| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
«AA», casado, funcionário público (assistente operacional), portador do Cartão de Cidadão nº ..., válido até 10/01/2022, NIF ...91, residente na Rua ..., ..., ..., ... ..., instaurou ação administrativa contra o Município ..., NIF ...36, com sede no Largo ..., ..., formulando os seguintes pedidos:
A) - Ser declarada a invalidade e nulidade da decisão disciplinar datada de 24/04/2020, proferida pela R. no processo disciplinar 001/2019, instaurado pela R. ao aqui A. e objeto dos autos, ou anulada a mesma, com as necessárias consequências, nomeadamente,
B) - Ser a Ré condenada a dar sem efeito a suspensão do A.,
C) - Ser a Ré condenada a repor a antiguidade do A., bem como,
D) - Ser a Ré condenada a pagar ao A. os vencimentos/retribuições que este deixou de auferir durante a sanção disciplinar de suspensão por oitenta dias sem retribuição, em montante nunca inferior a 2134,44€ acrescidos de juros de mora à taxa legal, contados da data da deliberação punitiva e até efetivo e integral pagamento, bem como,
E) - Ser a R. condenada a pagar ao A. indemnização por danos não patrimoniais por este sofridos em consequência da sua conduta ilícita, em montante nunca inferior a 5000,00€, e
F) - Ser a Ré condenada a pagar ao A. os juros de mora respetivos, à taxa legal, contados do seu vencimento e até efetivo e integral pagamento;
H) - Ser a R. condenada em custas judiciais, custas de parte e mais de lei.
Por Despacho de 27-09-2024, foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto a eventual extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, por força da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, com a advertência de que o seu silêncio seria interpretado pelo Tribunal como anuência à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, bem como de desistência, pelo A., do pedido indemnizatório efetuado.
As partes não apresentaram pronúncia nem tiveram qualquer impulso nos autos.
Por Saneador-Sentença proferido pelo TAF de Mirandela foi declarada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
Deste vem interposto recurso.
Alegando, a Entidade Demandada formulou as seguintes conclusões:
a) A Sentença de que se recorre está errada porque interpretou e aplicou erradamente as normas legais daí constantes.
b) O TAFM decidiu mal quanto à aplicação da Lei da Amnistia, havendo que reverter essa decisão, uma vez que não se verificam os pressupostos da sua aplicação.
c) Em primeiro lugar, o Tribunal errou porque o Autor tinha mais de 30 anos de idade à data dos factos (violação do artigo 2.º, n.º 1, da Lei da Amnistia).
d) A Lei da Amnistia estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (cfr. artigo 1.º).
e) Estão abrangidas pela referida lei, entre outras, as sanções relativas a infrações disciplinares até às 00h00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º (cfr. artigo 2.º, n.º 2, alínea b)).
f) São amnistiadas as infrações disciplinares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela referida lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.
g) Os atos de graça abrangem a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação.
h) A distinção entre as várias medidas de graça efetua-se conforme o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, bem como consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função das características do facto praticado ou do agente.
i) A amnistia é uma instituição de clemência da competência da Assembleia da República.
j) Os seus efeitos podem ser a extinção do processo penal e disciplinar ou, no caso de já existir uma condenação, a extinção da pena e dos respectivos efeitos.
k) No primeiro caso estamos perante uma amnistia própria (em sentido próprio), e no segundo caso perante uma amnistia imprópria (em sentido impróprio).
l) O perdão genérico é uma figura próxima da amnistia.
m) Trata-se de uma medida de carácter geral, que tem como efeito a extinção de certas penas (pelo que a doutrina o qualifica como verdadeira amnistia imprópria).
n) Nesta medida, enquanto a amnistia respeita às infrações abstratamente consideradas, “apagando” a natureza criminal e disciplinar do facto, o perdão implica que a pena não seja, total ou parcialmente, cumprida.
o) Neste, atenta-se apenas na gravidade da pena e no sacrifício que o seu cumprimento implica para o condenado, podendo aquela ser total ou parcialmente perdoada.
p) A responsabilidade criminal e disciplinar extingue-se quer pela amnistia, quer pelo perdão genérico.
q) Os arguidos apenas e tão só por pelas infrações previstas no artigo 4.º (infracções penais) podem requerer no prazo de 10 dias a contar da entrada em vigor da lei em causa (v.g. 01.09.2023), que a amnistia não lhes seja aplicada (cfr. artigo 11.º, n.º 1, da referida Lei).
r) A amnistia, configurando, como se disse, uma graça ou mercê de quem detém o poder de legislar, relegando para o “esquecimento” alguns factos ilícitos, não pode deixar de ser vista como uma medida de excepção, a interpretar nos exactos termos em que está redigida, com exclusão de interpretações extensivas e/ou analógicas.
s) Nesta conformidade, mostra-se excluída a extensão da norma prevista no artigo 11.º, n.º 1, da referida Lei, bem como a sua aplicação analógica, às situações de facto que versem sobre as infrações disciplinares.
t) Com base na interpretação conjugada dos preceitos e conceitos jurídicos acima referenciados, entendemos que:
a. o cumprimento das sanções disciplinares não obsta, em abstracto, à aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;
b. em tal situação deparamo-nos com a denominada amnistia imprópria;
c. tratando-se de designada amnistia imprópria, ou seja, a que abrange infrações disciplinares pelas quais já existem sanções aplicadas, ela faz cessar o prosseguimento da execução da sanção que ainda esteja em curso ou impede a sua execução quando o respectivo cumprimento ainda não se tenha iniciado, mas não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da mesma sanção;
u) Deve por isso ser revogada a Sentença do TAFM.
Não foram juntas contra-alegações.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1. O Autora exerce funções de assistente operacional no Município ... – cfr. documentos n.º 1 a 8 juntos com a p.i.;
2. No dia 23.09.2019, o Presidente da Câmara Municipal ..., proferiu Despacho a determinar a instauração de procedimento disciplinar contra o Trabalhador «AA», aqui Autor – cfr. fls. 1 do Processo Instrutor;
3. Por decisão de 17-04-2020, a Câmara Municipal, em reunião ordinária, proferiu a Deliberação que aplicou ao A. a pena de suspensão pelo período de 80 dias – cfr. fls. 310 do Processo Instrutor;
4. A decisão aludida em 3. produziu efeitos a partir de 29.06.2020 - cfr. fls. 363 do Processo Instrutor
5. O Autor, em cumprimento da sanção disciplinar aplicada, esteve afastado do serviço por um período de 80 (oitenta) dias, tendo regressado ao trabalho no dia 17.09.2020 – Acordo.
6. A A. deduziu a presente ação administrativa em 14.08.2020 – cfr. fls. 1 sitaf.
DE DIREITO
Está posta em causa a decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim, vejamos,
O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que ostenta o seguinte discurso fundamentador:
Da inutilidade/impossibilidade superveniente da lide:
Postula o artigo 277.° do CPC que a instância se extingue com: e) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
Ora, referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Volume 1°, 4ª Edição, Almedina, p. 561-562, que “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência requerida.”
Ao passo que Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 2019 Reimpressão, Almedina, p. 321, referem que “a impossibilidade superveniente da lide pode derivar de três ordens de razões: impossibilidade subjetiva nos casos de relações jurídicas pessoais que se extinguem com a morte do titular da relação, não ocorrendo sucessão nesta titularidade; impossibilidade objetiva nos casos de relações jurídicas infungíveis em que a coisa não possa ser substituída por outra ou o facto prestado por terceiro; impossibilidade causal quando ocorre a extinção de um dos interesses em litígio.”
Ao passo que “a inutilidade superveniente decorre em geral dos casos em que o efeito pretendido já foi alcançado por via diversa”.
Para aferir se estamos perante uma situação de impossibilidade superveniente da lide, cumpre fazer um breve enquadramento da causa de pedir e pedido, formulado pela Autora.
Assim, nestes autos a Autora alicerça a sua causa de pedir na preterição total de procedimento legalmente exigido, peticionando a declaração de nulidade do ato punitivo pelo facto do ato sancionatório incorporar atos alegadamente praticados pela Autora em outubro de 2015 e os mesmos não terem sido objeto de qualquer instauração de procedimento disciplinar, o que corresponde a ausência de procedimento disciplinar, consubstanciadora do vício de preterição total do procedimento (previsto no artigo 194.° da LGTFP), vício gerador de nulidade.
Ora,
Como decorre dos autos, o Autor intentou ação administrativa em que peticiona a declaração de nulidade do sancionatório, consubstanciado na decisão emitida pelo Município ... no processo disciplinar n° ...19, que lhe aplicou a sanção disciplinar de 80 dias de suspensão, que o mesmo já cumpriu.
No dia 1 de setembro de 2023 entrou em vigor a Lei n° 38-A/2023, de 2/8 (Lei da Amnistia), cujo artigo 6° tem o seguinte teor:
“São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar mais concretamente do seu artigo 6°”.
No caso dos autos, no processo disciplinar em que foi arguida a aqui Autora, foi-lhe aplicada a sanção disciplinar de suspensão pelo período de 60 (sessenta) dias, pelo que a infração disciplinar em causa se encontra amnistiada por força do disposto no citado artigo 6° da Lei n° 38-A/2023, de 2/8.
Conforme é referido no Acórdão do TCA Sul, de 12.10.2023, proferida no processo n.° 699/23.0BELSB, com cuja fundamentação se concorda e se transcreve:
“A amnistia da infração disciplinar em sentido próprio, é aquela que ocorre antes da condenação do trabalhador, refere-se à própria infração e faz extinguir o procedimento disciplinar. Por sua vez, a amnistia em sentido impróprio, ou seja, a que ocorre depois da condenação, apenas impede ou limita o cumprimento da sanção disciplinar aplicada, fazendo cessar ou restringir a execução dessa sanção, bem como das sanções acessórias.
No caso presente, como o artigo 6° da Lei n° 38-A/2023, de 2/8, não distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, o efeito útil da norma é o de que a amnistia aí prevista constitui uma providência que “apaga” a infração disciplinar, sendo por isso apropriado falar-se aqui numa abolição retroativa da infração disciplinar, porquanto esta (a amnistia), opera “ex tunc”, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada, como também sobre o facto típico disciplinar passado, que cai em “esquecimento”, tudo se passando como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, eliminado do registo disciplinar do trabalhador.
Ora, constituindo o objeto da presente providência cautelar a suspensão da eficácia do ato que puniu a recorrente com a pena disciplinar de suspensão, com o “desaparecimento” da infração disciplinar, “ex vi” artigo 6° da Lei n° 38-A/2023, cai também o ato punitivo que sancionou a recorrente, tornando impossível o prosseguimento da presente lide, por aquele ato punitivo ter deixado de ter existência jurídica.”
No caso, verifica-se que o Autor foi sancionada com a pena de suspensão pelo período de 90 dias, ou seja, a questão em causa enquadra-se no âmbito da amnistia em sentido impróprio, a que ocorre depois da condenação, que impede ou limita o cumprimento da sanção disciplinar aplicada, fazendo cessar ou restringir a execução dessa sanção, bem como das sanções acessórias.
No caso, importa ter presente que o A. já cumpriu o período de suspensão com eventual perda de remuneração, contudo, mesmo nestes casos tem aplicabilidade o normativo em causa.
Na verdade, conforme referido no Acórdão do STA de 29-02-2024, proc. 03008/14.5BELSB:
«[a]mnistia própria ou imprópria, já não pode hoje conceber-se, o instituto, como no passado, como uma forma de esquecimento ou apagamento dos factos e da ilicitude, deles, mas simplesmente como um ato de renúncia do Estado ao seu direito de os punir ou de prosseguir na execução da punição já decretada».
No que se refere à perda da remuneração correspondente ao período da suspensão de funções, a mesma não pode, em rigor, ser tida como um efeito já produzido da pena disciplinar. Conforme se refere no Ac. TC n.° 301/97, n.° 8:
«[D]o que se trata, no caso, é da aplicação de uma pena disciplinar (de suspensão) que importou uma interrupção bilateral numa relação sinalagmática: o vencimento deixou de ser pago, não tanto por isso constituir um efeito da pena, mas por ter sido deixado de prestar o trabalho que tal vencimento remunerava. Ao apagar a infração disciplinar, o que a amnistia apaga são os efeitos disciplinares – e suas repercussões – não os outros efeitos (salvo disposição legal expressa em contrário). Assim, conforme este Tribunal decidiu no Acórdão n° 107/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 1992), “não tendo os interessados exercido as suas funções, não têm eles direito a receber os respetivos vencimentos, que ... representam a contraprestação pelo exercício efetivo do cargo”. Decorrendo do nosso ordenamento jurídico que “o vencimento consiste na remuneração recebida pelo exercício do cargo em que o funcionário esteja provido, salvo nos casos excecionais considerados na lei” [...], tal perda de remuneração não é um puro efeito da aplicação da pena, mas de outras normas jurídicas, que mantêm a sua aplicação qualquer que seja o entendimento conferido à extensão dos efeitos das amnistias [...].»
Por outro lado, e conforme tem sustentado a jurisprudência deste Supremo Tribunal, a eliminação do efeito negativo do não pagamento dos vencimentos em consequência de sanções disciplinares como a suspensão ou a demissão que venham a ser consideradas ilegais não se opera pelo pagamento dos vencimentos relativos ao período de afastamento do funcionário do serviço em sede de execução de sentença, mas através de uma ação de indemnização dos prejuízos concretamente sofridos, em consequência do ato ilegal praticado pela Administração e anulado ou declarado nulo pelo tribunal (teoria da indemnização e não teoria do vencimento) – cfr., entre muitos, os Acs. STA, de 9.02.1999, P. 24711B; de 24.05.2000, P. 45977; de 17.04.2002, P. 32101A; de 19.04.2004, P. 222/04; ou de 28.05.2008, P. 69/08. Trata-se, em qualquer caso, de um ónus do interessado e não de um dever da Administração.
A pretensão expressa pelo recorrido de ser aplicada ao seu representado a amnistia decretada pela Lei n.º 38-A/2023, pode, nestes termos, ser interpretada no sentido de que, no caso vertente, e em seu entender, apesar de estar em causa uma amnistia imprópria (aquela que se esgota na eliminação dos efeitos de sanções disciplinares ainda não consumados), não há efeitos da suspensão aplicada já produzidos que careçam de ser eliminados ou destruídos retroativamente, tudo se passando como se de uma amnistia própria se tratasse. Ou seja, na perspetiva do recorrido, a amnistia aplicada in casu fará cessar a responsabilidade disciplinar do arguido seu representado, não tendo este mais interesse em prosseguir com o processo tendente à anulação da pena que lhe foi aplicada: para o passado, não há quaisquer efeitos de tal pena a destruir; e os efeitos da mesma ainda não produzidos, nomeadamente os relativos à antiguidade e aposentação, são neutralizados pela amnistia decretada pela Lei n.' 38-A/2023.
Daí poder concluir-se que a eficácia concretamente assumida pela amnistia ora em análise no caso vertente fez desaparecer também, à semelhança do que sucedeu nos recentes acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 16.11.2023, P. 262/12.0BELSB, de 7.12.2023, P. 1618/19.3BELSB, e de 7.12.2023, P. 2460/19.7BELSB, o objeto da ação que visa a declaração de nulidade ou anulação do ato que aplicou a pena disciplinar.
E assim sendo, «não subsiste nenhum interesse em determinar se o poder disciplinar prescreveu ou não antes da prática daquele ato, porque não existem outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia» (v. os citados acórdãos).”
Assim, seguindo de perto a jurisprudência do STA citada, constituindo o objeto da presente ação administrativa a declaração de nulidade do ato que puniu o Autor com a pena disciplinar de suspensão, com o “desaparecimento” da infração disciplinar, “ex vi” artigo 6° da Lei n° 38-A/2023, cai também o ato punitivo que sancionou o Autor, tornando impossível o prosseguimento da presente lide, por aquele ato punitivo ter deixado de ter existência jurídica.
Ademais,
A entrada em vigor da Lei n.° n° 38-A/2023 ocorreu na pendência da ação, ou seja, derivou de facto objetivamente superveniente e, por força dos efeitos da mesma, ocorre impossibilidade quanto ao pedido formulado nos presentes autos.
Nessa medida, atendendo a que a pretensão do Autor não se pode manter, importa julgar a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.° do CPC, aplicável ex vi artigo 1.° do CPTA.
*Note-se, no que se reporta ao pedido indemnizatório formulado pelo A. que o mesmo foi notificado para se pronunciar quanto a eventual desistência do mesmo, sendo que o seu silêncio seria considerado pelo tribunal como assentimento a essa desistência, mas além disso, a verdade é que com o “desaparecimento” da infração disciplinar, “ex vi” artigo 6° da Lei n° 38-A/2023, cai também o ato punitivo que sancionou o Autor, pelo que inexiste ato ilícito a apreciar, inexistindo ilicitude por parte do R.
Ademais, como é referido no acórdão citado, a eliminação do efeito negativo do não pagamento dos vencimentos em consequência de sanções disciplinares como a suspensão que venham a ser consideradas ilegal não se opera pelo pagamento dos vencimentos relativos ao período de afastamento do funcionário do serviço em sede de execução de sentença, mas através de uma ação de indemnização dos prejuízos concretamente sofridos.
x
O Recorrente questiona que, por força da alínea b) do art.º 2.º e do art.º 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, a infração disciplinar que esteve na origem do ato punitivo impugnado se deva considerar amnistiada, desde logo por entender que não se verificam os pressupostos da sua aplicação já que o Autor tinha mais de 30 anos de idade à data dos factos (violação do artigo 2.º, n.º 1, da Lei da Amnistia).
E quanto aos efeitos da aplicação da amnistia reconhece que o cumprimento das sanções disciplinares não obsta, em abstrato, à aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, mas entende que tratando-se da designada amnistia imprópria, ou seja, a que abrange infrações disciplinares pelas quais já existem sanções aplicadas, ela faz cessar o prosseguimento da execução da sanção que ainda esteja em curso ou impede a sua execução quando o respectivo cumprimento ainda não se tenha iniciado, mas não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da mesma sanção.
Vejamos,
Quanto à questão da restrição etária importa, desde logo, atentar que nos termos do artº 9.º do Código Civil:
1-A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2-Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3-Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Assim, em conformidade com aquele número 2, a letra é não só o ponto de partida da interpretação, mas, também, o seu limite.
Ora, decorre da interpretação literal do artº 2.º, n.º 2, al. b) e do artº 6.º da Lei da Amnistia, que as infrações disciplinares praticadas até às 00h00 de 19 de junho de 2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar, são também amnistiadas. Aqui não se prevendo qualquer restrição relativa à idade.
Com efeito, atentando no disposto nos nºs 1 e 2 do artº 2º da Lei, verifica-se:
1-Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3º e 4º
2-Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a)Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5º;
b)Sanções relativas a infrações disciplinares (...)
Da leitura destas normas, sobressai o seguinte aspeto: a norma contida no nº 1, por referência às sanções penais, consagra na sua previsão um elemento relativo à idade do agente (entre 16 e 30 anos de idade), enquanto que as normas contidas nas alíneas a) e b) do n.º 2, por referência às sanções acessórias relativas a contraordenações e às infrações disciplinares, não contêm qualquer elemento relativo à idade do agente infrator.
Por outro lado, o artº 6º da Lei nº 38-A/2023, que estabelece que “[s]ão amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar” não faz qualquer menção ao âmbito etário da aplicação subjetiva.
Além do mais, também do artº 7.º da mesma Lei não resulta qualquer limitação quanto à possibilidade da sua aplicação ao caso concreto.
No que tange à segunda questão, entende o Recorrente que, por força do estatuído no artº 128º, n º 2, 2ª parte, do Código Penal, os efeitos da amnistia de uma pena disciplinar já cumprida apenas não se projetam na execução da pena, não havendo outros efeitos jurídicos a extinguir para além daqueles que são extintos pela própria amnistia. Consequentemente, entende que, estando o procedimento disciplinar extinto, a declaração de amnistia no caso posto apenas pode ter como efeitos os previstos na segunda parte do art° 128º, n.° 2, do CP (amnistia imprópria), fazendo cessar os efeitos da pena que ainda subsistam.
Conclui que uma vez que a pena já foi integralmente cumprida não subsiste qualquer outro efeito da pena aplicada.
Não secundamos esta leitura porquanto, e desde logo, porque sem prejuízo dos efeitos de facto que, entretanto, se tenham consumado, nomeadamente os relativos ao cumprimento da pena, é entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina que a amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, determina o «esquecimento» da infração, extinguindo os respetivos efeitos com eficácia ex-tunc.
E no caso dos autos, não existe disposição legal em contrário, não se aplicando, nomeadamente o disposto no nº 2 do artigo 128.º do Código Penal, dado não existir, ainda, uma «condenação» transitada em julgado.
Ora, resulta inequívoco que a amnistia só produz efeitos para o futuro (v. Acórdão do STJ de 19 de maio de 1993, Proc. n.° 043767).
A amnistia “não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da pena” (Acórdão do TC n.º 301/97), uma vez que “ao apagar a infracção disciplinar, o que a amnistia apaga são os efeitos disciplinares - e suas repercussões - não os outros efeitos (salvo disposição legal expressa em contrário)” (Acórdão do TC n.º 301/97).
Como bem observa o Senhor PGA, o legislador da Lei n.º 38-A/2023 não optou pela solução de determinar a destruição dos efeitos já produzidos pela aplicação das penas disciplinares, pelo que estes efeitos permanecem, mesmo que seja determinada a amnistia da infração disciplinar, ou seja, atendendo a que a amnistia não tem efeitos retroativos - isto é, não elimina os efeitos já produzidos e consumados pela integral execução e cumprimento da sanção de suspensão.
In casu existem outros efeitos jurídicos diretos já produzidos pela integral execução e cumprimento da sanção de suspensão a extinguir para além daqueles já consumados que são extintos pela própria amnistia.
Dúvidas não restem de que, para além da perda de remuneração correspondente ao período de cumprimento da pena de suspensão, sendo esse um efeito pretérito, o ato punitivo produziu outros efeitos lesivos na esfera jurídica do Autor, efeitos esses produzidos pela integral execução e cumprimento da sanção de suspensão.
Na verdade, no momento em que o diploma da amnistia entrou em vigor a pena de suspensão encontrava-se integramente cumprida pelo Recorrido, o que significa que a amnistia não invalida que o ato impugnado tenha produzido efeitos lesivos para o mesmo, relevando os dias em que esteve suspenso quer para efeitos de antiguidade, quer para o gozo de férias e tendo a infração em causa ficado averbada no seu registo disciplinar, efeitos esses produzidos mas não consumados que carecem de ser eliminados ou destruídos retroativamente, tudo se passando como se de uma amnistia própria se tratasse.
Em suma,
O julgamento da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide pressupõe a formulação de um juízo sobre o prosseguimento daquela e que dele resulte o convencimento de que esse prosseguimento é absolutamente inútil por não trazer benefícios a nenhuma das partes.
A extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou por encontrar satisfação fora do esquema da providência/pretensão requerida, sendo que num e noutro caso a solução do litígio deixa de interessar.
Este modo de terminar com a lide consubstancia-se naquilo a que a doutrina designa por “modo anormal de extinção da instância”, visto que a causa de extinção natural/normal é a decisão de mérito.
O tribunal só pode julgar extinta a instância por essa causa (inutilidade/impossibilidade da lide) se estiver em condições de emitir um juízo apodítico acerca da ocorrência superveniente da inutilidade, já que esta modalidade de extinção da instância exige a certeza absoluta da inutilidade a declarar, o que ora sucede.
Certo é que não pode olvidar-se que, por Despacho de 27-09-2024, foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto a eventual extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, por força da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, com a advertência de que o seu silêncio seria interpretado pelo tribunal como anuência à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, bem como de desistência, pelo Autor, do pedido indemnizatório efetuado.
E a verdade é que as partes não apresentaram pronúncia nem tiveram qualquer impulso nos autos.
Logo, como bem sentenciado, não pode olvidar-se que a entrada em vigor da Lei n.° 38-A/2023 ocorreu na pendência da ação, ou seja, derivou de facto objetivamente superveniente e, por força dos efeitos da mesma, ocorre impossibilidade quanto ao pedido formulado nos presentes autos.
Nessa medida, atendendo a que a pretensão do Autor não se pode manter, importa julgar a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.° do CPC, aplicável ex vi artigo 1.° do CPTA.
Note-se, no que se reporta ao pedido indemnizatório formulado pelo A. que o mesmo foi notificado para se pronunciar quanto a eventual desistência do mesmo, sendo que o seu silêncio seria considerado pelo tribunal como assentimento a essa desistência, mas além disso, a verdade é que com o “desaparecimento” da infração disciplinar, “ex vi” artigo 6° da Lei n° 38-A/2023, cai também o ato punitivo que sancionou o Autor, pelo que inexiste ato ilícito a apreciar, inexistindo ilicitude por parte do R.
Ademais, a eliminação do efeito negativo do não pagamento dos vencimentos em consequência de sanções disciplinares como a suspensão que venham a ser consideradas ilegais não opera pelo pagamento dos vencimentos relativos ao período de afastamento do funcionário do serviço em sede de execução de sentença, mas através de uma ação de indemnização dos prejuízos concretamente sofridos.
Improcedem as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente.
Notifique e DN.
Porto, 06/6/2025
Fernanda Brandão
Paulo Ferreira de Magalhães
Rogério Martins,
com o seguinte Voto de Vencido:
Voto de vencido o acórdão que fez vencimento face à posição que tenho assumido em múltiplos outros acórdãos, sendo certo que os argumentos da posição aqui vencedora não me convencem.
Os tribunais não são segunda instância administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
Quanto aos tribunais superiores nem de forma indirecta o processo disciplinar é objecto do recurso jurisdicional. O objecto do recurso jurisdicional é a decisão do Tribunal de Primeira Instância. O objecto da decisão do Tribunal de Primeira Instância também não é processo disciplinar em si – a que possa pôr termo por aplicação da Lei da Amnistia ou outra razão qualquer -, mas a decisão punitiva que pode, por exemplo, ter recusado a aplicação da Lei da Amnistia.
A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.
Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da recente Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):
“Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”
Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação.
E apenas podem aplicar a Amnistia nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito.
A ideia do legislador foi, quanto a mim de forma inequívoca, que compete aquém aplicou a sanção deve aplicar, se for o caso, a Amnistia.
Não podem por isso os tribunais aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares, porque não aplicaram a sanção.
Fazendo-o, violam o princípio constitucional da separação de poderes.
Sendo neste aspecto irrelevante a concordância das partes quanto à aplicação da Lei da Amnistia à infração disciplinar, directamente, por este Tribunal Superior, por a lei imperativa, como é a que impõe a separação de poderes, não estar na disponibilidade das partes.
Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação que aqui fez vencimento, são inconstitucionais, por violação deste princípio constitucional.
Acresce que, entendo, o requisito da idade é um pressuposto essencial para a aplicação desta Lei da Amnistia de 2023.
Esta lei estabelece uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – artigo 1º da Lei 38-A/2023, de 02.08.
Neste contexto é que se compreende o requisito da idade, para as pessoas imputáveis em razão da idade, a partir dos 16 anos, mas com idade inferior a 30 anos à data da prática do facto.
Por isso carece de fundamento a distinção entre infracções disciplinares e infracções penais para afastar das primeiras o requisito da idade.
Em concreto não ficou apurada a idade do Autor.
Pelo que, logo por aqui, ainda que o Tribunal pudesse aplicar directamente a amnistia em abstracto não a poderia ter aplicado em concreto, por falta de demonstração de um requisito essencial.
Termos em que concederia provimento ao recurso e ordenaria a baixa dos autos para prosseguimento dos termos do processo com vista ao conhecimento de mérito se nada mais a tal obstasse.
Porto, 06.06.2025
(Rogério Paulo da Costa Martins) |