Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 00609/24.7BEVIS |
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Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
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Data do Acordão: | 03/07/2025 |
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Tribunal: | TAF de Viseu |
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Relator: | RICARDO DE OLIVEIRA E SOUSA |
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Descritores: | OMISSÃO DE PRONÚNCIA; OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO INVALIDADE CONSEQUENCIAL; |
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Sumário: | I- Apresentando-se distintivo que o Tribunal recorrido emanou juízo decisório no sentido da irrelevância das causas de invalidade assacadas ao ato impugnado, tendo concluído pela sua irrelevância ante a pretensão material da Autora, deve entender-se que o Tribunal não omitiu o conhecimento de questão que devesse conhecer. II - Não legitimando a decisão judicial recorrida a aquisição da evidência de que os fundamentos invocados na própria decisão deveriam conduzir, num processo lógico, à solução oposta da que foi adotada naquela, inexiste qualquer nulidade de sentença, por oposição entre os fundamentos e a decisão. III – Não subsistindo dúvidas quanto à ilegalidade do critério de adjudicação eleito no procedimento concursal visado nos autos, impõe-se concluir que a decisão adjudicatória padece de invalidade consequencial, determinante da sua anulabilidade, efeitos repercutíveis no regime da invalidação derivada automática do contrato, entretanto celebrado, determinativa, também, da sua anulação. IV- A anulação do ato de adjudicação impõe à Administração o dever de reconstituição da situação atual hipotética, nos termos do disposto no artigo 173.º do CPTA, praticando novo ato que não reincida na ilegalidade cometida, nem que para isso seja necessário refazer o procedimento concursal ab initio, mormente, quanto ao critério de adjudicação eleito pela Administração, situação que inviabiliza o recurso à eventual aplicação do mecanismo preconizado nos artigos 45.º e 45.º-A do CPTA, por falta de bem fundado da pretensão material da Autora.* * Sumário elaborado pelo relator (art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil) |
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Votação: | Unanimidade |
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Meio Processual: | Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional |
Decisão: | Conceder parcial provimento ao recurso. |
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Aditamento: | ![]() |
Parecer Ministério Publico: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos: * * I – RELATÓRIO 1. A sociedade comercial [SCom01...], S.A., Autora nos presentes autos à margem referenciados de AÇÃO DE CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL em que é Entidade Demandada o MUNICÍPIO ..., vem interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho saneador-sentença promanado nos autos, que absolveu a Entidade Demandada da instância no tocante ao pedido formulado na alínea a) do petitório e, no mais, julgou improcedente a presente ação, absolvendo aquela do pedido. 2. Nas suas alegações recursivas, a Recorrente formulou, a final, as seguintes conclusões: “(…) I. A douta Sentença recorrida, salvo o devido respeito, que é muito, não pode manter-se na Ordem Jurídica, devendo ser revogada; II. Antes de mais, a douta Sentença recorrida padece de vícios que determinam a sua nulidade. III. Vício de contradição racional e lógico-jurídica entre os fundamentos que erguem bem alto as razões da invalidade do ATO ADJUDICATÓRIO Impugnando porque o critério de adjudicação viola efetivamente a Lei n.º 34/2019, de 22 de maio (dando assim razão à Autora [SCom01...]); mas, contraditoriamente julga a Ação Impugnatória improcedente (alínea c), nº 1 do art.º. 615.º do CPC); IV. O Programa do procedimento continha uma Cláusula (a Cláusula 17ª) que estabelecia um critério de adjudicação ilegal – reconhecido como ilegal pela Mma. Juiz “a quo” -, que viciou irremediavelmente o ATO ADJUDICATÓRIO Impugnando, ao que haveria de seguir-se, como consequência lógico-jurídica, uma Sentença julgando a Ação procedente e anulando o Ato Impugnado e o Contrato subsequente – contraditoriamente tal não sucedeu. V. A douta Sentença recorrida é nula face ao disposto no art.º. 615º do CPC aplicável ex vi do artº. 1.º do CPTA e assim devendo ser declarada por este Venerando Tribunal Central Administrativo Norte. Acresce que, VI. A Sentença, conforme é consabido, deve identificar o objeto do litígio, enunciando as questões de mérito que ao Tribunal cumpra solucionar (nº 2 do artº. 94º do CPTA), tendo a Mma. Juiz “a quo” logo na dealbar do “Capítulo I da Sentença – Identificação das Partes e do Objeto do Litígio” – identificado, e bem, o objeto do litígio, como sendo a impugnação do ato de adjudicação de 26 de setembro de 2024. VII. Em conformidade, no “Capítulo V – Fundamentação de Direito” da douta Sentença recorrida, a Mma. Juiz “a quo” convocou e apreciou a causa de pedir invocada pela Autora [SCom01...] para fundamentar a invalidade do ato de adjudicação – reconhecendo-a. VIII. No entanto, operando uma rutura epistemológica no seu discurso fundamentador, saltou e abandonou a “questão central a decidir”, que era precisamente conhecer e decidir dos fundamentos de facto e de direito que poderiam conduzir à anulação (à declaração de ilegalidade) do ato de adjudicação impugnado, focando-se, ao invés, numa das possíveis consequências da anulação do ato de adjudicação, apreciando se a Autora [SCom01...] teria direito a que lhe fosse adjudicado o fornecimento dos ultracongelados, em consequência da invalidade do critério de adjudicação (cfr. primeiro parágrafo do Capítulo II – Questões a Decidir, da douta Sentença recorrida). IX. Com isto, a Mma. Juiz “a quo” não só assumiu erradamente como única questão a decidir a pretensão/proposta da Autora [SCom01...] de lhe serem adjudicados os fornecimentos a concurso, como forma de reposição da legalidade, daqui resultando uma inversão da ordem do conhecimento dos 25 pedidos, como, em violação do artº. 95.º do CPTA, não se pronunciou e, como tal, não decidiu efetivamente a questão que lhe foi colocada: o pedido que lhe foi dirigido de anular o ato de adjudicação de 26 de setembro de 2024 e os Contratos subsequentes. X. Com o que, a douta Sentença recorrida não conheceu, nem decidiu sobre a questão e sobre os pedidos formulados pela Autora [SCom01...] de anulação do ATO ADJUDICATÓRIO IMPUGNADO e dos Contratos que dela advieram, com o que deixou de se pronunciar sobre questões que devia conhecer e decidir, permitindo, desse modo, a manutenção na Ordem Jurídica de uma decisão administrativa absolutamente inválida, com consequências nefastas designada mas não exclusivamente para o erário público e para os munícipes da ..., inquinando, assim, a Sentença com o vício de falta de pronúncia prevista na alínea d) do nº 1 do artº. 615º do CPC, aqui aplicável. Para além disso e concomitantemente: XI. A douta Sentença recorrida interpretou mal a estrutura da presente Ação e os pedidos nela formulados. XII. A presente ação configura uma cumulação de pedidos, permitida pelo artº. 4.º do CPTA. XIII. O primeiro pedido (declarar-se ilegal a fundamentação contida no Relatório Final do Júri) não constitui propriamente um pedido, não se traduzindo num pedido autónomo, mas um mero pressuposto lógico-jurídico dos pedidos 26 principais subjacentes. XIV. O segundo pedido constitui o Pedido Principal da Ação e visa a impugnação do ato adjudicatório, declarando-o ilegal, por virtude de violação da Lei e, assim, invalidando-o. XV. Sendo um pedido que qualifica a presente Ação como um Processo Impugnatório, impondo a Lei (nº 2 do artº. 95º do CPTA) que o Tribunal se pronuncie sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado. XVI. Apesar de a Autora [SCom01...] ter fundamentado a impugnação do ato adjudicatório na ilegalidade de uma peça do procedimento, na verdade não intentou a presente Ação como uma “Impugnação dos documentos conformadores do procedimento”, prevista no artº. 103º do CPTA. XVII. Mas a douta Sentença recorrida, de repente, abandonou o objeto da Ação que ela própria tinha definido e passou a configurar a Ação como se tratasse de ação de “Impugnação de documentos conformadores do procedimento”. XVIII. Isto seria assim se o objeto da Ação fosse a impugnação do documento conformador do procedimento – v.g. o Programa do Procedimento - mas não é; o objeto da Ação é a impugnação e anulação do ato adjudicatório e dos contratos subsequentes que dele advieram. XIX. Pelo que, naturalmente, a douta Sentença recorrida deparou-se – como é natural – com a circunstância de a Autora [SCom01...] não ter formulado o correspondente pedido. XX. O que não fez, nem tinha de ter feito, porquanto a impugnação direta e autónoma do Programa do Procedimento ou do Caderno de Encargos não tem carácter obrigatório para quem deduza pedido de impugnação do ato administrativo de aplicação das determinações (ilegais) contidas naqueles documentos conformadores, sendo uma mera faculdade. XXI. Ao contrário do que parece entender (erradamente) a douta Sentença recorrida, o facto de a Autora [SCom01...] não ter formulado o pedido autónomo de Impugnação do Programa do Procedimento (v.g. da sua Cláusula 17ª) – e não era obrigada a fazê-lo – não permite à Mma. Juiz “a quo” omitir a sua obrigação de conhecer o pedido de declaração de invalidade e anulação do Ato Adjudicatório do Município ... de 26 de setembro de 2024, com base, designadamente, na invalidade da Cláusula do Programa do Procedimento em que se fundamenta a decisão de adjudicar. XXII. Esta omissão de pronúncia sobre os pedidos formulados nas alíneas b) e c) do petitório da Ação, viciam de nulidade, como vimos, a douta Sentença recorrida. XXIII. Finalmente, e em relação ao Quarto Pedido (“condenar-se a Entidade Adjudicante Município ... a praticar o ato devido de reposição da legalidade, adjudicando à ora Autora [SCom01...] os fornecimentos a concurso”), trata-se de um pedido naturalmente decorrente da declaração de invalidade do ato adjudicatório e da anulação dos contratos cuja validade decorria desse ato ilegal. XXIV. Sucede, porém, que o Ato Adjudicatário Impugnado foi proferido em 26 de setembro de 2024 e os Contratos foram outorgados em 30 de setembro de 2024 (sem qualquer período de standstill), com entradas imediatas em vigor e execução, tendo decorrido já mais de 3 (três) meses da execução, com efeitos irreversíveis, a que acrescerá o tempo próprio da resposta jurisdicional. XXV. Não vislumbra a Autora [SCom01...] possibilidade já de ver satisfeito o seu interesse primário de lhe serem adjudicados estes Contratos, como forma de reposição da legalidade. XXVI. Não sendo possível a reconstituição da situação de modo a satisfazer o interesse primário da Autora [SCom01...], o Tribunal “a quo” deve reconhecer o direito de a Autora [SCom01...] ser indemnizada, seguindo-se os demais trâmites do artº. 45º do CPTA. XXVII. Opta e pretende lhe seja reconhecida a possibilidade da modificação do objeto do último dos seus pedidos, ao abrigo das disposições conjugadas dos artºs 45º e 45º-A do CPTA. (…)”. * 3. Notificados que foram para o efeito, os Recorridos Município ... e [SCom02...], Lda., produziram contra-alegações, ambos defendendo a improcedência da alegação. * 4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida, tendo ainda sustentado a inexistência de qualquer nulidade de sentença. * 5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito vertido no n.º 1 do artigo 146.º do C.P.T.A. * 6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta. * * II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR 7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, conforme o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA. 8. Neste enquadramento, o cerne da questão sub judice prende-se com a análise da eventual (i) nulidade do despacho saneador-sentença recorrido, por (i.1) contradição entre os fundamentos e a decisão e por (i.2) omissão de pronúncia, bem como de (ii) eventual erro de direito na decisão judicial recorrida. 9. É na resolução de tais questões que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar. * * III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 10. O quadro fáctico apurado na decisão judicial recorrida foi o seguinte: “(…) 1. Em 25 de julho de 2024, foi publicado na II Série do Diário da República, o Anúncio de procedimento n.º ...24, relativo ao “Fornecimento de Ultracongelados Pescado e Hortícolas para as Unidades de Alimentação Coletiva do Município (UAC)”, do qual constava, o seguinte: “(…) 1 - IDENTIFICAÇÃO E CONTACTOS DA ENTIDADE ADJUDICANTE Designação da entidade adjudicante: Município ... NIPC: ...40 (…) 2 - JORNAL OFICIAL DA UNIÃO EUROPEIA O procedimento a que este anúncio diz respeito também é publicitado no Jornal Oficial da União Europeia? Sim (…) 5 - PROCESSO Tipo de Procedimento: Concurso público Preço base do procedimento: Sim Valor do preço base do procedimento: 318.000,00 EUR Procedimento com lotes? Sim Nº Máx. de Lotes Autorizado: 3 Número máximo de lotes que podem ser adjudicados a um concorrente: 3 6 - OBJETO DO CONTRATO Número de referência interna: 162/2024 Descrição: Fornecimento de Ultracongelados Pescado e Hortícolas para as Unidades de Alimentação Coletiva do Município (UAC) Opções: Não Tipo de Contrato Principal: Aquisição de Bens Móveis Classificação CPV (Vocabulário Comum para os Contratos Públicos) Objeto principal Vocabulário Principal: 15896000 Preço base s/IVA: 318.000,00 EUR Lotes: Nº: LOT-0001 Descrição do Lote: L1 Fornecimento de Ultracongelados Pescado e Hortícolas para a UAC (Edifício ... e Centro Escolar ...) do Município Preço base s/IVA: 102.000,00 EUR Classificação CPV (Vocabulário Comum para os Contratos Públicos) Objeto principal Vocabulário Principal: 15896000 Nº: LOT-0002 Descrição do Lote: L2 Fornecimento de Ultracongelados Pescado e Hortícolas para as UAC do Município (Agrupamento Escola ...) Preço base s/IVA: 112.000,00 EUR Classificação CPV (Vocabulário Comum para os Contratos Públicos) Objeto principal Vocabulário Principal: 15896000 Nº: LOT-0003 Descrição do Lote: L3 Fornecimento de Ultracongelados Pescado e Hortícolas para as UAC do Município (Agrupamento Escola ...) Preço base s/IVA: 104.000,00 EUR Classificação CPV (Vocabulário Comum para os Contratos Públicos) Objeto principal Vocabulário Principal: 15896000 (…) 9 - LOCAL DA EXECUÇÃO DO CONTRATO LOCAL DA EXECUÇÃO DO CONTRATO (PROCEDIMENTO) País: Portugal NUT III: PT16J Localidade: ... Distrito: ... Concelho: ... Freguesia: Freguesia ... LOCAL DA EXECUÇÃO DO CONTRATO (LOTE) Identificador do Lote: LOT-0001; LOT-0002; LOT-0003 País: Portugal NUT III: PT16J Localidade: ... Distrito: ... Concelho: ... Freguesia: Freguesia ... (…) 21 - CRITÉRIO DE ADJUDICAÇÃO O Critério de adjudicação é diferenciado por lote? Não Multifator: Sim Fator: Nome: Preço Ponderação: 40% Subfatores: Não Fator: Nome: Qualidade Ponderação: 60% Subfatores: Não (…) 27 - IDENTIFICAÇÃO E CONTACTOS DO ÓRGÃO DE RECURSOS ADMINISTRATIVOS Designação: Presidente da Câmara da ... (…)” – cfr. Processo Administrativo (PA), a fls. 447; 2. Do caderno de encargos, do concurso público, com o número de processo 162/2024, constava, designadamente, o seguinte: “(…) [imagem que aqui se dá por reproduzida] (…) (…)” – cfr. PA, a fls. 447; 3. Do programa do procedimento, do concurso público, com o número de processo 162/2024, extrata-se, o seguinte: “(…) [imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)” – cfr. PA, a fls. 447; 4. Em 30 de agosto de 2024, o júri do concurso público, com o número de processo 162/2024, elaborou documento intitulado de “Relatório Preliminar”, do qual se retira, o seguinte: “(…) [imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)” – cfr. PA, a fls. 140; 5. Em 09 de setembro de 2024, a Autora exerceu o seu direito de audiência prévia, no âmbito do concurso público, com o número de processo 162/2024 – cfr. PA, a fls. 140; 6. Em 18 de setembro de 2024, o júri do concurso público, com o número de processo 162/2024, elaborou documento intitulado “Relatório Final”, do qual se retira, o seguinte: “(…) [imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…) (…)” – cfr. PA, a fls. 140; 7. Em 30 de setembro de 2024, o Réu celebrou com a Contrainteressada os contratos de fornecimento, relativos ao processo com o n.º 162/2024 – cfr. PA, a fls. 140; 8. Em 16 de outubro de 2024, a Autora apresentou a petição inicial que instrui os presentes autos – cfr. fls. 1. * IV - DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DO RECURSO 11. Face à materialidade fáctica cristalizada nos autos pelo Tribunal Recorrido, impõe-se principiar a análise jurídico-substantiva dos fundamentos invocados no presente recurso jurisdicional, em estrita observância dos termos vertidos pela Recorrente, maxime no que respeita às conclusões explanadas no articulado recursório, as quais delimitam o thema decidendum da presente lide. 12. A decisão apelada, como sabemos, absolveu a Entidade Demandada da instância no tocante ao pedido formulado na alínea a) do petitório e, no mais, julgou improcedente a presente ação, absolvendo aquela do pedido. 13. Em sede de recurso, a Recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão judicial impugnada, interpondo o presente recurso jurisdicional com fundamento na nulidade da sentença recorrida, por alegada violação do disposto nas alíneas c) e d) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA]. 14. Realmente, a Recorrente aduz que a decisão ora impugnada padece de contradição intrínseca entre a fundamentação e a parte dispositiva, porquanto, não obstante reconhecer a ilegalidade do critério de adjudicação estabelecido no procedimento concursal em apreço, culmina por julgar improcedente a ação intentada. 15. Sustenta, outrossim, que o Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia relativamente ao pedido de anulação do ato adjudicatório e do subsequente contrato administrativo, configurando vício de nulidade nos termos da legislação processual civil aplicável. 16. Argui, ademais, que a sentença recorrida procedeu a uma errónea qualificação jurídica da ação sub judice, tratando-a como impugnação dos documentos conformadores do procedimento concursal, quando, in casu, se configurava uma impugnação do próprio ato de adjudicação e do contrato dele decorrente. 17. Apregoa, por fim, que, perante a impossibilidade de reposição da legalidade mediante a adjudicação do fornecimento à ora Recorrente, impunha-se ao Tribunal a quo o reconhecimento do seu direito indemnizatório, em conformidade com o preceituado nos artigos 45.º e 45.º-A do CPTA. 18. Analisemos, ressaltando, ab initio, que, por razões de metodologia, conhecer-se-á das invocadas nulidades de sentença por ordem diferenciada da alegada pela Recorrente. 19. Assim, e quanto a estas, refira-se que a nulidade de sentença, por omissão de pronúncia [art. 615º nº 1 d) do CPC], é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito, e não todos e cada um dos argumentos/fundamentos apresentados pelas partes, e excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. 20. Do conspecto da petição inicial, extrai-se que a Autora, aqui Recorrente, por intermédio da presente ação, visa, em substância, a anulação “(…) da decisão de adjudicação proferida pelo Presidente da Câmara Municipal ..., de 26 de setembro de 2024, no âmbito do procedimento concursal nº 162/2024, tendente à Aquisição/Fornecimento de Ultracongelados Pescado e Hortícolas para todas as Unidades de Alimentação Coletiva do Município [da ...] (…)” e do “(…) Contrato que porventura já tenha sido outorgado com base e na sequência da Decisão de Adjudicação Ilegal (…)”. 21. A par desta pretensão impugnatória, a Autora, aqui Recorrente, peticionou também a condenação da Entidade Demandada a “(…) praticar o ato devido de reposição da legalidade, adjudicando à ora Autora [SCom01...] o fornecimento dos produtos referentes aos TRÊS LOTES a concurso (…)”. 22. Substanciou tais pretensões no entendimento de que o Município ..., ao definir os critérios de adjudicação do fornecimento de ultracongelados [pescado e hortícolas] para as cantinas e refeitórios públicos, violou frontalmente a Lei n.º 34/2019 e os princípios fundamentais do Código dos Contratos Públicos. 23. Para tanto, sustentou que, em vez de assegurar que a seleção fosse pautada pela ponderação obrigatória de qualidade, origem e impacto ambiental dos produtos, a Entidade Adjudicante resumiu o fator “valia técnica” à distância entre a sede dos concorrentes e a cidade ..., atribuindo a esse único aspeto um peso de 60%, contra 40% do fator preço, o que distorceu o resultado final e, no seu entender, visou favorecer a concorrente [SCom02...], com sede próxima da ..., acarretando ainda um aumento de custos injustificado para o erário público. 24. Além disso, invocou que o critério de “origem e impacto ambiental” não foi concretamente aplicado, pois o júri não exigiu nem avaliou informações sobre rotas logísticas, embalagens, sazonalidade ou local de produção dos bens. O facto de a Lei n.º 34/2019 exigir a consideração de subfatores [como menores custos logísticos, menores distâncias de transporte e sazonalidade] não foi cumprido, sendo substituído por mera comparação de endereços. Assim, o procedimento resultou viciado, por se afastar dos princípios da igualdade, imparcialidade, concorrência e proporcionalidade. 25. Em tais termos, a Autora defende que o relatório final do júri e a decisão de adjudicação são nulos, bem como o contrato que deles resulte, caso já tenha sido outorgado, devendo, por isso, ser anulado todo o ato adjudicatário, repondo-se a legalidade com a devida ponderação dos fatores e a consequente adjudicação do procedimento concursal à [SCom01...]. 26. Atendendo ao objeto da lide, definido pela causa de pedir e pelos pedidos formulados, estamos em presença de uma ação administrativa especial de condenação à prática de ato devido no âmbito da qual a Autora cumulou um pedido de declaração de ilegalidade de ato administrativo e do contrato que, porventura, tenha sido celebrado. 27. Neste tipo de ações, o objeto do processo não é o ato de indeferimento, mas a pretensão material que a Autora pretende fazer valer na ação, sendo, por isso, irrelevantes os vícios imputados ao ato de indeferimento, pelo que ao Tribunal não compete apreciá-los com vista a eventual anulação ou declaração de nulidade do ato, sendo que a eliminação desses atos da ordem jurídica decorre da pronúncia condenatória de prática do acto devido. 28. Assim, na ação administrativa especial de condenação à prática de ato devido, o Tribunal deve pronunciar-se sobre a pretensão material formulada pela Autora, rejeitando-se, neste tipo de ações, a prolação de sentenças unicamente direcionadas para a anulação ou declaração de nulidade de atos administrativos. 29. No contexto assinalado, afigura-se inequívoco que, in casu, o ato adjudicatório não é o móbil dos presentes autos, mas antes a pretensão material da Autora traduzida na condenação da Entidade Demandada “(…) na prática do ato devido de reposição da legalidade, adjudicando à ora Autora [SCom01...] o fornecimento dos produtos referentes aos TRÊS LOTES a concurso (…)”. 30. Este também foi o entendimento do Tribunal a quo, pois que, a propósito da caracterização do objeto do litígio, decidiu que “(…) Atendendo aos pedidos formulados pela Autora, e em conformidade com o disposto no artigo 66.º, n.º 2, do CPTA, cumpre a este Tribunal conhecer e decidir do direito da Autora a obter a condenação do Réu na adjudicação do Concurso Público “Fornecimento de Ultracongelados Pescado e Hortícolas para todas as Unidades de Alimentação Coletiva do Município” (Processo n.º 162/2024), nomeadamente por, em virtude da alegada invalidade do critério de adjudicação, ser apenas de considerar o fator preço, fator este que permite a classificação da Autora em primeiro lugar (…)”. 31. Esta tomada de posição permite concluir que o Tribunal a quo emanou juízo decisório no sentido da irrelevância das causas de invalidade assacadas ao ato impugnado, tendo concluído pela sua irrelevância ante a pretensão material da Autora. 32. Ora, a pronúncia em questão, nos termos em que se mostra supra expressada nos parágrafos antecedentes, revela-nos que o Tribunal a quo, efetivamente, tomou posição sobre a questão visada, tendo emitido um juízo de irrelevância das pretensões impugnatórias formuladas pela Autora. 33. Assim, na exata medida em que o Tribunal se debruçou e decidiu sobre as questões que se mostram suscitadas pela Recorrente no presente recurso, imediatamente se conclui que Tribunal não omitiu o conhecimento de questão que deva conhecer. 34. Por conseguinte, a sentença recorrida não padece da assacada nulidade por omissão de pronúncia, a qual improcede. 35. Idêntica asserção é atingível no tocante à invocada oposição entre fundamentos e decisão. 36. De facto, esta nulidade de sentença só poderá ser atendida “(…) quando há um vício real na lógico-jurídica que presidiu à sua construção, de tal modo que os fundamentos invocados apontam logicamente num determinado sentido, e a decisão tomada vai noutro sentido, oposto, ou pelo menos diverso (…)” [vide o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30.10.2014, proferido no processo n.º 01608/13]. 37. Pois bem, analisada a estrutura global da decisão judicial censurada, facilmente se apreende que a respetiva conclusão decisória está logicamente encadeada com a respetiva motivação fáctica. 38. De facto, o Tribunal a quo considerou que a invalidade do critério de adjudicação, embora confirmada, não autorizava a mera exclusão do fator "valia técnica do projeto" para prosseguimento do procedimento concursal conforme pretendido pela Autora, mas conduziria necessariamente à anulação integral do procedimento concursal, pedido este não contemplada no petitório inicial, razão pela qual a pretensão condenatória formulada pela Autora não podia proceder. 39. E a decisão seguiu esse mesmo sentido. 40. Nesta esteira, é de manifesta evidência que não pode apontar-se à decisão judicial recorrida qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão determinante da nulidade da sentença recorrida, que assim improcede. 41. Questão diversa é de saber se a ilação extraída pelo Tribunal Recorrido no sentido de que “(…) Concluindo-se pela invalidade de disposição contida em peça procedimental, concretamente, pela invalidade do critério de adjudicação, seria de se determinar a invalidade de tal peça, e, em consequência, a anulação do procedimento concursal. Todavia, não é esse o pedido que a Autora formula. A Autora pretende que seja dado seguimento ao procedimento concursal, expurgando-o do fator valia técnica do projeto. (…) Pelo que, o pedido da Autora, como bem o referiu o Réu, é improcedente, pois que a causa de pedir que este formula – que se prende com a invalidade do critério de adjudicação, e que concluímos que se verifica – , não permite adjudicar-lhe o contrato. Quando muito, conduziria à invalidade da peça de procedimento e à anulação do concurso, não tendo a Autora formulado qualquer pedido quanto àquela peça, ou equacionado a possibilidade de anulação do procedimento concursal (…)” foi bem ou mal operada, que, no fundo, constitui o ponto nuclear da alegação recursiva do Recorrente. 42. A resposta é manifestamente favorável às pretensões da Recorrente, embora não com a projeção pretendida. 43. Na verdade, mostrando-se perfeitamente cristalizado o juízo decisório em torno da invalidade do critério de adjudicação [os Recorridos não ampliaram o objeto do recurso a este juízo decisório, não bastando a mera discordância expressa nas contra-alegações], impor-se-ia, naturalmente, concluir que a decisão adjudicatória padece de invalidade consequencial, determinante da sua anulabilidade, posto que inexiste cominação expressa de nulidade para a inobservância do bloco legal aplicável [violação da normação contida no artigo 34.º da Lei n.º 34/2019, de 22 de maio], e a invalidade em causa não se enquadra nos casos previsto no artigo 161.º, n.º 2 do C.P.A. 44. Por sua vez, cabe atender aos efeitos de comunicação automática da invalidade do ato pré-contratual de adjudicação de 26 de setembro de 2024, efeitos repercutíveis no regime da invalidação derivada automática dos contratos, entretanto celebrados com a [SCom02...], Lda., determinativa, também, da sua anulação. 45. A anulação do ato de adjudicação impõe à Administração o dever de reconstituição da situação atual hipotética, nos termos do disposto no artigo 173.º do CPTA, praticando novo ato que não reincida na ilegalidade cometida, nem que para isso seja necessário refazer o procedimento concursal ab initio, mormente, quanto ao critério de adjudicação eleito pela Administração. 46. Como a prática do novo ato expurgado da ilegalidade cometida envolve a formulação de valorações próprias da Administração, não se pode configurar uma situação em que se perspetive como unicamente possível a prática de um determinado ato com conteúdo perfeitamente vinculável e identificável, como a pretendida adjudicação do procedimento concursal à [SCom01...]. 47. Daí que nada mais possa ser determinado que não a anulação do ato adjudicatório e do contrato celebrado e a condenação da Administração na prática de um ato que não reincida na ilegalidade cometida, nem que para isso seja necessário refazer o procedimento concursal ab initio, mormente, quanto ao critério de adjudicação eleito pela Administração. 48. Situação que tem um verdadeiro efeito de implosão relativamente à tese veiculada nos pontos XXXIV) a XXXVII) das conclusões alegatórias. 49. Realmente, a falta de determinabilidade da pretendida adjudicação do procedimento concursal à [SCom01...] inviabiliza o recurso à eventual aplicação do mecanismo preconizado nos artigos 45.º e 45.º-A do CPTA, por falta de bem fundado da pretensão material da Autora. 50. Por conseguinte, em consonância com a lógica que se vem supra de expor, impõe-se conceder parcial provimento ao presente recurso, devendo ser revogada a sentença recorrida, e julgada parcialmente procedente a presente ação administrativa, consequentemente, (i) anulando-se o ato administrativo de adjudicação praticado em 26.09.2024 e o contrato celebrado nos autos e (ii) condenando-se a Entidade Demandada à prática de um ato que não reincida na ilegalidade cometida, nem que para isso seja necessário refazer o procedimento concursal ab initio, mormente, quanto ao critério de adjudicação eleito pela Administração. 51. Ao que se proverá no dispositivo. * * * * V – DISPOSITIVO Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da CRP, em CONCEDER PARCIAL PROVIMENTO ao recurso jurisdicional sub judice, revogar a sentença recorrida, julgar parcialmente procedente a presente ação administrativa, e, em, consequência, (i) anular o ato de adjudicação praticado em 26.09.2024, e o contrato celebrado nos autos e (ii) condenar a Entidade Demandada à prática de um ato que não reincida na ilegalidade cometida, nem que para isso seja necessário refazer o procedimento concursal ab initio, mormente, quanto ao critério de adjudicação eleito pela Administração. Custas da Ação e do Recurso pela Autora e Recorrente e pela Entidade Demandada e Contrainteressada, e Recorridas, respetivamente, na proporção de 50% para cada uma das partes. Registe e Notifique-se. * * Ricardo de Oliveira e Sousa Tiago Afonso Lopes de Miranda Clara Ambrósio |