Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 00836/21.9BEAVR |
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Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
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Data do Acordão: | 02/07/2025 |
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Tribunal: | TAF de Aveiro |
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Relator: | LUÍS MIGUEIS GARCIA |
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Descritores: | CONTRATO; TRANSPORTES ESCOLARES; COVID 19; |
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Sumário: | I) – Não resultando os apontados erros de julgamento, o recurso não obtém provimento.* * Sumário elaborado pelo relator (art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil) |
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Votação: | Unanimidade |
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Meio Processual: | Acção Administrativa Comum |
Decisão: | Negar provimento ao recurso. |
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Aditamento: | ![]() |
Parecer Ministério Publico: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo: Município ... (Praça ..., ... ...) interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF de Aveiro, que, em acção administrativa intentada por [SCom01...], Ldª (Avenida ..., ... ...), julgou «a presente ação totalmente procedente e condeno o Réu ao pagamento da quantia de € 6.334,58, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, julgando improcedente o pedido reconvencional deduzido pelo Réu». Conclui: I - Por força da entrada em vigor da Lei nº 10-A/2020, de 13 de março, que estabeleceu medidas de contingência para a pandemia SARS-CoV-2 e combate à doença COVID 19, as atividades letivas foram suspensas nesse mesmo dia 13 de março de 2020, pelo que, a partir daí os estudantes deixaram de poder utilizar o serviço de transporte prestado pela Recorrida, cujos títulos de transporte II – Para além disso, a partir de 18 de março seguinte, data em que foi decretado o primeiro Estado de Emergência (Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18 de março), a Recorrida suspendeu na totalidade da prestação do serviço de transporte público. III - Do exposto resulta que, na prática, os estudantes a quem se destinavam os passes contratados entre Recorrente e Recorrida para o mês de março de 2020 apenas puderam utilizar o serviço prestado por esta durante 10 dias úteis dum total de 22 dias úteis. IV – A não utilização dos transportes pelos estudantes deveu-se, assim, a motivos verdadeiramente anormais, totalmente alheios e imprevisíveis, ocorridos em data posterior à formação da vontade das partes contratar, não imputáveis a nenhuma das partes, circunstâncias que tornaram impossível a prestação do serviço por parte da ora Recorrida e a sua fruição por partes dos estudantes. V - Como as partes nada consignaram para o caso de tal impossibilidade superveniente vir a ocorrer e não havendo lei específica do transporte coletivo e do transporte escolar ou outra - nomeadamente os artºs 17 e 18 do DL. 9/2015, de 15 de janeiro, o DL. 21/19, de 30 de janeiro, o próprio Código dos Contratos Públicos -, que regule os efeitos dessa impossibilidade, o quadro normativo aplicável tem de ser encontrado por aplicação do regime geral do cumprimento das obrigações. VI – Ora, sendo bilateral ou sinalagmático o contrato de aquisição de serviços de transporte, em que a obrigação de pagar o preço do serviço é a contrapartida da sua prestação pela empresa que o presta, o pagamento pelo Município é a contrapartida do serviço de transporte que a Recorrida tinha de disponibilizar aos alunos durante todos os dias úteis do mês. VII - Como a Recorrida ficou impossibilitada de prestar o serviço que se obrigara a prestar e os estudantes também impossibilitados de o utilizar, ficou o Recorrente, como devedor do pagamento do serviço contratado, desobrigado de efetuar a sua prestação, ou seja, o pagamento, conforme decorre do disposto no artº 795º, do CC. VIII – Para além disso, não constitui obrigação legal das autarquias locais financiar as empresas de transportes públicos e/ou escolares pelos impactos negativos decorrentes da declaração de estado de emergência, IX – E ainda que o pudessem fazer, sempre seria necessário avaliar o “benefício” que a Recorrida teve com a interrupção, nomeadamente, ao nível da poupança do preço dos combustíveis, outros consumíveis, não desgaste dos veículos, comparticipações públicas no pagamento de salários no âmbito do layoff simplificado, financiamentos, compensações e comparticipações públicas à empresa por redução de faturação, nomeadamente as previstas no DL. 14- C/2020, de 7 de abril, sob pena de eventual enriquecimento sem causa. X – Face ao exposto, o Recorrente tem o direito de não proceder ao pagamento do transporte escolar nos 12 dias úteis (após 16 de março de 2020) em que o serviço não foi prestado pela Recorrida. XI – Sendo que em relação ao período anterior, o preço encontra-se pago mediante compensação de créditos, como melhor se alegou na p.i., questão que será objeto de apreciação e decisão, prosseguindo os autos para apreciação da matéria da reconvenção. XII - Decidindo como decidiu, a Mtª Juiz a quo fez uma interpretação errada dos artºs 17 e 18 do DL. 9/2015, de 15 de janeiro, do DL. 21/2019, de 30 de janeiro, e violou o disposto no artº 795º, do CC. Com contra-alegações da Autora, onde esta conclui: A. A Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, estabeleceu medidas de contingência para a pandemia SARS-CoV-2 e combate à doença COVID 19, e suspendeu as atividades letivas a partir de 13 de março de 2020, tendo desde então a Recorrida suspendido o transporte público de passageiros, nomeadamente o transporte escolar. B. A não utilização dos transportes pelos estudantes deveu-se, assim, a motivos verdadeiramente anormais, totalmente alheios e imprevisíveis, ocorridos em data posterior à formação da vontade das partes contratar, não imputáveis a nenhuma das partes, circunstâncias que tornaram impossível a prestação do serviço pela Recorrida e a sua fruição por parte dos estudantes. C. Todas estas dificuldades verificaram-se no período de pandemia, estando em causa neste recurso saber se deve ser paga a totalidade da fatura referente a passes escolares relativos ao mês de março de 2020, ou se apenas deve ser pago os dias de transporte efetivamente prestados. D. A Recorrente insiste que a Autora ficou impossibilitada de prestar o serviço, ficando o Município desobrigado de efetuar o pagamento, pedindo a aplicação do artigo 795º do Código Civil que estabelece «quando num contrato bilateral uma das prestações se torna impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação (…).» E que «Só assim não seria se a impossibilidade da prestação por parte da Autora se tivesse tornado impossível de manter por culpa do réu Município, como resulta do disposto no artigo 795º, n.º 2, do Código Civil, o que não é o caso.» E. Ora, ao contrário da tese sufragada pela Recorrente, o contrato de transporte é objeto de legislação específica. Existe um regime jurídico do serviço público de transporte de passageiros, a Lei n.º 52/2015, de 9 de junho (artigo 2º alíneas a, c, f e m, e artigos 2º, 6º e 20º RJSPTP) e a Portaria n.º 298/2018, de 19 de novembro (alínea g) do n.º 3 do artigo 1º, 4º), que estabelece as regras gerais relativas à criação e disponibilização de títulos de transporte aplicáveis aos serviços de transporte público. F. Os artigos 17º e 18º do DL n.º 9/2015, de 15 de janeiro, estabelecem as condições a observar no contrato de transporte rodoviário de passageiros e bagagens, onde se retira que os passes são títulos de transporte válidos para um mês, cujo modelo de remuneração, o regime de partilha de riscos e de responsabilidades a cobertura dos títulos de transporte a disponibilizar, foram previamente acordados entre a autoridade e operador. G. Assim, tal como acolheu a sentença, as normas artigos 17º e 18º do DL. n.º 9/2015, de 15 de janeiro, regulam a não utilização dos serviços de transporte, sendo que o valor faturado por se tratar de passe mensal é devido independente da utilização. H. Assim, por força da entrada em vigor da Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, as aulas foram suspensas e o transporte escolar deixou de ser prestado, e feito o devido enquadramento ao abrigo do DL. n.º 9/2015, de 15 de janeiro, excluiu-se o dever de reembolsar ou indemnizar por títulos de transporte não utilizados, quer pelo utente, quer pelo Município. I. A não utilização do transporte escolar pelos estudantes deveu-se a motivos totalmente alheios e imprevisíveis, não imputáveis a nenhuma das partes (operador e Município), em circunstâncias anormais, ocorridas em data posterior à formação da vontade das partes de contratar (e posterior à requisição e à emissão da fatura FAP2020/216) que tornaram impossível a prestação por parte da Recorrida. J. A sentença faz menção ao enquadramento do DL n.º 21/2019, de 30 de janeiro, diploma que estabelece o regime da transferência de competências, em matéria de educação, incluindo a organização dos transportes públicos, da administração central para os municípios, regulando o plano de transporte escolar (artigo 17º a 21º e 36) a nível municipal, como o instrumento de planeamento da oferta de serviço de transporte entre o local da residência e o local dos estabelecimentos de ensino da rede pública do préescolar, do ensino básico e do ensino secundário. K. Pelo que, também não concordamos com a tese da Recorrida de que este regime legal não trata de matéria em apreço nos autos, pois trata especificamente do pagamento dos passes escolares como uma das obrigações do Município. L. A sentença refere, e bem, que a obrigação do pagamento de um serviço não prestado pode justificar-se pela necessidade de contribuir para a “mitigação de impactos negativos nas empresas”, procurando reduzir os impactos negativos na sustentabilidade das empresas de transporte em virtude do Decreto-Lei n.º 14-C/2020, de 7 de abril. M. Ora, entendemos que a Recorrente não pode colocar as verbas cabimentadas para o transporte escolar na mitigação de impactos negativos das empresas de transportes públicos como se fosse uma prorrogativa, dando a possibilidade de o Município utilizar ou não. N. O DL n.º 14-C/2020, de 7 de abril, trouxe uma solução para o problema da suspensão do transporte escolar, e só podemos entender que a Recorrente ignorou os meios e prorrogativas legais ao seu dispor, pretendendo o sacrifício injustificado da Recorrida/ Autora, que sempre se mantive disponível para assegurar a realização dos serviços de transporte em questão. O. Esta matéria foi objetivo de pareces e informações vinculativos por parte da ANTROP - Associação Nacional de Transporte de Passageiros e da AMT- Autoridade da Mobilidade e dos Transportes que entenderam inexistir fundamento para a devolução de títulos de transporte mensais pelo motivo de não realização de serviços de transportes, e sobretudo no atual contexto da Pandemia Covid-19 e das restrições impostas. P. A aquisição de títulos de transporte ao operador, para o mês de março foi efetuada em contexto legítimo de vontade contratual e com o respetivo enquadramento legal, sendo que as circunstâncias que determinaram a suspensão do funcionamento dos estabelecimentos escolares resultaram de motivos externos, imprevisíveis e posteriores à vontade das partes (operadores e autarquias) de contratar. Q. Assim, existiu um enquadramento legal (DL n.º 14-C/2020, de 7 abril) que cobria a utilização de verbas já cabimentadas para o transporte escolar na garantia de serviços mínimos e na mitigação de impactos negativos, não se podendo aceitar, o que pretende o Município, que por motivos imprevisíveis, se deixe de pagar por serviços de transporte não realizados, quando, sendo possível, o serviço se realizou. R. A suspensão parcial ou total da prestação de serviços de transporte escolar, de forma temporária, não implicava a devolução de verbas porque o DL n.º 14-C/2020, de 7 de abril, permitia a renegociação de termos contratuais e estabeleceu formas de financiamento e compensações aos operadores de transportes essenciais, no âmbito da pandemia COVID-19, porque apesar de se ter entendido que a redução da oferta implicaria a redução dos custos globais de exploração dos operadores de transporte, o ajustamento da oferta foi desproporcional à quebra da receita, o que agravou o défice de exploração dos serviços de transporte. S. Este regime legal não concede ao Recorrente/ Município prorrogativas unilaterais de pagamentos, por meio de operações de compensação de faturas, mas sim uma flexibilidade das regras sobre os auxílios do Estado, no intuito de assegurar a liquidez aos operadores de transporte, pelo seu carácter equitativo e não discriminatório. T. Dito de outra forma, o DL n.º 14-C/2020, de 7 de abril, visou compensar os operadores de transporte de passageiros pela realização de serviços públicos essenciais deficitários do ponto de vista da cobertura dos gastos operacionais por via da quebra de receitas (das vendas) de títulos de transporte. U. Ora, só podemos concluir que tendo o Recorrente, todos os meios ao seu dispor para dirimir esta questão, decidiu, optar por não pagar, ao arrepio do contexto legislativo e da posição maioritária de outros Municípios, com intenção de prejudicar financeiramente a Autora. V. Torna-se irrelevante saber quantos dias o serviço foi efetivamente prestado, se em 10 dias ou em 22 dias úteis, pelo que o valor faturado é totalmente devido. W. A pretensão do Município é desproporcional e abusiva até do ponto de vista do enquadramento legislativo subjacente, pelo que a sentença recorrida não padece de qualquer vicio ou irregularidade, pois não interpretou erroneamente o artigo 17º e 18º do Decreto-Lei n.º 9/2015, de 15 de janeiro, o DL n.º 21/2019, de 30 de janeiro e não violou o disposto no artigo 795º do Código Civil. * A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta foi notificada nos termos do art.º 146º, nº 1, do CPTA, não emitindo parecer. * Dispensando vistos, cumpre decidir. * Factos, que o tribunal “a quo fixou como provados: 1. A Autora é sociedade comercial que exerce atividade de transporte coletivo de passageiros, suas bagagens e mercadorias; 2. A Autora presta atividades de serviço público de transporte de passageiros regular na área geográfica do Município ..., sendo titular das autorizações de exploração n.º 0138/IM/AMP e 149/M/AMP (cfr. docs. 1 e 2 da PI); 3. A Autora realiza o serviço público de transporte de passageiros regular da linha n.º 2 – ... (...) e da linha n.º 13 – ... (cfr. docs. 1 e 2 da PI); 4. Através dessas linhas, realiza, ainda, serviço público de transporte escolar para o Município ... (cfr. doc. 4 da PI); 5. Os passes escolares são requisitados pelo Município ..., cujas listagens são atualizadas mensalmente, antes da emissão da faturação respetiva (cfr. doc. 4 da PI); 6. A 10.03.2020 a Autora, no exercício da sua atividade comercial, emitiu a fatura FAP 2020/116 ao Município ..., referente à atribuição de passes escolares para o Agrupamento de Escolas ..., relativos ao mês de março de 2020, no valor de 7.205,65€, com prazo de pagamento a 30 dias, vencendo-se a 09.04.2020 (cfr. doc. 3 da PI); 7. A 10.03.2020, também relativamente à prestação de serviço de transporte escolar, a Autora emitiu a fatura FAP2020/117, no valor de 5.842,75 euros, respeitante a passes escolares, referentes ao mês de março de 2020, para os alunos que frequentam o Agrupamento de Escolas ... (cfr. doc. fls. 138 do SITAF); 8. O transporte de alunos deixou de ocorrer a partir do dia 16 de março de 2020; 9. A 31.03.2020 o Réu procedeu ao pagamento do valor total da fatura FAP2020/117, no valor de 5.842,75 euros (cfr. doc. fls. 139 do SITAF); 10. A 06.08.2020, por ofício com a referência 5835, sob o assunto “Pagamento da fatura n.º FAP2020/116”, o Réu comunicou à Autora o seguinte: [Imagem que aqui se dá por reproduzida] (cfr. docs. de fls. 3-25 do SITAF – pág. 20 – e fls. 141 a 143 do SITAF); 11. A 06.08.2020 o Réu pagou à Autora, por transferência bancária, a quantia de 871,07 € (cfr. cfr. docs. de fls. 3-25 do SITAF – pág. 20). * A apelação. O tribunal “a quo” julgou totalmente procedente a acção, em que pediu a condenação do réu ao pagamento da quantia de 6.334,58, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efetivo pagamento, relativa à fatura FAP2020/16, referente à atribuição de passes escolares para o Agrupamento de Escolas ..., relativos ao mês de março de 2020, no valor de 7.205,65€; e improcedente a reconvenção, onde pediu que se reconheça “que o Réu é credor da Autora, na importância de € 2.921,38 (dois mil novecentos e vinte e um euros e trinta e oito cêntimos), paga a mais na fatura nº FAP2020/117” e, em consequência, se reconheçam “pagos, por compensação, os respetivos créditos de Autora e Réu”. Enunciou: «A questão que se coloca nos presentes autos é se será, ou não, devida pelo Município as quantias correspondentes à atribuição de passes escolares, relativos ao mês de março de 2020, em concreto, a partir do dia 16 de março de 2020, altura em que parou de se realizar o transporte de alunos, em virtude da declaração do estado de emergência decorrente da epidemiológica situação do vírus COVID19.». Elaborou seguinte juízo: «O contrato de transporte é um contrato a título oneroso, ou gratuito, celebrado com um operador de transporte público rodoviário em que este se obriga a prestar ao passageiro, mediante título de transporte válido, o serviço de transporte desde o local de origem até ao local de destino (cfr. alínea d) do n.º 1, do Decreto-Lei n.º 9/2015 de 15 de janeiro). A Lei n.º 52/2015, de 9 de junho, que aprovou o Regime Jurídico do Serviço Público de Transporte de Passageiros, determina que a organização e o financiamento do serviço público de transporte escolar compete aos municípios dentro da sua respetiva área geográfica (n.º 1 do artigo 37º da Lei n.º 52/2015, de 9 de junho), sendo esse serviço assegurado com recurso a meios próprios do município ou da Autoridade de transportes competente (n.º 2 do artigo 37º da referida Lei). É da competência dos órgãos municipais, nomeadamente a participação, planeamento, gestão e a realização de investimentos em matéria de educação, nos termos regulados nos artigos 1º e 3º do Decreto-Lei n.º 21/2019 de 30 de janeiro, sendo que, o transporte escolar é da responsabilidade dos Municípios para alunos residentes a mais de 3km do estabelecimento de ensino, disponibilizando circuitos especiais (quando não existe transporte público) ou procedendo ao pagamento de passes escolares quando existam carreiras públicas autorizadas. É o que acontece no caso dos autos, em que existe serviço de carreiras públicas autorizadas e os passes escolares são requisitados e pagos pelo Município, aqui Réu. Posto isto, a elaboração e aprovação do plano de transporte escolar é competência do município, nos termos do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 21/2019 de 30 de janeiro, constituindo o instrumento de planeamento da oferta de serviço de transporte entre o local da residência e o local dos estabelecimentos de ensino da rede pública, frequentados pelos alunos da educação pré-escolar, do ensino básico e do ensino secundário (artigo 17º do referido Diploma). Sendo assim, o plano de transporte escolar é conjugado, complementando a rede de transportes públicos e outros planos de transportes em vigor na respetiva área e visa assegurar a igualdade de oportunidades de acesso à educação pré-escolar e à educação escolar (n.º 1 e 2 do artigo 18º do referido Diploma). Por outro lado, a organização e o controlo do funcionamento dos transportes escolares são da competência dos municípios da área de residência dos alunos, nos termos definidos no plano de transportes intermunicipal respetivo, cabendo-lhes especificamente: a) Organizar o processo de acesso ao transporte escolar para cada aluno; b) Requisitar às entidades concessionárias dos serviços de transporte coletivo os bilhetes de assinatura (passe escolar) para os alunos abrangidos, nos termos a fixar por portaria dos membros do Governo com competência na matéria; c) Pagar as faturas emitidas mensalmente pelas entidades concessionárias dos serviços de transporte coletivo; d) Contratar, gerir e pagar os circuitos especiais (cfr. artigo 36º do Decreto-Lei n.º 21/2019 de 30 de janeiro). Posto isto, a questão que aqui se coloca é a de saber se está, ou não, o Município requisitante obrigado a efetuar o pagamento integral da fatura emitida correspondente ao mês de março de 2020. Conforme a a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) se pronunciou quanto a esta matéria (cfr. boletim informativo da Associação Nacional de Transportes de Passageiros nº 135, de 22 de julho de 2020), também ao Tribunal não se vislumbra existir fundamento para a devolução de títulos de transporte mensais de março de 2020 pelo motivo de não realização de serviços de transportes, concretamente no contexto da Pandemia Covld-19 e das restrições dela decorrentes. Desde logo, os artigos 17.° e 18.° do Decreto-Lei n.° 9/2015, de 15 de janeiro, excluem o reembolso ou indemnização de títulos de transporte mensal quando não sejam utilizados. Lembre-se que os títulos de transporte mensal conferem o direito à utilização de forma ilimitada dos serviços de transporte, não estando o seu pagamento indexado à utilização efetiva dos mesmos. Ora, no caso em apreço, a aquisição de títulos de transporte ao operador, para o mês de março de 2020 foi efetuada em contexto legítimo de vontade contratual e com o respetivo enquadramento legal, sendo que as circunstâncias que determinaram a suspensão do funcionamento dos estabelecimentos escolares foram posteriores e causadas por motivos externos à vontade das partes (Autora e Réu) e de natureza imprevisível. Ainda que a emissão dos referidos passes pressuponha a possibilidade concreta de utilização do serviço de transporte em causa (independentemente de ser efetivamente utilizado ou não), na verdade, aquela norma legal abrange situações, por exemplo de greves, catástrofes, etc. Ou seja, ainda que o título de transporte mensal tenha tido como pressuposto a utilização diária e ilimitada, decorre daquele diploma que, seja qual for a circunstância, não se reconhece, legalmente, o direito à indemnização ou compensação do adquirente (DecretoLei n.° 21/2019, de 30 de janeiro). Sendo assim, tendo ficado provado que os passes relativos ao mês de março de 2020 foram faturados pela Autora a 10.03.2020, e que o transporte de alunos apenas deixou de ocorrer em 16.03.2020, sendo que, naturalmente, desde o início do mês até essa data, os passes puderam ser utilizados pelos seus titulares, não prevendo o referido decreto-lei a devolução do seu valor pela sua não utilização, somos a considerar que se o valor constante da fatura era exigível a 10.03.2020, referente a passes válidos desde o início do mês, continua a ser devido pelo Réu a quantia referente à totalidade do mês de março pedida pela Autora nestes autos. Solução diversa iria, aliás, contra a ratio legis do vasto leque de legislação que visou proteger estes operadores durante a pandemia. Pois, vejamos. Com a publicação do Decreto-Lei n.° 14-C/2020 de 7 de abril, foi reconhecido que as restrições decorrentes de medidas de saúde pública (que impactaram ainda antes da declaração do estado de Emergência) tiveram impactos negativos na sustentabilidade das empresas de transportes, o que seria de mitigar através da atribuição de apoios destinados a suportar os custos de serviços mínimos ou essenciais à mobilidade da população. Adicionalmente, previu-se que poderiam ser realocadas, durante o período de tempo em que se verificasse a situação epidemiológica, ou as restrições à mobilidade já referidas, as verbas que fossem consideradas necessárias à sustentabilidade do transporte público, designadamente aquelas que se destinassem, habitualmente, ao financiamento do transporte público e transporte escolar. Ora, se num contexto de quase total supressão de serviços será admissível (se as autoridades locais assim o entenderem) a utilização de verbas já cabimentadas para o transporte escolar na garantia de serviços mínimos e na mitigação de impactos negativos nas empresas, por maioria de razão, num contexto em que foram efetivamente prestados serviços em mais de metade do mês de março e onde, nesse mês, poderemos classificar de imprevisível a suspensão do funcionamento de estabelecimentos escolares, não seria de todo justificável o não pagamento dos montantes relativos a esse mês. Pelo exposto, será de fazer proceder o pedido da Autora. Quanto ao pedido reconvencional, verifica-se que o mesmo será improcedente pelas razões que abaixo se expõem. O Réu veio comunicar à Autora que iria proceder à liquidação da FAP2020/16 por via da dedução do valor de 3.413,20€ (valor que considerou não ter de pagar por falta de serviço de transporte após dia 13.03.2020) e por compensação do seu crédito, no valor de 2.921,38€ (referente ao valor que consideram ter pago indevidamente em outra fatura, a FAP2020/117), tendo pago por transferência bancária a quantia de 871,07€. Ora, a fatura FAP2020/117 era referente a passes escolares do mês de março de 2020, mas desta feita para os alunos que frequentam o Agrupamento de Escolas ..., sendo que o Réu veio comunicar à Autora que procedeu indevidamente ao seu pagamento total, baseando-se na mesma argumentação que teceu relativamente à fatura FAP2020/16. Sucede que, tendo o Tribunal concluído pela procedência do pedido da Autora, isto é, que é devida a totalidade do valor do mês de março relativamente à fatura FAP2020/16 (Agrupamento de Escolas ...), então também será devido o valor total da fatura FAP2020/117 (Agrupamento de Escolas ...), uma vez que se refere a situação idêntica. Tendo ficado também provado que o Réu procedeu ao pagamento total da fatura FAP2020/117 e que, quanto à fatura FAP2020/16 apenas procedeu ao pagamento do valor de 871,07€, deve ser o Réu condenado ao pagamento da quantia remanescente, conforme peticiona a Autora. Improcede, por isso, o pedido reconvencional deduzido pelo Réu.». Julga-se que a decisão recorrida terá chegado a bom porto. Como nos dizem os factos, tudo se desenvolve no âmbito do serviço público de transporte escolar, mediante requisição dos passes escolares requisitados pelo Município, cujas listagens são atualizadas mensalmente, antes da emissão da faturação respetiva. Estrutura disciplina o Decreto-Lei n.º 21/2019, de 30/01, particularizando que cabe às câmaras Municipais “Requisitar às entidades concessionárias dos serviços de transporte coletivo os bilhetes de assinatura (passe escolar) para os alunos abrangidos, nos termos a fixar por portaria dos membros do Governo com competência na matéria” e “Pagar as faturas emitidas mensalmente pelas entidades concessionárias dos serviços de transporte coletivo” (art.º 36º). O recorrente situa, de circunstâncias conhecidas: I - Por força da entrada em vigor da Lei nº 10-A/2020, de 13 de março, que estabeleceu medidas de contingência para a pandemia SARS-CoV-2 e combate à doença COVID 19, as atividades letivas foram suspensas nesse mesmo dia 13 de março de 2020, pelo que, a partir daí os estudantes deixaram de poder utilizar o serviço de transporte prestado pela Recorrida, cujos títulos de transporte II – Para além disso, a partir de 18 de março seguinte, data em que foi decretado o primeiro Estado de Emergência (Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18 de março), a Recorrida suspendeu na totalidade da prestação do serviço de transporte público. Em primeiro fulcro argumentativo sustenta: “sendo bilateral ou sinalagmático o contrato de aquisição de serviços de transporte, (…) Como a Recorrida ficou impossibilitada de prestar o serviço que se obrigara a prestar e os estudantes também impossibilitados de o utilizar, ficou o Recorrente, como devedor do pagamento do serviço contratado, desobrigado de efetuar a sua prestação, ou seja, o pagamento, conforme decorre do disposto no artº 795º, do CC (…) o Recorrente tem o direito de não proceder ao pagamento do transporte escolar nos 12 dias úteis (após 16 de março de 2020) em que o serviço não foi prestado pela Recorrida.”. Mas não é assim. O recorrente apela ao regime civilístico, em especial ao previsto quanto à impossibilidade de cumprimento não imputável ao devedor, com desobrigação da contraprestação do credor, o qual, se já a tiver realizado, pode exigir restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa (art.º 795º do CC). Vendo apenas nesse ambiente normativo poderíamos perspectivar acolhimento. Estamos perante relação duradoura em que a utilidade que deriva de cada prestação é uma utilidade pro tempore, de sentido não meramente indicativo, que não pode ser restituída nem, por regra, recuperada; ao invés, de relevância essencial, em que a prestação tardia não tem interesse para o credor; pelo que, adquirindo essa dimensão temporal própria, pode merecer solução que o CC, em geral, prevê em função de prestação instantânea (cit. art.º 795º); e que também não deixa de ser perspectiva do Código a propósito de uma resolução para os contratos de execução periódica ou continuada (veja-se, sobre o ponto, Baptista Machado, “Anotação ao Acórdão do STJ de 8.11.1983”, RLJ, ano 118, 1986, n.º 3738; art. 434.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC, para a falta de correspectividade; o que sucede quando a contraprestação de uma das partes já tiver sido realizada, mas a outra parte ainda não tiver prestado a sua; sendo de ressalvar na equiparação de efeitos (art.º 433), perante parcial execução do devedor, redução, conforme art.º 292º). Porém, a situação disciplinada, relativa aos transportes escolares, sucessivamente regida pelo direito público desde o século passado, não tem imediata adesão a cânones de autonomia da vontade e liberdade contratual, e ao que são aí soluções. Sem embargo, numa aproximação ao que é do domínio contratual, e especificamente ao contrato de transporte, podemos encarar que a requisição de passe feita pela Câmara Municipal surge no sistema gizada como um contrato a favor de terceiro (art.º 443º do CC). E não suscita dúvida que as questões relativas ao inadimplemento hão-de ter no equilíbrio de solução o que o ordenamento rege ao interesse desse terceiro. E assim visto, sem divergente apontamento proporcionado pelo próprio regime do transporte escolar, tem plena força que o tribunal “a quo” tenha lembrado na interferência ao sinalagma que o Decreto-Lei n.º 9/2015, de 15 de janeiro, exclui o reembolso ou indemnização de título de transporte mensal quando não seja utilizado. Mesmo que - e dir-se-á que mais ainda - quando a impossibilidade o seja por força maior, mesmo que não por evento natural mas pelo fait du prince. De todo o modo, é também assim de encarar mesmo que repugne ver figura de contrato a favor de terceiro; a legal exclusão de reembolso ou indemnização sempre subtrai à lógica de vínculo sinalagmático/cumprimento a expansão com que o recorrente brande. Não deixa aqui também de se ver o caso à luz do CCP (em simples enquadramento de direito - não em reporte a diferente fundamento de causa - em que o tribunal é livre; e, fora das relações privadas, não dependente de alegação) o qual prevê suspensão de execução das prestações que constituem o objeto do contrato (art.º 297º, b), do CCP) por virtude de excepção de não cumprimento; em que o alcance “da exceptio” - e aqui a afeição ao caso -, deve ser proporcionada à gravidade da inexecução parcial ou à execução defeituosa de uma das partes de um contrato bilateral e só poderá normalmente ser oposta uma recusa de prestar também em termos meramente parciais; sucede que, como é pacífico, o incumprimento definitivo da prestação, como aqui está em suposição, é incompatível com a “exceptio”. Resta observar quanto às razões do recurso que não há qualquer “enriquecimento sem causa”; quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa. Nem qualquer “financiamento” “indevido” (a expressão é nossa); a obrigação de pagamento do Município resulta como devida quanto aos bilhetes de assinatura (passe escolar) requisitados (de que o Município é compensado por transferência de fundo público). Financiamento à reposição de equilíbrios contratuais, mormente provocados pela redução de requisições, (a) isso sim, antes acudiu o DL n.º 14-C/2020 de 7 de abril, na definição de procedimentos de atribuição de financiamento e compensações aos operadores de transportes essenciais, no âmbito da pandemia COVID -19. Donde, na decorrência do que se viu, resulta a manutenção do decidido, quer quanto à acção, quer quanto à reconvenção. * Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso. Custas: pelo recorrente. Porto, 07 de Fevereiro de 2025. Luís Migueis Garcia, por redistribuição Conceição Silvestre Ana Paula Martins |