Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01190/19.4BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/19/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores:ARGUIÇÃO DE NULIDADE NO ÂMBITO DE PROCESSO DISCIPLINAR;
INSTRUTOR NOMEADO NÃO TITULAR DE UMA RELAÇÃO JURÍDICA DE EMPREGO PÚBLICO;
PROCEDÊNCIA DA ACÇÃO;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA» propôs acção administrativa contra a Área Metropolitana do Porto e o Contrainteressado INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamente e Produtos de Saúde, I.P., todos melhor identificados nos autos, tendo em vista a impugnação do acto administrativo que indeferiu a arguição de nulidade no âmbito de processo disciplinar da autoria do respectivo Instrutor, datado de 11.02.2019, e da deliberação da Comissão Executiva Metropolitana, datada de 14.02.2019, que decidiu não conhecer dessa matéria.
Por decisão proferida pelo TAF do Porto foi julgada a acção procedente e, em consequência, anulado o despacho do Instrutor do processo disciplinar, de 11.02.2019, que indeferiu a nulidade arguida pela Autora decorrente do facto de o instrutor nomeado não ser titular de uma relação jurídica de emprego público.
Desta vem interposto recurso pela Entidade Demandada.
Alegando, formulou as seguintes conclusões:
O facto de a LGTFP permitir a reclamação das nulidades (supríveis) até à decisão final (art.º 203º, n.º 2) não significa que o arguido as possa invocar irrestritamente – fora do prazo assinalado no art.º 120º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, supletivamente aplicável –, e sem a observância dos limites da boa-fé, designadamente, nos casos de aceitação do acto.
A nulidade invocada – respeitante à nulidade da nomeação de instrutor – foi suscitada fora do prazo previsto no supramencionado art.º 120º, n.º 3, do CPP, atentos os vários momentos em que a arguida e o seu Il. Mandatário tiveram conhecimento da identidade e profissão do instrutor, espelhados no corpo da alegação,
E, bem assim, tal arguição extemporânea viola os limites impostos pela boa-fé e lisura processual, visto que a arguida, ora Recorrida, aceitou os efeitos do acto e a intervenção do instrutor depois de saber que o mesmo era advogado contratado para o efeito, o que se deduz dos vários requerimentos que lhe dirigiu e de contactos presenciais solicitados.
A questão da nulidade só foi levantada pela Recorrida depois de conhecida, aceite e estabilizada a intervenção do instrutor nos autos, e depois de subscritos e notificados actos processuais de suma importância, como a acusação e a defesa; tendo aceitado os efeitos da nulidade, a Recorrida perdeu o direito de a arguir – conforme ressuma do disposto no art.º 121º, n.º 1, alínea b), CPP. E, também, da regra geral imposta pelo art.º 186º, n.º 2, do CPA, código que a douta sentença aplica directamente ao âmbito disciplinar – cfr. p. 15, Par. 3º.
Alteração da matéria de facto. Impõe o probatório que seja aditada a seguinte matéria aos Factos Provados:
A) O Il. Mandatário da arguida esteve presente em inquirições no escritório do Exmo. Instrutor, o que sucedeu em 6.10.2018, 14.11.2018, 19.11.2018, 3.12.2018, 20.12.2018, 4.01.2019, 10.01.2019 e 1.02.2019 – conforme flui de fls. 879, 971, 987, 1055, 1241, 1279, 1289 e 1309 do PD.
b) O Il. Mandatário da Autora e o Il. Advogado Instrutor estabeleceram contactos entre si, invocando a sua qualidade de profissionais do foro, como se documenta a fls. 381, 447 e 955 do PD.
c) Antes destas datas, a menção à identidade completa do Instrutor e ao seu domicílio profissional constava da informação n.º ...04, de 13.12.2017 (fls. 1 do PD), de que a arguida teve conhecimento pelo menos em 10.10.2018, quando a mesma lhe foi entregue, conforme se documenta nos autos de PD a fls. 757.
Trata-se de matéria que resulta da prova documental mobilizada, identificada supra, a impor, s.m.o., a sua inclusão na matéria de facto provada, por se afigurar relevante em função da solução jurídica aqui defendida, mormente, a que resulta da inobservância do disposto nos artigos 120º, n.º 3, 121º, n.º 1, alínea b), ambos do CPP e art.º 186º, n.º 2, do CPA.
Inobservados aqueles dispositivos legais, implode necessariamente o fundamento da própria anulação contenciosa, que é o cometimento da nulidade e a sua não reparação em função de uma reclamação feita dentro da oportunidade processual e fundamento material.
A nomeação de advogado, sem vínculo funcional ao serviço, para se desempenhar das tarefas de instrução de um processo disciplinar, é um acto válido.
A preferência legal prevista no art.º 208º, n.º 1, LGTFP, não tem na sua base as garantias de defesa do arguido, mas outras, que não contendem com a composição de direitos nem com a validade dos actos.
10ª
A douta sentença recorrida, salvo o devido respeito, que é muito, interpreta mal a lei, nomeadamente o sentido imediato e directo do art.º 208º, n.º 1, e também o seu valor relativo face a outras normas do ordenamento jurídico, com as quais a interpretação da referida norma tem de se conformar.
11ª
Dentre estas últimas, avulta o Estatuto da Ordem dos Advogados, lei de valor reforçado, que estabelece algumas regras imperativas e de ordem pública; uma delas (art.º 66º, n.º 3, do EOA) postula como princípio geral que a intervenção de advogado para a defesa de direitos, patrocínio de relações controvertidas e composição de interesses não pode ser em nenhum caso restringida, sob pena de violação de um preceito constitucional previsto no art.º 20º, n.º 2 – o direito fundamental de acesso ao direito e à justiça, e do próprio art.º 66º, n.º 3, enquanto norma inserta em lei de valor reforçado, com valor paramétrico para a interpretação da norma interpretanda – repare-se, desde logo, na inclusão da instrução de processos disciplinares no objecto típico do contrato forense.
12ª
A interpretação do art.º 208º, n.º 3, da LGTFP, segundo a qual não se admite a contratação de advogado para o desempenho da função de instrutor, e que, ergo, o serviço público está constrangido a socorrer-se em primeira mão dos funcionários do seu próprio mapa, caso os haja, é inconstitucional por violação do art.º 20º, n.º 2, da CRP, e também do art.º 18º, n.º 2, CRP.
13ª
O direito à assistência de advogado não é só das pessoas singulares ou das pessoas colectivas privadas, estende-se ao Estado e aos entes públicos menores.
14ª
Mais: a liberdade de contratação de advogado, para lá do direito constitucional de acesso ao direito e à justiça, é expressão de uma ampla capacidade de exercício de direitos das pessoas colectivas públicas directamente ligada à defesa do seu direito de personalidade, não restringido sequer pelo princípio da especialidade, como é próprio dos entes privados – cfr. artigos 1º, 26º, n.º 1, 266º e 267º da Constituição da República, art.º 70º do Código Civil, e a doutrina mobilizada, quanto a este aspecto, no corpo da alegação.
15ª
Ocorre também, na espécie, invasão da reserva de Administração, em violação do preceituado no art.º 111.º da Constituição da República e n.º 1 do artigo 3.º do CPTA,
16ª
E ainda, sem dúvida, o direito à igualdade de armas, ao due process. No processo disciplinar (especial), dada a sua natureza de processo sancionatório, as partes estão (têm de estar) em absoluto pé de igualdade. De nada vale à Administração a sua veste de autoridade pública, pois o processo tem regras especiais, imperativas, assemelha-se a um processo de partes, sem as notas da subordinação e da hierarquia. Ora se o arguido tem direito a advogado, pergunta-se por que razão a Administração não há-de ter direito idêntico?
17ª
A interpretação literal, gramatical, do art.º 208º, n.º 1, da LGTFP, é imprestável. Temos de nos focar no elemento interpretativo fundamental (o racional) e em elemento auxiliares como o teleológico, sistémico e histórico.
18ª
Em matéria de interpretação do preceito, caem todos os contributos e teses da Recorrida, que a douta sentença aparentemente julga procedentes, ou parece acolher, no seu (demasiado) sintético pronunciamento.
19ª
O primeiro é o de que só o detentor do vínculo de emprego público “detém aquele conhecimento aprofundado do serviço que lhe permite proceder às tarefas de instrução”. E de que só ele está vinculado, e citamos, ao “respeito dos princípios constitucionais e fornecerá as garantias de imparcialidade legalmente necessárias para poder analisar com isenção, transparência e exclusiva ponderação do interesse público a gravidade da infracção imputada ao arguido”.
20ª
A já falada “preferência” legal não assenta na maior capacidade de respeitar princípios constitucionais directamente aplicáveis a sujeitos públicos e privados, universais e absolutos, nem na aptidão (mágica?) de melhor ponderar o interesse públicos subjacente, mas sim na categoria e na qualificação pessoal do indivíduo designado.
21ª
Por isso mesmo manda a lei que a entidade que nomeia o instrutor escolha (podendo fazê-lo) os “possuidores de adequada formação jurídica” – cfr. art.º 208º, n.º 1. Logo aqui o legislador acentua a natureza de processo essencialmente jurídico do processo disciplinar. Ou seja, mais importante do que conhecer o mundo orgânico-funcional e técnico-burocrático da Administração em todas as suas dimensões é a posse de conhecimentos jurídicos.
22ª
O segundo argumento, o da diminuição das garantias de defesa do arguido, é totalmente destituído de fundamento, pois esse risco é bem maior quando o processo é conduzido por um ignorante do direito, hierarquicamente dependente e bem menos distanciado e isento (quando não tocado pela vontade de agradar ou de perseguir), do que por um advogado, que é profissional qualificado, que trabalha com autonomia profissional, segundo exigentes padrões ético-deontológicos.
23ª
Não há, por conseguinte, nenhuma diminuição das garantias de defesa do arguido.
24ª
Terceiro argumento: hierarquia. É por demais evidente que a lei não exige e nem sequer supõe uma relação hierárquica entre o detentor do poder disciplinar e o instrutor. O instrutor actua sempre com autonomia e independência e o superior hierárquico que adjudicou a tarefa não pode dirigir-lhe quaisquer ordens, instruções, directivas ou orientações.
25ª
Importa, isso sim, fixar o sentido com que a norma (art.º 208º, n.º 1, LGTFP) deve ser interpretada, dando desse modo cumprimento ao ónus do art.º 639º, n.º 2, alínea b), CPC, aplicável ex vi art.º 1º CPTA.
26ª
A norma do art.º 208º, n.º 1, LGTFP, ao contrário do doutamente decidido, é claramente uma norma ordenadora que tem subjacente uma racionalidade gestionária e financeira, meramente interna, direccionada aos serviços públicos e não à composição dos interesses legítimos dos sujeitos processuais.
27ª
Ao prever que a nomeação de instrutor deve recair, em princípio, sobre trabalhador do órgão ou serviço, não tem em vista reforçar as garantias de defesa do arguido ou conferir-lhe qualquer vantagem adicional, mas apenas razões de economia, celeridade e eficiência, inerentes ao serviço. São razões de gestão interna dos serviços públicos, sem incidência na validade e regularidade dos actos praticados no processo caso seja nomeada terceira pessoa sem vínculo de emprego público.
28ª
A nomeação de instrutor, sendo acto meramente preparatório, é de trâmite, não lesivo. Não é sequer, com esta natureza, susceptível de controlo jurisdicional (cfr. art.º 148º CPA e art.º 51º, n.º 1, CPTA). Poderia sê-lo se tivesse reflexo no estatuto do arguido, diminuísse os seus direitos de defesa, as suas garantias processuais, mas a norma relativa à nomeação de instrutor não visa, no seu círculo, proteger interesses individuais do funcionário arguido, mas interesses públicos objectivos de boa gestão e eficiência.
29ª
Assim, da eventual nomeação de instrutor externo ao serviço não é legítimo extrair consequências para o processo, nomeadamente em matéria de validade/nulidade dos actos praticados.
30ª
A interpretação sufragada na douta sentença viola, por conseguinte, o art.º 208º, n.º 1, LGTFP; correctamente interpretada a norma em apreço, a acção perdia o seu fundamento e fatalmente a decisão judicial concluiria pela respectiva improcedência. Daí a necessidade da sua revogação em sede recursiva.
31ª
Ao sobredito acresce que a invocada ilegitimidade genética (?) do instrutor é processualmente assimilável à da sua recusa. E de ser aplicável, portanto, o regime desta.
32ª
Conforme flui do n.º 5 do artigo 43.º do CPP, subsidiariamente aplicável, os actos processuais praticados pelo instrutor recusado até ao momento em que foi solicitada a recusa, só são anulados quando deles resulta prejuízo para a decisão do processo; os actos posteriores, por outro lado, também não são invalidados automaticamente, permanecendo válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se deles não resultar prejuízo para a justiça do processo.
33ª
Isto é, mesmo quanto aos actos posteriores à recusa, é necessário indagar da utilidade da sua repetição; ora, reportando-nos aos autos, não vemos qual seria – vale por dizer que não seria nenhuma.
34ª
Portanto, nem a alegada nulidade foi cometida nem haveria que inutilizar os actos praticados na sequência dela, caso tivesse ocorrido.

Termos em que deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido, com o que farão a habitual Justiça!
A Autora juntou contra-alegações, concluindo:

1. A AMP começa por tentar, debalde, que a questão de fundo não seja conhecida e decidida, continuando a sustentar uma suposta intempestividade da arguição da nulidade no âmbito do processo disciplinar, querendo para o efeito mobilizar, entre mais, uma norma do Código de Processo Penal, quando, na verdade, existe norma clara, expressa e específica na própria LGTFP.

2. Não assiste qualquer razão ao entendimento vertido no recurso, pois, desde logo, em nada releva o facto de, alegadamente, ser do conhecimento da trabalhadora a circunstância do instrutor nomeado ser advogado de profissão (o que não corresponde à realidade), porquanto, por exemplo e como todos sabemos, um jurista dos quadros da Administração Pública pode estar, simultaneamente, inscrito na Ordem dos Advogados, conquanto que tenha autorização da Administração Pública para o efeito – e nesse caso, não haveria ilegalidade, pois que se trataria de um trabalhador em funções públicas, que não é o que sucede nos autos.

3. A Recorrente sustenta, agora, que, aplicando o art.º 120º, n.º 3 do CPP, a arguição de nulidade por parte da trabalhadora seria extemporânea por ter sido apresentada “depois de notificados actos processuais de suma importância, como a acusação”, todavia, tal não é admissível dado que a norma vertida no artigo 203.º, n.º 2 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, é clara, expressa e, mais do que isso, especial em relação ao Código de Processo Penal, dispondo que “2 - As restantes nulidades consideram-se supridas quando não sejam objeto de reclamação pelo trabalhador até à decisão final.”

4. O acto anulado havia sustentado que a norma aqui aplicável (art. 203.º, n.º 2 da LGTFP) só estabelece até quando as nulidades podem ser objecto de reclamação, não definindo em que prazo pode ser arguida, que se deveria recolher junto do subsidiário CPP, no seu art. 120.º, n.º 3 – que a AMP volta agora a sustentar salvificamente no seu recurso, embora como uma distinta roupagem argumentativa, embora debalde.

5. Em primeiro lugar, e como todos sabemos, o regime de nulidades constante da LGTFP (aplicável aos trabalhadores, como é aqui o caso) é materialmente distinto do regime de nulidades do CPP, pois que são, desde logo, regimes legais ancorados em fundamentos principiológicos e axiológicos diversos, o que levou o legislador a optar por um quadro legal bastante diferente nas duas situações, sendo que atento o especifico regime jurídico constante da LGTFP aplicável aos processos disciplinares é absolutamente desnecessário recorrer subsidiariamente à normação constante do CPP, porque a LGTFP contém uma normação plena e perfeita, que abarca o momento ou o prazo até ao qual o trabalhador pode arguir nulidades.

6. Em segundo, nem sequer é possível recorrer a essa disciplina do CPP, dado que esta (ao impor prazos até aos quais é possível arguir certas nulidades, consoante o tipo de actos) é absolutamente distinta e mesmo contraditória com as inarredáveis garantias dos trabalhadores, opondo-se ao regime disciplinar constante do art. 203.º da LGTFP, que tão-somente e apenas separa as nulidades mais graves (que são insupríveis) das nulidades supríveis que têm de ser reclamadas até à decisão final (e não até ao fim de cada depoimento, nem até outros momentos quejandos) - pelo que jamais se poderia aceitar a tese da R., que sempre constitui uma proibida interpretação ab-rogante da lei e, ademais, uma forma inconstitucional de suprir nulidades dos procedimentos e de abolir garantias dos trabalhadores.

7. O erróneo entendimento ou interpretação veiculada pela Recorrente sempre seria agravadamente ilegal, por inconstitucionalidade material, por ser ablativo das garantias fundamentais e do direito de defesa da trabalhadora arguida, que derivam do estruturante princípio do Estado de Direito democrático dos cidadãos, porquanto tal entendimento teria o condão de cercear e reduzir o prazo de alegação da nulidade por parte da trabalhadora, e assim (com base em motivos puramente formalistas e ilegais) intenta encontrar uma forma de suprir nulidades antes do termo da decisão final, o que é, pois, constitucionalmente insuportável e proibido – cfr. arts. 2.º, 18.º, 20.º, 32.º e 269.º, n.º 3 da CRP.

8. Por conseguinte e como se decidira já no próprio processo cautelar apenso (n.º 511/19....) e como bem decidiu a sentença recorrida, é inequívoco que à luz da LGTFP a questão da nomeação de advogado como instrutor do processo disciplinar constitui uma nulidade que pode ser invocada “até à decisão final” pelo trabalhador, como efectivamente sucedeu in casu e se encontra comprovado, e não até qualquer momento das inquirições ou de qualquer outro momento processual, pelo que não se encontra a mesma jamais suprida.

9. Não havendo jamais nesta sede, como é a todas as luzes pacífico, qualquer tipo de aceitação da trabalhadora, nem jamais qualquer efeito suprível da nulidade, como a ora recorrente sustenta de forma absolutamente vaga, conclusiva e en passant, e por isso, inane.

10. Portanto, in casu, estamos perante uma nulidade, invocada pela trabalhadora em devido tempo e que implica a invalidado do acto, pelo que a sentença não merece censura.

11. Em suma, além da norma ser clara e expressa, esse é também o entendimento da dogmática e da jurisprudência (citadas supra no corpo das contra-alegações), e assim pelo menos desde o ED/84, que, no que aqui releva, continha normas idênticas às do ED/2008 e às da actual LGTFP.

12. Quanto às coisas da lisura e boa fé lançadas injusta, vaga e genericamente pela AMP, a verdade é que, por cautela, se repudiam as mesmas total e veementemente, porque, desde logo, não se verificam no caso concreto, pois a trabalhadora não pode nem tem de saber se o Sr. instrutor detém ou não detém relação de emprego público com a Administração Pública (ou tendo relação jurídica, de que tipo ou teor ou modalidade) e foi por isso que a trabalhadora requereu que a AMP certificasse qual a relação jurídica que tinha com o Sr. Instrutor, o que a AMP apenas informou e notificou em 18/01/2019, tendo a trabalhadora, de seguida, invocado a nulidade em 1/2/2019 e dentro do prazo legal (antes da decisão final), ao contrário do que, em ilegalidade, decidiu a AMP e sustenta agora no seu recurso.

13. Por último, é impressivo notar que a boa fé e lisura aplica-se à própria administração pública, que é dominus processus e tem de respeitar a lei e o princípio da legalidade (cfr. art. 208.º da LGTFP), o que, salvo o merecido respeito, não fez, desde logo, ao nomear e, agravadamente, ao manter esse Sr. Instrutor do processo à outrance, ao prosseguir o processo disciplinar (ao que tudo aponta) em violação da proibição de executar o acto decorrente do art. 128.º, n.º 1 do CPTA (apresentando extemporaneamente uma resolução fundamentada), não se esquecendo ainda que, também impressivamente, no processo disciplinar, até o requerimento da trabalhadora A. no sentido de serem juntos elementos fundamentais de um outro processo disciplinar em que foi visado outro trabalhador, por factos em tudo similares, foram liminarmente indeferidos pela R.... cremos que está tudo dito... - cfr. tudo como melhor se alegou no processo cautelar e que aqui se considera reproduzido.

14. Assim, inexiste qualquer má fé, sendo que a nomeação daquele Sr. Instrutor consubstancia inequívoca nulidade, que foi alegada pela trabalhadora recorrida em devido tempo, pelo que o indeferimento da sua arguição pelo Sr. Instrutor é manifestamente ilegal, não merecendo a sentença censura.

15. Depois, a Recorrente sustenta que a matéria de facto deveria ser aditada em três pontos, se bem percebemos, relacionados com a matéria antecedente, ou seja, com a tempestividade da arguição da nulidade relativa à nomeação do instrutor, todavia, o regime jurídico e a decisão da questão da tempestividade é clara e inequívoca, tendo sido cumprido o disposto no art. 203.º, n.º 2 da LGTFP, pelo que bem andou a sentença recorrida ao fixar os pontos da matéria de facto que considerou provados e ao decidir como decidiu, não sendo, pois e assim, necessário ou sequer útil, ou estando desde logo prejudicada a requerida alteração da matéria de facto.

16. Além de apenas remeter en passant e de forma esvoaçante para folhas do “PD”, sem se referir aos concretos e específicos documentos (e seus específicos teores ou respectivos trechos) que imporiam uma decisão distinta quanto à matéria de facto (como devia e era seu dever), a verdade é que, decisivamente, a recorrente não alega nem explica qual a relevância ou utilidade desses pontos da matéria de facto, como era seu indefectível ónus (cfr. art. 640.º, n.º 1 do CPC), pelo que, e salvo o merecido respeito, deve ser rejeitado esse pedido de alteração da matéria de facto.

17. Por último e sem prescindir, afigura-se que jamais haveria necessidade de aditar esses hipotéticos pontos à matéria de facto, pois que os supostos factos que a recorrente pretende aditar, se encontram já assentes na matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, mormente no ponto n.º 9 (cfr. sentença a fls...), em que se transcreveu o teor do indeferimento da nulidade invocada pela trabalhadora.

18. Quanto à nomeação do Sr Instrutor, a sentença citou a lei (que é clara), e a jurisprudência e a dogmática (que são uniformes e indisputadas), tendo decidido correctamente anular o acto.

19. O art. 208.º da LGTFP é claro, expresso e unívoco e obriga, como refere e bem a sentença, que o instrutor de um processo disciplinar seja “escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica”.

20. Ao contrário do que sustenta o recurso, a sentença não interpreta mal a lei, nem sequer viola o art. 66.º, n.º 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados, nem é inconstitucional por alegada violação dos arts. 18.º, n.º 2 e 20.º, n.º 2 da CRP.

21. Com efeito e como todos sabemos, o artigo 66.º, n.º 3 do EOA é uma norma que visa proteger os cidadãos e os privados, contra as ingerências do Estado e das autoridades públicas e privadas, e não propriamente proteger o Estado e a Administração Pública – sobretudo quando foi o próprio Estado que, ao conceber e aprovar a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, impôs a si próprio a proibição de os instrutores de processos disciplinares serem contratados fora do quadra da Administração Pública e por razões óbvias (a este ponto voltaremos infra).

22. Alias, não há qualquer violação do Estatuto da Ordem dos Advogados, pois a própria Ordem dos Advogados também já decidiu, quando foi solicitada a pronunciar-se sobre a nomeação de advogados como instrutores de processos disciplinares da Administração Pública: “os advogados exteriores aos quadros da Administração Pública não podem ser nomeados instrutores de processos disciplinares instaurados por iniciativa desta” – cfr. por exemplo, Parecer n.º 2/2008 do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, de 17/09/2008.

23. Naturalmente, e como todos sabemos, a Administração Pública tem, nas suas vestes de direito privado, capacidade e liberdade de contratação de advogados externos, não pode é, no caso específico de processos disciplinares instaurados aos seus trabalhadores (portanto e entre o mais, de cariz público, e em que se discutem factos da vida interna do serviço), nomear um advogado como instrutor dos mesmos - e é assim por lei expressa criada pelo próprio Estado, pelo que não há jamais qualquer violação do direito à igualdade de armas ou ao due process.

24. Como tal, não se verifica qualquer inconstitucionalidade, nem muito menos qualquer invasão da reserva de Administração Pública, ou qualquer violação da igualdade, pois que não foi o Tribunal a quo que criou a norma vertida no art. 208.º, n.º 1 da LGTFP, foi o próprio Estado que (uma vez mais e na sequência da legislação anterior à LGTFP) erigiu expressamente essa proibição legal, que a AMP violou.

25. Ao contrário do que pretende fazer passar a Recorrente (num exercício espúrio de quase demonização deste normativo da actual LGTFP), o disposto no n.º 1 do art. 208.º da LGTFP segue, aliás, uma já longa tradição nacional (de raiz e influência espanhola, francesa e italiana), como já constava quer no art. 51.º do ED/84, quer no art. 42.º do ED/2008, sendo claro e incontroverso para qualquer consciência administrativa que o instrutor do processo disciplinar só poderia ser um trabalhador em funções públicas, pertencente ao quadro da AMP, id est, com subordinação hierárquica à autoridade que instaura o procedimento, pois, entre o mais, só assim esta pode dar ordens e ser obedecida em situações em que, por exemplo, o trabalhador interponha recurso hierárquico – o que não sucede com o Exmo. Sr. Instrutor do procedimento em causa, que nem sequer é titular da pressuposta ou precípua relação jurídica de emprego público.

26. E ainda ao contrário do que sustenta a Recorrente, no caso, não podia ser nomeado aquele Sr. Instrutor porque é Ilustre Advogado de profissão, sendo que a profissão de advogado é, radical e principiologicamente (ou se se pretender, deontologicamente), incompatível com a dependência hierárquica que o instrutor tem relativamente a quem o nomeia e ordena a instauração de processo disciplinar.

27. Essa relação hierárquica é manifestada, entre outras situações, pela necessidade de pedir autorizações superiores, bem como pela existência (garantias de defesa do trabalhador) de recurso hierárquico (como o próprio nome indica, pressupõe e exige uma relação... hierárquica, que, obviamente, não existe no caso de um advogado contratado ad hoc ou em outsourcing) dos actos do instrutor – cfr. previsão expressa nos arts. 203.º, n.º 3 e 225.º da LGTFP.

28. Aliás, se o instrutor do processo disciplinar for um advogado contratado em outsourcing e, por isso, sem relação hierárquica, então, não se viola apenas o art. 208.º da LGTFP, como se cerceia ostensiva e ilegalmente a possibilidade de existência de recurso hierárquico ou tutelar por parte do trabalhador arguido (cfr. art. 203.º, n.º 3 e 225.º da LGTFP), diminuindo francamente as garantias de defesa do arguido (cfr. arts. 4.º e 9.º do CPA e arts. 2.º, 13.º, 18.º, 20.º, 32.º e 269.º, n.º 3 da CRP).

29. Face às fundamentais e deontológicas autonomia e independência do concreto Sr. Instrutor, advogado que é, e sem relação jurídica de emprego público com a Recorrente AMP (como esta veio certificar e confessou na sua contestação, a fls...), não se pode sequer pensar que este estaria subordinado a acatar as ordens de um qualquer superior hierárquico (qual?!! – impor-se-ia questionar) e obrigado a cumprir os princípios gerais e o interesse público a que a actividade administrativa está legal e constitucionalmente sujeita (cfr. entre o mais, o disposto no art. 266.º da CRP) – a que, como é evidente e por mais que a Recorrente queira sustentar o contrário, um advogado externo não está obrigado.

30. E isto para já não falar também na própria responsabilidade disciplinar que o instrutor tem e que jamais poderia, em legalidade, ser concretizada, mormente nos Tribunais Administrativos, se admitíssemos que advogados (que, como todos sabemos, não podem ser objecto de qualquer processo disciplinar instaurado por qualquer outra administração ou autoridade administrativa ou judicial, que não a Ordem dos Advogados) pudessem ser instrutores em processos disciplinares ordenados pela Administração Pública – neste sentido, atente-se no teor do estatuído nos arts. 73.º, 81.º (Princípios gerais) e 89.º (Independência) do EOA.

31. A interpretação da Recorrente em abono salvífico do acto não pode ter acolhimento, sendo que bem andou a sentença ao anular o mesmo, encontrando entre o mais, acolhimento na lei, na dogmática comparada (pelo menos, em Espanha, em França e em Itália), na dogmática e jurisprudência nacional, que são uniformes e indisputadas – supra citadas nas contra-alegações.

32. Diremos ainda que esta foi a primeira vez que o ora subscritor suscitou esta questão em Tribunal, tal é a sua excepcionalidade - pelo menos, é assim que sempre perspectivámos a situação, porque com a mesma já fomos (o próprio subscritor) confrontados e sempre entendemos, à luz da lei expressa e dos princípios deontológicos, não poder, enquanto advogados, exercer funções de instrutor em processo disciplinar instaurado pela Administração Pública.

33. Aqui chegados, a Administração Pública não pode contratar advogados para serem instrutores de processos disciplinares, assim já o disseram os Tribunais, a dogmática e também a própria Ordem dos Advogados, precisamente em razão da necessidade de existência de uma liberdade profissional incompatível com a imprescindível hierarquia e com as razões ligadas ao interesse público e aos princípios que orientam a actividade da Administração, pelo que a norma vertida no artigo 208.º, n.º 1 da LGTFP não é meramente ordenadora, com uma qualquer racionalidade financeira e interna, pelo que a sentença não merece censura.

34. Alega ainda a Recorrente, numa última tentativa salvífica do acto, que: “A nomeação de instrutor, sendo acto meramente preparatório, é de trâmite, não lesivo. Não é sequer, com esta natureza, susceptível de controlo jurisdicional (cfr. art.º 148º CPA e art.º 51º, n.º 1, CPTA).”, contudo e salvo o merecido respeito, não assiste o mínimo de fundamento a esta alegação vaga e genérica, desde logo, considerando a redacção do art. 51.º do CPTA, que estatui que são impugnáveis todas as decisões “Ainda que não ponham termo a um procedimento”, como é o caso.

35. Posto isto, como é evidente e como bem decidiu a sentença, existe norma expressa e clara (art. 208.º,n.º 1 da LGTFP), a Recorrente violou esse normativo (que não é meramente ordenador, sob pena de com esta ideia do carácter meramente ordenador estar encontrada a forma conveniente de contornar as imposições e proibições legais), pelo que a Administração violou o princípio da legalidade, o que inquina o acto.

36. Por último, note-se que é impressivo que, no caso concreto, não resulta nem jamais foi alegado pela Recorrente que não existisse técnico superior nos serviços ou quadro da AMP que pudesse exercer as funções de que cuidamos ou até trabalhador com antiguidade superior à da A.. Nunca, jamais!

37. Aliás e o mais estranho é que certamente o próprio Ilustre Mandatário, licenciado em direito, que foi inicialmente nomeado no processo cautelar n.º 511/19.... e também no presente processo principal (Exmo. Sr. Dr. «BB», que subscreveu as contestações e outros requerimentos, cfr. autos a fls...), poderia exercer essas funções, cumprindo e observando plenamente a lei.

38. Todavia, assim não decidiu a AMP, em expressa violação da lei, pelo que certamente por isso também nunca defendeu no presente processo – razões pelas quais a sentença não merece qualquer censura, não padecendo das ilegalidades ou inconstitucionalidade que lhe são assacadas no recurso, devendo ser mantida na ordem jurídica.

Termos em que,
não deve ser provido o recurso,

apenas assim se fazendo Justiça!

A Senhora Procuradora Geral Adjunta notificada, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido da revogação da sentença e substituição por outra que decida pela extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, perante a amnistia da infracção disciplinar que vinha imputada à Autora.
A este respondeu a Área Metropolitana do Porto/Recorrente, concluindo contra a pronúncia, adiantando que não ocorre inutilidade superveniente da lide e que os autos devem prosseguir os seus ulteriores termos até prolação da decisão final.

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:

1) Entre Junho de 2012 e Julho de 2015, a Autora exerceu funções na Autoridade Metropolitana de Transportes do Porto (actual Área Metropolitana do Porto) - cfr. fls. 14 a 24 do PA, junto aos autos a fls. 179 a 481 do SITAF;

2) Em 03.04.2013, a Autoridade Metropolitana de Transportes do Porto e a Autora subscreveram “Contrato de Trabalho em Funções Públicas por Tempo Indeterminado” - cfr. fls. 118 a 123 do PA, junto aos autos a fls. 179 a 481 do SITAF;

3) A partir de Agosto de 2015, a Autora passou a exercer funções no INFARMED - cfr. fls. 24 do PA, junto aos autos a fls. 179 a 481 do SITAF;

4) Em 15.12.2017, por deliberação da Comissão Executiva Metropolitana do Porto, foi instaurado à Autora um processo disciplinar e nomeado como instrutor do processo o Advogado «CC» - cfr. fls. 175 e 176 do PA, junto aos autos a fls. 179 a 481 do SITAF;

5) Em 20.09.2018, foi deduzida acusação contra a Autora, à qual é imputado o facto “de entre Julho de 2015 a Novembro de 2017 [ter auferido] mensalmente a remuneração de 2.231,23 € a que não tinha direito, e sem que ninguém de tal se tenha apercebido”, comportamento violador dos deveres gerais de prossecução do interesse público, de isenção, de zelo e de lealdade - cfr. fls. 241 a 253 do PA, junto aos autos a fls. 179 a 252 do SITAF;

6) Em 04.01.2019, a Autora dirigiu um requerimento ao Primeiro Secretário da Comissão Executiva da Área Metropolitana do Porto, pelo qual requer a prestação de informação:
“a) sobre qual é a relação jurídica e ou vínculo jurídico que liga a Área Metropolitana do Porto ao Exmo. Sr. Dr. «CC»;
b) se o Exmo. Sr. Dr. «CC» tem uma relação jurídica de emprego público, nomeadamente com a Área Metropolitana do Porto; e se sim, qual, o seu cargo, carreira e ou categoria.” - cfr. documento n.º ..., junto com a petição inicial, a fls. 85 e 86 do SITAF;

7) Em 17.01.2019, o Primeiro Secretário da Comissão Executiva da Área Metropolitana do Porto elaborou um ofício com o seguinte teor:
“Em relação ao conteúdo do requerimento remetido a esta entidade na data e pela via referidas em título, tenho a honra de informar V. Ex.ª de que o Sr. Dr. «CC», Ilustre Advogado, não pertence ao mapa de pessoal da AMP e que se encontra vinculado a estes Serviços por contrato de prestação de serviço publicado na plataforma base.gov (...)” - cfr. documento n.º ..., junto com a petição inicial, a fls. 87 do SITAF;

8) A Autora arguiu nulidade no procedimento disciplinar, com fundamento em violação do disposto no artigo 208.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, e interpôs recurso hierárquico do despacho do instrutor, de 25.01.2019, pelo qual foi indeferida diligência probatória por si requerida - cfr. documento n.º ..., junto com a petição inicial, a fls. 37 a 41 do SITAF;

9) Em 11.02.2019, o Instrutor indeferiu a sobredita nulidade com base no seguinte:
“(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)” - cfr. documento n.° ..., junto com a petição inicial, a fls. 37 a 41 do SITAF;

10) Em 12.02.2019, a Autora, por intermédio de Mandatário, tomou conhecimento da decisão referida no ponto anterior - cfr. documento n.° ..., junto com a petição inicial, a fls. 37 a 41 do SITAF;

11) Em 14.02.2019, a Comissão Executiva Metropolitana do Porto aprovou a seguinte proposta de indeferimento do recurso hierárquico mencionado no ponto 8):
“(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...) - cfr. documento n.º ..., junto com a petição inicial, a fls. 42 a 48 do SITAF;

12) Em 08.05.2019, pela Deliberação n.º ...19, o Conselho Directivo do INFARMED deliberou aplicar, à Autora, a sanção disciplinar de suspensão pelo prazo de 90 dias - cfr. 285 a 295 do PA, junto aos autos a fls. 179 a 481 do SITAF.
DE DIREITO
No presente processo discutem-se ilegalidades do procedimento, atinentes à nomeação de um Exmo. Senhor Advogado como instrutor do procedimento disciplinar.
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim, vejamos,
Da questão levantada pela Senhora PGR -
Na base do processo disciplinar (PD) instaurado à Recorrida está a informação n.º ...89 (cfr. Ponto 4), da IGF (cfr. p. 17 do PD), sobre a qual foi exarado despacho homologatório da então Secretária de Estado da Administração e Emprego Público, do seguinte teor: “Homologo o presente relatório. Remeta-se à AMP, ao Infarmed e à PGR, para os devidos efeitos”. A remessa à PGR teve por horizonte o entendimento de que os factos que deram origem ao PD eram susceptíveis de integrar, em abstracto, um ou vários ilícitos criminais - cfr., na sobredita informação IGF, as “Conclusões” (Ponto 3), alíneas e) e f) e as “Propostas” (Ponto 4), n.º 4.2, alínea c). Na sequência da participação dos factos à PGR, foi efectivamente aberto o respectivo processo criminal (Processo n.º 14286/18....), que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal - Juiz ....

Foi junta certidão.

Assim, os factos que integram o PD, e que estão na base do processo-crime, correspondem a crime não amnistiado tendo em conta a idade da arguida e o disposto no art.º 2º da Lei n.º 38- A/2023, de 2 de agosto;

Integram, em abstracto, crime expressamente excluído e não amnistiado ou sequer perdoado (peculato) - cfr. art.º 7º, n.º 1, alínea e), v), da lei de amnistia.

Donde se conclui que não ocorre inutilidade superveniente da lide, tendo os autos de prosseguir para apreciação do mérito/fundo da causa.


Da tempestividade da arguição de nulidade -
Em primeiro lugar, a Recorrente tenta que a questão de fundo não seja conhecida e decidida, continuando a sustentar uma suposta intempestividade da arguição da nulidade, querendo para o efeito mobilizar, entre mais, uma norma do Código de Processo Penal (art. 120.º, n.º 3), quando na verdade existe norma expressa e específica na LGTFP.
Refere, em suma, a Recorrente que “O facto de a LGTFP permitir a reclamação das nulidades (supríveis) até à decisão final (art.º 203º, n.º 2) não significa que o interessado, por elas afectado, as possa invocar irrestritamente - fora do prazo assinalado no art.º 120º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal -, e sem a observância dos limites da boa-fé, designadamente, nos casos de aceitação do acto (expressa ou tácita).”
E conclui que “Donde flui que, por um lado, não foi observado o prazo previsto no art.º 120º, n.º 3, supletivamente convocável; e que, por outro lado, a Recorrida levantou a questão da nulidade da nomeação de instrutor depois de conhecida, aceite e estabilizada a intervenção deste nos autos, e depois de subscritos e notificados actos processuais de suma importância, como a acusação, e o defender-se dela a arguida, contexto em que a invocação da nulidade releva objectivamente de má fé e falta de lisura processual. E, ademais, origina a perda do direito de arguir a nulidade - conforme resulta do disposto no art.º 121º, n.º 1, alínea b), CPP, e também da regra geral imposta pelo art.º 186º, n.º 2, do CPA, Código que a sentença aplica directamente ao âmbito disciplinar - cfr. p. 15, Par. 3º.” -.
Porém, sem razão.
Vejamos:
Quanto à questão do prazo de arguição da nulidade, não assiste qualquer razão ao entendimento vertido no recurso, pois, desde logo, em nada releva o facto de, alegadamente, ser do conhecimento da trabalhadora a circunstância do instrutor nomeado ser advogado de profissão, porquanto, por exemplo e como todos sabemos, um jurista dos quadros da Administração Pública pode estar, simultaneamente, inscrito na Ordem dos Advogados, conquanto que tenha autorização da Administração Pública para o efeito - e nesse caso, não haveria ilegalidade, pois que se trataria de um trabalhador em funções públicas, que não é o que sucede nos autos.
Acresce que a Recorrente sustenta, agora, que a arguição de nulidade por parte da trabalhadora seria extemporânea por ter sido apresentada “depois de notificados actos processuais de suma importância, como a acusação”.
Ora, a norma acerca das nulidades, constante do artigo 203.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, nomeadamente do seu n.º 2, é clara, expressa e, mais do que isso, especial em relação ao Código de Processo Penal, dispondo que
“Artigo 203.º Nulidades
(...)
2 - As restantes nulidades consideram-se supridas quando não sejam objeto de reclamação pelo trabalhador até à decisão final.”
Note-se que o acto anulado havia sustentado que a norma aqui aplicável (art. 203.º, n.º 2 da LGTFP) só estabelece até quando as nulidades podem ser objecto de reclamação, não definindo em que prazo pode ser arguida, que se deveria recolher junto do subsidiário CPP, no seu art. 120.º, n.º 3 - que a AMP volta agora a sustentar no seu recurso, embora como uma distinta veste argumentativa.
Ora, em primeiro lugar, o regime de nulidades constante da LGTFP (aplicável aos trabalhadores, como é aqui o caso) é materialmente distinto do regime de nulidades do Código de Processo Penal, pois que são, desde logo, regimes legais ancorados em fundamentos principiológicos e axiológicos diversos, o que levou o legislador a optar por um quadro legal bastante diferente nas duas situações.
Além disso, atento o especifico regime jurídico constante da LGTFP aplicável aos processos disciplinares é absolutamente desnecessário recorrer subsidiariamente à normação constante do CPP, porque a LGTFP contém uma normação plena que abarca o momento ou o prazo até ao qual o trabalhador pode arguir nulidades.
Em segundo lugar, a verdade é que nem sequer é possível recorrer a essa disciplina do CPP, dado que esta (ao impor prazos até aos quais é possível arguir certas nulidades, consoante o tipo de actos) é absolutamente distinta e mesmo contraditória com as inarredáveis garantias dos trabalhadores, opondo-se ao regime disciplinar constante do art. 203.º da LGTFP, que tão-somente e apenas separa as nulidades mais graves (que são insupríveis) das nulidades supríveis que têm de ser reclamadas até à decisão final (e não até ao fim de cada depoimento, nem até outros momentos quejandos).
O regime constante da LGTFP constitui uma fundamental garantia dos trabalhadores, pelo que não se aceita a tese da Recorrente, que sempre constitui uma proibida interpretação ab-rogante da lei e, ademais, uma forma inconstitucional de suprir nulidades dos procedimentos e de abolir garantias dos trabalhadores.
Como argumenta a Recorrida, o erróneo entendimento ou interpretação veiculada pela Recorrente sempre seria agravadamente ilegal, por inconstitucionalidade material, por ser ablativo das garantias fundamentais e do direito de defesa da trabalhadora arguida, que derivam do estruturante princípio do Estado de Direito democrático dos cidadãos, porquanto tal entendimento cerceia e reduz o prazo de alegação da nulidade por parte da trabalhadora, e assim (com base em motivos puramente formalistas e ilegais) intenta encontrar uma forma de suprir nulidades antes do termo da decisão final, o que é constitucionalmente insuportável e proibido - cfr. arts. 2.º, 18.º, 20.º, 32.º e 269.º, n.º 3 da CRP. Por conseguinte e como se decidiu já no processo cautelar apenso (n.º 511/19....) e como bem decidiu a sentença recorrida, é inequívoco que à luz da LGTFP a questão da nomeação de advogado como instrutor do processo disciplinar constitui uma nulidade que pode ser invocada “até à decisão final” pelo trabalhador, como efectivamente sucedeu in casu e se encontra comprovado, e não até qualquer momento das inquirições ou de qualquer outro momento processual, pelo que não se encontra a mesma jamais suprida.
Não havendo nesta sede qualquer tipo de aceitação da trabalhadora, nem jamais qualquer efeito suprível da nulidade, como a ora recorrente sustenta de forma, aliás, vaga e conclusiva.
Portanto, no caso posto, estamos perante uma nulidade, invocada pela trabalhadora em devido tempo e que implica a invalidade do acto.
A sentença recorrida, e bem, decidiu a este propósito que:
“Ora, não é controvertido nos autos que a aludida nulidade configura uma nulidade suprível, subsumindo-se, assim, ao disposto no n.º 2 do artigo 203.º da LGRFP, de acordo com o qual as nulidades (supríveis) consideram-se supridas quando não sejam objecto de reclamação pelo trabalhador até à decisão final do procedimento disciplinar.
De acordo com a factualidade provada, em 15.12.2017, por deliberação da Comissão Executiva Metropolitana do Porto, foi instaurado à Autora um processo disciplinar e nomeado como instrutor do processo o Advogado «CC» (cfr. ponto 4) dos factos provados). Na sequência de um pedido de esclarecimento sobre a relação jurídica encetada entre o aludido instrutor e a Entidade Demandada, datado de 01.01.2019, a que a Entidade Demandada respondeu em 17.01.2019, a Autora arguiu nulidade no procedimento disciplinar, com fundamento na violação do disposto no artigo 208.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (cfr. pontos 6), 7) e 8) dos factos provados). Mais se provou que, em 08.05.2019, o Conselho Directivo do INFARMED deliberou aplicar, à Autora, a sanção disciplinar de suspensão pelo prazo de 90 dias (cfr. ponto 13) dos factos provados).
Neste contexto, é manifesto que a nulidade, aqui em crise, foi arguida antes (até, na terminologia da lei) da tomada da decisão final do procedimento disciplinar, pelo que a mesma não se considera suprida, mantendo, assim, o efeito invalidante da decisão final.
Ademais, diferentemente do alegado pela Entidade Demandada, não há que convocar a aplicação de legislação subsidiária, uma vez que a LGTFP dispõe de uma norma que disciplina o regime das nulidades e da sua arguição. Com efeito, nos termos desse regime, a nulidade não tem de ser arguida no momento ou acto em que o trabalhador se apercebe da mesma, mas, antes, tem de ser arguida, em qualquer momento, até à decisão final do procedimento disciplinar.
Por conseguinte, a Autora, na arguição da nulidade, observou o disposto no n.º 2 do artigo 203.º da LGTFP.”.
Como, de resto, já decidira também a sentença proferida no processo cautelar apenso (n.º 511/19....):
“No caso presente a arguida, ora requerente suscitou a questão da nomeação como instrutor do processo disciplinar de um advogado ainda antes de ser proferida decisão final, pelo que, ao contrário do entendimento da requerida, a irregularidade foi suscitada dentro do prazo estabelecido para o efeito.” - cfr. sentença dos autos apensos.
Das questões da lisura e boa fé invocadas pela Recorrente -
Cremos também que não se verificam no caso concreto.
Com efeito e como já se consignou supra, a trabalhadora não pode nem tem de saber se o Sr. instrutor detém ou não detém relação de emprego público com a Administração Pública (ou tendo relação jurídica, de que tipo ou teor ou modalidade).
E foi por isso que a trabalhadora requereu que a AMP certificasse qual a relação jurídica que tinha com o Sr. Instrutor, o que a AMP informou e notificou em 18/01/2019, tendo a trabalhadora, de seguida, invocado a nulidade em 1/2/2019 e dentro do prazo legal, ao contrário do que decidiu a AMP e sustenta agora no seu recurso.
Por último, é impressivo notar que a boa fé e lisura aplica-se à própria administração pública, que é dominus processus e tem de respeitar a lei e o princípio da legalidade (cfr. art. 208.º da LGTFP).
Inexiste qualquer má fé da Autora, sendo que a nomeação daquele Sr. Instrutor consubstancia inequívoca nulidade, que foi alegada pela trabalhadora recorrida em devido tempo, pelo que o indeferimento da sua arguição pelo Sr. Instrutor é manifestamente ilegal; como tal, a sentença não merece censura.
Aditamento da matéria de facto -
A Recorrente sustenta que a matéria de facto deveria ser aditada em três pontos, relacionados com a matéria antecedente, ou seja, com a tempestividade (ou não) da arguição da nulidade relativa à nomeação do instrutor.
Ora, como se deixou exposto, a questão da tempestividade é clara e inequívoca, tendo sido cumprido o disposto no art. 203.º, n.º2 da LGTFP, pelo que bem andou a sentença recorrida ao fixar os pontos da matéria de facto que considerou provados e ao decidir como decidiu, não sendo, pois, necessário ou sequer útil, ou estando desde logo prejudicada, a requerida alteração da matéria de facto.
Refira-se ainda que além de apenas remeter en passant para folhas do “PD”, a Recorrente não referiu os concretos e específicos documentos (e seus específicos teores ou respectivos trechos) que imporiam uma decisão distinta quanto à matéria de facto (como devia e era seu dever), ou seja, a Recorrente não alegou nem explicou qual a relevância ou utilidade desses pontos da matéria de facto, como era seu ónus (cfr. art. 640.º, n.º 1 do CPC).
Como tal rejeita-se o pedido de alteração da matéria de facto.
Por último sublinhe-se que jamais haveria necessidade de aditar esses pontos à matéria de facto, pois que os supostos factos que a Recorrente pretende aditar (com especial acuidade nos pontos A) e B)), se encontram já assentes na matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, mormente no ponto n.º 9, em que se transcreveu o teor do indeferimento da nulidade invocada pela trabalhadora.
Da nomeação do instrutor -
Decorre da sentença recorrida: “Quanto à nomeação do instrutor, ficou provado que, no processo disciplinar instaurado à Autora, foi nomeado instrutor o Advogado «CC», que “não pertence ao mapa de pessoal da AMP e que se encontra vinculado a estes Serviços por contrato de prestação de serviço” (cfr. pontos 4) e 7) dos factos provados).
Em face desta factualidade, é patente que a Entidade Demandada não observou o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 208.º da LGTFP - que constituem normas imperativas e não meramente ordenadoras, conforme defendido por aquela -, isto porque o instrutor nomeado não é trabalhador da Entidade Demandada e, como tal, não é titular de uma relação jurídica de emprego público.
Assim, resulta da lei que o instrutor tem de ser escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço do trabalhador arguido, que seja titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à deste trabalhador, preferindo os que possuam adequada formação jurídica; ou, em casos justificados, de entre os trabalhadores de outro órgão ou serviço.
Acresce que as citadas normas, em caso algum, admitem a nomeação de um instrutor externo à entidade que instaure o procedimento disciplinar, isto é, que não seja trabalhador - titular de uma relação jurídica de emprego público - do mesmo órgão ou serviço do trabalhador arguido ou trabalhador de outro órgão ou serviço. Quanto às razões subjacentes ao presente regime legal, remete-se, por economia, para a doutrina acima referida.
Em suma, a violação do disposto nos n. os 1 e 2 do artigo 208.º da LGTFP redunda na violação do princípio da legalidade, porquanto “os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins” (cfr. artigo 3.º, n.º 1, do CPA).
Destarte, a violação do disposto nos n. os 1 e 2 do artigo 208.º da LGTFP inquina os actos de vício de violação de lei gerador de anulabilidade, nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do CPA.”.
Revemo-nos nesta leitura da sentença, aliás bem alicerçada na lei, na jurisprudência e na dogmática que seguiu.
No entanto, a Recorrente vem novamente defender que se trata de normas meramente ordenadoras e que até haveria inconstitucionalidade na decisão do Tribunal a quo.
Cremos que sem fundamento.
Em primeiro, recorde-se o que estabelece a LGTFP:
“Artigo 208.º Nomeação do instrutor
1 - A entidade que instaure procedimento disciplinar nomeia um instrutor, escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.
2 - Em casos justificados, a entidade referida no número anterior pode solicitar ao respetivo dirigente máximo a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço.
3 - O instrutor pode escolher secretário de sua confiança, cuja nomeação compete à entidade que o nomeou, e, bem assim, requisitar a colaboração de técnicos.
4 - As funções de instrução preferem a quaisquer outras que o instrutor tenha a seu cargo, ficando exclusivamente adstrito àquelas.”
Este normativo é claro, expresso e unívoco e obriga, como refere e bem a sentença, que o instrutor de um processo disciplinar seja “escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica”.
Ao contrário do que sustenta o recurso, a sentença não interpreta mal a lei, nem sequer viola o art. 66.º, n.º 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados, nem é inconstitucional por alegada violação dos arts. 18.º, n.º 2 e 20.º, n.º 2 da CRP.
Com efeito, o artigo 66.º, n.º 3 do EOA é uma norma que visa proteger os cidadãos e os privados, contra as ingerências do Estado e das autoridades públicas e privadas, e não propriamente proteger o Estado e a Administração Pública - sobretudo quando foi o próprio Estado que, ao conceber e aprovar a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, impôs a si próprio a proibição de os instrutores de processos disciplinares serem contratados fora do quadro da Administração Pública.
Efectivamente, como se deu nota nos autos, a própria Ordem dos Advogados também já decidiu, quando foi solicitada a pronunciar-se sobre a nomeação de advogados como instrutores de processos disciplinares da Administração Pública: “os advogados exteriores aos quadros da Administração Pública não podem ser nomeados instrutores de processos disciplinares instaurados por iniciativa desta” - cfr. por exemplo, Parecer n.º 2/2008 do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, de 17/09/2008.
Naturalmente, a Administração Pública (mormente a AMP) tem, nas suas vestes de direito privado, capacidade e liberdade de contratação de advogados externos, não pode é, no caso específico de processos disciplinares (portanto e entre o mais, de cariz público, e em que se discutem factos da vida interna do serviço), nomear um advogado como instrutor dos mesmos, e por força de lei - pelo que não há qualquer violação do direito à igualdade de armas ou ao due process.
Como tal, também não se verifica qualquer inconstitucionalidade, nem muito menos qualquer invasão da reserva de Administração Pública, ou qualquer violação da igualdade, pois que não foi o Tribunal a quo que criou a norma vertida no art. 208.º, n.º 1 da LGTFP; foi o próprio Estado que (uma vez mais e na sequência da legislação anterior à LGTFP) erigiu expressamente essa proibição legal, que a Recorrente não observou.
É, assim, claro que o instrutor do processo disciplinar só poderia ser um trabalhador em funções públicas, pertencente ao quadro da AMP, isto é, com subordinação hierárquica à autoridade que instaura o procedimento, pois, entre o mais, só assim esta pode dar ordens e ser obedecida em situações em que, por exemplo, o trabalhador interponha recurso hierárquico - o que não sucede com o Exmo. Senhor Instrutor do procedimento em causa, que nem sequer é titular da pressuposta ou precípua relação jurídica de emprego público. Por outras palavras, foi nomeado Instrutor quem não podia ser, de acordo com a lei que, expressa, taxativa e inequivocamente, manda que o instrutor seja “escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica”.
E ao contrário do que sustenta a Recorrente não podia ser nomeado porque é Ilustre Advogado de profissão, sendo que a profissão de advogado é, radical e principiologicamente (ou se se pretender, deontologicamente), incompatível com a dependência hierárquica que o instrutor tem relativamente a quem o nomeia e ordena a instauração de processo disciplinar.
Essa relação hierárquica é manifestada, entre outras situações, pela necessidade de pedir autorizações superiores, bem como pela existência (garantia do trabalhador) de recurso hierárquico (como o próprio nome indica, pressupõe e exige uma relação... hierárquica, que, obviamente, não existe no caso de um advogado contratado ad hoc ou em outsourcing) dos actos do instrutor - cfr. previsão expressa nos arts. 203.º, n.º 3 e 225.º da LGTFP.
Aliás, se o instrutor do processo disciplinar for um advogado contratado em outsourcing e, por isso, sem relação hierárquica, então, não se viola apenas o art. 208.º da LGTFP, como se cerceia ostensiva e ilegalmente a possibilidade de existência de recurso hierárquico ou tutelar por parte do trabalhador arguido (cfr. art. 203.º, n.º 3 e 225.º da LGTFP), diminuindo francamente as garantias de defesa por parte do arguido (cfr. arts. 4.º e 9.º do CPA e arts. 2.º, 13.º, 18.º, 20.º, 32.º e 269.º, n.º 3 da CRP).
Face às fundamentais e deontológicas autonomia e independência do concreto Senhor Instrutor, advogado que é, e sem relação jurídica de emprego público com a Recorrente AMP (como esta veio certificar e confessou na sua contestação), nunca este estaria subordinado a acatar as ordens de um qualquer superior hierárquico (qual?!! - impor-se-ia questionar) e obrigado a cumprir os princípios gerais e o interesse público a que a actividade administrativa está legal e constitucionalmente sujeita (cfr. entre o mais, o disposto no art. 266.º da CRP) a que, como é evidente um advogado externo não está obrigado.
Como sentenciado, o despacho que proceda à instauração do procedimento disciplinar nomeia obrigatoriamente o respectivo instrutor, o qual não poderá deixar de ser titular de uma relação jurídica de emprego público.
A nomeação de quem não tenha tal qualidade viola a lei e atenta claramente contra os princípios da imparcialidade e prossecução do interesse público, diminuindo as garantias de defesa por parte do arguido, uma vez que só quem seja titular de tal relação de emprego é que está vinculado ao respeito dos referidos princípios constitucionais e fornecerá as garantias de imparcialidade legalmente necessárias para poder analisar com isenção, transparência e exclusiva ponderação do interesse público a gravidade da infracção imputada ao arguido” - cfr. Veiga e Moura e Cátia Arrimar, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º vol, Coimbra Editora, pág. 598.
Alega ainda a Recorrente que: “A nomeação de instrutor, sendo acto meramente preparatório, é de trâmite, não lesivo. Não é sequer, com esta natureza, susceptível de controlo jurisdicional (cfr. art.º 148º CPA e art.º 51º, n.º 1, CPTA). Poderia sê-lo se tivesse reflexo no estatuto do arguido, diminuísse os seus direitos de defesa, as suas garantias processuais, mas a norma relativa à nomeação de instrutor não visa, no seu círculo, proteger interesses individuais do funcionário arguido, mas interesses públicos objectivos de boa gestão e eficiência.”
Também aqui se discorda da Apelante.
Aliás, o próprio art. 51.º do CPTA inicia agora referindo que são impugnáveis todas as decisões “Ainda que não ponham termo a um procedimento” - “com o que se atribui maior relevância ao procedimento administrativo, admitindo que este possa ser controlado judicialmente, não apenas no momento da emissão do ato final, mas sempre que no seu âmbito se produzam decisões que o justifiquem” (cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha, CPTA Anotado, 2017, 4.ª ed., pág. 347).
Posto isto, como bem decidiu a sentença, existe norma expressa e clara (art. 208.º, n.º 1 da LGTFP), a Recorrente violou esse normativo (que não é meramente ordenador, sob pena de com esta ideia do carácter meramente ordenador estar encontrada a forma conveniente de contornar as imposições e proibições legais), pelo que a Administração violou o princípio da legalidade, o que inquina o acto.
Soçobra esta argumentação.
Como também refere a sentença, na sequência da jurisprudência consolidada, “Por conseguinte, e na senda da jurisprudência acima citada, cabia à Entidade Demandada alegar e provar os pressupostos de nomeação do instrutor, nos termos prescritos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 208.º da LGTFP, o que não fez.”
Na verdade, é impressivo que, no caso concreto, não resulta nem jamais foi alegado pela Recorrente que não existisse técnico superior nos serviços ou quadro da AMP que pudesse exercer as funções de que cuidamos ou até trabalhador com antiguidade superior à da Autora/Recorrida.
Em suma,
Da interpretação literal, gramatical, do art.º 208º, n.º 1, da LGTFP -
Do elemento interpretativo fundamental (o racional) e elementos auxiliares como o teleológico, sistémico e histórico -





Não se ignora que interpretar a lei é fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel Andrade, Ensaio Sobre a Interpretação das Leis, págs. 21 a 26).
O artigo 9.º do Código Civil reza que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); o enunciado linguístico da lei é o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).
Assim, a apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma «tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal» (cf. José Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, revista, Almedina, 2001, p. 392).
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica (sobre este tema, Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pp. 175-192).
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim, como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).
Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.
O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.
Segundo a doutrina tradicional, o intérprete, socorrendo-se dos elementos interpretativos acabados de referir, acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades de interpretação: interpretação declarativa, interpretação extensiva, interpretação restritiva, interpretação revogatória e interpretação enunciativa.
Na interpretação declarativa, o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse o que corresponde ao pensamento legislativo.
A interpretação declarativa pode ser restrita ou lata, segundo toma em sentido limitado ou em sentido amplo as expressões que têm vários significados.
A interpretação extensiva aplica-se, no dizer de Baptista Machado (ob. cit., pp. 185-186), quando «o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adoptada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que se pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se tratará de uma lacuna da lei, porque os casos não directamente abrangidos pela letra são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei.».
Na interpretação restritiva, pelo contrário, «o intérprete chega à conclusão de que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer. Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva» (cf. este mesmo Autor, ob. cit., p. 186).
Por sua vez, a interpretação revogatória terá lugar apenas quando entre duas disposições legais existe uma contradição insanável e, finalmente, a interpretação enunciativa é aquela pela qual o intérprete deduz de uma norma um preceito que nela está virtualmente contido, utilizando, para tanto, certas inferências lógico-jurídicas alicerçadas nos seguintes tipos de argumentos: (i) argumento a maiori ad minus, a lei que permite o mais, também permite o menos; (ii) argumento a minori ad maius, a lei que proíbe o menos, também proíbe o mais; (iii) argumento a contrario, que deve ser usado com muita prudência, em que, a partir de uma norma excepcional, se deduz que os casos que ela não contempla seguem um regime oposto, que será o regime-regra (cf., mais uma vez, Baptista Machado, obra citada, pp. 186-187).
In casu toda a hermenêutica aponta para a bondade da interpretação veiculada pelo Tribunal a quo.
Apesar da Recorrente vir fazer apelo a uma suposta interpretação teleológica, racional e sistemática em abono do acto proferido e anulado pela sentença, a verdade é que esta peça processual não padece das ilegalidades ou inconstitucionalidade que lhe são assacadas no recurso, tendo de ser mantida na ordem jurídica.
De facto, a Administração Pública não pode contratar advogados para serem instrutores de processos disciplinares, já o disseram os Tribunais, a dogmática e também a Ordem dos Advogados, precisamente em razão da necessidade de existência de uma liberdade profissional incompatível com a imprescindível hierarquia e com as razões ligadas ao interesse público e aos princípios que orientam a actividade da Administração.
Assim, a norma vertida no artigo 208.º, n.º 1 da LGTFP não é uma norma meramente ordenadora, com uma qualquer racionalidade financeira e interna, pelo que a sentença não merece censura.
Improcedem as Conclusões das alegações.

DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Notifique e DN.

Porto, 19/04/2024

Fernanda Brandão
Isabel Jovita
Rogério Martins