ativo ou omissivo, sendo que, neste último caso, a ilicitude apenas se verifica quando exista, por parte da Administração, a obrigação/dever de praticar o ato que foi omitido
Conforme decorre, igualmente, do n. º1 do citado preceito, para que exista ilicitude terá de existir, simultaneamente, a violação de disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou de regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e que daí resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
Quanto à culpa, o art.º 10.º da mencionada lei preceitua, no seu n.º
1, que
“…a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor...”, sendo que, de acordo com o seu n.º 2, “…sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos…”, prevendo o n.º 3 do mesmo preceito legal que “para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento dos deveres de vigilância…”.
Sendo a regra geral em matéria de pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos a de que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa ( art.º 487.º, n.º1 do Cód. Civil) importa ter presente que por força do disposto no n.º3 do art.º 10.º, a existência de uma conduta ilícita da Ré por violação de deveres de manutenção, vigilância ou fiscalização, determina, por si só, a existência de uma presunção de culpa leve- uma presunção iuris tantum.
Alegou ainda o apelante que a responsabilidade do acidente recai nos termos do disposto no art.º 493.º, n. º1 do C. Civil sobre a aqui apelada, porquanto não cumpriu o dever de assegurar as boas condições de segurança e fiscalização da via, uma vez que não acautelou a possibilidade de a via poder vir a ser atravessada por animais. E invocou que resulta do disposto no artigo 12.º da Lei 24/2007, que sustenta ser aplicável aos Itinerários Principais, nos termos do disposto no artigo 1.º da mesma Lei, uma presunção de ilicitude e de culpa que impende sobre a apelada.
3.4.5.Ora, considerando que a referida Lei estava em vigor à data do acidente e que, conforme decorre do art.º 1.º a mesma « define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares e estabelece, nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos utentes estabelecidos ou a estabelecer.», importa resolver a questão de saber da sua aplicabilidade ou não à situação em análise.
O art.º 2.º dessa Lei determina que o disposto na mesma só se aplica «às autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, nos termos do Plano Rodoviário Nacional (PRN) vigente, dotados de perfil transversal com faixas separadas e, no mínimo, com duas vias em cada sentido.»
Ainda de acordo com o disposto no art.º 3.º dessa lei, sob a epígrafe “Definições “, entende-se por «a) «Auto-estradas» as vias classificadas como tal no PRN e conjuntos viários a elas associados, incluindo obras de arte, praças de portagem e áreas de serviço nelas incorporados, bem como os nós de ligação e troços das estradas que os completarem; ) e por «Itinerários principais» as vias classificadas como tal no PRN; …».
Por seu turno, no art.º 12.º da dita Lei prevê-se que «1 - Nas autoestradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a:
a) Objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança.
3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:
a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;
b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra».
Esta disposição clarifica, que, em caso de acidente rodoviário em autoestradas, em razão de (i) objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, (ii) atravessamento de animais ou (iii)líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária. Subjacente ao ónus da prova do cumprimento consubstanciada neste normativo legal transcrito, encontra-se o facto de apenas a concessionária ter os conhecimentos e os meios técnicos e humanos aptos à prossecução dos deveres e obrigações que lhe são impostas, sendo a única que pode, de facto, controlar e atenuar as fontes de perigo, cabendo à concessionária o ónus de provar que cumpriu todos os deveres e procedimentos fulcrais para garantir a circulação normal e segura na referida via. Desta previsão legal resulta que a concessionária de autoestrada em que se verifique um sinistro rodoviário causado por objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, atravessamento de animais e líquidos na via, neste último caso quando não resultantes de condições climatéricas anormais, está onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar.
Advirta-se que este artigo veio pôr fim à polémica doutrinal e jurisprudencial que previamente à publicação da Lei 24/2007, existia sobre a natureza da responsabilidade civil dos concessionários de autoestradas, existindo então três teses, a saber: (1) Uma que considerava que a responsabilidade da concessionária, era contratual, colocando-a na veste de devedor da prestação de serviço proporcionado ao utente (com velocidade legal e segurança), fazendo impender sobre si a presunção de culpa do art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil; outra que sustentava ser tal responsabilidade civil extracontratual, o que implicava caber ao lesado a prova da culpa do autor da lesão; uma terceira, que considerava que a responsabilização da concessionária assentava no facto de ter à sua guarda coisa imóvel, o que, ainda aí, remeteria para a sua culpa presumida, por ser aplicável a regra do art.º 493.º, n.º 1, do Código, entendendo-se que esta norma estabelece uma inversão do ónus de prova quanto ao requisito culpa, competindo, por isso, à concessionária provar que agiu sem culpa.
Esta discussão ficou de algum modo desvalorizada pela publicação da Lei n.º 24/2007 de 18/7, diploma legal que veio definir os direitos dos utentes das vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas.
Sobre a aplicação da presunção estabelecida pelo artigo 12.º da Lei 24/2007 exclusivamente às concessionárias de vias de circulação classificadas como autoestradas, que não à entidade exploradora dos itinerários principais e complementares pronunciou-se recentemente este Tribunal Central Administrativo Norte, no seu Acórdão de 17 de abril de 2020, no Proc. n.º 00189/17.0BEVIS, que a propósito de um acidente de viação ocorrido na IP3, provocado pelo atravessamento de dois javalis, sumariou a seguinte jurisprudência: « « I- A Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, veio definir direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares. II- A presunção de incumprimento das obrigações de segurança prevista no artigo 12º da Lei nº. 24/2007, de 18 de julho, não é aplicável às vias rodoviárias classificadas como Itinerários Principais [IP].
Considerou-se que, se bem que na definição do seu âmbito de aplicação, a Lei n° 24/2007 inclua para além das autoestradas, os itinerários principais e os itinerários complementares, usando o legislador, indistintamente, a expressão “vias rodoviárias” para referir os três tipos, optou o legislador, ao estabelecer a referida presunção de ilicitude e culpa, no artigo 12°, por restringir a operação da inversão do ónus da prova às autoestradas.
Escreve-se nesse acórdão que na interpretação legal, está o Tribunal obrigado a respeitar o disposto no artigo 9° do Código Civil, normativo que estabelece, no seu n° 3, que, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Consequentemente, entendeu-se que a referida presunção prevista no indicado artigo 12° da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, não será aplicável à situação de acidente ocorrido num itinerário principal.
Posição diferente teve este TCAN no Acórdão proferido a 31 de maio de 2019, no processo n.º 0765/14.BECBR, não disponível na base de dados da DGSI, em que, perante um acidente de viação ocorrido no IP3, provocado pelo atravessamento de um Javali, aplicou à concessionária a presunção de culpa e de ilicitude consagrada no art.º 12.º da Lei n.º 24/2007, tendo considerado a ação parcialmente procedente e condenou a Ré, concessionária do IP3, a pagar à aí autora a quantia de € 9.169,76 e respetivos juros de mora.
Dessa decisão foi interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo que por acórdão de 12 de setembro de 2019, a não admitiu, mas do qual se nos útil transcrever a fundamentação que dele consta:
«« (…) «In casu», as instâncias convieram na procedência – apenas parcial, pois a autora não provou todos os danos invocados «in initio litis» – da acção interposta pela seguradora recorrida, que invocou o direito de regresso relativamente a danos, por si custeados, emergentes de um acidente rodoviário que ocorreu num troço do IP3 com perfil da auto-estrada e que foi motivado pela súbita aparição de um javali na faixa de rodagem.
A recorrente censura imediatamente o acórdão «sub specie» porque fundou a sua culpa numa norma – o art. 12º da Lei n.º 24/2007, de 18/7 – que seria inaplicável àquele IP3. E, em geral, ela nega que haja, neste pleito, qualquer presunção de culpa (ou de ilicitude), justificativa da sua condenação.

Esse art. 12º prevê que, no caso de «atravessamento de animais» ocorrido «nas auto-estradas» e motivador de um «acidente rodoviário», cabe à concessionária da via em causa «o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança». Admite-se que é duvidosa a aplicabilidade desse preceito àquele troço do IP3. Contra tal solução, temos o facto do art. 2º do diploma distinguir as auto-estradas dos itinerários, principais e complementares, com perfil semelhante. Mas, a favor dela, está o mesmo art. 2º, porquanto ele diz que «o disposto na presente lei» se aplica – aparentemente «in toto» e sem restrições – a todas essas vias.
Não obstante, é de notar que a sentença do TAF não precisou de convocar o art.º 12º da Lei n.º 24/2007 para concluir que sobre a ré impendia o ónus – por ela não cumprido – de alegar e demonstrar que se organizara e agira por forma a prevenir perigos do género. E essa conclusão, afinal seguida pelo acórdão «sub censura», corresponde à jurisprudência corrente do STA na matéria, cujo fundamento último se encontra na presunção de culpa do art. 493º, n.º 1, do Código Civil.
Assim, a solução que as instâncias unanimemente adoptaram parece acertada e não reclama reapreciação. Pelo que deve prevalecer, «in casu», a regra da excepcionalidade das revistas.»

Note-se que no processo em causa, deu-se como provado que «7) A estrada onde se deu o embate é composta por duas vias, uma destinada ao sentido IC2-A1 e outra ao sentido A1-IC2 dividida por um separador central em metal, com um ajardinado no centro e ladeadas por rail metálico; 8) As vias que compõem a estrada referida no ponto 7 são formadas por duas hemifaixas de rodagem, separadas por uma linha descontínua longitudinal», o mesmo é dizer, que o acidente em causa se deu num troço do IP3 com perfil de autoestrada.
Recorde-se que a Lei n.º 24/2007, de 18/07, como expressamente vem referido no art.º 2.º aplica-se às autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, nos termos do Plano Rodoviário Nacional vigente «dotados de perfil transversal com faixas separadas e, no mínimo, com duas vias em cada sentido.» e ainda, com as devidas adaptações, ás autoestradas concessionadas com portagens, sem custos diretos para o utilizador.
Este diploma, reafirma-se, veio definir os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, estabelecendo, nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos utentes que se mostrem já estabelecidos ou a estabelecer.
E sendo assim, não vislumbramos razões para que o disposto no art.º 12.º seja de aplicar exclusivamente a acidentes verificados nas autoestradas e não também aos verificados nos IP ou nos IC, desde que, apresentem, no local do acidente, o perfil de uma autoestrada, ou seja, sejam «dotados de perfil transversal com faixas separadas e, no mínimo, com duas vias em cada sentido.»
3.4.6.Porém, no caso em juízo, o acidente deu-se no lanço entre Coimbra e Viseu, onde o IP3 é uma via rápida com uma faixa de rodagem. O autor alegou na p.i. que no concreto troço do IP3 onde se deu o acidente a estrada apresenta-se apenas com dois sentidos de marcha divididos por dupla linha longitudinal contínua, apresentando duas vias de circulação para o sentido Viseu/Coimbra mas apenas uma via de circulação para o sentido Coimbra/Viseu, ou seja, no sentido em que seguia do veículo do autor e sendo assim, diferentemente da situação versada no último acórdão a que nos referimos, não pode considerar-se que se tenha dado num troço do IP3 com perfil de autoestrada.
Assim, por essa razão, concluímos não ser aplicável ao acidente dos autos o regime do 12.º da Lei 24/2007.
3.4.7. Prosseguindo na análise do presente recurso, afastada que está a aplicação ao caso do art.º 12.º da Lei 2472007, refira-se que em relação ao pressuposto da ilicitude, apenas há lugar à responsabilidade civil por danos resultantes de factos humanos domináveis pela vontade, podendo tais atos consistir em ações ou omissões.
Como notam MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Cfr. in Direito Administrativo Geral, Tomo III (Actividade administrativa), 2.ª edição, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2009, p. 486; consubstanciam ações, entre o mais, as simples atuações administrativas e os atos reais, incluindo todas as omissões juridicamente relevantes.
Em sentido concordante, pode ler-se em acórdão deste TCAN Cfr.. o Acórdão do TCAN, de 19 de Junho de 2008, proferido no âmbito do Processo n.º 0113/06.5BEPNF – disponível para consulta online em www.dgsi.pt que o facto ilícito engloba «…o facto do órgão ou agente constituído por um comportamento voluntário, que tanto pode revestir a forma de ação como de omissão, advindo a ilicitude da ofensa de direitos de terceiros ou disposições legais emitidas com vista à proteção de interesses alheios…».
Ou seja, a ilicitude é sinónimo de anti- juridicidade que se pode expressar num juízo negativo ou de desvalor formulado pela ordem jurídica e incidente sobre o facto ou sobre o seu resultado. Sendo assim, será tida por ilícita toda e qualquer conduta que viole o bloco de legalidade (isto é, que viole princípios ou normas constitucionais, legais, regulamentares, internacionais, comunitários), infrinja regras de ordem técnica e de prudência comum, ou deveres objetivos de cuidado ou que viole os parâmetros pelos quais se deve reger o normal funcionamento dos serviços. Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, op. cit., pp. 486-487.

No tocante à culpa, sempre se diga que, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, a culpa traduzir-se-á, fundamentalmente, num juízo de censura sobre o comportamento (ação ou omissão) do titular de órgão ou de agente, por tal conduta não corresponder à que é exigível e esperada de um funcionário típico, normal, zeloso e cumpridor, nas circunstâncias do caso concreto.
Trata-se, essencialmente, de apreciar a culpa num plano funcional, no plano de exercício de funções - ou seja, no plano de um comportamento que se traduza numa normal, diligente e zelosa aplicação de regras (ou, numa anormal e negligente aplicação dessas mesmas normas).
Ante o exposto, a ilicitude e a culpa são conceitos preenchidos pela omissão ou deficiente cumprimento de deveres funcionais, já que os funcionários e agentes administrativos encontram-se sujeitos a normas que os obrigam a possuir os conhecimentos jurídicos, técnicos ou outros, necessários ao exercício da sua profissão.
Mais, a fronteira entre o ilícito e a culpa é de tal forma ténue, que a nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que uma vez provada a omissão do dever funcional, sem que o Estado e demais entes públicos tenham provado qualquer facto justificativo dessa omissão (ou que esta não se verificou), provada se deve ter a culpa da entidade lesante.
Constata-se, assim, que, nas ações de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por factos ilícitos, funciona a presunção de culpa in vigilando estabelecida no n.º 1, do art.º 493.º do Código Civil Cfr. Ac. do STA, de 25 de março de 1999, processo n.º 041297., também por força do art.º 10.º, n.º3 da Lei 67/2007.
O n°1 do artigo 493° do CC estabelece que «Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, ...responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua».
Esta norma responsabiliza por culpa presumida quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar, relativamente aos danos por ela causados, sendo de integrar no conceito de coisa imóvel não só as faixas de rodagem, como as portagens, zonas de descanso, sinalização vertical diversa, as vedações e tudo o mais que esteja sob a alçada da concessão, recaindo sobre a concessionária a presunção de culpa quando, por falta de vigilância do imóvel, ocorra um acidente.
Trata-se apenas, nas palavras de Rodrigues Bastos, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 1972, pág. 99, “ de presumir que o guarda da coisa tem culpa no facto causador do dano. Porquê? Porque quem tem a coisa à sua guarda deve tomar as medidas necessárias para evitar o dano
Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, 468 e 469, “estabelece-se neste artigo … a inversão do ónus da prova, ou seja, uma presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou de animais ou exerce uma atividade perigosa… estabelece-se uma importante restrição à responsabilidade. Ela só existe se a pessoa que tem em seu poder a coisa móvel ou imóvel (…) está obrigada a vigiá-la. Pode tratar-se do proprietário da coisa ou animal; mas não tem de necessariamente de ser o proprietário, …. É a pessoa que tem as coisas ou animais à sua guarda quem deve tomar todas as providências indispensáveis para evitar a lesão.”
Efetivamente, a presunção quanto à verificação e existência da responsabilidade do vigilante, que tal normativo encerra, implica, para o beneficiário da mesma, a desnecessidade de provar os factos e os elementos que consubstanciam tal responsabilidade, rectius a culpa do agente; e, para este, acarreta o dever/ónus, não apenas de colocar em dúvida, através de contra prova, tal presunção e as consequências dela dimanantes, mas, mais, de provar factos que inequivocamente convençam do contrario e, assim, a possam afastar. Ou seja, a presunção de culpa prevista no art.º 493º, nº 1, do CC, pode ser ilidida mediante a prova da ausência de culpa ou a demonstração de que os danos se teriam igualmente produzido mesmo sem culpa e as circunstâncias relevantes para se considerar ilidida a presunção de culpa não podem ser de tal ordem que, na prática, transformem a responsabilidade subjetiva que impende sobre quem detiver a coisa à sua guarda em responsabilidade objetiva ou pelo risco. Cfr. Ac. do TRE, de 11.01.18, Proc. 611/13.4TABF.EI;
Como bem se nota no Ac. deste TCAN, de 25.10.13, proc. 00360/11.8BECBR «Antes da entrada em vigor da Lei n° 67/2007, a jurisprudência vinha resolvendo, de modo quase uniforme, situações como a que temos em apreço, tendo o RRCEE positivado tal solução no n° 3 do art. 10°, onde se lê que «Para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.»
Assim, demonstrando-se que a coisa que deve ser vigiada provocou determinados danos e que não é de excluir a responsabilidade por eles à face da teoria da causalidade adequada, haverá responsabilidade por esses danos imputável a quem tem o dever de a vigiar, a não ser que se prove alguma das situações previstas na parte final daquela norma em que essa responsabilidade é excluída.
Como resulta do próprio teor daquela norma, não se trata simplesmente de uma presunção de culpa, mas sim de uma imputação da responsabilidade a quem tem o dever de vigiar uma coisa, que tem ínsita uma presunção de verificação dos requisitos ilicitude e culpa, necessários para imputação de responsabilidade civil extracontratual, assentando, cumulativamente numa presunção de existência de omissão de cumprimento do dever objectivo de cuidado (que tem a ver com a ilicitude) e numa presunção de que a pessoa com o dever de vigiar tinha possibilidade de cumprir esse dever de vigilância e não cumpriu (o que permite formular o juízo de censura em que se traduz a culpa).
Isto é, como o normal é que a coisa, se devidamente vigiada, não provoque danos a outrem, quando se prove que esses danos foram causados pela coisa presume-se que houve por parte de quem tem o dever de a vigiar uma omissão dos deveres de vigilância adequados a evitar que o dano se produza (ilicitude) e que essa omissão é censurável (culpa).
Aliás, assentando a imputação de responsabilidade prevista no art. 493.º, n.º 1, do Código Civil, na censurabilidade do incumprimento do dever objectivo de cuidado, não é possível presumir a culpa sem, concomitantemente, presumir o incumprimento do dever objetivo em que se consubstancia a ilicitude.

Assim, nos casos enquadráveis no n.º 1 do art. 493.º do CC, o ónus da prova que recai sobre o lesado é apenas o relativo ao nexo de causalidade entre a coisa e os danos.
No caso vertente, é em face da inversão do ónus da prova quanto à culpa que resulta deste art.º 493.º, n.º 1, do Código Civil e art.º 10.º, n.º3 do RRCEEP que há que apreciar se se verificam os requisitos da responsabilidade civil extracontratual.

Relativamente ao dano, é sabido que o dano ou prejuízo pode ser definido como a diminuição ou extinção de uma vantagem que é objeto de tutela jurídica. Trata-se, assim, de um conceito polissémico que envolve toda uma pluralidade de situações, a saber: (i) danos emergentes ou imediatos que respeitam à privação de vantagens que já existiam na esfera jurídica do lesado no momento da lesão; (ii) lucros cessantes que se reportam aos benefícios que o lesado deixou de auferir por causa da lesão (mas devendo ser certos e não apenas meramente possíveis) [cf. art. 564.º, n.º 1, do CC]; (iii) danos presentes são aqueles que já ocorreram no momento da fixação da indemnização; (iv) danos futuros são aqueles que ainda não ocorreram no momento da fixação da indemnização [cf. art. 564.º, n.º 2, do CC]; (v) danos patrimoniais denominam-se todos os danos susceptíveis de avaliação pecuniária; e, (vi) danos morais ou não patrimoniais designam-se todos os outros danos que são insusceptíveis de uma tal avaliação. Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, op. cit., pp. 495-496.

Finalmente, quanto ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, explicita-se que a existência de um tal nexo de causalidade implica que o comportamento do funcionário ou agente deva ser causa adequada do dano, isto é, dos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão [cf. art. 563.º do CC]. Como tal, o facto será causa adequada do dano, sempre que este constitua sua consequência normal ou típica (ou, noutra formulação da teoria da causalidade adequada: o comportamento só deixa de ser causa adequada do dano se, dada a sua natureza geral, for indiferente para a verificação do dano, tendo-o causado por virtude de circunstâncias excepcionais que ocorreram no caso concreto.
Cfr. Ac. do STA, de 18 de maio de 1993, Rec. N.º 31.867, in ACD, n.º 390, p. 629.
Ante o exposto, dever-se-ão considerar abrangidos, no âmbito da causa adequada, os comportamentos que não produzindo, eles mesmos, o dano, desencadeiam outro(s) que leva(m) à sua existência.
Por conseguinte, subsiste o nexo de causalidade adequada quando o facto ilícito não produz ele mesmo o dano, mas é causa adequada de outro facto que o produz, na medida em que este facto posterior tiver sido especialmente favorecido por aquele primeiro facto ou seja provável, segundo o curso normal dos acontecimentos. Ficam, assim, excluídos os danos que só se produziram em virtude de circunstâncias extraordinárias, bem como os provenientes de conduta que, tendo em conta a sua natureza geral e o seu curso normal, não seria apta a produzi-los.
3.4.8. No caso em juízo, a 1.ª Instância pese embora tenha dado como provada a existência de um comportamento ilícito e culposo por parte da Ré, aqui apelada, absolveu-a por falta de nexo de causalidade entre a conduta da Ré e os danos sofridos pelo autor.
A 1.ª Instância considerou que a atuação da Ré na verificação do acidente dos autos apenas pode ser julgada ilícita por aquela não ter cumprido adequadamente o dever de sinalização uma vez que o sinal de perigo “A19b Animais Selvagens”, indicador de que a via pode ser atravessada por animais selvagens encontrava-se colocado a uma distância do local do acidente de 760m, quando devia estar colocado a 150 m ( art. 1.º e 7.º do DL 22-A/18, de 01 de outubro), sem que se tenha provado a existência de qualquer painel indicativo da distância, conforme exigido pelo art.º 20.º do citado DL 22-A/18.
Mas já quanto aos seus deveres de manutenção, pese embora a 1.ª Instância tenha considerado que o autor cumpriu com o ónus de alegação quando se refere ao incumprimento pela Ré do seu dever de assegurar as boas condições de segurança e fiscalização da via, ao invocar que a Ré não acautelou a possibilidade de a via poder vir a ser atravessada por animais considerou que aquela cumpriu os seus deveres de manutenção uma vez que no «… local do acidente a via estava vedada com rede tipo caça (alínea R) do probatório).
A rede de vedação do PK 91+200 do IP3 foi reparada pela Ré nos finais de Novembro de 2011 (alínea S) do probatório) e no dia do acidente o condutor do veículo viu a rede de vedação e proteção danificada na zona junto ao solo e que se notava que não se devia a ação humana (alínea M) do probatório).
Não se provou que o animal tenha entrado na estrada através da rede, forçando-a.
Nem se provou que a rede utilizada pela Ré era a adequada para impedir a passagem de animais selvagens para a estrada.
Tendo a Ré cumprido o seu dever de manutenção da rede em Novembro de 2011, a sua conduta não pode ser qualificada como ilícita por falta de cumprimento de tal dever.»
Concluindo-se, na sentença recorrida que «a conduta da Ré apenas tem de ser qualificada como ilícita, por não ter cumprido o seu dever de sinalização de forma adequada.» (sublinhado nosso). E apenas é considerada culposa, por a Ré não ter cumprido corretamente o seu dever de fiscalização (alíneas P) e Q) do probatório), única omissão culposa dos deveres que impendiam sobre a Ré que deu como provada, concluindo que «o cumprimento adequado do dever de sinalização pela Ré não teria, com toda a probabilidade, impedido o resultado. Mesmo que a aproximação do perigo estivesse adequadamente sinalizada [cf. é exigido pelo artigo 20º, nº 1, do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1/10], o acidente não seria com toda a probabilidade evitável e teria acontecido na mesma.»
E isso porque «O javali apareceu de forma inesperada e a uma distância inferior a 5 metros do veículo (alínea G) do probatório), que circulava dentro da velocidade permitida no local (alínea I) do probatório)», pelo que «Mesmo com a sinalização adequada e podendo o condutor do veículo circular à velocidade que seguia, foi o aparecimento inesperado do javali que provocou o acidente», donde «Nem a sinalização adequada era capaz de evitar o acidente.». Por conseguinte «O problema está no tipo de vedação que a Ré utiliza para impedir a passagem de animais selvagens para a estrada, mas quanto a esta nada se provou, nem sequer se o animal entrou na estrada através da vedação», e daí que « não pode o Tribunal dar como verificado o pressuposto do nexo de causalidade, porque foi o aparecimento inesperado do javali que causou o acidente.»
O apelante, diferentemente, assevera que o acidente se deu em virtude da Ré, concessionária do IP3, não ter assegurado as boas condições de segurança e fiscalização da via, uma vez que não acautelou a possibilidade de a via poder vir a ser atravessada por animais, como foi o caso do javali contra o qual o veiculo do autor embateu, e insurge-se contra a sentença recorrida por assim não ter julgado.
E, afigura-se-nos que tem razão.
3.4.9. Como acima referido, não obstante à situação em juízo, salvo melhor opinião, não ser aplicável a presunção de ilicitude e culpa do art.º 12.º da lei 24/2007, é-lhe aplicável a presunção de culpa do art.º 493.º, n.º1 e art.º 10.º, n.º3 do RRCEEP.
Deste modo, provado que seja a ocorrência de um facto ilícito da apelada, presume-se a respetiva culpa.
Como já supra se referiu, o Decreto-lei 380/2007, de 13 de novembro, atribuiu a concessão do financiamento, conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional à EP - Estradas de Portugal, S. A., e aprovou as bases da concessão.
Por seu turno, o Decreto-lei 374/07, de 07.11 - que procedeu à transformação da EP-Estradas de Portugal, EPE, em sociedade anónima de capitais públicos- dispõe no seu art.º 10.º, n.º1 , que compete à Ré relativamente às infraestruturas rodoviárias nacionais que integrem o objeto da concessão a que se refere o artigo 4.º Art.º 4, n.º1 do DL 347/2007, de 07.11, no se dispõe: « A EP- Estradas de Portugal , S.A., tem por objto a conceção, projeto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, nos termos do contrato de concessão com ela celebrado pelo Estado»., zelar pela manutenção permanente das condições de infraestruturação e conservação e de salvaguarda do estatuto da estrada que permitam a livre e segura circulação.
A base 35.º, sob a epígrafe “Manutenção das vias” dispõe que:
«1 - A concessionária deve manter as vias em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização e, após a sua abertura ao tráfego, em funcionamento ininterrupto e permanente, salvo nos casos expressamente previstos nestas bases, realizando os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam, cabal e permanentemente, o fim a que se destinam.
2 - A concessionária é responsável pela manutenção, em bom estado de conservação e perfeitas condições de funcionamento, do equipamento de monitorização ambiental, dos dispositivos de conservação da natureza e dos sistemas de protecção contra o ruído.
3 - Constitui, também, responsabilidade da concessionária a conservação e manutenção dos sistemas de liquidação e cobrança, dos sistemas de contagem e classificação de tráfego, incluindo o respectivo centro de controlo, dos centros de controlo de tráfego e, ainda, dos sistemas de iluminação, de sinalização e de segurança existentes ou a instalar nas vias.
4 - A concessionária deve respeitar os padrões de qualidade, designadamente para a regularidade e aderência do pavimento, conservação da sinalização e do equipamento de segurança e apoio aos utentes, fixados no Manual de Operação e Manutenção e no Plano de Controlo de Qualidade.
5 - O estado de conservação e as condições de exploração das vias são verificados pelo InIR, competindo à concessionária proceder, nos prazos que lhe sejam fixados, às reparações e beneficiações necessárias à manutenção dos padrões de qualidade previstos nestas bases.».
E na base 43.º sob a epígrafe “Manutenção e disciplina de tráfego estipula-se que:
«1 - A circulação nas vias deve obedecer ao determinado no Código da Estrada e demais disposições legais ou regulamentares aplicáveis.
2 - A concessionária está obrigada, sem direito a qualquer indemnização ou à reposição do equilíbrio financeiro da concessão, a respeitar e a transmitir aos utentes todas as medidas adoptadas pelas autoridades com poderes de disciplina de tráfego e está obrigada, salvo caso de força maior, a garantir a circulação permanente nas vias em boas condições de segurança e comodidade, colaborando activamente com tais autoridades, designadamente em situações de tráfego excepcionalmente intenso, com o fim de obter o melhor aproveitamento do conjunto da Rede Rodoviária Nacional e da Rede Rodoviária Nacional Futura.».
Ainda na base 44.ª, prevê-se no seu n.º1 que «1 - A concessionária é obrigada a assegurar assistência aos utentes das auto-estradas, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação, nomeadamente no que respeita à sua fiscalização e à prevenção de acidentes, salvo autorização em contrário do concedente, sob proposta do InIR. »
Também o no Art.º 3.º do Código da Estrada se estabelece que nas vias do domínio público é livre a circulação, o que obriga a que as mesmas sejam mantidas livres e desimpedidas.
Do exposto resulta, a obrigação legal e contratual da Ré de manter as vias que estão sob a sua alçada – nas quais se inclui o IP3- em bom estado de conservação, de assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nessas vias e, bem assim, de manter serviços de vigilância adequados ao cumprimento daquelas finalidades, tudo de forma a salvaguardar a livre e segura circulação nas mesmas.
Trata-se, no fundo, da consagração de deveres gerais de cuidado, segurança e vigilância que impendem sobre a apelada.
Por outro lado, importa considerar que, nos termos do estabelecido no DL n. 222/98, de 17/7, os itinerários principais (IP) são as vias de comunicação de maior interesse nacional, servindo de base de apoio a toda a rede rodoviária nacional e assegurando a ligação entre os centros urbanos com influência supra- distrital e destes com os principais portos, aeroportos e fronteiras. (vide artigo 2.º n. 2 do citado diploma legal)
Conforme previsto no n. 1 do artigo 3.º da sobredita disposição legal nos itinerários principais e proibida a circulação de pe6es, velocípedes e veículos de tração animal. (cf. artigo 3.º n. 1 do supra aludido Decreto-Lei)
De salientar ainda que o n.º 1 do art.º 7 daquele diploma legal obriga à vedação em toda a sua extensão, dos itinerários principais.
Quanto ao IP3, trata-se, por conseguinte, de uma via rápida, onde, dentro dos limites legais de velocidade, os veículos atingem velocidades elevadas, e daí que se trate de vias de circulação que têm de possuir acrescidas e especiais condições de segurança e comodidade, por isso devem ser construídas, mantidas e conservadas com padrões de qualidade que garantam de forma plena e contínua, a segurança e comodidade dos utentes.
Daí que sobre a concessionária recaia um conjunto de deveres que o Estado lhe transmite através da concessão, que a vinculam, designadamente, para além de um dever de manutenção da via, a exercer uma vigilância permanente sobre as condições de circulação, com patrulhamentos que verifiquem a existência de situações de perigo à circulação, de modo a prevenir a eclosão de acidentes que ponham em causa a segurança de condutores e veículos, afastando esses perigos, ou quando não seja possível, sinalizando todas as situações de perigo para a regular circulação, de modo a alertar os condutores que, porque circulam numa numa via rápida, vedada em toda a sua extensão, a têm por livre e desimpedida, sem sujeição a condicionamentos que comummente podem surgir em estradas nacionais ou municipais, se acautelem.
Tal não significa que os condutores que circulem num IP estejam isentos de cumprir as regras estradais, designadamente, de atenção à via e ao trânsito, e de limite de velocidade, seguindo as boas práticas de uma condução segura e em plena observância das normas que regulam a circulação (como sejam, as de moderar a velocidade em situações de risco, regulando-a de acordo com o estado da via, as condições atmosféricas e as características do veículo que se conduz).
A comodidade e segurança dos utentes, a fluidez e facilidade da circulação e a rapidez das deslocações são incompatíveis com vias rápidas em que, com frequência e/ou sem sinalização adequada, apareçam obstáculos que, previsivelmente, aí se não devem encontrar.
Deste modo, não é espectável ou suposto que o condutor que entra numa via rápida, se vá deparar com obstáculos não sinalizados, nomeadamente com um javali a atravessar a sua faixa de rodagem.
Ora, não há dúvida de que a introdução de um javali numa via com as características do IP3 — uma via por essência de trânsito automóvel rápido, onde um veículo ligeiro pode circular a 100km/hora — coloca sérios problemas de segurança rodoviária, o que vai contra a obrigação de segurança viária que cabe à apelada proporcionar aos utentes daquela via, correspondendo esse surgimento uma perigosa violação da segurança do tráfego automóvel.
Tendo a recorrente assumido o encargo de vigiar a via onde ocorreu o acidente dos autos de modo a proporcionar aos seus utentes uma condução segura, não há dúvida de que esse dever de vigilância se reporta não apenas as faixas de rodagem, mas também às demais infraestruturas a ela associadas, como sejam as bermas, as valetas, os taludes, a sinalização vertical, as vedações e toda a demais envolvente.
Aqui chegados, é apodítico que é sobre a “Estradas de Portugal, S.A.” que incumbe o dever de zelar pela conservação e manutenção dos itinerários principais, pelo que a mesma está onerada com especiais deveres de manutenção, diligência, vigilância e fiscalização.
3.4.10. Tal como resulta da factualidade que vem dada como provada, no dia 23 de dezembro de 2011, pelas 20h45m, quando o veiculo automóvel com a matricula XX-XX-XX circulava pelo IP3, no sentido Coimbra/Viseu, ao km 91,2 daquela via, num local onde não existia iluminação pública, sendo já noite, veio a embater num animal de raça suína — um javali- que atravessava a faixa de rodagem da esquerda para a direita, atento o indicado sentido de marcha.
Mais se demonstrou que, na altura, fazia bom tempo e a visibilidade era boa, mas que o animal surgiu de forma inesperada e a uma distância de inferior a 5 metros do veículo do autor, e bem assim, que no local e no momento do embate não existia sinalização colocada nos termos legalmente exigidos, nem informação naquela estrada a alertar os utentes para a possibilidade do surgimento de animais selvagens na via.
Provou-se ainda que o condutor do veículo viu a rede de vedação e proteção danificada na zona junto ao solo e que se notava que não se devia a ação humana, e que no local do acidente a via estava vedada com rede tipo caça e, bem assim, que a rede de vedação do PK 91+200 foi reparada pela ré nos finais de novembro de 2011.
Resulta dos factos apurados que o acidente ocorreu em consequência de ter surgido um javali a apenas 5 metros do veículo do autor e quando na rede situada nas imediações do local existia um buraco.
Independentemente do javali ter entrado naquele IP3 pelo referido buraco existente na rede, como se sabe trata-se de animal selvagem que necessariamente, caso não tenha entrado por aquele buraco entrou no IP por qualquer outro buraco existente na rede ou por zona em que o IP não se encontrava provido da necessária proteção, destinada a impedir a passagem de animais para o seu interior, pelo que, salvo o devido respeito, a apelada não cumpriu nenhum daqueles deveres legais, na medida em que não logrou impedir a entrada daquele animal.
Deste modo, por via do comportamento omisso da Ré traduzido na circunstância de não ter dotado ou cuidado de manter o IP de rede, em toda a sua extensão, em boas condições por forma a eliminar qualquer buraco ou vício que impedisse de exercer a sua função normal que era a de obstar que pessoas ou animais, incluindo animais selvagens, como é o javali, entrassem no IP- doutra forma não se descortina como é que o javali tivesse entrado no interior do IP- agiu ilicitamente e, logo, presuntivamente com culpa.
3.4.11. Importa, então, saber se a concessionária ilidiu a presunção de culpa no que respeita ao acidente, ou seja, saber se lhe pode ser imputada qualquer violação das regras de segurança e afirmar que a entrada no animal na via e que causou os danos referidos nos autos, se pode imputar à violação daquelas regras.
A questão que se suscita é saber se a matéria que se quedou como provada é suscetível de ilidir a referida presunção de culpa do art.º 493.º 1 do CC e art.º 10.º, n.º3 do RRCEEP posto que, como bem diz a apelada não é exigível e até seria um contrassenso impor-lhe um dever de vigilância e de manutenção e conservação que tivesse de ser exercido segundo a segundo, minuto a minuto, ou hora a hora.
A este propósito diremos que não é pela circunstância de se ter provado que a apelada cerca de um mês antes efetuou a manutenção da rede e que existia a colocação de um sinal de perigo de animais selvagens, embora a 750 m do local do acidente, que se pode concluir pela ausência de culpa da parte da Ré por cumprimento cabal das suas obrigações de vigilância, conservação e manutenção do IP.
Essa intervenção na rede do IP ocorrera há um mês sobre a data do acidente e aquele sinal de perigo de animais selvagens situava-se a 750 m do local desse acidente.
De resto o n.º1 do at.º 493.º do CC exige que à exclusão da presunção de culpa que estatui, que a apelante alegue e prove factos dos quais decorra que nenhuma culpa houve da sua parte o que, está longe de ser evidenciado pela enunciada facticidade que se quedou como apurada, sendo de sublinhar, que em sede de contestação a Ré se limitou a alegar não lhe poder ser assacada qualquer responsabilidade por o acidente se ter ficado a dever ao javali, animal sobre o qual não tem um dever de vigilância e por a entrada desse animal dever ser considerado um caso de força maior.
Sustenta-se na decisão recorrida que o acidente teria igualmente ocorrido perante o incumprimento pela apelada dos seus deveres legais uma vez que esse acidente eclodiu não por via do incumprimento daquela mas porque na via surgiu um javali e de facto, o n.º1 do art.º 493.º do C.C. prevê como causa de exclusão da responsabilidade da apelada, a alegação e prova de factos dos quais decorra que os danos sofridos pelo autor se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Salvo o devido respeito por entendimento contrário não perfilhamos o entendimento sufragado pela 1.ª instância quando se verifica que o javali surgiu em plena hemi-faixa de rodagem do IP, precisamente porque a apelada não cuidou em cumprir com os seus deveres de vigilância, manutenção e fiscalização daquela via por forma a garantir a circulação em segurança.
Ora, apesar de se ter provado que existiam vedações a ladear a via, no troço onde se deu o acidente sub judice, nada alegou a Ré, nem demonstrou, quanto as características dessas vedações, nomeadamente qual a sua altura, ou o tipo de malha que concretamente foi utilizada naquele local, ou a sua forma de implantação, antes se apurou que havia um buraco nessa rede.
Ou seja, a recorrente não logrou fazer a prova de que as vedações colocadas no troço onde eclodiu o sinistro eram adequadas a impedir a sua transposição por toda e qualquer espécie de animais, nomeadamente javalis, como aquele que causou o acidente dos autos, matéria que nem sequer invocou na sua contestação, tendo-se limitado a afirmar que não tinha um dever de vigilância sobre o javali e que o acidente, nas circunstâncias narradas se ficou a dever a caso de força maior ou fortuito.
Por outro lado, a recorrente também não logrou demonstrar que a sobredita vedação se encontrava em perfeito estado de conservação, ou seja, em condições de poder cumprir a sua função, para o que nesta sede releva, de evitar o acesso de animais a faixa de rodagem, matéria que nem sequer alegou oportunamente em sede de contestação.
E na verdade, a vedação tem que impedir o atravessamento por animais, a menos que, se demonstre que a entrada do javali se ficou a dever a uma causa completamente estranha as características físicas da vedação e que, ainda que esta fosse mais alta, a entrada teria ocorrido de igual forma. (parte final do artigo 493.º n 1 do C. Civil)
Tendo o animal que deu origem ao presente sinistro logrado entrar e permanecer na via, é lícito concluir que as vedações utilizadas pela recorrente não cumpriram a sua função, na medida em que o javali apenas surgiu porque ou entrou no interior do IP pelo buraco existente na rede na imediação do local do acidente, ou por outro buraco qualquer, ou por local em que a apelada não cuidou em colocar rede ou a rede colocada não garantiu a sua função normal de impedir a entrada de javalis, e foi por via desse facto que necessariamente o javali entrou no interior do IP e se postou em plena hemifaixa de rodagem quando nela circulava o veiculo do autor em circunstâncias que impediram de nele colidir e de sofrer os danos que se vieram a verificar na viatura
No caso dos autos tudo leva, pois, a crer que a sobredita vedação não funcionou corretamente, posto que não evitou a entrada do animal na via.
Ademais, a Ré não alegou, e por isso, não provou, que tenha efetuado como era seu dever o patrulhamento da via de modo a detetar eventuais perigos, como a entrada, e a permanência na via de um javali. Nada se sabe sobre eventuais equipas de fiscalização, e a sua rotina, porque nada foi alegado pela Ré.
Acresce que, como acima se deixou dito, se provou, bem assim, que, no dia do acidente, não existia no local sinalização ou informação a alertar os utentes daquela via para a possibilidade do surgimento de animais na faixa de rodagem colocada como determinava a lei.
A presença de um javali numa via com as características do IP3 — vigiada e protegida — não pode deixar de ser considerada uma anomalia.
Como defende o Professor Sinde Monteiro, in R.L.J., ano 131, pág. 48 e ss., “... como corolário da sua nuclear obrigação de assegurar a circulação em boas condições de segurança e comodidade, recai também sobre a Concessionária o dever de afastamento de obstáculos ou a eliminação de outras fontes de perigo, que derivem de acontecimentos naturais (como a neve e o gelo) ou mesmo de facto de terceiros (caso das manchas de óleo).”
Assim, “se um acidente se verifica devido a presença de um obstáculo ou outra fonte de perigo, estamos perante uma anormalidade objectiva susceptível de servir de base a presunção de existência de um defeito de conservação, o qual, em sentido amplo, engloba a detecção e eliminação ou neutralização de focos de perigo” — ibidem, pág. 110.
Impõe-se, como tal, a conclusão de que a conduta da recorrida se mostra ilícita e culposa, porque violadora das normas que impõem a vigilância daquela via e a sua manutenção em perfeitas condições de circulação, em termos de segurança e comodidade.
Subsumindo o quadro factual apurado a previsão do n. 1 do artigo 493.º do Código Civil, verifica-se que recaia sobre a recorrente o dever de vigiar a via onde se deu o acidente dos autos e toda a sua envolvente — onde se incluem as vedações — de modo a assegurar aos utentes a sua utilização em condições de segurança e comodidade, tal como a mesma se obrigou, ao celebrar o contrato de concessão a que acima se aludiu.
Por outro lado, a recorrente vinculou-se perante o Estado e encontrava-se legalmente obrigada a dotar aquela estrada de vedação em toda a sua extensão, que impedisse, nomeadamente e para o que nesta sede releva, a entrada de animais, por forma a conferir aos utentes a necessária segurança na utilização de uma via onde se pode, atingir velocidades ate, pelo menos, 100 km/h.
Logo, não ocorre o afastamento da presunção e culpa prevista no art.º 493.º, n.º1 sequer ocorre qualquer quebra do nexo causal entre a conduta ilícita e presuntivamente culposa da apelada e os danos verificados no veiculo, assim como os decorrentes da respetiva paralisação.
Em face de tudo quanto se deixou dito, encontra-se plenamente justificada a constituição da obrigação de indemnização que a apelante reclama nas suas alegações de recurso, devendo, como tal, a apelação ser julgada procedente, revogando-se a sentença.
Considerando que o Tribunal a quo quanto aos danos sofridos pelo autor, deu como provado que (i) «N) O veículo propriedade do A. teve de ser sujeito a reparação» e que ,
(ii) O) O A. não pode utilizar o veículo durante cerca de dois meses» mas não deu como provado o montante dos respetivos danos, relega-se o apuramento do montante daqueles danos, sofridos pela autora, para incidente de liquidação de sentença, nos termos do art.º 358.º, n.º2 do CPC.
Em face do exposto, impõe-se conceder provimento ao presente recurso.
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IV-DECISÃO
Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo do Norte, acordam em conceder provimento á presente apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida e, em sua substituição, julgar a ação procedente, condenado a Ré a pagar à autora os danos sofridos em montante cujo apuramento se relega para incidente de liquidação de sentença.
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Custas pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 18 de setembro de 2020.

Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro