Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01189/22.3BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/19/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:PAULO FERREIRA DE MAGALHÃES
Descritores:DECISÃO SUMÁRIA; RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA;
DECRETO-LEI N.º 117/2010, DE 25 DE OUTUBRO; DIRECTIVA 98/34/CE;
COMBUSTÍVEIS; ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE DIREITO.
Sumário:
1 – Tendo sido proferida Decisão sumária que apreciou o recurso de Apelação apresentado tendo subjacente o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 94.º, n.º 5, ambos do CPTA e artigo 656.º do CPC, veio a negar provimento ao recurso interposto, cabe Reclamação para a conferência, nos termos do disposto no artigo 652.º, n.º 3 do CPC, ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPTA.

2 - O disposto no artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” [na acepção do artigo 1.º, ponto 11, da Directiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998] a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projecto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no artigo 8.º n.º 1 daquela Directiva.

3 – Assim não tendo sucedido, e na falta de idónea base legal substantiva, os actos praticados pela Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, são inválidos e contenciosamente anuláveis por violação de lei, por erro nos seus pressupostos de direito, por promanados em desconformidade com o direito da União Europeia.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Indeferir a reclamação para a Conferência.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I - RELATÓRIO

ENTIDADE NACIONAL PARA O SECTOR ENERGÉTICO, EPE (ENSE) [devidamente identificada nos autos] Ré na acção administrativa que contra si foi intentada por [SCom01...], Ld.ª [também devidamente identificada nos autos], vem reclamar para a Conferência [Cfr. artigo 652.º, n.º 3 do CPC, ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPTA], da Decisão sumária proferida pelo Relator em 27 de fevereiro 2024 [constante a fls. 338 e seguintes dos autos - SITAF], e pela qual, tendo subjacente o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 94.º, n.º 5, ambos do CPTA e artigo 656.º do CPC, foi negado provimento ao recurso por si interposto, confirmando assim a Sentença recorrida.

*
Para esse efeito, apresentou articulado de onde para aqui se extraem as respectivas conclusões, como segue:

“[...]
III – CONCLUSÕES
1.ª De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 95.º do CPTA, o Tribunal de 1.ª instância somente se encontrava constituído no poder-dever de identificar a existência de causas de invalidade diversas daquelas que tenham sido alegadas.
2.ª Tratando-se de um vício gerador de nulidade, o Tribunal de 1.ª instância podia/devia conhecer do mesmo oficiosamente e a todo o tempo, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 262.º do CPA.
3.ª Tratando-se de um vício gerador de mera anulabilidade, o Tribunal somente podia conhecer do mesmo dentro do prazo que o Ministério Público dispõe para promover a ação pública de impugnação, ou seja, no prazo objetivo de um ano desde o momento da prática do ato ou da sua publicação, quando obrigatória.
4.ª Uma interpretação diversa ao disposto no n.º 3 do artigo 95.º do CPTA confere à norma um conteúdo normativo que a torna claramente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 20.º, 111.º e 219.º da CRP.
5.ª Assim, uma vez que não foi suscitada pelas partes o vício pelo qual o Tribunal de 1.ª instância anulou o ato administrativo impugnado e uma vez que o mesmo não é suscetível de conhecimento oficioso, a sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 95.º, n.º 1 do CPTA, em conjugação com o artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
6.ª Estando a decisão sumária reclamada eivada de erro de julgamento, por ter entendido não haver qualquer excesso de pronúncia quanto ao que foi apreciado e decidido pelo Tribunal de 1.ª instância.
7.ª O ato administrativo impugnado não é ilegal, porquanto foi praticado ao abrigo de um diploma legal que à data se encontrava em vigor e que, atualmente, só não se mantém porquanto foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2022.
8.ª A Entidade Reclamante, sob pena de violação do princípio da legalidade, encontrava-se vinculada a proferir o ato administrativo em apreço.
9.ª Não estamos perante um problema de ilegalidade do ato administrativo, mas antes perante uma (eventual) questão de responsabilidade civil extracontratual do Estado Português por alegados danos decorrentes do exercício da função legislativa. 10.ª Assim sendo, a decisão ora reclamada padece de um erro de julgamento, porquanto o ato administrativo não padece de um vício gerador de anulabilidade, por violação do Direito da União Europeia.
11.ª O ato administrativo impugnado não padece de nenhum dos vícios de ilegalidade invocados pela então Autora [SCom01...], Lda., pelas razões desenvolvidamente expressas em sede de Contestação e que, por razões de economia processual, se deram por reproduzidas na presente reclamação.
NESTES TERMOS, E nos mais de direito, que V. Exas doutamente suprirão, deve a presente reclamação ser julgada procedente, por provada, e sobre a mesma recair acórdão que revogue a decisão do Venerando Juiz Desembargador Relator, e, consequentemente, a sentença recorrida e, em consequência, confirme o ato administrativo impugnado. Só assim se decidindo será CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA! [...]“

**

A Reclamada exerceu o direito ao contraditório, tendo a final apresentado as respectivas conclusões, que para aqui se extraem como segue:

“[...]
D - CONCLUSÕES:
1 - De acordo com a decisão proferida pelo T.J.U.E. em 09.03.2023, as metas de incorporação fixadas no artigo 11.º do DL 117/2010 de 25-10 são inoponíveis aos seus destinatários, desde logo porque não foram cumpridas as obrigações do Estado Português de comunicação prévia desta norma técnica à Comissão Europeia, o que retira a base legal à norma em questão, esvaziando-a do ordenamento jurídico.
2 - O Tribunal, nos processos impugnatórios, não tem de limitar a sua decisão à pronúncia sobre as causas de invalidade invocadas pelas partes, já que não só pode, como deve, identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas.- Cfr. n.º 3 parte final do artigo 95.º do CPTA.
3 - Ao reclamante foi dado o contraditório quanto à questão suscitada decorrente da prolação do Acórdão do TJUE, que este exerceu por requerimento com a referência ...70 em 26.04.2023.
4 - Ao pronunciar-se pela invalidade da norma técnica constante do artigo 11.º da Lei 2010/17 de 25-10, decorrente da violação do artigo 8.º n.º 1 da Diretiva 98/34 da U.E. que impunha a sua comunicação prévia à Comissão, antes da sua aprovação e aplicação no Estado membro, neste caso, Portugal, bem andou o Tribunal A Quo, que cumpriu expressamente o que a Lei Processual Administrativa lhe impõe.
5 - O ato administrativo impugnado foi praticado ao abrigo de uma norma técnica- artigo 11.º do DL 117/2010 de 25-10- que foi declarada ilegal, de acordo não só com o juízo do TJUE, mas também do Supremo Tribunal Administrativo, como resulta da decisão proferida no processo 02739/17.2BEBRG-A, por Acórdão de 06-07-2023 da
1.ª Secção, (processo em que o Recorrente era de resto parte, e cuja decisão não ignora).
6 - De acordo com a decisão do TJUE, a ordem de pagamento fundamentada naquela legislação nacional ilegal, aplicada aos destinatários particulares (como o é a aqui Autora- recorrida) torna esse ato inválido e contenciosamente impugnável por violação da lei, por erro nos pressupostos de direito – falta de base legal e no mesmo sentido se pronunciou já o STA no acórdão supra mencionado.
7 - O Tribunal, nos processos impugnatórios, também não está limitado nem no tempo, nem quanto ao conhecimento de qualquer vício gerador de invalidade do ato administrativo impugnado que não tenha sido invocado pelos particulares ou pelo Ministério Publico, sob pena de se esvaziar de sentido o disposto no artigo 95.º n.º 3 do CPTA.
8 - O Tribunal deve poder conhecer de todos os vícios que estando presentes num determinado ato sejam suscetíveis de atacar a sua validade enquanto ele não se tornar definitivo do ponto de vista da sua imposição ao particular.
9 - O facto de, decorridos os prazos p. e p. no artigo 58.º do CPTA estar vedado ao destinatário impugnar o ato ferido de anulabilidade não significa que o juiz não possa conhecer de outras causas de invalidade do ato administrativo, quando confrontado com o processo impugnatório, instaurado atempadamente, pois uma interpretação diversa esvaziaria de sentido o disposto no artigo 95.º n.º 3 segunda parte e nos artigos 161.º e 163.º todos do CPTA.
10 - O n.º 6 do artigo 161.º do CPTA refere expressamente que quando na pendência de processo impugnatório, o ato impugnado seja anulado por sentença proferida noutro processo, pode o autor fazer uso do disposto nos n.ºs 3 e 4 do presente artigo para obter a execução da sentença de anulação.
11 - Como se refere no Acórdão do STA já citado, o ato em crise é inválido e contenciosamente anulável por vício de violação da lei, por erro nos pressupostos de direito- falta de base legal.
12 - Esta decisão superior conclui, no mesmo sentido, que o julgamento do TJUE é plenamente aplicável no caso do presente processo, uma vez que a jurisprudência daquele Tribunal Europeu, quanto à interpretação fixada no direito da EU, designadamente em processo de reenvio prejudicial, torna-se obrigatória quer no âmbito da causa em que o reenvio foi operado, quer em quaisquer outros processos em que seja pertinente a aplicação das mesmas normas interpretadas. (Negrito e sublinhados nossos)
13 - Além do Tribunal Nacional destinatário, ficar vinculado pela interpretação dada, o Acórdão do TJUE vincula também os outros órgãos jurisdicionais a quem seja submetida questão idêntica.(Negrito e sublinhados nossos)
14 - Os tribunais nacionais (Tribunais comuns do direito da União Europeia), tem o dever de desaplicar a legislação nacional que julguem contrária ao direito da União Europeia, em obediência ao Princípio do Primado do Direito da U.E., acautelando a garantia de proteção jurídica aos particulares decorrente do efeito direto das normas de direito comunitário.
15 - Também a defesa do interesse geral da legalidade não é contrariada pelo facto de o Tribunal fazer uso do seu direito/dever de sancionar os atos inválidos não só com os fundamentos invocados pelo particular, mas também por si, ao abrigo do disposto no artigo 95.º n.º 3 do CPTA.
16 - Na decisão sumária reclamada é feita uma correta interpretação quer do disposto no artigo 95.º n.º 3 conjugado com o disposto nos artigos 161 e 163.º do CPTA, quer as normas do Direito Comunitário, cuja direta aplicação no âmbito nacional foram asseguradas, sem que tal represente a violação, por qualquer forma, do Princípio da Tutela Jurisdicional ou da separação dos Poderes constitucionalmente consagrados, nem de qualquer outro normativo constante do Diploma Fundamental.
17 - A falta de base legal do ato administrativo que aplicou as compensações com base na norma ilegal contida no artigo 11.º do DL 117/2010 de 25-10 não é restrita ao processo em que foi declarada, antes se impõe a sua inaplicabilidade em geral, a todos os seus destinatários, o que o Tribunal A Quo reconheceu ao declarar procedente a ação, resultado da correta interpretação e aplicação do Direito da União, expresso no Acórdão do TJUE, decisão sufragada pelo Venerando Juiz Desembargador Relator.
18 - O Princípio da Tutela Jurisdicional Efetiva não foi minimamente colocado em causa, pois com o mesmo não se pretende defender uma ou outra parte em litígio, mas que seja aplicada a Lei.
19 - A decisão em crise resultou exclusivamente da aplicação da lei ao abrigo do disposto no artigo 95.º n.º 3 do CPTA, no uso da prerrogativa que aquele normativo concede ao julgador, quando perante um processo impugnatório.
20 - A recorrente confunde e mistura o disposto no n.º 1 do artigo 95.º do CPTA com o seu n.º 3 e designadamente com a segunda parte deste dispositivo, que contém uma previsão especial para os processos impugnatórios, que não limita o julgador ao Princípio do Dispositivo ou, nomeadamente, ao Princípio consagrado no artigo 608.º n.º 2 do CPC, mas lhe consente um regime mais alargado de decisão, confundindo-a ainda com os Princípios do Processo Penal, cujo sentido da sua aplicação não é o que pugnou na sua douta Reclamação.
21 - O Acórdão do TJUE referido, pronunciou-se sobre a matéria em discussão nos presentes autos na medida em que versou matéria que torna inoponível a norma do artigo 11.º do DL 110/17 de 25-10 a todos os destinatários particulares que possam ser abrangidos por aquela disposição ilegal, como é o caso da recorrida que aquela norma ilegal afetou obrigando-a enquanto destinatário registado, a apresentar os TdB calculados de acordo com as percentagens estabelecidas, para cada ano, naquele normativo, impossíveis de obter, de resto, e a condenou nas compensações correspondentes à sua não apresentação, decisão que o STA no Acórdão citado de 06.07.2023, sufragou ao referir na sua Conclusão II: “… em face daquele seu Acórdão (do TJUE) de 9.3.2023, resulta, por si, incontornável a procedência da impugnação contenciosa, aqui em apreciação, da ordem de pagamento fundamentada naquela legislação nacional tida como inoponível aos destinatários particulares, sendo pois tal ato impugnado inválido e contenciosamente anulável por vício de violação da Lei por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).”
22 - A obediência à lei, por parte da Administração Publica não pode significar que se exima às suas obrigações de legalidade só porque dispõe de uma norma vigente num determinado momento, mas cuja ilegalidade vem entretanto a ser declarada, antes lhe impondo dar cumprimento à obrigação de revogação administrativa dos atos ilegais perante a constatação da invalidade da norma que sustentou a sua decisão como impõe o artigo 165.º do CPA, designadamente enquanto os mesmos não se mostrem contenciosamente anulados.
23 - O ato administrativo em crise não se consolidou ainda no ordenamento jurídico pois a sua impugnação atempada impediu que se tornasse definitivo quanto aos seus efeitos, na esfera jurídica da recorrida.
24 - A sentença recorrida não padece de qualquer erro de julgamento, é o ato impugnado que padece efetivamente de vício de violação da lei – é ilegal - por erro nos pressupostos de direito - falta de base legal, que é contemporânea do Diploma Legal que continha a norma do artigo 11.º, que violou, sempre, a Diretiva 98/34 CE ao não respeitar as regras para a sua aprovação.
25 - A decisão sumária não viola qualquer dispositivo legal ou Princípio fundamental do direito, designadamente os pretendidos e citados pela reclamante, pelo que deve ser confirmada, com as legais consequências.
TERMOS EM QUE, Com o sempre douto entendimento de V.ªs Ex.ªs, Venerandos Juízes Desembargadores, que assim decidindo farão a habitual e costumada Justiça, deve a reclamação para a Conferência ser julgada improcedente, concluindo-se como na decisão sumária [...].“

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Com dispensa dos vistos legais, tendo para o efeito sido obtida a concordância dos Meritíssimos Juízes Desembargadores Adjuntos [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.
***

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÃO A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir a questão colocada pela Reclamante, e que em suma se cinge à invocação da ocorrência de erro de julgamento na Decisão sumária proferida, pugnando, a final e em suma, como já assim havia sustentado em sede das Alegações do recurso de Apelação que havia apresentado nos autos, no sentido de que o acto administrativo sob impugnação não padece de qualquer invalidade que seja determinante da sua anulabilidade.

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III - FUNDAMENTOS IIIi - DE FACTO

Para efeitos da prolacção da Decisão sumária, foi julgado pelo Relator ser suficiente a remessa para o probatório constante da Sentença recorrida, o que assim agora também decidimos.

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IIIii - DE DIREITO

Tratam os autos da Reclamação deduzida pela Recorrente ENSE, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 3.º do CPC, ex vi artigo 140.º, n. 3 do CPTA, visando a Decisão sumária proferida nestes autos pelo Relator, em 27 de fevereiro de 2024, pela qual foi negado provimento ao recurso de Apelação por si interposto, ora Reclamante, e que confirmou assim a Sentença recorrida, da qual, por facilidade, para aqui se extracta parte do seu discurso fundamentador, como segue:

Início da transcrição
“[...]
Está em causa a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, datada de 02 de novembro de 2023, que tendo apreciado a pretensão deduzida pela Autora contra a Ré, no sentido de ser anulada a decisão proferida pelo Presidente do Conselho de Administração da ENMC, que no âmbito do processo 08/DB/2022 e nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, determinou que a Autora ora Recorrida pagasse a quantia de €92.246,00, a título de compensações pelo incumprimento da obrigação de incorporação de biocombustíveis, relativa ao 4.º trimestre de 2021, veio a julgar pela sua procedência e a anular o acto impugnado.

Constituindo os recursos jurisdicionais os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, por via dos quais os recorrentes pretendem alterar as sentenças recorridas, nas concretas matérias que os afectem e que sejam alvo da sua sindicância, é necessário e imprescindível que no âmbito das alegações de recurso os recorrentes prossigam de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que se apoiou a decisão recorrida, por forma a evidenciar os erros em que a mesma incorreu.

Cotejadas as Alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, delas se extrai que por si vem sustentada a ocorrência:

i) de nulidade da Sentença recorrida, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 95.º, n.º 1 do CPTA, em conjugação com o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, por não ter sido suscitado pelas partes o vício pelo qual o Tribunal a quo anulou o acto administrativo impugnado e uma vez que o mesmo não é susceptível de conhecimento oficioso.

ii) de erro de julgamento em matéria de direito porque o acto administrativo impugnado não é ilegal, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma legal que à data se encontrava em vigor e que só foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2022.

Cumpre então apreciar desde já a invocada violação do artigo 615.º, n.º 1 alínea d) do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, com fundamento na alegação de que o Tribunal a quo conheceu de questões de que não devia ter apreciado.

Em torno da apontada nulidade, e depois de analisada a Sentença recorrida, constatamos que a Mm.ª Juiza do Tribunal a quo, em sede do relatório efectuado referiu que a Autora veio impugnar a decisão da autoria da Ré ora Recorrente tomada na sequência da invocada verificação do incumprimento das metas de incorporação de biocombustíveis no 4.º trimestre de 2021, tendo-a condenado [à Autora] no pagamento da compensação de €92.246,00, por aplicação do regime previsto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, tendo sustentando [a Autora] que o acto impugnado padece, entre o mais, de violação de lei por não ter cometido qualquer infracção e não ter incumprido as obrigações de incorporação de biocombustíveis, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, e que se verifrica a inconstitucionalidade da norma contida no referido artigo 24.º, por violação dos artigos 18.º, n.º 2 e 165.º, ambos da CRP.

Mais referiu a Mm.ª Juíza no relatório sentencial que a Autora veio requerer a ampliação da instância com fundamento no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferido a 09 de março de 2023, no âmbito do reenvio prejudicial ocorrido no processo n.º 860/21.1BEBRG [que já havia sido junto aos autos – Cfr. fls. 200 dos autos – SITAF], ampliação essa que não foi admitida.

E logo após [depois de ter efectuado o saneamento dos autos], em sede das questões que lhe cumpria decidir, preciou e decidiu como segue:

Início da transcrição
“[…]
O direito é de conhecimento oficioso do tribunal: ius novit curia, ou seja, o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 1.º do CPTA). Assim, o juiz pode entender que os vícios imputados ao ato devem ser juridicamente qualificados de forma distinta da alegada pelas partes.
O tribunal tem conhecimento funcional de que foi proferido um acórdão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no âmbito do processo 860/21.1BEBRG, que correu termos neste Tribunal, que se debruçou sobre a matéria em causa nos autos.
A Autora também veio trazer aos autos o mesmo acórdão.
Postula o n.º 3, do artigo 95.º do CPTA que «Nos processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado, exceto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito, assim como deve identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, ouvidas as partes para alegações complementares pelo prazo comum de 10 dias, quando o exija o respeito pelo princípio do contraditório.».
As partes já tiveram oportunidade de se pronunciar sobre as questões decididas no acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
Assim, o tribunal identifica uma causa de invalidade do ato impugnado diversa das que foram alegadas que será a violação dos artigos 8.º e 9.º da Diretiva 98/34/CE, de 22 de junho de 1998.
Nesta senda, atendendo ao que ficou dito, ao objeto da lide, delimitada pelo pedido e pela causa de pedir, importa decidir da legalidade da decisão proferida pela Entidade Demandada, de aplicação de compensações pelo alegado não cumprimento das obrigações de incorporação de biocombustíveis relativa ao quarto trimestre do ano de 2021 e designadamente se a mesma padece de:
(i) Violação dos artigos 8.º e 9.º da Diretiva 98/34/CE, de 22 de junho de 1998;
(ii) Violação do artigo 24.º do DL 117/2010 de 25.10;
(iii) Violação do princípio da proporcionalidade;
(iv) Violação do artigo 165.º da CRP;
[…]”
Fim da transcrição

Após, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo veio a fixar a matéria de facto que julgou por relevante, com cujo julgamento, de resto, se conformou a Recorrente, porquanto a sua pretensão recursiva não versa sobre qualquer erro de julgamento em matéria de facto.

Com referência aos elementos de prova que a suportam, veio o Tribunal a quo a enunciar as razões que conduziram à apreciação do mérito da causa, tendo estribado juridicamente a sua posição no sentido de que a pretensão da Autora tinha de proceder, tendo por isso julgado procedente a acção, anulando o acto proferido pela Ré, e condenando-a nas custas processuais a que deu causa.

Como assim ensina Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1981, páginas 144 a 146 “[…] quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão […]”.

Efectivamente, tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, do CPTA aplicável aos Acórdãos dos Tribunais Superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º, ambos do CPC.

Com efeito, e ainda de acordo com o supra citado Autor “[…] uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.” […]”

Tudo ponderado, julgamos que por aqui não assiste razão à Recorrente.

Desde logo, porque em face do diposto no artigo 5.º do CPC, sendo certo que cabe às partes o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, e que servirá de base ao julgamento do Tribunal, além desses factos, são ainda considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, ou que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, assim como os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, não estando o julgador sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Ora, como assim resulta da instrução dos autos, foi junta aos autos pela Autora, cópia do Acórdão proferido pelo TJUE, decisão judicial esta que, de resto, havia sido especialmente dirigida ao TAF de Braga por aquele mesmo Tribunal, e por ele recebida nos autos de destino, em 14 de março de 2023.

Como assim resulta da Petição inicial, a Autora já assacava ao acto impugnado, invalidade que tinha subjacente a violação de lei, com fundamento, em suma, em que não lhe podia ser exigido o pagamento das compensações a que se reporta o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, por ser inaplicável o disposto no artigo 11.º do mesmo diploma legal [Cfr. entre outros, pontos 77, 78, 79, 80 e 81 da Petição inicial].

Os termos e os pressupostos de direito invocados pela Autora para efeitos da convocação daquele diploma legal não vinculam o Tribunal, sendo certo que o que a Autora peticionou, entre o mais, foi a anulação do acto prolatado pela Ré [Cfr. alínea a) do pedido formulado a final da Petição inicial], e tal assim foi julgado ocorrer pelo Tribunal a quo.

De todo o modo, sempre julgamos que sendo o referenciado Acórdão do TJUE um documento que está já no acesso generalizado da comunidade [acessível no link: https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=271072&pageI ndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2407524, que aqui deixamos enunciado], e sendo incontestada a primazia do direito comunitário, originário e derivado, não é por ter sido junto aos autos esse Acórdão, que o Tribunal julgou em excesso de pronúncia.

Para além disso, tendo subjacente o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea c) e 412.º, n.º 2, ambos do CPC, o Tribunal a quo não podia obnubilar, enquanto facto tangível, o suporte documental constante dos autos, cujo conhecimento oficioso, de resto, sempre lhe é devido por força do exercício das suas funções.

Não há assim qualquer excesso de pronúncia quanto ao que foi apreciado e decidido pelo Tribunal a quo naquele domínio.

De maneira que, como assim julgamos, a Sentença recorrida não padece da assacada nulidade, por excesso de pronúncia [fundada na violação do artigos 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC], sendo que em face da invocação por parte da Recorrente do julgamento tirado pelo Tribunal a quo, o que estaremos é perante eventual erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito, sancionável com a revogação da Sentença e não com a nulidade.

Falece assim a invocação da ocorrência da nulidade imputada à Sentença.

Prosseguindo.

Em sede da identificação das questões que lhe cumpria apreciar e decidir, identificou o Tribunal a quo que lhe cumpria decidir da legalidade da decisão proferida pela Entidade Demandada, de aplicação de compensações pelo alegado não cumprimento das obrigações de incorporação de biocombustíveis relativa ao quarto trimestre do ano de 2021 e designadamente se a mesma padece de: (i) Violação dos artigos 8.º e 9.º da Diretiva 98/34/CE, de 22 de junho de 1998; (ii) Violação do artigo 24.º do DL 117/2010 de 25.10; (iii) Violação do princípio da proporcionalidade; e de (iv) Violação do artigo 165.º da CRP.

Aqui chegados.

Conforme assim foi apreciado e decidido pelo Tribunal a quo [no que é atinente às questões a decidir por si identificadas], o pedido a que se reporta a Petição inicial foi julgado procedente, e para alcance desse desiderato, julgou conforme para aqui se extrai parte da essencialidade da fundamentação por si aportada, como segue:

Início da transcrição
“[…]
Em face da exposição até aqui realizada, suscitavam-se relevantes e importantes questões em matéria de interpretação destas disposições de Direito Europeu, desde logo:
(1) se o n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25/10 constituía “regra técnica” para efeitos da aplicação da Diretiva 98/34/CE, de 22 de junho de 1998; (2) se tinha aplicação alguma cláusula de salvaguarda, designadamente se estávamos na presença de uma mera transposição de um ato europeu vinculativo;
(3) qual a consequência que decorria da violação da obrigação de não cumprimento do projeto da regra técnica, caso fosse considerada obrigação de incorporação.
Em face das diversas e pertinentes questões suscitadas, no âmbito do processo cautelar n.º 860/21.1BEBRG foi determinado um pedido de reenvio prejudicial, a fim de permitir que o TJUE se pronunciasse sobre tais questões interpretativas, conforme o artigo 267.º TFUE. Este pedido de reenvio prejudicial deu origem ao Processo n.º C604/2021 e que culminou no Acórdão proferido em 9 de março de 2023, tendo o venerando Tribunal respondido às questões suscitadas, nos termos que agora iremos concretizar (ponto 10. do probatório).
Quanto à primeira questão levantada − saber se a previsão do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25/10, constitui “regra técnica‖, para efeitos da Diretiva 98/34/CE, de 22 de junho de 1998 −, o TJUE respondeu da seguinte forma:
“(…) uma legislação nacional que fixa um objetivo relativo à incorporação de 10 % de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários introduzidos no consumo por um operador económico relativamente a um determinado ano é abrangida pelo conceito de «outra exigência» na aceção do artigo 1.°, ponto 4, da Diretiva 98/34, conforme alterada, e constitui assim uma «regra técnica» na aceção do artigo 1.°, ponto 11, da Diretiva 98/34, conforme alterada, a qual apenas é oponível aos particulares se o seu projeto tiver sido comunicado em conformidade com o artigo 8.º, n.º 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada”.
Portanto e tendo em conta o supramencionado torna-se imperiosa a conclusão: estamos efetivamente perante uma “regra técnica‖, no que respeita à previsão do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25/10.
Mas, além disso, a pronúncia do TJUE contém outra pertinente conclusão, no que concerne ao incumprimento da obrigação prevista no artigo 8.º, n.º 1, da Diretiva 98/34/CE, de 22 de junho de 1998. Como se diz na parte do dispositivo em causa, a “regra técnica” só é oponível aos particulares se o seu projeto tiver sido comunicado em conformidade com o artigo 8.º, n.º 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada.
Nesta senda, era obrigatória a comunicação da norma em causa, em cumprimento da Diretiva, o que, como resulta dos factos provados efetivamente não sucedeu. Esse incumprimento, segundo aquilo que foi entendido pelo TJUE no Acórdão em causa torna a “regra técnica” insuscetível de ser oposta aos particulares, o que por outras palavras significa dizer-se que, não pode ser imposto aos particulares o cumprimento daquela regra.
Ora, a Jurisprudência em causa tem aplicação no caso concreto, mesmo que proferida no âmbito de outro processo, considerando que as questões colocadas nestes autos são exatamente as mesmas.
Basta vislumbrarmos o princípio do primado do Direito Europeu (constantemente reafirmado na jurisprudência do TJUE, mas que começou a ser construído a partir dos acórdãos Costa contra ENEL (Acórdão do TJUE de 15 de julho de 1964, processo n.º 6/64), Amministrazione delle Finanze contra Simmenthal (Acórdão do TJUE de 9 de março de 1978, processo n.º 106/77).
Decorre do princípio do primado que qualquer Juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito comunitário vigente e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição eventualmente contrária de direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária.
Também a isso obriga o princípio da cooperação leal com as instituições da UE, sendo certo que os Tribunais Nacionais devem ser o primeiro aplicador do Direito Europeu, em consonância com as orientações interpretativas emanadas do TJUE sobre as mesmas questões.
Citemos, a este respeito, o referido pela Autora ANA MARIA GUERRA MARTINS in “Manual de Direito da União Europeia‖, Reimpressão 2014, Almedina, pág. 568:
“O acórdão interpretativo obriga o juiz nacional que suscitou a questão, pelo que este não se pode basear, na solução do litígio principal, numa interpretação diferente da que foi dada pelo TJ. Esta obrigação de respeitar a interpretação dada pelo Tribunal incide não só sobre a decisão propriamente dita, mas também sobre a sua fundamentação. Além disso, o acórdão interpretativo obriga todos os outros juízes nacionais. O TJ afirmou, no caso Milch-, Fett-, und Eierkontor, que a interpretação obriga todas as instâncias nacionais que se ocuparam do litígio, ou seja, mesmo que se trate de tribunais superiores estes devem considerar-se vinculados pelo acórdão proferido a pedido de um tribunal inferior. O acórdão interpretativo tem, pois, alcance geral. A interpretação incorpora-se na norma interpretada, pelo que os juízes nacionais que a quiserem aplicar têm a obrigação de o fazer com o sentido e o alcance que lhe foi dado pelo acórdão.” (sublinhado nosso).
Em função do expendido, dúvidas não restam de que este Tribunal se encontra totalmente obrigado a considerar a interpretação firmada pelo TJUE no processo de reenvio prejudicial supramencionado.
Volvendo ao caso dos presentes autos, temos assim que, segundo a interpretação firmada pelo TJUE, a norma do n.º 1 artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25/10, deveria ter sido precedida de comunicação à Comissão Europeia, por se tratar de “regra técnica”, pelo que a consequência para o incumprimento desse dever é a inoponibilidade da regra em causa aos particulares e in casu à Autora.
Quer isto dizer, na prática, que a Administração fica sem norma que legitime a possibilidade de imputar qualquer espécie de incumprimento à aqui Autora, pois que não lhe pode opor a norma que previa a percentagem de incorporação de biocombustíveis.
Assentando, assim, o ato administrativo numa norma legal desconforme ao Direito da União Europeia, a própria decisão administrativa fica inquinada pela violação deste direito, não podendo ser mantida no ordenamento jurídico. A verdade é que, a violação da legislação europeia dissemina os seus efeitos para as decisões administrativas tomadas ao abrigo ou com fundamento numa norma nacional violadora do direito da UE e, por isso, não é oponível aos particulares, in casu, à Autora.
Importa acrescentar que, de um ponto de vista do prisma do princípio da legalidade, se a obrigação estatuída no artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25/10 é de julgar não oponível à Autora − por todos os motivos já aduzidos −, a Entidade Demandada deixa de ter base legal para lhe imputar qualquer incumprimento da obrigação de incorporação de biocombustíveis, nos termos do artigo 24.º do DL 117/2010, de 25/10 (alterado pelo DL n.º 152 C/2017), e a consequência prática é a inexistência de qualquer dever de pagamento das compensações por parte da Autora à Entidade Demandada.
Cumpre ainda dizer-se que, o TJUE considerou que não têm aplicação no caso dos presentes autos qualquer das exceções à obrigação de comunicação, como também resulta do dispositivo do mesmo Acórdão.
Por conseguinte, atento o primado do direito da União Europeia, que exige que este Tribunal siga o entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia, vertido no acórdão n.º C-604/2021, deixando de existir sustentação legal para que possa ser exigido à Autora o pagamento da compensação em causa, fica prejudicado o conhecimento dos demais vícios.
Em face do exposto, terá que ser anulado o ato impugnado.
[…]”
Fim da transcrição

Ora, em conformidade com o disposto no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, o legislador quis transpôr para a ordem jurídica interna os artigos 17.º a 19.º e os anexos III e V da Directiva n.º 2009/28/CE, do Conselho e do Parlamento Europeu, de 23 de abril, relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis, assim como transpôr o n.º 6 do artigo 1.º e o anexo IV da Directiva n.º 2009/30/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, relativa às especificações da gasolina e do gasóleo rodoviário e não rodoviário, e à introdução de um mecanismo de monitorização e de redução das emissões de gases com efeito de estufa, e entre o mais, estabelecer os critérios de sustentabilidade de produção e utilização de biocombustíveis e de biolíquidos, independentemente da sua origem, assim como definir os limites de incorporação obrigatória de biocombustíveis para os anos de 2011 a 2020.

Como assim se lê no preâmbulo do diploma “[…] a incorporação de biocombustíveis nos transportes terrestres, em substituição dos combustíveis fósseis, para além de contribuir decisivamente para alcançar o objectivo de 31 % do consumo final de energia com origem renovável, assume especial relevância para a redução das emissões de gases com efeito de estufa, para a diversificação da origem da energia primária e para a redução da dependência energética externa em relação aos produtos petrolíferos, cumprindo os objectivos subjacentes à ENE 2020. […] Deste modo, o presente decretolei determina os critérios para a qualificação dos biocombustíveis e biolíquidos como sustentáveis e cria um novo mecanismo de apoio à incorporação dos biocombustíveis no cabaz de combustíveis consumidos no sector dos transportes, dando continuidade aos mecanismos de promoção da utilização dos biocombustíveis, previstos nos Decretos-Leis n.ºs 62/2006, de 21 de março, e 49/2009, de 26 de fevereiro. Para verificação do cumprimento das metas de incorporação é criado um sistema de emissão de títulos de biocombustíveis (TdB), atribuindo-se uma valorização adicional aos biocombustíveis produzidos a partir de resíduos e detritos ou de matéria-prima com origem lenho-celulósica, bem como os que sejam produzidos a partir de matérias endógenas, de forma a privilegiar o valor acrescentado nacional e em concordância com a ENE 2020. Este sistema de TdB permite que os mesmos sejam transaccionáveis pelos agentes económicos, dando a cada incorporador, como forma de comprovação do cumprimento da sua meta, a opção entre obter os TdB necessários através da incorporação de biocombustíveis ou adquirir esses títulos a agentes que os tenham em excesso. O incorporador que não entregue os títulos que comprovem o cumprimento da meta de incorporação definida fica obrigado ao pagamento de uma compensação. […]”

Ora, é do que assim tratam os autos.

Ou seja, a Ré praticou um acto administrativo nesse domínio, impondo à Autora o pagamento de uma compensação, e a Autora, por seu turno, invocou a ilegalidade/invalidade desse acto, peticionando a final da Petição inicial a sua anulação.

O Tribunal a quo, em conformidade com o decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no reenvio prejudicial efectuado no âmbito do processo n.º 860/21.1BEBRG, e que correu termos sob o n.º C-604/2021, apreciou e decidiu [conforme já assim deixamos enunciado supra] que “[…] Assentando, assim, o ato administrativo numa norma legal desconforme ao Direito da União Europeia, a própria decisão administrativa fica inquinada pela violação deste direito, não podendo ser mantida no ordenamento jurídico. A verdade é que, a violação da legislação europeia dissemina os seus efeitos para as decisões administrativas tomadas ao abrigo ou com fundamento numa norma nacional violadora do direito da UE e, por isso, não é oponível aos particulares, in casu, à Autora.
Importa acrescentar que, de um ponto de vista do prisma do princípio da legalidade, se a obrigação estatuída no artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25/10 é de julgar não oponível à Autora − por todos os motivos já aduzidos −, a Entidade Demandada deixa de ter base legal para lhe imputar qualquer incumprimento da obrigação de incorporação de biocombustíveis, nos termos do artigo 24.º do DL 117/2010, de 25/10 (alterado pelo DL n.º 152-C/2017), e a consequência prática é a inexistência de qualquer dever de pagamento das compensações por parte da Autora à Entidade Demandada.
Cumpre ainda dizer-se que, o TJUE considerou que não têm aplicação no caso dos presentes autos qualquer das exceções à obrigação de comunicação, como também resulta do dispositivo do mesmo Acórdão.
Por conseguinte, atento o primado do direito da União Europeia, que exige que este Tribunal siga o entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia, vertido no acórdão n.º C-604/2021, deixando de existir sustentação legal para que possa ser exigido à Autora o pagamento da compensação em causa, fica prejudicado o conhecimento dos demais vícios.
[…]”

Assenta a pretensão recursiva da Recorrente, em sede do imputado erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito, no pressuposto, em suma, que o acto administrativo é legal porque emitido ao abrigo do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, que então estava em vigor, e que a mesma estava vinculada na sua prolação em obediência ao princípio da legalidade, e que a pretensão da Autora ora Recorrida é ilegal, tendo assim errado na interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 11.º e do n.º 1 do artigo 24.º, ambos do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro.

Nada refere a Recorrente de substancial em torno do julgamento efectuado pelo Tribunal a quo, visando a interpretação e aplicação dos artigos 8.º e 9.º da Diretiva 98/34/CE, o que julgamos ser assaz relevante.

Vejamos.

Efectivamente, em torno da interpretação e aplicação dos artigos 8.º e 9.º da Diretiva 98/34/CE, e que reputamos ser nuclear para efeitos do que a final era a pretensão anulatória da Autora, e em que também vem a radicar a sua pretensão recursiva, este TCA Norte veio já a prolatar, de forma unânime e reiterada, jurisprudência com a qual a Sentença recorrida tem o devido alinhamento, de que destacamos o Acórdão proferido no Processo n.º 856/21.3BEBRG, datado de 04 de outubro de 2023, o Acórdão proferido no Processo n.º 2639/17.6BEBRG, e o Acórdão proferido no Processo n.º 1584/21.5BEPRT, ambos datados de 30 de novembro de 2023, decisões judiciais essas em que interviemos na qualidade de Adjunto.

Esses Acórdãos deste TCA Norte foram proferidos com amparo em jurisprudência do TJUE, de que destacamos o mesmo Acórdão tomada pelo Tribunal recorrido [datado de 09 de março de 2023, proferido no Processo “Vapo Atlantic” (C-604/21, EU:C:2023:175)], do qual, por facilidade, para aqui extraímos com interesse para a decisão a proferir, o que segue:

Início da transcrição

“[…]
1) O artigo 1.°, ponto 4, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação, conforme alterada pela Diretiva 2006/96/CE do Conselho, de 20 de novembro de 2006, deve ser interpretado no sentido de que: uma legislação nacional que fixa um objetivo relativo à incorporação de 10 % de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários introduzidos no consumo por um operador económico relativamente a um determinado ano é abrangida pelo conceito de «outra exigência» na aceção do artigo 1.°, ponto 4, da Diretiva 98/34, conforme alterada, e constitui assim uma «regra técnica» na aceção do artigo 1.°, ponto 11, da Diretiva 98/34, conforme alterada, a qual apenas é oponível aos particulares se o seu projeto tiver sido comunicado em conformidade com o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada.
2) O artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada pela Diretiva 2006/96, deve ser interpretado no sentido de que: uma legislação nacional que visa transpor o artigo 7.°-A, n.° 2, da Diretiva 98/70/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à qualidade da gasolina e do combustível para motores diesel e que altera a Diretiva 93/12/CEE do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2009/30/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, em consonância com o objetivo que figura no artigo 3.°, n.° 4, da Diretiva 2009/28/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis que altera e subsequentemente revoga as Diretivas 2001/77/CE e 2003/30/CE, não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma norma europeia na aceção do artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada, e, por conseguinte, de se eximir à obrigação de comunicação prevista nesta disposição.

3) O artigo 4.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2009/30, deve ser interpretado no sentido de que: esta disposição não constitui uma cláusula de salvaguarda prevista num ato vinculativo da União, na aceção do artigo 10.°, n.° 1, terceiro travessão, da Diretiva 98/34, conforme alterada pela Diretiva 2006/96.
[…]”
Fim da transcrição

Atento o teor deste Acórdão do TJUE, e com base no que aí foi apreciado e decidido, o STA veio a proferir Acórdão no Processo 02739/17.2BEBRG-A, datado de 06 de julho de 2023, em que a relação jurídica controvertida de base era similar à que ora está em apreço nestes autos, de onde para aqui extraímos, por facilidade e dado o seu interesse para a decisão a proferir, o seu sumário, como segue:

Início da transcrição
“[…]
I - Do Acórdão do TJUE de 9/3/2023, “Vapo Atlantic” (C-604/21), proferido em reenvio prejudicial operado pelo TAF/Braga no processo 860/21.1BEBRG, resulta que o disposto no nº 1 do art. 11º do DL nº 117/2010, de 25/10, nas suas sucessivas versões até à sua revogação pelo DL nº 84/2022, de 9/12, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” (na aceção do art. 1º, ponto 11, da Diretiva 98/34) a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projeto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no art. 8º nº 1 daquela Diretiva (o que não sucedeu). Mais resulta do Acórdão do TJUE que aquela norma nacional não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma “norma europeia”, não se subsumindo, pois, à exceção prevista naquele art. 8º nº 1 da citada Diretiva, nem é suscetível de integrar uma “cláusula de salvaguarda”.
II - Esta jurisprudência interpretativa do TJUE impõe-se também no âmbito do presente processo, onde se discute questão idêntica, tornando inútil a manutenção do reenvio prejudicial aqui também operado (“Vapo Atlantic II”, C-413/22), em que foram colocadas ao TJUE questões suplementares, pois que, em face daquele seu Acórdão de 9/3/2023, resulta, por si, incontornável a procedência da impugnação contenciosa, aqui em apreciação, da ordem de pagamento fundamentada naquela legislação nacional tida como inoponível aos destinatários particulares (como a aqui Autora/Recorrente), sendo, pois, tal ato impugnado, inválido e contenciosamente anulável por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
[…]”
Fim da transcrição

E neste conspecto, tendo presente aqueles identificados Acórdãos deste TCA Norte [onde o ora Relator interveio como Adjunto] e onde foi conhecida e apreciada, em torno das questões aí suscitadas, na sua essência, matéria de igual natureza e mérito àquelas que aqui ora vêm colocadas, aderindo à jurisprudência por eles firmada [sem reservas, embora com as adaptações que mostrem necessárias, designadamente em sede da matéria de facto], aqui damos por enunciada parte da fundamentação aportada no Acórdão proferido no Processo n.º 2639/17.6BEBRG, datado de 30 de novembro de 2023 [de que será junta cópia aos autos] tendo em vista alcançar uma interpretação e aplicação uniformes do direito [cfr. artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil], como segue:

Início da transcrição
“[…]
No caso vertente, o ato administrativo impugnado determinou à A. o pagamento de compensações no valor de €142.000,00 (cento e quarenta e dois mil euros) pelo incumprimento das obrigações de incorporação de biocombustíveis relativas ao 1.º Trimestre de 2020.
Essas metas de incorporação resultam do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010 que, de acordo com o acórdão do TJUE supracitado, constituem normas técnicas. Ora, se tais metas de incorporação constituem normas técnicas, deveriam ter sido comunicadas à Comissão Europeia, sob pena de serem inoponíveis e inaplicáveis aos particulares.
A comunicação prévia das regras técnicas encontra-se prevista no artigo 8.º da sobredita Diretiva, nos seguintes termos:
1. Sob reserva do disposto no artigo 10º, os Estados membros comunicarão imediatamente à Comissão qualquer projeto de regra técnica, exceto se se tratar da mera transposição integral de uma norma internacional ou europeia, bastando neste caso uma simples informação relativa a essa norma. Enviarão igualmente à Comissão uma notificação referindo as razões da necessidade do estabelecimento dessa regra técnica, salvo se as mesmas já transparecerem do projeto.
Não tendo sido efetuada tal comunicação, como resulta da matéria de facto provada nos presentes autos, concluímos que o referido ato administrativo, já que fundamentado no Decreto-Lei n.º 117/2010, padece de invalidade, devendo ser anulado, como, efetivamente, o foi pela sentença recorrida.
Acresce que, com relevância para os presentes autos, no âmbito do processo n.º 2739/17.2BEBRG-A, que tramitou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, e cujo objeto é idêntico ao dos presentes autos, designadamente, a impugnação de um ato administrativo praticado pela ora recorrente traduzido na aplicação de compensações à ora recorrida, o Supremo Tribunal Administrativo proferiu Acórdão em 06 de julho de 2023, o qual julgou procedente, por provada, a ação administrativa da recorrente, determinando a anulação de tal ato [...]
[...]
Importa, transcrever, ainda, parte do teor deste acórdão do STA de 6/07/2023, que infirma totalmente as conclusões da recorrente:
“21. Deste Acórdão do TJUE, de 9/3/2023, resulta, pois, em conclusão, que o disposto no nº 1 do art. 11º do DL nº 117/2010, de 25/10, nas suas sucessivas versões até à sua revogação operada pelo DL nº 84/2022, de 9/12, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” (na aceção do art. 1º, ponto 11, da diretiva 98/34), a qual só seria oponível aos destinatários particulares (como a aqui Autora) se o respetivo projeto tivesse sido comunicado à Comissão nos termos previstos no art. 8º nº 1 da Diretiva 98/34. Mais declarou o TJUE que tal norma nacional não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma “norma europeia” (não se subsumindo, pois, à exceção prevista no art. 8º nº 1 da Diretiva 98/34), nem é suscetível de se integrar numa cláusula de salvaguarda.
Ora, este julgamento do TJUE, proferido em 9/3/2023 no âmbito daquele mecanismo de reenvio prejudicial (C-604/21) operado pelo TAF/Braga no âmbito do processo 860/21.1BEBRG, é decisivo, por si, para determinar a sorte deste nosso presente processo.
Na verdade, não sendo a norma contida no nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, de 25/10, oponível aos destinatários particulares, ela não era, consequentemente, oponível à aqui Autora/Recorrente, pelo que o ato impugnado, praticado pela Ré/Recorrida “ENSE”, consistindo numa ordem de pagamento fundamentada num incumprimento daquela norma, queda-se sem fundamento legal, incorrendo, pois, em vício de erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
Dúvidas não pode haver que aquele julgamento do TJUE é plenamente aplicável no caso do presente processo, uma vez que a jurisprudência daquele tribunal europeu, quanto à interpretação fixada do direito da UE, designadamente em processo de reenvio prejudicial, torna-se obrigatório quer no âmbito da causa em que o reenvio foi operado quer em quaisquer outros processos em que seja pertinente a aplicação das mesmas normas interpretadas. Efetivamente, além de o tribunal nacional destinatário ficar vinculado pela interpretação dada, o Acórdão do TJUE vincula também os outros órgãos jurisdicionais a quem seja submetida uma questão idêntica.
Ora, no presente processo, estamos perante um litígio substancialmente idêntico, apenas variando a quantia da compensação a dever ser, alegadamente, paga pela Autora/Recorrente e o espaço temporal a que tal compensação se reporta (no nosso caso, o ano de 2016, a que, nos termos do aludido nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, correspondia uma obrigação de incorporação de biocombustíveis na percentagem de 7,5% - cfr. alínea c). Sendo irrelevantes, quanto à manutenção dessa inoponibilidade, a variação das várias versões do DL 117/2010 até á sua revogação pelo DL 84/2022, de 9/12 (nomeadamente, as versões introduzidas pelos DLs. 6/2012, de 17/1, 69/2016, de 3/11 – em que se baseou o ato aqui impugnado, 152-C/2017, de 11/12 e 8/2021, de 20/1).
Em face do julgamento do TJUE, tornam-se, pois, inúteis as eventuais respostas às questões prejudiciais colocadas suplementarmente ao TJUE pelo reenvio prejudicial operado, à cautela, no âmbito deste nosso processo, uma vez que, independentemente dessas respostas, a já estabelecida inoponibilidade aos destinatários particulares (como a aqui Autora/Recorrente) da norma impositiva contida no nº 1 do art, 11º do DL 117/2010, impõe, por si, irremediavelmente, uma decisão de procedência da presente ação impugnatória, por força de vício do ato impugnado, por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal) – o que se decide.”
Pelo exposto, temos que, não sendo a norma inserta no nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, de 25/10, oponível aos destinatários particulares, ela não era, consequentemente, oponível à aqui Autora/Recorrente, pelo que o ato impugnado, praticado pela Ré/Recorrente “ENSE”, consistindo numa ordem de pagamento fundamentada num incumprimento daquela norma, fica sem fundamento legal, incorrendo em vício de erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
[...]
Note-se, ademais, que o citado Acórdão do TJUE, de 9/3/2023, ao declarar a inoponibilidade, aos destinatários/particulares, da legislação portuguesa em causa, já pressupõe preenchida uma das condições para que essa consequência seja possível: o “efeito direto” do relevante direito da UE. Isto é, a possibilidade de os particulares poderem invocar este direito europeu em ordem a salvaguardarem os seus direitos e interesses, eventualmente contra legislação nacional que o contrarie (cfr. Acórdão fundamental “Van Gend en Loos”, 26/62).
E, nos termos do Acórdão fundamental “CIA Security Service (C-194/94), aliás citado pelo TJUE no Acórdão interpretativo de 9/3/2023, «há que concluir que a Diretiva 83/189 deve ser interpretada no sentido de que a inobservância da obrigação de notificação acarreta a inaplicabilidade das “regras técnicas” em questão, de modo que não podem ser opostas aos particulares», sendo que ao juiz nacional «compete recusar a aplicação de uma “regra técnica” nacional que não tenha sido notificada em conformidade com a Diretiva”.
Não tendo sido assim considerado pelo Tribunal a quo, independentemente de qualquer outra invalidade, a sentença padece de erro de julgamento, no que, em concreto respeita à interpretação do artigo.° 11, do Decreto-Lei n.° 117/2010, conjugado com os artigos 1.°, 8.° e 9.°, da Directiva 98/34/CE, o que determina a revogação da sentença recorrida, com as demais consequências legais.
[...]“
Fim da transcrição

Como assim deflui do extraído supra, a solução jurídica que aí foi alcançada, e que teve presente, na sua base fundamental, o julgamento de que está em causa uma “regra técnica” que não foi notificada à Comissão Europeia em conformidade com a Directiva n.º 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998, e que as normas em causa a que se reporta o Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro [em particular o seu artigo 11.º, n.º 1], não sendo oponíveis aos previstos destinatários, in casu, à Autora ora Recorrida, e tendo-o sido porque a Ré ora Recorrente emitiu acto administrativo que lhe dirigiu e que a final consubstancia uma ordem para pagamento, não incorreu o Tribunal a quo, na realidade, no invocado erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito, julgando antes com acerto, por estar subjacente ao acto impugnado uma actuação contrária à lei, fundada em erro nos pressupostos da sua aplicação, desde logo, em desconformidade com o direito da União Europeia.

Neste patamar, julgamos assim ser manifesta a improcedência do recurso jurisdicional.
[…]”.

Ora, desta Decisão sumária vem a Reclamante agora reclamar para a Conferência, requerendo para tanto que sobre a matéria em causa recaia um Acórdão, invocando para tanto e em suma, que o acto administrativo impugnado não é susceptível de conhecimento oficioso [e que a Sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 95.º, n.º 1 do CPTA, em conjugação com o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC], nem é ilegal, e que até estava obrigada à sua emissão, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma legal que à data se encontrava em vigor e que, actualmente, só não se mantém porquanto foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2022, e que não se está perante um problema de ilegalidade do acto administrativo, mas antes perante uma eventual questão de responsabilidade civil extracontratual do Estado Português por alegados danos decorrentes do exercício da função legislativa, e dessa forma, que a Decisão reclamada padece de um erro de julgamento, por não padecer o acto administrativo de vício gerador de anulabilidade, por violação do Direito da União Europeia.

Mas como assim julgamos, não assiste razão à Reclamante, que de resto não coloca em causa os termos e os pressupostos em que se ancorou o Relator para efeitos da prolação da Decisão sumária sob Reclamação, a qual está amplamente sustentada em jurisprudência quer deste TCA Norte, quer do STA.

Em conformidade com o julgamento prosseguido na Decisão sumária, que se confirma, não tendo o acto praticado pela Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, uma idónea base legal substantiva, o mesmo é inválido e contenciosamente anulável por violação de lei, por erro nos seus pressupostos de direito, por ter sido promanado em desconformidade com o direito da União Europeia.

Efectivamente, cotejada a Decisão sumária sob Reclamação, constatamos que depois de julgar fixada a factualidade que entendeu por relevante tendo por reporte o probatório fixado pelo Tribunal a quo, o Relator deixou enunciadas as razões que deviam conduziram à negação de provimento ao recurso de Apelação deduzido pela ENSE, EPE, e à manutenção da Sentença recorrida, tendo estribado jurídica e jurisprudencialmente o seu julgamento, especificando os fundamentos de facto e de direito que justificam a Decisão [assim dando cumprimento ao disposto no artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPC], e dessa forma, a Decisão reclamada mostra-se fundamentada de facto e direito, em termos de permitir prosseguir de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que o Relator se apoiou, pelo que, tem de improceder a pretensão da Reclamante, confirmando assim a Decisão sumária Reclamada.



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E assim formulamos a seguinte CONCLUSÃO/SUMÁRIO:

Descritores: Decisão sumária; Reclamação para a conferência; Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro; Directiva 98/34/CE; Combustíveis; Erro nos pressupostos de direito.

1 – Tendo sido proferida Decisão sumária que apreciou o recurso de Apelação apresentado tendo subjacente o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 94.º, n.º 5, ambos do CPTA e artigo 656.º do CPC, veio a negar provimento ao recurso interposto, cabe Reclamação para a conferência, nos termos do disposto no artigo 652.º, n.º 3 do CPC, ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPTA.

2 - O disposto no artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” [na acepção do artigo 1.º, ponto 11, da Directiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998] a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projecto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no artigo 8.º n.º 1 daquela Directiva.

3 – Assim não tendo sucedido, e na falta de idónea base legal substantiva, os actos praticados pela Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, são inválidos e contenciosamente anuláveis por violação de lei, por erro nos seus pressupostos de direito, por promanados em desconformidade com o direito da União Europeia.


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IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da
Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em INDEFERIR a presente Reclamação, e consequentemente, em manter a Decisão sumária Reclamada.

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Custas a cargo da Reclamante.

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Notifique.
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Porto, 19 de abril de 2024.

Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Luís Migueis Garcia
Maria da Conceição Silvestre