Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00249/14.9BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/27/2025
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:VIRGÍNIA ANDRADE
Descritores:IVA;
COMODATO; NEUTRALIDADE;
PRESTAÇÕES SERVIÇOS GRATUITOS;
Sumário:
I. Ao abrigo da 6ª Directiva, o princípio da neutralidade deve estabelecer a igualdade de tratamento para mercadorias idênticas, implicando ainda que o IVA comunitário deva incidir da mesma forma em todas as operações, independentemente da extensão das cadeias de produção e de distribuição.

II. No entanto, por força da existência de isenções e da existência de diferentes taxas mediante o tipo de transação ou bem em questão, o IVA não é um imposto totalmente neutro.

III. Constituem elementos essenciais do contrato de locação de imóvel e sem os quais o contrato não se forma i) a concessão do gozo de um prédio urbano, no todo ou em parte; ii) feita por certo prazo; iii) mediante retribuição – cfr. artigo 1022.º do CC.

IV. À luz da alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do CIVA, o comodato, por não reunir os elementos necessários para ser considerado contrato de locação de imóvel, consubstancia uma prestação de serviços a título gratuito efectuada pela própria empresa com vista a fins alheios à mesma, estando sujeita a IVA.

V. A tributação do comodato para efeitos de IVA não viola o princípio da concorrência nem a neutralidade do IVA.

VI. Considerando as técnicas de interpretação, consideramos que se o legislador pretendesse excluir da disposição ínsita no alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do CIVA o comodato, por o equiparar ao arrendamento, o teria dito expressamente.

VII. Nos termos do que dispõe o artigo 267.º do TFUE, o reenvio prejudicial só se justifica quando não haja qualquer anterior decisão do tribunal apreciando a questão decidenda ou quando a interpretação das normas comunitárias controvertidas suscite dúvida razoável.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte

1 – RELATÓRIO
A Fazenda Pública, vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida em 26.05.2020 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou procedente a impugnação intentada por [SCom01...], Lda., NIPC ...23, contra as liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado dos períodos de 2009 a 2011, no montante total de €13.349,51.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
“a) Incide o presente recurso sobre, a aliás douta sentença, que julgou procedente a presente impugnação, com a consequente anulação da liquidação adicional de IVA, dos períodos de 2009-03T a 2011-12T, com fundamento em vicio de violação de lei, porquanto , no seu entender, a operação ora em causa, não obstante constituir uma operação sujeita a IVA nos termos da alínea b) do n.º 2 do art.º 4.º do CIVA, beneficia da isenção de IVA prevista no n.º 29 do art.º 9.º do mesmo Código;
b) De acordo com o n.º 2 do art.º 4.º do CIVA, certos serviços gratuitos prestados por sujeitos passivos do imposto são considerados prestações de serviços a título oneroso, ficando, portanto, sujeitos a IVA, como é o caso das "prestações de serviços a título gratuito efetuadas pela empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do seu pessoal, ou em geral para fins alheios à mesma", previstas na al. b) daquela disposição;
c) Sendo que, quando se determine que uma determinada operação está sujeita a IVA por se encontrarem verificados os pressupostos de incidência, cabe avaliar se a mesma pode (ou não) beneficiar de uma isenção prevista no CIVA;
d) No caso sob apreciação, entendeu o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo que a utilização, em exclusivo e a título gratuito (decorrente de comodato verbal), pela sociedade [SCom02...], SA de o edifício que é propriedade da impugnante deve ser qualificada, para os efeitos previstos no n.º 29 do art.º 9.º do CIVA, como uma locação de bens imóveis;
e) Porém, ressalvado o devido respeito, que é muito, entende a Fazenda Pública que o Julgador, ao assim o entender, incorreu em erro de julgamento, mormente, em errónea interpretação do determinado no art.º 9.º, n.º 29 do CIVA;
f) Com efeito, o n.º 29 do art.º 9.º do CIVA, à semelhança do estabelecido na alínea l) do n.º 1 do art.º 135.º da Directiva 2006/112/CE, de 28/11 (doravante Directiva IVA), determina que estão isentas de IVA a locação de bens imóveis, salvo as situações descritas nas alíneas a) a e);
g) Note-se que não é definido na Directiva IVA, nem no CIVA, o que deve entender-se por «locação de bens imóveis», nem há uma remissão para os direitos nacionais, pelo que o preenchimento desse conceito deverá ser efectuado tendo em conta a jurisprudência do TJUE (sendo o IVA um imposto de origem comunitária, impõe-se a regra do primado do direito comunitário sobre o direito interno);
h) Pois, enfatiza-se, as normas que na Directiva IVA prevejam isenções de imposto, por constituírem excepções ao princípio geral de tributação das transmissões de bens e prestações de serviços preconizadas pelo IVA, devem ser objecto de uma “interpretação estrita”, o que significa que se devem interpretar estritamente em harmonia com o sentido literal dos preceitos (cfr. acórdãos caso Bulthuis-Griffioen, Proc. C-453/93, e caso Klüger, Proc. C-141/00);
i) O Tribunal de Justiça definiu em numerosos acórdãos a locação de bens imóveis, na acepção desta disposição, como o direito conferido pelo proprietário de um imóvel ao locatário de, mediante remuneração e por um período acordado, ocupar esse imóvel como se fosse o proprietário e de excluir qualquer outra pessoa do benefício desse direito (cfr. Acórdãos caso Goed Wonen, Proc. C-326/99 e caso Walderdorff, Proc. C-451/06);
j) Assim, segundo a jurisprudência comunitária dimanada do TJUE, o conceito de "locação de bens imóveis" reporta-se à cedência do gozo temporário de um espaço imobiliário mediante retribuição;
k) Decorre daqui que constituem características típicas do contrato de locação a obrigação de o locador proporcionar o gozo da coisa ao locatário; o carácter temporário do gozo da coisa; e a obrigação de pagamento de retribuição pelo locatário ao locador em contrapartida do gozo temporário da coisa, constituindo-se, por isso, a locação como um contrato oneroso;
l) Estas características do contrato de locação constituem os seus elementos essenciais. Tal significa que a não verificação de algum destes elementos implique que não se esteja na presença de um contrato que possa ser qualificado como locação de imóvel;
m) Ora, verifica-se que o conceito de “locação de bens imóveis” que é dado pelo TJUE é muito próximo da noção de locação que é dada pelo Código Civil português, no seu art.º 1022.º;
n) Por sua vez, o comodato, previsto no art.º 1129.º do Código Civil, consiste no “contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.”;
o) Do que resulta que o comodato, diversamente da locação, não é um contrato sinalagmático, já que à obrigação de disponibilização da coisa pelo comodante não corresponde qualquer contrapartida pelo comodatário, ou seja, inexistem, a cargo do comodatário, quaisquer prestações que constituam o equivalente ou o correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante;
p) No caso sob apreciação, verifica-se que, na operação em questão nos autos – utilização, em exclusivo por parte de um terceiro de um edifício que é propriedade da impugnante -, está em causa a cedência do gozo de um edifício que é propriedade da impugnante a favor de um terceiro sem que fosse estipulado qualquer prazo de duração, nem convencionada qualquer prestação que constitua o equivalente ou correspectivo daquela atribuição pelo comodante;
q) Daqui emerge que tal operação não preenche, na sua íntegra, as características típicas do contrato de locação de bens imóveis, a saber: cedência do gozo de uma coisa, com carácter temporário e mediante retribuição;
r) De facto, não obstante a operação ora em questão conferir o direito de gozar a coisa, constata-se que não se encontra verificado o elemento essencial “carácter temporário”, porquanto não foi estipulado qualquer prazo de duração para a cedência do gozo da coisa, tratando-se, por isso, de um comodato celebrado por tempo indeterminado;
s) Atente-se que, como é mencionado na douta sentença (cfr. fls. 14 da mesma), da prova testemunhal produzida resultou que “(…) a motivação subjacente [da operação] não era apenas a guarda e conservação, mas, também, de preparar a ulterior fusão. Não tendo esta ocorrido até à data, permanece por demonstrar qual o interesse que tem a Impugnante em manter por todos estes anos um imóvel, sem o rentabilizar, suportando os custos de amortização, IMI, etc.”, o que, atento o disposto no n.º 1 do art.º 1137.º do Código Civil, significa que, na falta de interpelação do comodante para esse efeito, ainda não se constituiu, por parte da comodatária, a obrigação de restituir o imóvel que lhe foi emprestado, posto que não findou o uso por que foi determinada tal cedência;
t) De igual modo, não se encontra verificado o elemento “mediante retribuição”, uma vez que não foi convencionado qualquer tipo de retribuição ou pagamento de qualquer contrapartida pela comodatária que constitua o equivalente ou correspectivo daquela atribuição pelo comodante, ou seja, a cedência do gozo do imóvel ora em causa nos autos foi concedida a título gratuito;
u) Portanto, reitera-se, a operação em causa nos autos não preenche, na sua íntegra, as características típicas do contrato de locação de bens imóveis, mormente os elementos “carácter temporário” e “mediante retribuição”:
v) Pelo que, tendo em conta as características fundamentais que um contrato de locação deve conter, não apresentando a operação de cedência gratuita do imóvel aqui em análise tais características, a mesma não poderia beneficiar da isenção prevista pelo n.º 29 do art.º 9º do CIVA; w) Mal andou, assim, a douta sentença ora sindicada ao equiparar tal operação a uma locação de bens imóveis para efeitos de isenção de imposto ínsita no art.º 9.º, n.º 29 do CIVA;
x) Pois, salvo melhor douta opinião, entende a Fazenda Pública que a utilização graciosa e em exclusivo por parte de um terceiro de um imóvel que é propriedade da impugnante, como o que está em causa nos autos, não constitui uma locação de bens imóveis, na acepção do disposto no art.º 9.º, n.º 29 do CIVA, pelo que não se encontra abrangida pela isenção aí prevista;
y) Acresce, ainda, referir que, embora tal cedência graciosa do gozo da coisa confira ao destinatário o direito de ocupar um imóvel, de forma a assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina, certo é que o contrato de comodato, contrariamente ao que sucede no contrato de locação, não é oponível ao terceiro que venha a adquirir o referido edifício;
z) Posto que, inexiste no comodato qualquer norma que, à semelhança do art.º 1057.º na locação, preveja a transmissão da posição do comodante para um terceiro adquirente da coisa;
aa) Com efeito, o direito do comodatário só vale perante o comodante e não perante terceiros, nomeadamente perante terceiros que venham a adquirir o prédio, pelo que nesta situação o terceiro adquirente do prédio objecto desse contrato pode exigir a sua entrega à comodatária, o que, por força do disposto no art.º 1057.º do Código Civil, já não ocorre na locação de imóveis;
bb) Ademais, não podemos olvidar que a isenção, em sede de tributação em IVA, da locação de bens imóveis se prende com razões de simplificação, pois, conforme bem refere Emanuel Vidal Lima, tributar tais operações de locação implicaria introduzir no sistema do IVA um número muito elevado de sujeitos passivos quando é conhecido que grande parte dos senhorios são particulares, que não teriam um “mínimo de organização” necessária para responder às obrigações acessórias associadas à qualidade de Sujeito passivo (Cfr. Emanuel Vidal Lima, Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, comentado e anotado, 9.ª edição, Porto editora, 2003, págs. 254-255);
cc) Sendo que, no caso sob apreço, está em causa a tributação de operações (gratuitas) que sejam efectuadas, em exclusivo, por sujeitos passivos do imposto, pelo que já não lhes são aplicáveis as razões que fundamentam a isenção das operações de locação de imóveis, uma vez que tratam de operações realizadas por operadores económicos habituados ao funcionamento do imposto;
dd) Em suma, temos que a utilização gratuita do imóvel nas condições do presente processo não deveria ser, como assim o foi, qualificada pelo Julgador de “locação”, na acepção do art.º 9.º do n.º 29 do CIVA, pelo que a isenção prevista por esta disposição não lhe é aplicável;
ee) A douta sentença sob recurso, ao decidir como decidiu, incorreu, assim, em erro de julgamento, por errada interpretação da lei, mormente o disposto no art.º 9.º, n.º 29 do CIVA;
ff) Ainda assim, suscitando-se dúvidas quanto à susceptibilidade da operação em crise poder beneficiar da isenção prevista no art.º 9.º, n.º 29.º do CIVA, e uma vez que está em causa a aplicação de normas comunitárias, designadamente normas da Directiva IVA, a Fazenda Pública vem solicitar, caso assim doutamente seja entendido, que seja ordenado o reenvio do processo ao TJUE, ao abrigo do disposto no art.º 267.º do TFUE, sendo, nesse caso, determinada a suspensão da instância recursiva até que ali seja proferida decisão.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, ordenando-se, em consequência, a substituição da douta sentença recorrida, por outra em que se julgue improcedente, por não provado, o vício de violação de lei imputado à liquidação impugnada, com as legais consequências.”
*
A Recorrida deduziu contra-alegações com o seguinte teor:
“1º - O Tribunal ad quo entendeu, e bem que as liquidações efectuadas pela Recorrente não se deveriam manter. Com efeito,
2º - O princípio geral subjacente no CIVA à tributação das operações gratuitas é que em sede de tributação se deve passar como se de operações onerosas se tratasse, dessa forma se prevenindo a fraude e a evasão fiscais.
3 º - Dai que, como se referiu anteriormente, se equiparem a operações onerosas as operações graciosas e se estabeleça como base tributável o valor de mercado do bem ou serviços.
4º - Com isso se obtendo a neutralidade do IVA no mercado.
5º - A IT sem cuidar de apurar qual o valor normal de mercado da renda do imóvel, em violação do seu dever inquisitório, resolveu nas palavras da testemunha «AA» ¯tributar pelo mínimo que eram os encargos suportados pela Impugnante com o imóvel.
6º - Contudo, e como resultado do quadro legal acima exposto, tal admissibilidade apenas existe à míngua de ¯prestação de serviço similar‖ (alínea c) do nº 4 do art.º 16º do CIVA), não sendo crível a inexistência de arrendamento comparável no parque industrial onde se situa o imóvel.
7º - Não obstante, a concreta matéria tributável é irrelevante para o caso em apreço.
8º - Efetivamente, e independentemente de tais questões, considera-se que a tributação da operação gratuita como se operação onerosa se tratasse apenas pode ocorrer se a operação onerosa equivalente fosse ela também tributável.
9º - É que a cedência onerosa do imóvel, como ocorre nos presentes autos, à mingua de qualquer referência a serviços acessórios ou outro motivo excludente, configura um contrato de arrendamento que se encontra, via de regra, isento de IVA e a menos que haja renuncia à isenção nos termos legais.
10º - Consequentemente e sob pena de distorção da concorrência e violação do princípio da neutralidade do IVA, é inadmissível tratar de forma mais custosa a operação gratuita do que a operação onerosa. Dito de outro modo,
11º - Se a Impugnante tivesse arrendado o imóvel não haveria lugar a liquidação de IVA porquanto a operação de locação do imóvel se encontraria isenta nos termos do art.º 9º do CIVA.
12º- Não se vislumbram motivos para que haja lugar a tributação em sede de IVA do comodato.
13º - Considerar que o arrendamento está isento de IVA e o comodato sujeito (e não isento) implicaria em sede deste ultima a liquidação de IVA sobre o valor normal de locação (ou pelo menos sobre os seus custos) e a não liquidação de qualquer imposto no primeiro.
14º - E manifesto que tal entendimento viola de forma ostensiva o principio da neutralidade do IVA.
15º - Assim, e em face do exposto, conclui-se que a liquidação de IVA sobre a cedência da imóvel enferma do vício de violação de lei, e como tal deve ser anulada. Ademais,
16º - Reconhecendo, expressamente, a AT que a Impugnante não tinha actividade, acabou por concluir, e bem diga-se, que não se justificava a existência de custos/gastos que estavam contabilizados. Por conseguinte,
17º - Logo em sede de IRC, havia lugar à designada – «correcção técnica» -, no sentido de não os considerar para efeitos fiscais – somas e subtracções. Nestes termos
18º - Ao abrigo do disposto no artigo 23º do CIRS, são aceites como custos, as despesas necessárias à manutenção da fonte produtora (neste artigo estão precisamente elencadas algumas das despesas que são aceites).
19º - Obviamente, não existindo fonte produtora (a impugnante estava inactiva), como é expressamente reconhecido em diversos pontos do relatório da AT, não se justificam os custos (para efeitos fiscais) e teriam de ser, pois, desconsiderados.
20º - Este facto, contudo, não legitima que a AT ficcione proveitos, estimando os valores – isto é inconcebível, pois sob o ponto de vista fiscal, em qualquer sociedade comercial em que não há custos, não há proveitos, uma vez que uns e outros estão correlacionados entre si.
21º - Como alude o relatório da AT – (cfr. págs. 6) em 2010 e 2011 a Impugnante declara custos/gastos que não correspondem somente aos indispensáveis para as vendas de mercadorias para o Município ... e, deste modo, teria de corrigir os custos/gastos em excesso, isto é, para além dos necessários, para fazer face aquelas vendas, Com efeito.
22º - Estamos perante uma mera «correcção técnica», a qual não legitima, nem suporta, aliás, uma estimativa de proveitos, continuando a vigorar o princípio de que, onde não há custos, não há proveitos. Estes dois conceitos estão relacionados. Ora,
23° Na situação sub judice, tratando-se de uma «correcção técnica», a AT deveria ter somente desconsiderado os custos, tornando-os ineficazes para efeitos fiscais. Ademais,
24° Na página 10 do Relatório da AT, conclui-se precisamente que a Impugnante não exercia efectivamente a actividade em qualquer dos anos analisados. Em consequência, constata-se que é a própria AT que conclui como concluiu e, como tal, os seus procedimentos subsequentes teriam de ter em consideração esta conclusão, o que, efectivamente, não sucedeu, o que é inconcebível. Destarte,
25° Impunha-se que a AT, como pessoa de bem que se presume, fizesse as correcções técnicas que a factualidade mostrava e justificava, e não o fez porque em sede de IRC, a aplicação do valor tributável ocorreria entre duas entidades com «relações especiais» e, como ajustamento adequado, não resultaria, pois, para o Estado, qualquer imposto superior ao obtido sem a devida correcção — cfr. pág. 9 do relatório da AT (a AT admite que não corrigiu porque não havia imposto a pagar ao Estado, e isto é grave!
26° Se a Recorrente tivesse utilizado o mesmo critério em relação à sociedade comercial [SCom02...], SA, alargando o âmbito da acção inspectiva àquela empresa com «relações especiais» (conclusão da AT), facilmente se concluiria que o Estado saiu manifestamente beneficiado, uma vez que a empresa pagou mais imposto que aquele que seria efectivamente devido
27° Por conseguinte, a Impugnante constata que foram utilizados critérios díspares (diferentes), consoante fosse previsível obter, ou não, mais imposto. Ora, para sermos sérios, os critérios têm de ser consistentes e uniformes, o que não é, inequivocamente, o caso ora em apreço.
28º Como resulta claramente da prova produzida em audiência de julgamento, o Estado foi beneficiado com o IRC e, em sede de IVA, a situação resultou neutral.
29° Contudo, a AT, ao estimar os proveitos na impugnante, com o firme e único propósito de liquidar IVA, considerou os gastos registados. Ora,
30° Convenhamos que esta atitude altiva da AT colide frontalmente com a racionalidade da actividade económica das empresas, a qual visa a obtenção do lucro.
31º É, pois, impensável que uma empresa não facture com alguma margem de lucro, (maior ou menor), em relação aos custos que suporta. Assim, sob o ponto de vista económico, não faz qualquer sentido debitar ou considerar o valor do debito igual aos custos, suportados, sem qualquer margem – é a racionalidade económica que está em causa e a arbitrariedade da AT.
32° Pelo supra exposto, está pois elidido, por parte da Impugnante, o disposto no artigo 4°, n° 2, al. b) do CIVA, invocado pela AT para fundamento na cobrança indevida à Impugnante do imposto de IVA. Por último, mas não menos relevante,
33° Não estão preenchidos, in casu, os pressupostos a que alude o art° 267° do TJUE, pelo que o mesmo não deverá ser aplicado.”

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Remetidos os autos ao STA, por Acórdão de 26.10.2022, aquele Tribunal decidiu julgar-se incompetente em razão da hierarquia e declarar que a competência para conhecer do presente recurso é do Tribunal Central Administrativo Norte.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e consequentemente ser a sentença a quo mantida e por isso afastadas da Ordem Jurídica, as liquidações de IVA, de 2009 a 2011, no montante global de €13.349,51.
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Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos ao abrigo do disposto no artigo 657.º n.º 4 do Código de Processo Civil, submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.

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Objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta do disposto no artigo 608.º n.º 2, artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir i) do erro de julgamento de direito por errada interpretação do disposto no artigo 9.º n.º 29 do CIVA ii) do reenvio do processo ao TJUE.
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2 - Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
O Tribunal a quo decidiu a matéria de facto da seguinte forma, que aqui se reproduz:
A. A Impugnante foi objeto de ação inspetiva a coberto da OI20.......74, com referência aos exercícios fiscais de 2009 a 2011 e na qual foi considerado existir IVA em falta. [cfr. relatório inspetivo constante de fls. 56 e ss. do procedimento administrativo apenso aos presentes autos]
B. A proposta de atos tributários teve a seguinte fundamentação:
(…)
2.4.2- ANÁLISE CONTABILISTICA E DECLARATIVA
Como referido no ponto 2.31. o s.p. inicia a atividade em 1993. Verificou-se que o s.p. desde 2004 se encontra inativo, tendo vindo a declarar tal facto na IES, quadro 10 - acontecimentos marcantes Com referência a estes anos tem declarado prejuízos contabilísticos e fiscais consecutivos.
Verifica-se pela análise declarativa que tais prejuízos prendem-se essencialmente com os gastos relativos à depreciação do imobilizado corpóreo.
Nos exercícios em análise comprovou-se que, no exercício de 2009, continua a não ser declarado qualquer volume de negócios. A empresa somente registou custos, nomeadamente, fornecimento serviços externos (FSE), depreciações e amortizações e outros gastos e perdias.
Em março de 2015 o sujeito passivo começou a efetuar prestações de serviços e a liquidar IVA sobre essas prestações (alojamento - taxa reduzida e alimentação - taxa normal). Verificando-se a emissão da primeira fatura de prestação de serviços (fatura nº 1 - Anexo 1) no dia 11- 03-2015.
Nos exercícios de 2010 e 2011 comprovou-se que foram registadas e declaradas na contabilidade vendas de mercadorias no valor de € 27.883,31 e € 37.588,89 respetivamente, constituindo uma atividade residual.
Nos exercícios de 2010 e 2011 as vendas de mercadorias registadas na contabilidade e declaradas, nos montantes mencionados são para um único cliente - Município ..., com NIF: ...80. A correspondente compra de mercadorias registada e declarada foi faturada na sua totalidade pela sociedade ¯[SCom02...], SA" com NIF: ...48, seu único fornecedor.
Não são declaradas quaisquer existências, pelo que toda a mercadoria registada em compras é Por consulta ao sistema informático da AT - cruzamento da declaração anual - Anexo O e P, constata-se que, nos exercícios anteriores (inclusive 2009), o Município ... consta como cliente da sociedade" [SCom02...], SA".
Tudo indica que a atividade que a " [SCom01...]" realiza (volume de negócios declarado nos anos de 2010 e 2011) foi originada apenas pelo facto de a sociedade “[SCom02...], SA” ter ultrapassado, nos anos anteriores o estabelecido no n.º 2 do artigo 113° do D.L 18/2008 de 29/1.
Pois, de acordo como o disposto no n.º 2 do art.º 113, não podem ser convidadas a apresentar propostas entidades às quais a entidade adjudicante já tenha adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores, na sequência de ajuste direto adotado nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 20.° do mesmo diploma, propostas para a celebração do contratos cujo objeto seja constituído por prestações do mesmo tipo ou idênticas às do contrato a celebrar, e cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior ao limite de € 75.000,00.
Da análise documental da contabilidade do s.p. nos exercícios de 2010 e 2011 comprovou-se que o cliente - Município ..., realizou a encomenda das mercadorias mediante a emissão de um documento designado de "requisição", onde constam as referências das mercadorias (código e designação) que pretende adquirir, bem como o preço a praticar e são apresentados à sociedade [SCom01...].
Considerando as faturas de venda de mercadorias por parte da sociedade [SCom02...], SA apurou-se que estas encontram-se no armazém sito no Parque Industrial ..., lote ....2 e pertencem à sociedade [SCom02...], SA.
A partir da requisição do Município, a sociedade [SCom02...], SA emite uma fatura onde constam as mercadorias solicitadas para a [SCom01...].
Posteriormente estas emitem a fatura da mercadoria para o Município.
Da análise dos documentos registados não se constatou qualquer anomalia. Estes estão a ser emitidos de acordo com todos os requisitos do art.º 36.° do CIVA.
Resumindo:
O município realiza a encomenda mediante a emissão de um documento ao qual dá o nome de "requisição" onde constam as referências das mercadorias que pretende adquirir, bem como o preço a praticar (estes valores são fornecidos anteriormente) e envia-o para a [SCom01...].
As mercadorias objeto de transmissão encontram-se no armazém sito no Parque Industrial ..., lote ....2 e pertencem à [SCom02...] SA, e mediante a requisição do município, a [SCom02...] SA emite uma fatura onde constam as mercadorias solicitadas para a [SCom01...] e posteriormente esta emite fatura para o Município.
As vendas têm por suporte faturas, onde constam as referências comercializadas, as quantidades, valor (valor mercadoria + imposto), cliente e respetivo NIF. A fatura indica o número da requisição.
Assim, constata-se que o volume de negócios declarados em 2010 e 2011 é diminuto para um único cliente, tal como atrás referido e que as faturas de venda foram registadas quase simultaneamente com as de compra (no próprio dia ou nos dias imediatamente a seguir), conforme se demonstra em quadro que se anexa - Anexo n. 1 (fls 1 a 3).
Por outro lado a sociedade [SCom01...], registou e declarou custos/gastos conforme quadro abaixo:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

Conforme se constata pelos valores apresentados não registou gastos com o pessoal.
Na rubrica FSE, fornecimento e serviços externos estão registados custos com o consumia de energia, sendo esta utilizada para o exercício da atividade da empresa [SCom02...], SA.
Ou seja, as instalações estão a ser utilizados pela sociedade [SCom02...], SA.
Deste modo, podemos concluir que a sociedade tem estado inativa, por opção (até 2009) mas a suportar e declarar custos, essencialmente referentes ao imóvel que está a ser utilizado por outra sociedade.
Com referência, aos exercícios de 2010 e 2011, pelos factos mencionados acima também se conclui que a sociedade declara custos/gastos que não correspondem, somente, aos indispensáveis para as vendas de mercadorias para o Município ....
III - DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORRECÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS
No âmbito da ação inspetiva foram analisados os registos contabilísticos dos proveitos/reditos e custos/gastos, bem como aos respetivos documentos de suporte.
EXPOSIÇÃO DOS FACTOS
A análise centrou-se na correlação entre custos/gastos e proveitos/reditos, regra básica de imputação temporal de custos/gastos. Pois é esta correlação que determina o processo de repartição de uma forma racional e sistemática do custo do imobilizado à medida que se vai depreciando, pelos diferentes exercícios que integram a sua vida útil.
No entanto são impostas regras que passamos a citar, art.º 29 a 34° do CIRC, decreto regulamentar 2/90 e decreto regulamentar 25/09, visando a obrigatoriedade de imputação a cada exercício das amortizações ou reintegrações que lhe dizem respeito variando entre as taxas mínimas e as taxas máximas. As taxas de depreciação e amortização encontram-se nas tabelas anexas aos respetivos decretos regulamentares e fazem parte integrante dos mesmos.
A vida útil de um elemento do ativo imobilizado é para efeitos fiscais o período durante o qual se reintegra ou amortiza totalmente o seu valor, independentemente do método utilizado.
Analisados que foram os mapas de reintegrações e amortizações de cada um dos exercícios/períodos, verificou-se que para a determinação da quota anual de reintegração e amortização o s.p. utilizou o Método das Quotas Constantes, aplicando as taxas fixadas nas tabelas anexas ao DR 2/90 para o exercício/período de 2009 e no DR 25/09 para o exercício/período de 2010 e 2011.
Mapa de Amortizações e Reintegrações de cada exercício/período:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
O imóvel sobre o qual se centrou a análise trata-se de um pavilhão sito no Parque Industrial ..., lote ....2, ....
O imóvel não está a ser efetivamente utilizado pelo s.p., é utilizado a fins alheios à empresa, quem utiliza o referido imóvel é a [SCom02...] SA, NIF: ...48 (fornecedor da [SCom01...] nos exercícios de 2010 e 2011).
O fornecimento por parte da [SCom02...] SA para a [SCom01...], já foi explanado no ponto 2.4.2.
O imóvel funciona como armazém da [SCom02...] SA. As faturas que a [SCom02...] SA emite, em nota de rodapé indicam que o armazém se situa no Parque Industrial ..., lote ....2.
Na fachada principal do edifício, os painéis que identificam a empresa pertencem à [SCom02...] SA.
As mercadorias que estão no armazém pertencem à [SCom02...] SA.
Quem utiliza as referidas instalações do Pavilhão é a [SCom02...] SA, por conseguinte a energia elétrica é consumida por esta empresa.
Relativamente aos recursos humanos, tanto o pessoal que está ao balcão, no armazém ou escritório pertence todo ao quadro de pessoal da [SCom02...] SA.
Resumindo temos que o armazém e a parte administrativa da [SCom02...] SA funcionam no referido pavilhão.
Ou seja, conforme já referido anteriormente a sociedade tem declarado custos/gastos essencialmente referentes ao imóvel que está a ser utilizado por outra sociedade.
A mercadoria é fornecida pela "[SCom02...], SA”, está armazenada nos armazéns propriedade da [SCom01...] mas é utilizada para toda a atividade da "[SCom02...], SA", pelo que existirá apenas um circuito documental e não físico das mercadorias comercializadas.
Assim, conclui-se que a "[SCom01...]" não exerce efetivamente a atividade em qualquer dos anos analisados.
As instalações (armazéns) propriedade da " [SCom01...]" estão a ser utilizados pela [SCom02...], SA para desenvolvimento da sua atividade, não só como armazenamento de mercadorias como também para todas as restantes "tarefas", tais como administrativos e comerciais.
No caso em concreto, estamos perante uma prestação de serviços realizada pela [SCom01...] em benefício da [SCom02...], SA
Dado o exposto podemos concluir que estamos perante uma operação, abrangida pelo conceito de prestação de serviços, definido na alínea b), do n.° 2 do art.º 4 do CIVA e sujeita a liquidação de imposto à taxa normal de IVA (alínea c) do art.° 18 do CIVA).
São consideradas prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituam transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.
Perante este facto:
- Propomos como proveito/redito os gastos incorridos (valor anual das amortizações) referentes ao imóvel nos montantes de € 16.125,97, € 16.033,99; € 16.033,99 relativamente aos exercícios de 2009, 2010 e 2011 respetivamente. Acresce ainda o montante relativo ao pagamento do IMI relativo ao referido imóvel nos montantes de € 172,52; € 7.568,35; € 1.697,46 relativos aos exercícios de 2009, 2010 e 2011 respetivamente.
- Como o s.p. regista na contabilidade os custos/gastos suportados com o consumo de energia que é utilizado a fins alheios à empresa, ou seja está a ser utilizado por outra entidade a empresa [SCom02...] SA.
Propomos como proveito/redito o montante de € 1.105,86, € 2.265,40 e € 2.119,67 nos exercícios de 2009, 2010 e 2011 respetivamente, pois não existe qualquer relação entre este custo/gasto e a atividade da empresa.
Os valores em causa resumem-se no quadro seguinte:
2009 2010 2011
Amortizações 16.125,97 16.033,99 16.033,99
IMI 172,52 7.568,35 1.697,46
Energia 1.105,86 2.265,40 2.119,67
Total 17.404,35 25.867,74 19.851,12
Em resumo mediante os factos aflorados no presente relatório vamos ter em consideração o seguinte:
IRC
A [SCom01...] tem como sócios, as mesmas pessoas que a empresa [SCom02...] SA, ou seja, estamos perante duas empresas com sócios comuns.
O exercício da atividade da [SCom01...] esteve dependente das condicionantes da [SCom02...] SA perante os seus clientes (neste caso condicionado pelas regras do - DL18/2008 de 29/1). A [SCom02...] SA no caso em concreto tem o poder de decidir de forma direta, tem influência significativa nas decisões de gestão da [SCom01...]. O aprovisionamento das mercadorias e o acesso a canais de venda das mercadorias (Município ...) esteve dependente da decisão da [SCom02...] SA.
Apesar de se encontrarem reunidas as condições do disposto na alínea b) n.º 1 do art.º 20.º do CIRC, em que se consideram rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma ação normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente, rendimentos de imóveis, não vamos considerar qualquer correção em sede de IRC. Não se propõe a aplicação do valor tributável, para efeitos de IRC, pelo facto da operação ocorrer entre duas entidades com relações especiais. Com o ajustamento correlativo não resultaria para o Estado imposto superior ao obtido sem esta operação.
IVA
Quando as empresas efetuam transações entre si, as condições das suas relações económicas e financeiras são regidas, em regra, pelo mecanismo de mercado livre.
Sabemos que uma empresa é uma entidade juridicamente distinta dos seus sócios (pessoas singulares ou outras empresas) que deve orientar as suas operações comerciais e financeiras em obediência ao consagrado princípio do preço de plena concorrência.
De acordo com o disposto na alínea c) n.º 2 do art.º 16.º do CIVA, o valor tributável é o valor normal do serviço.
O preço que seria acordado entre as partes deveria ser o que se estabeleceria se estivéssemos perante empresas independentes, relativamente a operações idênticas ou similares.
Perante o caso concreto, consideramos o valor dos custos/gastos que a [SCom01...] suportou e que deveria ter sido suportado pela [SCom02...] SA, em gastos com as amortizações do imóvel, respetivo IMI e consumo de energia.
De harmonia com o disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 4 do CIVA, consideram-se como prestações de serviços a titulo oneroso, as prestações de serviços a titulo gratuito efetuadas pela própria empresa com vista a fins alheios à mesma, que obrigam à liquidação do imposto conforme alínea c) do art.º 18.º do CIVA, caso se dê ao bem ou bens, uma utilização em fins alheios à atividade.
Correções bases tributáveis 2009 2010 2011
20% 20% 21% 23%
17.404,35 3.480,87
25.867,74 2.586,77 2.716,11
19.851,12 4.565,76
Nota: No exercício de 2010, a taxa de imposto IVA até 30/6/2010 era de 20%, após 1/7/2010 passou a ser de 21%.
Correções:
IVA – Imposto resultante das correções

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]


(…)
IX- DIREITO DE AUDIÇÃO
Tendo o s.p. sido notificado para exercer o direito de audição prévia nos termos do art.º 60º da LGT e do art.° 60° do RCPIT em 2013/05/10 (ofício 3741), este foi exercido em 2013/05/24 por escrito (ofício de entrada 10299 de 24/05/2013), dentro do prazo legal, procedendo-se à sua análise.
Considerando todos os pontos da audição apresentado pode aferir-se que são enunciados basicamente os seguintes argumentos:
Ponto 1- O sujeito passivo alega que não pode aceitar a qualificação como prestação de serviços, o facto da sociedade [SCom02...] SA utilizar as instalações da sociedade [SCom01...] Lda sem contrapartida, alegando que" ... quando muito, poderíamos estar na presença dum arrendamento. Na realidade, e dadas as relações especiais (sócios comuns), estamos perante um contrato de comodato não formalizado", nomeadamente nos pontos 14, 15 e 16 do direito de audição.
Mediante o exposto no referido direito de audição cumpre-nos esclarecer e ter presente que:
- Arrendamento é um contrato de cessão de um factor de produção, pelo qual seu proprietário, o entrega a outro para ser explorado, mediante determinada remuneração.
- Contrato de comodato é definido como um contrato gratuito pelo qual uma das partes (comodante) proporciona à outra (comodatário), mediante entrega, o gozo temporário de uma coisa (móvel ou imóvel), com a obrigação de a restituir. O que caracteriza o contrato de comodato é a entrega da coisa ter por fim o uso desta. O qual deve pertencer continuadamente ao comodatário, pois é em atenção a ele que o contrato é celebrado.
Relativamente a esta situação a contabilidade carece de elementos probatório, ou seja, a contabilidade não espelha nenhuma destas situações. O que se verifica é a utilização de bens a fins alheios à empresa, e de acordo com a lei fiscal esta operação encontra-se abrangida pelo conceito de prestação de serviços, o qual se encontra definido na alínea b), do n.º 2 do art.º 4 do CIVA e por sua vez esta operação está sujeita a imposto IVA à taxa normal.
A realidade é que os bens do sujeito passivo estão a ser utilizados por outra sociedade com sócios comuns e quem assume e declara todos os custos/gastos com a sua utilização é [SCom01...].".
Mais qualquer contrato que o s.p. celebrasse com outra entidade a título gratuito, não deixaria pelo simples facto de ter sido celebrado contrato, de estar enquadrado na alínea b) do n.° 2 do art.º 4° do CIVA.
Ponto 2 - O sujeito passivo contesta o facto da ação inspetiva de âmbito parcial, ter passado a geral, no decurso do procedimento inspetivo, (nomeadamente nos pontos 1 a 14 do direito de audição).
Relativamente à alteração do âmbito da ação de univalente/parcial para polivalente/geral, cumpre esclarecer que analisada a faturação emitida pelo s.p. em cada exercício/período, não se constatou a prestação de serviços relacionados com [SCom02...] SA.
Por outro lado, no decurso da ação de inspeção e através das faturas emitidas pela [SCom02...] SA relativamente à venda de mercadorias para a [SCom01...] Lda foi verificado que, nos anos analisados, a [SCom02...] SA ocupava efetivamente os armazéns da [SCom01...] o que implicou a utilização de todos os outros bens existentes no mesmo, bem como, os consumos/gastos, nomeadamente energia elétrica (entre outros) e só com base nesta informação, é que se procedeu ao alargamento da ação para incluir o IVA.
Pois perante este facto estamos na presença de operações, e que de harmonia com o disposto na alínea b) do n.° 2 do art.° 4 do CIVA são abrangidas pelo conceito de prestação de serviços a titulo oneroso, as prestações de serviços a titulo gratuito efetuadas pela própria empresa com vista a fins alheios à mesma, que obrigam à liquidação do imposto conforme alínea c) do art.° 18 do CIVA, caso se dê ao bem ou bens, uma utilização em fins alheios à atividade.
Desta forma propôs-se, a alteração do âmbito do procedimento de inspeção, aos exercícios de 2009, 2010 e 2011 para IVA, nos termos do n.° 1, do artigo 15.° do RCPIT – Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária, uma vez que este imposto não constava do âmbito da ação. Como se verifica da alteração do âmbito da ordem de serviço foi dado conhecimento ao s.p., conforme consta do quadro 5 do Procedimento de inspeção externa ordem de serviço (art. 46° do RCPIT).
Muito embora termos presente que uma empresa é uma entidade juridicamente distinta dos seus sócios e que deve orientar as suas operações comerciais e financeiras em obediência ao consagrado princípio do preço de plena concorrência, não se efetuaram correções em sede de IRC pelo facto de estarmos perante duas empresas que não são independentes, ou seja os sócios são comuns.
Ponto 3 - Com referência ao ultimo ponto da audição, nomeadamente ao mencionado:
"Entretanto, pelo meio, ficaram tentativas de obtenção duma proposta, por parte da empresa por via negocial ..." refere-se que em todos os procedimentos inspetivos é informado o s.p., antes do termo da ação, sobre as irregularidades detetadas, uma vez que o s.p. pode, se assim o desejar proceder à regularização voluntária. Até porque o s.p, nos termos do art.º 29º do RGIT tem direito à redução das coimas conforme dispõe a alínea c) do referido artigo: "as coimas pagas a pedido do agente são reduzidas nos termos seguintes: se o pedido de pagamento for apresentado até ao termo do procedimento de inspeção tributaria e a infração for meramente negligente, para 75% do montante mínimo legal".
Assim da análise ao direito de audição verifica-se que este não vem alterar o que foi descrito no projeto de relatório, no que se refere às correções efetuadas, pelo que se propõe que as mesmas se mantenham.”
[cfr. relatório inspetivo constante de fls. 56 e ss. do procedimento administrativo apenso aos presentes autos]
C. Em razão do sancionamento hierárquico das correções foram emitidas as seguintes liquidações de imposto:
Imposto Liquidação Período imposto Data limite
pagamento
Valor a cobrar
IVA ...21 200903T 31/08/2013 870,21
IVA ...23 200906T 870,21
IVA ...25 200909T 870,21
IVA ...27 200912T 870,24
IVA ...29 201003T 1293,38
IVA ...31 201006T 1293,39
IVA ...33 201009T 1358,05
IVA ...35 201012T 1358,06
IVA ...37 201103T 1141,44
IVA ...39 201106T 1141,44
IVA ...41 201109T 1141,44
IVA ...67 201112T 30/10/2013 1141,44
Total 13349,51
[cfr. guias de pagamento constantes de fls. 14 e 17, bem como registos informáticos de fls. 46 a 53 do procedimento administrativo apenso]
D.A Impugnante procedeu ao pagamento das liquidações relativas a IVA em sede de execução fiscal e em 30/12/2013
[cfr. guias de pagamento constantes de fls. 14 e 16]
E.A manutenção do edifício foi suportada pela [SCom02...] SA
[cfr. decorre da prova testemunhal]
Não se provaram outros factos com relevo para a decisão a proferir.
Motivação da matéria de facto:
O Tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos assentes tendo por base, essencialmente, a análise crítica do conjunto da prova, com referência à documentação constante dos autos (não impugnada) e do processo administrativo apenso, de harmonia com as menções constantes no fim de cada um dos factos assentes.
Contribuiu para a formação da convicção do Tribunal o depoimento das testemunhas arroladas, nomeadamente de «BB», à data revisor de contas de uma das empresas de que eram acionistas os sócios da Impugnante, «CC», TOC da impugnante desde a sua fundação (e da [SCom02...] SA), bem como de «AA» e «DD», Inspetoras Tributárias.
A primeira testemunha confirmou genericamente a factualidade constante do relatório inspetivo salientando que a Impugnante tinha como benefício a circunstância da “[SCom02...] SA” preservar as instalações, nomeadamente ao nível da proteção e conservação visto que estas se encontravam anteriormente encerradas.
Referiu que a cedência ocorreu na perspetiva de uma futura fusão que, todavia, até à data ainda não se verificou.
A segunda testemunha declarou ter acompanhado o procedimento inspetivo, que as instalações estavam encerradas antes da ocupação pela [SCom02...] SA e que a sua manutenção é suportada por esta última.
A terceira testemunha relatou ao Tribunal que não foram feitas diligências para apurar qual o valor normal de renda para o edifício e que propuseram o mínimo que correspondia aos gastos suportados pela Impugnante com o edifício.
As testemunhas depuseram com isenção, demonstrando a sua razão de ciência, sem hesitações ou contradições percetíveis, sendo espontâneas nas suas respostas, motivos pelos quais se reputa o seu depoimento de credível e como tal passível de suportar a convicção do Tribunal. “
***
2.2 – O direito
Constitui objecto do presente recurso a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou procedente a impugnação intentada pela [SCom01...], Lda., contra as liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado dos períodos de 2009 a 2011.
Discordando do assim decidido, a Recorrente vem interpor recurso invocando o erro do julgamento de direito por errada interpretação do disposto no artigo 9.º n.º 29 do CIVA e requerer o reenvio prejudicial ao Tribunal de justiça da União Europeia.
Estabilizada a matéria de facto, na medida em que a Recorrente não ataca a matéria que foi levada ao probatório, cumpre apreciar e decidir do erro de julgamento de direito alegado.

2.2.1. Do erro de julgamento de direito

Os Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças ..., consideraram que, encontrando-se o pavilhão sito no Parque Industrial ..., lote ....2, ..., a ser utilizado pela sociedade [SCom02...] SA e não pela Recorrida, estamos perante uma operação abrangida pelo conceito de prestação de serviços ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, que obrigam à liquidação do imposto conforme a alínea c) do artigo 18.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
O Tribunal a quo decidiu que, não obstante, se considerar a sobredita operação sujeita a IVA nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, ao abrigo do “principio geral subjacente no Código do IVA à tributação das operações gratuitas, é que em sede de tributação se deve passar como se de operações onerosas se tratasse, dessa forma se prevenindo a fraude e a evasão fiscais” nestes termos, considerou que, configurando um contrato de arrendamento a cedência onerosa do imóvel, encontrando-se este, por via da regra, isento de IVA (cfr. n.º 29.º do artigo 9.º do Código do IVA), sob pena de distorção da concorrência e violação do princípio da neutralidade do IVA, é inadmissível tratar de forma mais custosa a operação gratuita de que a operação onerosa.
A Recorrente, discordando do assim decidido, vem invocar que tendo em conta as características fundamentais que um contrato de locação deve conter, não apresentando a operação de cedência gratuita do imóvel aqui em análise as mesmas características, a mesma não poderia beneficiar da isenção prevista no n.º 29 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
A Recorrida, por sua vez, vem defender que “o princípio geral subjacente no Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado à tributação das operações gratuitas é que em sede de tributação se deve passar como se de operações onerosas se tratasse, dessa forma se prevenindo a fraude e a evasão fiscais (…) Dai que, (…), se equiparem a operações onerosas as operações graciosas e se estabeleça como base tributável o valor de mercado do bem ou serviços com isso se obtendo a neutralidade do IVA no mercado”
Vejamos.
O Imposto sobre o Valor Acrescentado, apesar de ser um imposto nacional é sem qualquer dúvida, um imposto de matriz comunitária.
Com efeito, em resultado da Decisão de 21.04.1970, surge na Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1970 o Imposto sobre o Valor Acrescentado, em substituição das contribuições financeiras dos Estados Membros por recursos próprios das Comunidades, emergindo de tal necessidade e através da aplicação de uma taxa comum a uma matéria colectável determinada de modo uniforme e de acordo com as normas comunitárias.
Em 1977 foi aprovada a Directiva n.º 77/388/CEE de 17.05.1977 (comumente designada como 6ª Directiva), que veio harmonizar as legislações dos Estados Membros quanto aos impostos sobre o volume de negócios, sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado, de forma a suprimir a tributação nas trocas comerciais entre os Estados Membros e a garantir a neutralidade do sistema comum de impostos, de modo a instituir, a prazo, um mercado comum à CEE e uma concorrência sã, conducentes à prossecução de um verdadeiro mercado interno.
Mas o princípio da neutralidade já tinha sido previsto no Tratado de Roma e foi plasmado nos preâmbulos das duas primeiras Directivas do Imposto sobre o Valor Acrescentado, como fundamento do imposto, por forma a rejeitar o modelo dos impostos em cascata.
Com efeito, a 6ª Directiva veio estabelecer que o princípio da neutralidade deve estabelecer a igualdade de tratamento para mercadorias idênticas, implicando ainda que o Imposto sobre o Valor Acrescentado comunitário deva incidir da mesma forma em todas as operações, independentemente da extensão das cadeias de produção e de distribuição.
Acresce que, o princípio da neutralidade encontra fundamento nos demais princípios que regem o Imposto sobre o Valor Acrescentado, como seja o princípio da igualdade de tratamento, da proibição da dupla tributação ou da ausência de tributação.
Nesta medida, verifica-se a afamada neutralidade quando o imposto por si só não afecta a escolha da multiplicidade de bens ou serviços que consumidores têm ao seu dispor.
Como resulta do Acórdão de 14.02.1985, Caso Rompelman, proc. 268/83, Rec., p. 655, n.º 19, de 22.06.1993, Caso Sofitam, Proc. C-333/91, Colect., p. I-3513, n.º 10, e de 6.04.1995, Caso BPL Group, proc.C-4/94, Colect., p. I-983, n.º 26, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem-se preocupado em asseverar a neutralidade do imposto relativamente a todas as actividades económicas, salientando que tal é alcançado por meio do mecanismo das deduções. Da mesma forma, tem considerado o Tribunal de Justiça da União Europeia ao decidir que todas as actividades económicas devam ser tratadas da mesma maneira (Acórdão de 20.06.1996, Wellcome Trust, proc.C-155/94, Colect., p. I-3013, n.° 38), assim como todos os operadores económicos que efectuem as mesmas operações (Acórdão de 7.09.1999, Gregg, proc. C-216/97, Colect., p. I-4947, n.° 20).
Não obstante, “Já há muito a ciência fiscal abandonou a antiga concepção de neutralidade do imposto, segundo a qual a tributação neutra seria aquela que não influi na vida económica. Toda a fiscalidade produz hoje inevitáveis modificações na economia; entende-se hoje que o imposto é ‘neutro’ quando opera modificações homotéticas, iguais para todos os elementos do meio económico.” – cfr. Pitta e Cunha (in “A tributação do valor acrescentado”, Vinte Anos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado em Portugal: Jornadas Fiscais em Homenagem ao Professor José Guilherme Xavier de Basto, Almedina, Coimbra, Novembro 2008, p. 113).
Com efeito, por força da existência de isenções e da existência de diferentes taxas mediante o tipo de transação ou bem em questão, não poderemos falar num imposto totalmente neutro.
Já a posição defendida pelo Advogado Geral no Acórdão do TJUE de 2.06.2005, Caso Waterschap, proc. C-378/02, Colect., p. I-4685, tinha sido a de aceitar sem qualquer limitação as distorções decorrentes das isenções, tendo exposto que “É inerente às excepções ao sistema do IVA que estas interfiram até certo ponto na aplicação dos princípios da neutralidade e da igualdade de tratamento. [...] Nestas situações “o tratamento dos sujeitos passivos e dos excluídos do sistema do IVA tem inevitavelmente que ser diferente”, sendo que, muito tempo antes, no Acórdão do TJUE de 5.06.1997, Caso Sparekassernes Datacenter SDC, proc. C-2/95, Colect., p. I-3041, havia surgido a questão da relação de tensão entre o princípio da neutralidade fiscal, que implica a não distorção da concorrência entre as empresas, e a isenção, com as suas forçosas consequências.
Nos termos do disposto no artigo 2.º n.º 1 da Diretiva IVA 2006/112/CE Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações: c) As prestações de serviços efetuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;”
Acresce que, decorre do artigo 26.º da sobredita Directiva que “São assimiladas a prestações de serviços efetuadas a título oneroso as seguintes operações: (…) b) A prestação de serviços a título gratuito efetuado pelo sujeito passivo, para uso próprio ou do seu pessoal ou, em geral, para fins alheios à empresa.”
O artigo 75.º da Diretiva IVA dispõe ainda que Nas prestações de serviços que consistam na utilização de um bem afeto à empresa para uso privado e às prestações de serviços efetuadas a título gratuito, referidas no artigo 26.º, o valor tributável é constituído pelo montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços.”
Com efeito, do artigo 137.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 da 6ª Directiva, alterada pela Directiva n.º 2006/112/CE de 28.11, decorre que “Os Estados-membros podem conceder aos seus sujeitos passivos o direito de optar pela tributação: d) Da locação de bens imóveis;” e ainda que “Os Estados-membros podem restringir o âmbito do direito de opção e fixarão as regras do seu exercício” – n.º 2.
Em sede do direito nacional e como decorria à data dos factos do disposto no artigo 1.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado “Estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado: a) As transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal;”
Por sua vez, estatuía o artigo 4.º n.º 1 do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado que “São consideradas como prestações de serviços as operações efectuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens”
Assim, e como é consabido, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado, o conceito de prestação de serviços tem um carácter residual, abrangendo todas as operações decorrentes da actividade económica que não sejam definidas como transmissão, aquisição intracomunitária ou importação de bens.
Por sua vez, especificando o conceito de prestação de serviços, a alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado determinava ainda que se consideram prestação de serviços a título oneroso “As prestações de serviços a título gratuito efectuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma;”
Como referencia a Recorrente nas suas alegações de recurso “Segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE), os serviços devem ser considerados como utilizados para “fins estranhos à própria empresa”, sempre que se destinem a fins privados do sujeito passivo, do seu pessoal ou de terceiros e esse benefício pessoal deverá ser considerado meramente acessório, caso exista uma necessidade directa da empresa na realização do serviço em causa (Cfr. Acórdão caso Julius Fillibeck Söhne, Proc. C-285/95.
Por outro lado, como decorria do n.º 29 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado “Estão isentas do imposto: (…) 29) A locação de bens imóveis”, em consonância com o disposto na alínea l) do artigo 135.º da Directiva IVA.
Acresce que, como decorria à data do n.º 4 do artigo 12.º do CIVA “Os sujeitos passivos que procedam à locação de prédios urbanos ou fracções autónomas destes a outros sujeitos passivos, que os utilizem, total ou predominantemente, em actividades que conferem direito à dedução, podem renunciar à isenção prevista no n.º 29) do artigo 9.”, estabelecendo ainda o seu n.º 6 que “Os termos e as condições para a renúncia à isenção prevista nos n.os 4 e 5 são estabelecidos em legislação especial”.
Ora, como decorre do artigo 1022.º do Código Civil “Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”, denominado arrendamento quando estamos perante bem imóvel (cfr. artigo 1023.º do Código Civil).
Tal conceito está próximo do conceito de locação de imóveis, constante do artigo 135.o n.o 1 alínea l) da Diretiva IVA, que tem vindo a ser entendido pela Jurisprudência, como considerado no Acórdão de 19.12.2018 - Virgil Mailat, Delia Elena Mailat/Apcom Select SA, processo C-17/18, como o direito conferido pelo proprietário de um imóvel ao locatário de, mediante remuneração e por um período acordado, ocupar esse imóvel como se fosse o proprietário e de excluir qualquer outra pessoa do benefício desse direito.
A par, a nossa Jurisprudência, tem entendido que “Um contrato de locação de imóvel enquadra-se na isenção do nº 29 do artigo 9º do CIVA, quando a característica predominante da operação económica consiste na colocação passiva do imóvel à disposição do locatário, (…)” – cfr. Acórdão do TCA Sul de 7.11.2024, proc. n.º 413/20.1BELLE.
Assim, como elementos essenciais do contrato de locação de imóvel – elementos que têm imperativamente que existir e sem os quais o contrato não se forma – temos i) a concessão do gozo de um prédio urbano, no todo ou em parte; ii) feita por certo prazo; iii) mediante retribuição – cfr. Acórdão do STJ de 16.03.2023, proc. n.º 5216/21.3T8LSB.L1.S1.
Por outro lado, parafraseando Emanuel Vidal Lima, (in Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, comentado e anotado, 9.ª edição, Porto editora, 2003, págs. 254-255), a isenção da locação de bens imóveis para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado, prende-se com razões de simplificação, na medida em que tributar tais operações de locação acarretaria introduzir no sistema do Imposto sobre o Valor Acrescentado um número muito elevado de sujeitos passivos, na sua maioria particulares, que não teriam um “mínimo de organização” necessária para responder às obrigações acessórias associadas à qualidade de sujeito passivo do imposto.
Acresce que, à luz do disposto no artigo 112.º do Código Civil “Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”
Assim, o contrato de comodato, além de não incluir qualquer pagamento de prestações a cargo do comodatário, não tendo assim um carácter sinalagmático, somente se completa com a entrega da coisa, tendo a coisa a entregar que ser fungível por forma a ser restituída.
Ora, revertendo ao caso sob análise e conforme consta da factualidade assente, ponto B), o imóvel (pavilhão), pertencente à Recorrida, estava a ser utilizado, em exclusivo e a título gratuito, pela sociedade [SCom02...], SA para o desenvolvimento da actividade desta (armazenamento de mercadorias, bem como, para a realização das restantes tarefas administrativas e comerciais).
Nesta medida, estamos perante um comodato e não perante um contrato de arrendamento, na medida em que apesar da concessão do gozo de um prédio urbano, não se vislumbra que ao mesmo tenha sido estabelecido prazo, nem que tenha sido estabelecido qualquer retribuição.
No entanto, o Tribunal a quo considerou que “(…) sob pena de distorção da concorrência e violação do princípio da neutralidade do IVA, é inadmissível tratar de forma mais custosa a operação gratuita do que a operação onerosa. Dito de outro modo, Se a Impugnante tivesse arrendado o imóvel não haveria lugar a liquidação de IVA porquanto a operação de locação do imóvel se encontraria isenta nos termos do art.º 9.º do CIVA. Não se vislumbram motivos para que haja lugar a tributação em sede de IVA do comodato. Considerar que o arrendamento está isento de IVA e o comodato sujeito (e não isento) implicaria em sede deste último a liquidação de IVA sobre o “valor normal de locação” (ou pelo menos sobre os seus custos) e a não liquidação de qualquer imposto no primeiro. É manifesto que tal entendimento viola de forma ostensiva o princípio da neutralidade do IVA” – fim de citação.
Ora, não podemos concordar com o assim decido, por um lado, porque, como já aqui demos conta, não estamos perante um contrato de arrendamento, nem sequer a sua equiparação, na medida em que este não reúne os pressupostos necessários para ser considerado como tal, por outro lado, também não resultam dos autos elementos suficientes para assim ser considerado, uma vez que, a cedência em questão poderia configurar contrato de cessão de exploração ou de locação de estabelecimento (tributado em sede de IVA), pois este caracteriza-se como sendo aquele pelo qual uma pessoa transfere, temporária e onerosamente, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial, industrial ou de serviços nele instalado (cfr. Acórdão do STJ, de 07.10.2007, proc.º 07B2409).
Acresce que, de acordo com o disposto no artigo 9.º n.º 3 do Código Civil “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”
A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, “desde logo, uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei”, sendo a letra da lei, o texto da norma, o limite da sua interpretação, conforme Baptista Machado (in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina Coimbra, 1990, pág. 182).
Com efeito, consideramos que se o legislador pretendesse excluir da disposição ínsita no alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado o comodato, por o equiparar ao arrendamento, o teria dito expressamente.
O intérprete deve presumir que o legislador soube consagrar na lei o seu pensamento e não pode retirar do elemento literal aquilo que lá não consta.
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, (in Código Civil Anotado, vol. 1º, 4ª edição, págs. 58 e 59) “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal…”
Por outro lado, e relativamente à violação do princípio da neutralidade do Imposto sobre o Valor Acrescentado, como já supra referenciamos, não temos um imposto totalmente neutro por força da existência de isenções e da existência de diferentes taxas mediante o tipo de transação ou bem em questão, acarretando distorções ao Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Exemplo dessa distorção é a isenção da locação de imóveis e a possibilidade de à luz do disposto n.º 4 do artigo 12.º do Código de Imposto sobre o Valor Acrescentado, os sujeitos passivos de imposto poderem renunciar à isenção prevista no n.º 29) do artigo 9.º do mesmo Diploma legal, traduzindo assim, uma clara distinção de tributação perante a mesma operação.
Nestes termos, a tributação do comodato aqui em questão não configura qualquer distorção da concorrência nem a violação do princípio da neutralidade e/ou concorrência, pois, o próprio contrato de arrendamento pode estar isento de Imposto sobre o Valor Acrescentado ou sujeito a tributação.
Relativamente às demais considerações formuladas pela Recorrida em sede de contra-alegações, assim como a violação do princípio da proibição do excesso, apraz referenciar que, para além de parte do invocado consubstanciar questão nova face ao alegado no articulado inicial, a presente impugnação foi intentada, sem qualquer dúvida, contra as liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado, não se podendo nesta sede aferir das consequências e ilegalidades da actuação da Autoridade Tributária e Aduaneira em sede de IRC.
Para o efeito, veja-se o expressamente referenciado a final pela Recorrida em sede da petição inicial quando peticiona: “Face ao exposto, requer-se a V. Exa. Que, apreciadas as razões ora aduzidas, jugando provada e procedente a presente impugnação, declare anuladas todas e cada uma das liquidações elencadas e, assim, o IVA e o acrescido, neles reclamado como devido ao Estado, determinando ainda o respectivo reembolso por já haver sido pago, ao abrigo do DL nº 151º-S/2013 de 31 de Outubro.”
Nestes termos, e para os efeitos aqui tidos em conta, impõe-se concluir que estamos perante operação que consubstancia uma prestação de serviços ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Nestes termos, impõe-se conceder provimento ao alegado neste segmento do recurso interposto, e, em consequência, revogar a decisão recorrida e manter as liquidações de do Imposto sobre o Valor Acrescentado impugnadas.




2.2.1. Do reenvio do processo ao TJUE

A Recorrente, considerando que se suscitam dúvidas quanto à susceptibilidade da operação em crise poder beneficiar da isenção prevista no artigo 9.º n.º 29.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, e, uma vez que está em causa a aplicação de normas comunitárias, designadamente normas da Directiva IVA, vem peticionar que que seja ordenado o reenvio do processo ao TJUE, ao abrigo do disposto no art.º 267.º do TFUE, sendo, nesse caso, determinada a suspensão da instância recursiva até que ali seja proferida decisão.
A Recorrida, vem, no entanto, sustentar que não estão preenchidos os pressupostos que decorrem do disposto no artigo 267.º do TJUE.
Vejamos.
Dispõe o artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia que
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, os órgãos ou os organismos da União.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível”.
Assim, o reenvio destina-se a “evitar divergências na interpretação do direito comunitário, cuja aplicação cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais”, facultando “ao juiz nacional um meio para eliminar as dificuldades que a exigência de dar ao direito comunitário o seu pleno efeito no âmbito dos sistemas jurisdicionais dos Estados-membros poderia suscitar” - cfr. Acórdão C-166/73, Rheinmühlen Düsseldorf/Einfuhr- und Vorratsstelle für Getreide und Futtermittel, EU:C:1974:3, parágrafo 2.
Nesta senda, qualquer órgão jurisdicional pode fazer uso do pedido de apreciação prejudicial, dispondo de uma “faculdade ilimitada de recorrer ao Tribunal de Justiça, se considerarem que um processo neles pendente suscita questões relativas à interpretação ou à apreciação da validade de disposições do direito comunitário com base nas quais têm de decidir” – cfr. Acórdão C-166/73, Rheinmühlen Düsseldorf/Einfuhr- und Vorratsstelle für Getreide und Futtermittel, EU:C:1974:3, parágrafo 3.
Acresce que, o juiz nacional está obrigado ao reenvio, quando da decisão do tribunal em questão não caiba recurso judicial.
Neste sentido decidiu o Tribunal de Justiça da União Europeia no acórdão CILFIT, (Acórdão 283/81, CILFIT/Ministero della Sanità, EU:C:1982:335, parágrafos 10 e ss), ao estabelecer claramente que não há obrigação, para um tribunal nacional, de fazer um reenvio prejudicial se a questão em causa não for relevante e não puder, assim, ter qualquer influência no resultado do litígio.
No entanto, acrescentou que se o Tribunal nacional considerar que o recurso ao direito da UE é absolutamente necessário para resolver o processo em causa, o reenvio prejudicial torna-se obrigatório.
Nesta medida, nos termos do que dispõe para o efeito o artigo 267.º do TFUE, estatuindo a teoria do acto claro, tal mecanismo só se justifica quando não haja qualquer anterior decisão do tribunal apreciando a questão decidenda ou quando a interpretação das normas comunitárias controvertidas suscite dúvida razoável.
Ora, no caso presente, atento o supra decidido, não se afigura existir qualquer divergência da lei nacional face à aplicação do direito comunitário.
Acresce que, a decisão proferida é susceptível de recurso, pelo que não se vê antevê razões para desencadear o reenvio prejudicial, negando assim provimento ao requerido.

***


Nos termos do disposto no artigo 663.º nº 7 do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte SUMÀRIO:

I. Ao abrigo da 6ª Directiva, o princípio da neutralidade deve estabelecer a igualdade de tratamento para mercadorias idênticas, implicando ainda que o IVA comunitário deva incidir da mesma forma em todas as operações, independentemente da extensão das cadeias de produção e de distribuição.
II. No entanto, por força da existência de isenções e da existência de diferentes taxas mediante o tipo de transação ou bem em questão, o IVA não é um imposto totalmente neutro.
III. Constituem elementos essenciais do contrato de locação de imóvel e sem os quais o contrato não se forma i) a concessão do gozo de um prédio urbano, no todo ou em parte; ii) feita por certo prazo; iii) mediante retribuição – cfr. artigo 1022.º do CC.
I. À luz da alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do CIVA, o comodato, por não reunir os elementos necessários para ser considerado contrato de locação de imóvel, consubstancia uma prestação de serviços a título gratuito efectuada pela própria empresa com vista a fins alheios à mesma, estando sujeita a IVA.
II. A tributação do comodato para efeitos de IVA não viola o princípio da concorrência nem a neutralidade do IVA.
III. Considerando as técnicas de interpretação, consideramos que se o legislador pretendesse excluir da disposição ínsita no alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do CIVA o comodato, por o equiparar ao arrendamento, o teria dito expressamente.
IV. Nos termos do que dispõe o artigo 267.º do TFUE, o reenvio prejudicial só se justifica quando não haja qualquer anterior decisão do tribunal apreciando a questão decidenda ou quando a interpretação das normas comunitárias controvertidas suscite dúvida razoável


***


3 – Decisão

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, e nessa consequência, revogar a decisão recorrida, mantendo-se as liquidações de IVA impugnadas.


Custas pela Recorrente, em ambas as instâncias, nos termos do disposto no artigo 6.º n.º 2, artigo 7.º n.º 2 e artigo 12.º n.º 2, todos do Regulamento das Custas Processuais e tabela I-B.


Porto, 27 de Março de 2025


Virgínia Andrade
Conceição Soares
Paula Moura Teixeira