Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 00538/16.8BEBRG |
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Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
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Data do Acordão: | 11/15/2019 |
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Tribunal: | TAF de Braga |
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Relator: | Rogério Paulo da Costa Martins |
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Descritores: | OPERAÇÃO CIRÚRGICA; CONSENTIMENTO PRESUMIDO; RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO; ARTIGO 712º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (2009). |
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Sumário: | 1. Face ao disposto no artigo 712º do Código de Processo Civil (2009), em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida. 2. Não sendo previsível a ocorrência de situação grave no decurso de uma operação cirúrgica previamente planeada, por falta de devida informação por parte do paciente da sua condição física, e não havendo a hipótese de, naquele momento, pedir o consentimento expresso do paciente para a operação complementar que se mostrava necessária, a extracção de dentes, deve presumir-se o consentimento do paciente para esta operação.* * Sumário elaborado pelo relator |
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Recorrente: | M.A.F.C. e J.A.F.S. |
Recorrido 1: | Centro Hospitalar T...-V..., EPE |
Votação: | Unanimidade |
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Meio Processual: | Acção Administrativa Comum |
Decisão: | Negar provimento ao recurso. |
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Aditamento: | ![]() |
Parecer Ministério Publico: | Emitiu parecer no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso. |
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Decisão Texto Integral: | EM NOME DO POVO Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: M.A.F.C. e J.A.F.S., habilitados como herdeiros do Autor J.A.S., vieram interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, de 26.02.2019, pela qual foi julgada totalmente improcedente a presente acção administrativa intentada pelo falecido Autor contra J. A. L. V., F.M.S.S., M.J.P.A. e Centro Hospitalar T...-V..., EPE, para efectivação de responsabilidade civil extracontratual, na qual o Autor pediu a condenação dos Réus, a título solidário, no pagamento da quantia de 61.311 € acrescida de juros vincendos, à taxa legal em vigor, até efectivo pagamento, e ainda das despesas ainda não computadas, a liquidar em momento posterior, tendo a decisão recorrida absolvido o Réu Centro Hospitalar T...-V..., EPE do pedido. No despacho saneador foram considerados partes ilegítimas passivas e absolvidos da instância os Réus J. A. L. V., F.M.S.S., M.J.P.A. e a sua chamada Axa Companhia de Seguros, S.A.. Invocaram os Recorrentes, nas suas alegações de recurso, em síntese, que se verificou erro no julgamento da matéria de facto, já que os factos 3 e 6 dados como não provados deveriam ter sido dados como provados e que o falecido Autor não prestou um consentimento válido e eficaz para a prática de actos médicos, nomeadamente a extracção de dentes, pelo que a decisão recorrida deveria ter concluído pela ilicitude desses actos de extracção de dentes, devendo o Réu ser condenado a indemnizar os Recorrentes/herdeiros do Autor conforme peticionado. O Recorrido Centro Hospitalar T...-V..., EPE, contra-alegou defendendo a manutenção do decidido. O Ministério Público junto deste Tribunal concluiu no sentido do acerto da decisão recorrida, quer na fixação dos factos provados e não provados, quer na fixação do direito e no seu dispositivo. * Cumpre decidir já que nada a tal obsta.* I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:1 - Foi a presente acção contra o Centro Hospitalar Tondela-Viseu, E.P.E., julgada improcedente por não se considerar preenchida a ilicitude da conduta dos médicos ao serviço daquele e consequentemente absolvendo o Réu do pedido. 2 - Não podem de forma alguma os ora recorrentes conformarem-se com tal decisão, pois consideram, salvo o devido respeito, que houve uma errónea apreciação da prova produzida e uma incorrecta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis. 3 - Deve ser dado como provado o facto constante de 3 dos factos não provados; — A anestesista ao serviço do Réu, aquando da intubação do primitivo Autor, causou a luxação de dois dentes do maxilar inferior; 4 - Tal matéria foi alegada pelo primitivo Autor na sua P.I, (artigo 19º), e não só não foi impugnada pelo Réu, como pelo contrário, foi confessada pelo mesmo no art. 29º da sua Contestação; 5 - O que resultava já do processo crime. 6 - 7 - Verifica-se assim que o aludido facto terá que ser dado como provado por acordo/confissão, nos termos dos artigos 46º, 574º nº 2 e 607º nº 5 do C.P.C., e em consequência alterar-se a redação dos factos assentes em S e T. - Deverá ainda dar-se como provado que caso soubesse do risco de lhe serem extraídos os dentes no maxilar inferior, o primitivo Autor, jamais teria autorizado a realização da cirurgia à vesicula, (6 dos factos não provados). - Com efeito as testemunhas que depuseram sobre este facto, foram bastante peremptórias em afirmar o mesmo, com certeza e segurança, como se constata da audição dos seus depoimentos. - Em audiência de 10-04-2018, a testemunha Rita Sofia Félix de Ferreira Seixas (01:34:43 – 02:16:30) – 01:46:18……….:14 e a testemunha Otília Pinto Ferreira (02:17:02 – 2:31:30) – 02:30:13/02:30:54 - Ao contrário do referido na Sentença recorrida, a prova quanto a esta matéria não foi de modo algum composta por asserções e suposições feitas por familiares do primitivo Autor, J.A.S., mas sim de convicção, sendo ainda que uma das testemunhas, Otília Pinto Ferreira não é sequer familiar do Autor, mas foi, sim, sua funcionária, isto apesar de a não prova de tal facto, não ter relevância para alterar a decisão, nos termos pretendidos e como supra se exporá. - A Sentença recorrida violou, assim, o disposto nos artigos 46º, 574º nº 2 e 607º n0 5 do C.P.C.. - Ressalta com clareza da matéria assente, nomeadamente em Q), S), T), U), dos relatórios, fichas clinicas e pareceres juntos com o processo crime, de factos alegados pelo primitivo Autor e pelo Réu que para uma cirurgia com anestesia geral, impõe-se que o paciente tenha uma boca saudável com dentes estáveis. - Patologias dentárias a existirem trazem consequências nefastas com sérios riscos para a saúde e vida do doente aquando do processo anestésico, nomeadamente na fase de entubação e extubação. - Havendo dentes instáveis, os mesmos correm o risco de caírem e poderem ser aspirados para as vias respiratórias pelo doente durante a fase do recobro (durante o acordar), nomeadamente na extubação, numa altura em que o doente não tem o controlo total dos seus reflexos e tem as vias respiratórias desprotegidas. - Tal aspiração dos dentes pode causar complicações graves para a saúde do doente e mesmo perigo para a sua vida. - Tais riscos eram ainda maiores no Autor, devido à sua patologia de asma brônquica. - A Sentença recorrida considera que os médicos estão obrigados a informar o diagnóstico e as consequências do tratamento, aqui se incluindo as vantagens e os riscos desde que estes não sejam raros ou de verificação excepcional, mesmo que graves e especificamente ligados ao tratamento a efectuar. Como considera ainda não ser exigível aos médicos no pré-operatório, o questionamento sobre todas as patologias existentes mesmo as susceptíveis de gerar complicações na cirurgia. - Considera-se que tais conclusões não têm de modo algum, aplicação no caso concreto, não só porque não se está no caso presente perante riscos raros, de verificação excepcional, imprevisíveis, fortuitos, eventuais e/ou inesperados, como não se está a falar de uma qualquer patologia que remotamente possa ter influência na cirurgia. e, - Trata-se de um risco mais que normal e usual, trata-se de um risco absolutamente previsível, expectável, provável, natural, calculável, frequente, ( nas palavras de uma testemunha anestesiologista), dir-se-ia até inevitável, se existir tal patologia, (problemas dentários), pois a mesma está directamente relacionada com riscos graves para a saúde e vida do doente em caso de aplicação de anestesia geral, qualquer que seja a cirurgia a efectuar. - Decorre da matéria assente que todos os médicos intervenientes neste processo pré e operatório tinham conhecimento (como decorre dos respectivos consentimentos), que o autor iria ser submetido a anestesia geral. - Apesar de tal facto, em 28/11/2005, e em 19/12/2005 nos dois consentimentos prestados pelo primitivo autor, não foi o mesmo questionado pelos dois médicos que o observaram, sobre a sua saúde oral e/ou problemas dentários existentes. - O historial clinico e tais consentimentos foram transmitidos à cirurgiã, que também não o questionou acerca da existência de problemas da boca e dentição, tal como a anestesiologista, igualmente nunca questionou o autor acerca das suas patologias dentárias. - Anteriormente à cirurgia, a anestesista observou a cavidade oral do paciente, verificando a respetiva via aérea, a mobilidade do pescoço e a abertura da boca, questionando o primitivo Autor quanto ao uso de próteses dentárias, não tendo detectado qualquer problema notório; (R dos factos provados), apesar de o mesmo apresentar grave doença dentária e gengival com paradontose exuberante e piorreia em cinco dentes do maxilar inferior. - Ora, resulta assim evidente que todos os médicos que observaram o primitivo autor, omitiram os deveres de cuidado e diligências devidas, sendo ainda que quanto à anestesiologista, sendo responsável pela aplicação da cirurgia geral, da entubação e extubação do paciente, deveria ter um cuidado acrescido na verificação dos problemas dentários dos pacientes. - Consta aliás de vários pareceres médicos juntos com o processo crime e das declarações dos médicos testemunhas do Réu que para a intervenção em causa, a observação prévia dos dentes do doente, nomeadamente o seu estado ou presença de próteses, interessa ao anestesista e será por isso da sua responsabilidade." - E nem se diga, como o faz a sentença recorrida que é raro que complicações da ordem dentária gerem problemas ou riscos ao longo de uma cirurgia num local totalmente distinto, como é a zona abdominal, porque efectivamente os problemas dentários nada têm a ver com a cirurgia à vesicula, mas sim com a anestesia geral, pelo que o Autor poderia ser submetido a uma cirurgia a qualquer outro órgão que os problemas se manteriam. - Nos termos da doutrina do consentimento informado, o paciente está vinculado ao dever de colaboração com o médico e tem o direito de obter deste, toda a informação sobre a natureza, características, técnicas a usar, alternativas e riscos, sendo que o consentimento só é valido se for livre e esclarecido, ou seja, se forem fornecidos ao doente, todos os elementos que determinaram a consentir na intervenção médica. - Assim, todos os médicos envolvidos violaram o dever de esclarecer o primitivo Autor, nomeadamente dos riscos inerentes à cirurgia, consequências e perigos do processo anestésico, sabendo que o mesmo iria ser sujeito a anestesia geral e que o consentimento visava também esse processo, prestando consequentemente informação insuficiente e impedindo aquele de se autodeterminar com toda a informação necessária para o efeito. - Emitiu assim o Autor um consentimento inválido e ineficaz para a prática de actos médicos, nomeadamente a extracção de dentes. - Nos termos da alteração da matéria de facto que se pretende, (que na fase de entubação, (fase anterior à extubação), foi feita luxação em dois dentes, tendo-se posteriormente optado por arrancar mais três que igualmente se encontravam instáveis), não estamos apenas a falar de cinco dentes que foram arrancados, mas de um efectivo e real risco que o primitivo autor correu na cirurgia a que foi sujeito, de ter aspirado aqueles dentes luxados e ter sérios problemas pulmonares e respiratórios, (não esquecendo que o Autor já sofria de graves problemas respiratórios), podendo até morrer por asfixia. Considerou-se na sentença recorrida que o Autor que era conhecedor dos seus problemas dentários deveria ter informado os médicos desta sua patologia, quando foi questionado de que doenças padecia. - Discorda-se veementemente desta conclusão, pois se os diversos médicos que viram o Autor, os dois que fizeram o seu historial clinico e obtiveram o consentimento daquele para a cirurgia, a cirurgiã e a anestesista não questionaram o autor acerca de patologias dentárias, não considerando relevante tal questionamento, como poderia o autor como um simples leigo na matéria, considerar que tais problemas eram efectivamente relevantes? - O Autor por mais culto que pudesse ser, era simplesmente um solicitador, não era médico, não era enfermeiro, não tendo qualquer ligação à área da saúde, e por mais “ instrução" ou cultura geral que aquele ou qualquer pessoa tenha, não é minimamente credível e muito menos exigível que conheça os procedimentos a efectuar numa anestesia geral e que saiba que uma boca saudável é absolutamente indispensável para que a mesma seja aplicada em segurança e sem riscos. - O facto de ter referido todas as doenças de que padecia e inclusive as que ocorreram há várias décadas, só prova que o Autor era de facto uma pessoa consciente e nada tentou esconder, referindo todas as suas doenças que lhe pareceram ter relevância. - Os procedimentos adicionais que sejam necessários no próprio interesse do paciente e justificados por razões clinicas, que constam do consentimento prestado pelo primitivo autor, sempre seriam os devidos por acontecimentos fortuitos e imprevisíveis que surgissem no decorrer da cirurgia, por motivos igualmente inusitados e não aqueles que como é o caso presente poderiam ser facilmente previsíveis e colmatados, com uma simples pergunta e/ou observação. - Pelo que de modo algum pode tal consentimento abranger o caso presente, ou seja a retirada dos dentes, porque tal consentimento dos procedimentos adicionais justificados por razões clinicas não serve para justificar procedimentos que poderiam e deveriam ser evitados e só não foram por negligência dos médicos que acompanharam o Autor. - Não pode nos presentes autos, como não pode em nenhum outro caso em que tal como no presente, os riscos sejam previsíveis e evitáveis, sob pena de se justificarem a coberto de tais "procedimentos adicionais", quaisquer actos médicos realizados unicamente para se obviar as consequências de acções ou omissões contrárias às "legis artis", e falta de diligência devida, desresponsabilizando deste modo todas as condutas negligentes. - Deve dar-se, nos termos expostos, como facto provado, que, caso soubesse do risco de lhe serem extraídos os dentes no maxilar inferior, o primitivo Autor, jamais teria autorizado a realização da cirurgia à vesicula. - No entanto, mesmo a assim não se considerar, não tem tal facto relevância para a questão a decidir, pois na verdade, o Autor ao não ser inquirido sobre as suas patologias dentárias e consequentemente esclarecido sobre os riscos que corria, nomeadamente a extracção dos 5 dentes, ficou impedido de decidir de forma esclarecida e válida se assumia esse risco, pretendendo seguir com a cirurgia ou se optava pelo seu adiamento, indo primeiro tratar os seus dentes. - Até porque como resulta da matéria assente em W), em momento anterior aos indicados episódios, J.A.S. era acompanhado e estava a ser tratado por um dentista em C... D... e outro em V..., o Dr. M.F.C. . Sousa. - Dúvidas não há que o primitivo Autor necessitava da cirurgia, pois sofria de uma colecistite crónica litiásica, mas tal patologia não era aguda, foi uma cirurgia programada não uma cirurgia de urgência. - Até porque desde que foi detectada a patologia, em 26 de Maio de 2004, até à entrada do primitivo Autor nas instalações do Réu para ser submetido a cirurgia, em 28 de Novembro de 2005, decorreu 1 ano e 5 meses, pelo que desde logo se constata que a cirurgia era necessária mas não era de todo urgente. - Não resulta, assim, que a cirurgia tinha que impreterivelmente ser efectuada naquele dia sob pena de qualquer risco grave para o primitivo Autor, ou que isso lho tivesse sido transmitido. - E de qualquer modo, o relevante é que não foi dada oportunidade ao primitivo Autor de ao ser cabalmente esclarecido como se impunha, tomar a decisão que entendesse mais conveniente, mesmo assumindo quaisquer eventuais riscos que daí pudessem advir. - Verifica-se assim, ao contrário do decidido, que os médicos ao serviço do Réu, que observaram o primitivo Autor, e intervieram na cirurgia, nomeadamente a anestesiologista, cometeram um facto ilícito, com preterição das diligências devidas e consequentemente do dever de informação àquele, com vista à obtenção do seu consentimento esclarecido e informado. - Tais médicos agiram, de acordo com as circunstancias do caso presente, com culpa, (negligencia), culpa essa apreciada pela diligencia de um bom pai de família (no caso medico médio), nos termos do art. 487º nº 2 do CC., pois podiam e deviam ter agido de modo diferente, sendo as suas condutas censuráveis e reprováveis. - O mesmo se concluindo da aplicação do Decreto-Lei 48 051 de 21 de Novembro de 1967, vigente à data dos factos, nos termos dos seus artºs 2º nº 1 e art. 6º. Pelo que está assim o Réu, para o qual tais médicos prestavam serviço, obrigado a indemnizar o primitivo Autor pelos danos sofridos por este. - Os danos alegados e provados em AA) a NN), foram causa directa daquela actuação ilícita e culposa dos médicos ao serviço do Réu, pelo que deverão os mesmos ser ressarcidos nos termos peticionados, condenando-se o Réu ao pagamento da quantia de € a título de danos não patrimoniais sofridos e o montante de € a título de danos patrimoniais. - A Sentença recorrida violou assim o disposto nos arts. 483º e 487º nº 2 do C.C. e ainda o art. 2º nºs 1 e 6º do Decreto Lei nº 48 051 de 21 de Novembro. * II –Matéria de facto.Pretendem os Recorrentes que sejam dados como provados os factos 3º e 6º da matéria factual dada como não provada, com os seguintes fundamentos: A matéria constante do 3º facto dado como não provado foi alegada pelo primitivo Autor no artigo 19º da sua petição inicial, com a seguinte redacção: “A Ré (referindo-se à anestesiologista M. J. A.), pediu a intervenção do cirurgião maxo facial, J.J.C.G., que verificou que com a intubação, havia sido feita luxação de dois dentes e que o A. apresentava paradontose e piorreia dos dentes vizinhos”. Alegando ainda nos artigos 20º 21º o seguinte: - “Tendo optado, aproveitando a situação clínica e anestésica, por fazer extracção dos outros três dentes; - “Ficando assim na operação sem cinco dentes, centrais da frente, (incisivos e caninos) do maxilar inferior”. Mais alegam que tal matéria factual não só não foi impugnada pelo Réu, como pelo contrário foi confessada pelo mesmo no artigo 29º da sua Contestação, onde alega: -“tendo sido submetido a cirurgia tipo «colecistecnomia” por laparotomia com anestesia geral, finda a mesma, já na fase prévia à extubação, houve luxação de dois dentes”. Alegando ainda o Réu nos artigos 35º a 37º da contestação: “35º - Face à situação, o Dr. J.C.G. foi de opinião de que a situação do Autor, não suportava a reimplantação dos dentes nos seus alvéolos – pois o Autor padecia de paradontose generalizada”. “36º - Tendo ainda constatado que outros três dentes apresentavam uma situação de instabilidade tal que…” “37º - Como acto médico de prevenção da sua possível aspiração pelo Autor, decidiu, e bem, extraí-los.” E acrescenta que embora impertinentes sempre se dirá que tais factos constam do processo crime, nomeadamente do depoimento do Dr. J.C.G. a folhas 33 e folhas 110 e seguintes, onde refere precisamente: “Com a intubação, tinham feito a luxação de dois dentes e à observação verificou a continuidade com piorreia e paradontose dos dentes vizinhos do doente, tendo optado, aproveitando a situação clínica e anestésica, por fazer a extracção dos outros três dentes”. Referindo ainda que foi chamado ao bloco operatório pela sua colega anestesista para fazer uma tentativa de reimplantação de dois dentes que tinham caído nas manobras de entubação e que na impossibilidade de os recolocar nos mesmos alvéolos, optou-se por extrair mais três que apresentavam paradontose e piorreia, correndo do doente riscos, no pós-operatório de aspiração das ditas peças dentárias, dada a instabilidade dos mesmos dentes. Deverá assim dar-se como provados, nos termos dos artigos 46º, 574º nº 2 e 607º nº 5 do Código de Processo Civil os factos S) e T), com a seguinte redacção: “S) Só em momento posterior à intubação, quando o primitivo Autor se encontrava inconsciente e sob a luz intensa da mesa de operações, é que a anestesista ao serviço do Réu se apercebeu da gravidade da doença gengival e dentária por aquele apresentada, tendo havido luxação de dois dentes. T) Temendo a queda de outros três dentes que se apresentavam instáveis, e a possibilidade de o primitivo Autor os aspirar, atento o seu estado de inconsciência e de ausência de reflexos, a anestesista chamou em seu auxílio o cirurgião maxilo-facial que se encontrava no mesmo bloco operatório, também ao serviço do Réu.” Vejamos: Nas alíneas S), T) e U) da matéria factual dada como provada na 1ª instância foi dado como provado o seguinte: “S) Só em momento posterior à intubação, quando o primitivo Autor se encontrava inconsciente e sob a luz intensa da mesa de operações, é que a anestesista ao serviço do Réu se apercebeu da gravidade da doença gengival e dentária por aquele apresentada, estando dois dentes a abanar e com risco de desprendimento imediato; T) Temendo a queda dos dentes que se apresentavam instáveis, e a possibilidade de o primitivo Autor os aspirar, atento o seu estado de inconsciência e de ausência de reflexos, a anestesista chamou em seu auxílio o cirurgião maxilo-facial que se encontra no mesmo bloco operatório, também ao serviço do Réu; U) O cirurgião maxilo-facial, verificando que o primitivo Autor apresentava piorreia e paradontose dos dentes no maxilar inferior, avaliando os riscos graves para o paciente de aspirar os dentes no estado em que se encontrava, e considerando ainda que se tratava de um doente com bronquite asmática, considerou ser de necessidade imperiosa proceder à sua extração, num total de cinco dentes incisivos e pré-molares, do maxilar inferior;” O que o Autor pretende ver provado não é diferente do que foi dado como provado nessas três alíneas S), T) e U), sendo certo que o que delas consta tem o mesmo significado do que se pretende ver provado, só que está dito de outra maneira. Não procede, por isso, o recurso nesta parte, nada se alterando na matéria de facto dada como provada na 1ª instância em S), T) e U). Mas os Recorrentes dizem ainda que quanto ao 6º facto dado como não provado em 1ª instância, as testemunhas que depuseram sobre ele, foram bastante peremptórias em afirmar o mesmo, com certeza e segurança, como resulta da audição dos seus depoimentos. O facto 6º foi dado como não provado porque o Tribunal a quo não se convenceu da sua verificação com as asserções, suposições e considerandos que acerca dessa matéria duas testemunhas, a sobrinha, Rita Sofia Félix de Ferreira Seixas e uma ex-funcionária do falecido Autor, Otília Pinto Ferreira, teceram sobre tal matéria. Conforme já sustentado no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 13.09.2013, no processo nº 802/07.7 VIS, com o mesmo Relator, e que ora damos por reproduzido: «Determina o artigo 712º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, no seu nº 1, aplicável por força do disposto no artigo 140º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que: «A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; (…)» Na interpretação deste preceito tem sido pacífico o entendimento segundo o qual em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida (neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.10.05, processo nº 394/05, de 19.11.2008, processo nº 601/07, de 02.06.2010, processo nº 0161/10 e de 21.09.2010, processo nº 01010/09; e acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 06.05.2010, processo nº 00205/07.3BEPNF, e de 14.09.2012, processo nº 00849/05.8BEVIS). Isto porque o Tribunal de recurso está privado da oralidade e da imediação que determinaram a decisão de primeira instância: a gravação da prova, por sua natureza, não fornece todos os elementos que foram directamente percepcionados por quem julgou em primeira instância e que ajuda na formação da convicção sobre a credibilidade do testemunho. Como defende Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 657: “Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. Por outro lado, o respeito pela livre apreciação da prova por parte do tribunal de primeira instância impõe um especial cuidado no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, e reservar as alterações da mesma para os casos em que ela se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que seja seguro, de acordo com as regras da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável.” Não se nos afigura que a dúvida que o Tribunal a quo sentiu sobre a verificação deste facto seja arbitrária ou que não esteja racionalmente fundada, nem que seja seguro de acordo com as regras da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável. Com efeito a doença do Autor que determinou a extracção da vesícula biliar, associada à patologia de diabetes mellitus, asma brônquica e litíase renal, podia gerar perigo para a vida do Autor, pelo que este se soubesse do perigo que corria com a anestesia podia ter de dar consentimento expresso à extracção de dentes para não correr o risco de vida. Tanto basta para que não se desse como provado o facto 6º. Não se consideram, pois, verificados os erros de julgamento da matéria de facto invocados, pelo que nesta parte da matéria de Deveremos assim dar como provados os seguintes factos, fixados na decisão recorrida: a. A 26.05.2004, J.A.S. esteve presente numa consulta de cirurgia geral, nas instalações do Réu, na qual lhe foi diagnosticada uma colecistite crónica litiásica. b. De imediato foi J.A.S. colocado em lista de espera para a realização de cirurgia, designada de “colecistectomia”. c. Na mesma consulta, foram também diagnosticadas a J.A.S. as seguintes patologias: diabetes mellitus, asma brônquica e litíase renal. d. Ainda nessa consulta, foram solicitados exames complementares de diagnóstico pré-operatórios, especificamente, hemograma, bioquímica, RX tórax e eletrocardiograma, mais tendo sido obtido o designado “Consentimento Informado” para a realização da cirurgia indicada, assinado por J.A.S.. e. Em tal “Consentimento Informado”, pode ler-se, designadamente, o seguinte: “Consentimento livre e esclarecido para actos médicos. (…) Procedimento: Colecistectomia por Laparotomia (tirar a vesícula). Tipo de Anestesia (Quando Aplicável): Geral: Complicações mais frequentes: Infecciosas; Cardiorespiratórias; Trombo-embólicas; Patogénicos. Confirmo que expliquei ao doente (…), de forma adequada e inteligível, os diagnósticos, as intervenções ou os tratamentos referidos, o tipo de anestesia no caso de ser proposta, assim como os riscos e complicações, e as alternativas possíveis à situação clínica. Assinatura: (…) Data: 28/11/2005. Nome do Médico: B. P. Doente: (…) Declaro que concordo com o que me foi proposto e explicado pelo médico que assina este documento. Autorizo a realização dos atos médicos indicados, bem como os procedimentos adicionais que sejam necessários no meu próprio interesse e justificados por razões clínicas. (…) Assinatura: (…)”. f. A 28.11.2005, o Autor foi internado no Serviço de Cirurgia II do Hospital de S. T., em V..., durante o período da manhã, para ser submetido à realização de colecistectomia, estando a sua cirurgia programada para essa tarde. g. No dia do internamento, J.A.S. referiu os seguintes antecedentes médicos patológicos: tuberculose, bronquite asmática, diabetes não insulinodependente, há cerca de 20 anos, acidente isquémico transitório, sem sequelas, há cerca de 2 anos, e cólica renal. h. Na observação a que foi sujeito, foi detetado em J.A.S. “murmúrio vesicular rude, mantido bilateralmente, com alguns sibilos bilaterais”, queixando-se aquele de tosse com expetoração mucopurulenta e “falta de ar” durante a noite anterior. i. Em consequência, e perante a agudização dos problemas respiratórios, pelos médicos foi decidido adiar a cirurgia, mais ordenando a realização de novos exames complementares de diagnóstico pré-operatória, efetuando provas da função respiratória e ecocardiograma. j. Por sugestão do serviço de pneumologia, e por forma a tentar estabilizar o máximo possível a função respiratória do primitivo Autor, foi determinado o adiamento da cirurgia, ficando este a ser medicado em ambulatório durante 15 dias, e sendo-lhe dada alta. k. A 19.12.2005, o primitivo Autor foi novamente internado no Serviço de Cirurgia II, para ser submetido à cirurgia prevista para o dia 20.12.2005. l. Nesta data, foi novamente realizado o historial clínico e pedidos novos exames pré-operatórios, especificamente, hemograma, bioquímica, RX ao tórax, entre outros. m. Nesta data, o primitivo Autor assinou novo consentimento informado, com conteúdo idêntico àquele já acima transcrito, especificamente, a indicação do procedimento a realizar, o tipo de anestesia, as complicações cirúrgicas mais frequentes, e a declaração, por aquele, do seguinte: “(…) Declaro que concordo com o que me foi proposto e explicado pelo médico que assina este documento. Autorizo a realização dos atos médicos indicados, bem como os procedimentos adicionais que sejam necessários no meu próprio interesse e justificados por razões clínicas. (…) Assinatura: (…)”. n. No diário clínico referente ao primitivo Autor, pelo médico que o observou foi aposta a seguinte observação: “Propõe-se colecistectomia laparoscópica, se não existir contra-indicação anestésica.”. o. A 20.12.2005, o primitivo Autor foi submetido a colecistectomia por via aberta. p. Na mesma data, e no diário clínico do paciente, a equipa anestésica fez constar o seguinte registo: “Doente com paradontose generalizada, com 5 dentes incisivos e caninos do maxilar inferior muito instáveis, com risco de aspiração num contexto pós-operatório imediato, pedi observação do Cirurgião Plástico e Maxilo-facial – Dr. C.”. q. Seguidamente, e nesse mesmo diário clínico, o cirurgião maxilo-facial ao serviço do Réu inscreveu o seguinte registo: “Por necessidade imperiosa por paradontose exuberante, fez-se extração de 21/123”. r. Em momento anterior à cirurgia, a anestesista observou a cavidade oral do paciente, verificando a respetiva via área, a mobilidade do pescoço e a abertura da boca, questionando o primitivo Autor quanto ao uso de próteses dentárias e não tendo detetado qualquer problema notório. s. Só em momento posterior à intubação, quando o primitivo Autor se encontrava inconsciente e sob a luz intensa da mesa de operações, é que a anestesista ao serviço do Réu se apercebeu da gravidade da doença gengival e dentária por aquele apresentada, estando dois dentes a abanar e com risco de desprendimento imediato. t. Temendo a queda dos dentes que se apresentavam instáveis, e a possibilidade de o primitivo Autor os aspirar, atento o seu estado de inconsciência e de ausência de reflexos, a anestesista chamou em seu auxílio o cirurgião maxilo-facial que se encontra no mesmo bloco operatório, também ao serviço do Réu. u. O cirurgião maxilo-facial, verificando que o primitivo Autor apresentava piorreia e paradontose dos dentes no maxilar inferior, avaliando os riscos graves para o paciente de aspirar os dentes no estado em que se encontrava, e considerando ainda que se tratava de um doente com bronquite asmática, considerou ser de necessidade imperiosa proceder à sua extração, num total de cinco dentes incisivos e pré-molares, do maxilar inferior. v. Apesar de conhecer de antemão a patologia que os seus dentes apresentavam, o primitivo Autor não informou os diversos médicos que o observaram, seja no internamento ocorrido a 28.11.2005, seja naquele ocorrido a 19.12.2005. w. Na verdade, e em momento anterior aos indicados episódios, J.A.S. era acompanhado e estava a ser tratado por um dentista em C... D... e outro em V..., o Dr. M.F.C. . S. x. Nas diversas consultas em que foi observado por vários médicos ao serviço do Réu, nenhum deles o questionou quanto ao estado de saúde dos seus dentes, tampouco sendo tal questão considerada de pertinente e normal na preparação de uma colecistectomia. y. Apesar de a patologia apresentada pelo primitivo Autor, a colecistite, não apresentar a natureza de aguda, o facto de o mesmo ser também um doente diabético impunha que a cirurgia não fosse adiada por muito tempo, atentas as complicações de saúde envolvidas. z. Após o recobro, J.A.S. foi informado pelas médicas Dr.ª J. A. e Dr.ª F. S. que lhe haviam sido retirados cinco dentes, sendo-lhe ainda explicadas as razões clínicas para tal ato médico. aa. De imediato, o primitivo Autor manifestou o seu desagrado com tal situação. bb. Nos dias imediatamente seguintes, o primitivo Autor manifestou a sua revolta e indignação com a ocorrência. cc. J.A.S. exercia a atividade de solicitador, com escritórios em V... e em C... D..., vendo-se diariamente obrigado a lidar com várias pessoas, seja no atendimento aos clientes, seja nas deslocações aos tribunais. dd. Em virtude da extração dos dentes, o primitivo Autor sofreu alterações a nível da fisionomia e perturbações na fala, sentindo muitas dificuldades neste acto. ee. Também em virtude da extração dos dentes, J.A.S. sentiu-se constrangido, inibido e humilhado com o seu aspecto e com as dificuldades na fala. ff. Tais sentimentos de vergonha e revolta refletiram-se na sua vida familiar, apresentando-se obsessivo com a questão dos dentes e isolando-se. gg. Idêntica situação se verificou na sua vida social, isolando-se, deixando de conviver com amigos como soía fazer e evitando as suas próprias funcionárias no local de trabalho. hh. Ainda em virtude da extração dos dentes, o primitivo Autor sentia dificuldades em comer alimentos sólidos, que passou a evitar. ii. al situação perdurou até à colocação de uma prótese dentária, em data não apurada. jj. A prótese que J.A.S. teve de usar causava-lhe dores e desconforto, o que dificultou a sua adaptação. kk. O uso da referida prótese dentária continuou a causar dores e desconforto ao primitivo Autor, não a resolvendo inteiramente, desfiguração fisionómica e estética, acentuando a sua tristeza quanto à perda dos dentes. ll.A prótese dentária acarretou para o primitivo Autor um custo de 210 €. mm. A colocação de tal prótese implicou ainda custos com consulta médicodentária e exame de radiologia, num total de 95,00 €. nn. J.A.S. peticionou ainda um orçamento para a realização de implantes dentários, de substituição dos dentes que lhe foram removidos, orçamento esse que ascendeu a 10.700 €. oo. Os presentes factos deram origem a uma queixa-crime que correu termos sob o nº 2373/06.2TAVIS, junto dos Serviços do Ministério Público de V... e no Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de V.... pp. Este processo findou com um despacho de não pronúncia, proferido a 05.01.2012. * III - Enquadramento jurídico.1. A responsabilidade civil emergente negligência médica. A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no domínio dos actos de gestão pública, rege-se pelo disposto no Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967., atenta a data dos factos, 2005. A Lei nº 67/2007, de 31.12, só entrou em vigor em 30.01.2008, já depois da ocorrência dos factos em apreciação – artigo 6º da referida Lei. Determina o artigo 2º, nº1, do Decreto-Lei nº 48.051 que: “O Estado e demais pessoas colectivas públicas, respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas aos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”. São assim pressupostos deste tipo de responsabilidade civil: a) o facto, comportamento activo ou omissivo voluntário; b) a ilicitude, traduzida na ofensa de direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; c) a culpa, nexo de imputação ético - jurídica do facto ao agente ou juízo de censura pela falta de diligência exigida de um homem médio ou de um funcionário ou agente típico; d) a existência de um dano, ou seja, a lesão de ordem patrimonial ou moral, esta quando relevante; e) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, segundo a teoria da causalidade adequada (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.01.1987, de 12.12.1989 e de 29.01.1991, in Acórdãos Doutrinais n.º 311, p. 1384, n.º 363, p. 323 e n.º 359, p. 1231). Este tipo de responsabilidade corresponde, no essencial, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos que tem consagração legal no artigo 483º, nº1, do Código Civil (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 10.10.2000, recurso n.º 40576, de 12.12.2002, recurso n.º 1226/02 e de 06.11.2002, recurso n.º 1311/02). Há, no entanto, de ter em atenção o disposto no artigo 6º do mesmo diploma que nos dá neste domínio particular uma definição de ilicitude: é ilícito o acto que viole normas legais e regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como aquele que viole as regras de ordem técnica e de prudência comum”. O conceito de ilicitude consagrado neste preceito é, pois, mais amplo que o consagrado na lei civil (vd. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10º ed., vol. II, p. 1125; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10.05.1987, in Acórdãos Doutrinais 310, p. 1243 e seguintes.). A propósito do requisito da ilicitude refere aquele Professor na citada obra: “É necessário, em primeiro lugar, que tenha sido praticado um facto ilícito. Este facto tanto pode ter consistido num acto jurídico, nomeadamente um acto administrativo, como num facto material, simples conduta despida do carácter de acto jurídico. O acto jurídico provém por via de regra de um órgão que exprime a vontade imputável à pessoa colectiva de que é elemento essencial. O facto material é normalmente obra dos agentes que executam ordens ou fazem trabalhos ao serviço da Administração. O artigo 6º do Decreto-lei n.º 48 051 contém, para os efeitos de que trata o diploma, uma noção de ilicitude. Quanto aos actos jurídicos, incluindo portanto os actos administrativos, consideram-se ilícitos “os que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis”: quer dizer, a ilicitude coincide com a ilegalidade do acto e apura-se nos termos gerais em que se analisam os respectivos vícios. Quanto aos factos materiais, por isso mesmo que correspondem tantas vezes ao desempenho de funções técnicas, que escapam às malhas da ilegalidade estrita e se exercem de acordo com as regras de certa ciência ou arte, dispõe a lei que serão ilícitos, não apenas quando infrinjam as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis, mas ainda quando violem as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”. Reportando-nos ao aso concreto: 1.1. O facto e a ilicitude. Desde logo existe um facto relevante: a prestação do cuidado de saúde, com a realização de uma operação de colecistectomia, prevista, e a extracção de cinco dentes, operação esta não prevista. Existe também, entendemos, a ilicitude objectiva, traduzida na realização de um acto médico não solicitado e que trouxe para o utente uma diminuição física, a extracção de cinco dentes, quando apenas estava prevista a colecistectomia. Mas concluindo, à partida, pela existência a de uma acto ilícito, importa no caso verificar se se verificou, ou não, uma causa de exclusão da ilicitude: o consentimento informado. 1.2. A exclusão da ilicitude; o consentimento informado. Os Autores imputam ao Réu o facto de nenhum dos médicos ao seu serviço ter questionado o falecido Autor quanto à existência de patologias dentárias em momento anterior à realização da cirurgia, quando o deveriam ter feito para evitar o sucedido, concluindo que sem essa pergunta o consentimento informado pelo Réu prestado não abrangia a extracção dos cinco dentes do maxilar inferior, porquanto em momento algum, o falecido Autor, se soubesse da eventualidade de tal consequência, teria autorizado a realização da cirurgia. A matéria do “consentimento informado” foi exemplarmente tratada na sentença recorrida, que os argumentos dos Recorrentes não beliscam: «A matéria que se prende com o designado “consentimento informado”, além de estar regulada na designada “Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina”, aberta à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa em Oviedo, a 4 de Abril de 1997, e aprovada pela Assembleia da República através da Resolução nº 1/2001, tem conhecido um intenso tratamento na jurisprudência dos tribunais superiores portugueses. Por razões de mera celeridade e agilização processuais, louva-se o tribunal nos doutos argumentos expendidos pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 09/10/2014, no P. 3925/07.9TVPRT.P1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), que aqui, parcialmente, se transcrevem: “ … veio a lume, em 1947, o Código de Nuremberga, cujo primeiro princípio logo dispunha que “o consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isto quer dizer que a pessoa implicada… deve ter conhecimento suficiente e compreensão do assunto nos seus vários aspetos para que possa tomar uma decisão consciente.” Este código serviu como ponto de partida para inúmeros diplomas que foram sendo publicados, quer na ordem interna de cada um dos países, quer na ordem internacional. Considerando-se o direito que vimos referindo, quer como integrado noutros de conteúdo mais abrangente, quer tutelado expressamente. Relativamente aos vigentes em Portugal, trazemos para aqui os seguintes textos: Portugal é uma república soberana, baseada na dignidade da pessoa humana… A integridade moral e física das pessoas é inviolável Todos têm direito à liberdade… – artigos 1.º, 25.º, n.º1 e 27.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa; 1 . Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental. 2. No domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados, designadamente: a) O consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da lei… artigo 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada… artigo 8.º da CEDH (considerando a integração do consentimento informado no âmbito da vida privada, conforme jurisprudência do TEDH, podendo ver-se, por todos, no sítio do próprio Tribunal, o Ac. de 7.10.2008, Bogumi contra Portugal): Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido. Essa pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos. A pessoa em questão pode, em qualquer momento, revogar livremente o seu consentimento. – artigo 5.º da Convenção Para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, vulgarmente conhecida por “Convenção de Oviedo” ou “CDHBio”, de 4.4.1997, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º1/2001, de 3.1 e pela Resolução da Assembleia da República n.º1/2001, da mesma data. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. – artigo 70.º, n.º1 do Código Civil. 1 – Os utentes têm direito a: (…) e) Ser informados sobre a situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado – Base XIV da Lei de Bases da Saúde (n.º 48/99, de 24.8, alterada pela Lei n.º 27/2002 de 8.11); 1. As pessoas indicadas no artigo 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente, serão punidas com prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 . O facto não é punível quando o consentimento: a) Só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde; ou b) Tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina como meio de evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde; E não se verificarem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado. – artigo 156.º do Código Penal. Para efeito do disposto no artigo anterior, o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica. – artigo 157.º do Código Penal. O doente tem o direito a receber e o médico o dever de prestar o esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico da sua doença. Só é válido o consentimento do doente se este tiver capacidade de decidir livremente, se estiver na posse de informação relevante e se for dado na ausência de coacções físicas ou morais - artigos 44.º, n.º1 e 45.º, n.º1 do “Código Deontológico” da Ordem dos Médicos (publicado como “Regulamento” no Diário da República, 2.ª série, de 13.1.2009, sendo certo que, já mesmo relativamente a factos anteriores, sempre releva “o seu valor prático com efeitos jurídicos, servindo de auxiliar decisivo para apreciar uma conduta médica, num tribunal ordinário” – Guilherme de Oliveira, RLJ n.º 3923, 34 e seguintes). Destes textos – e outros o confirmariam, se necessário – emerge logo uma ideia incontornável: é o doente que está no centro referencial dos atos médicos. A prevenção de doenças suas e o seu tratamento constituem um escopo que supera tudo o mais envolvido em tal atividade. Constituindo o centro referencial do ato médico, a decisão sobre o tratamento é a ele que cabe em última instância. Assim, está nas suas mãos ser ou não informado do diagnóstico, da previsibilidade da evolução da doença, das possibilidades de tratamento, e dos riscos associados a este. Continuando nas suas mãos a decisão final sobre o que deve ser feito (cfr. Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 399 in fine e Sérgio Deodato, Direito da Saúde, 42). Decerto que esta afirmação não pode ser absoluta, mas não nos interessam, para aqui, os casos de ressalva em que o doente por idade, moléstia ou outras razões não está em condições de apreender o que se passa ou de decidir. O supra referido texto criminal contém ressalvas, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia remete para a “lei”, a Convenção de Oviedo fala em “informação adequada”, de tudo nos ficando uma situação de exigência interpretativa grande quanto ao conteúdo do dever de esclarecimento. As ressalvas constantes do direito penal impõem-se com alguma evidência, de sorte que as vamos considerar também para aqui. Não recusando o doente os itens referidos no número anterior, ou qualquer deles, cabe ao médico, em primeira linha, informá-lo. Este dever de informação “não tem de obedecer a um modelo único de densidade e intensidade” (Costa Andrade, ob. e loc. citados). Mesmo que o doente o não exclua, pode o médico excluí-lo, em nome do chamado “privilégio terapêutico”, ou seja, nos casos em que o legitimamente se aperceba que a informação pode causar um perigo para a vida ou é susceptível de causar ao doente grave dano à saúde física e psíquica. A ação do médico visa o tratamento e não pode, ela mesma, constituir fonte de maior dano, nem colocar o clínico numa situação em que “pode ser condenado por não esclarecer e, ao mesmo tempo, poder ser também condenado pelos danos desencadeados pelo esclarecimento (violação das legis artis)” (mesmo Autor, loc. citado). Noutro prisma, há que ter sempre presente que a medicina não é uma ciência exacta, não podendo o médico, em muitas ocasiões, afirmar o diagnóstico ou a evolução clínica. Além disso, não se pode “transformar” o acto médico numa lição de medicina em que o doente passe a “saber” o que demorou anos de estudo ao clínico. Basta pensar-se que a anestesia é dirigida por um médico especialista em tal área, diferente do cirurgião, e não será razoável impor que cada doente que vai ser anestesiado saiba antes tudo o que pode ter lugar como consequência do anestésico e até as reações clínicas que, em cada caso, se podem impor. Estamos, pois, com Álvaro Rodrigues (A Responsabilidade Médica em Direito Penal, 41) quando afirma: “O que por todos é aceite é que em caso algum estará o médico obrigado a discutir todos os detalhes possíveis inerentes à execução de qualquer tratamento médico cirúrgico. Não se requer da parte do médico, uma discussão técnico-científica sobre a moléstia e o tratamento do paciente, nem é aconselhável o uso de terminologia técnica ou uma linguagem hermética inacessível à generalidade das pessoas.” 19. Especificamente, no que respeita à informação dos riscos, não podemos impor a transformação do ato médico num ato eivado de envolvimento jurídico, em ordem a perder-se de vista o objetivo fundamental do tratamento. Conforme afirma André Pereira (O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica, in Responsabilidade Civil dos Médicos, Centro Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 11, página 457): “Podemos constatar que houve durante a última década uma clara evolução no sentido da proteção do consentimento informado e da autonomia do paciente. Recentemente, porém, alguns autores e tribunais têm assinalado que a hipertrofia do direito à informação está a criar um fenómeno de medicina defensiva, de burocratização da relação médico-paciente e de alguma desconfiança ou mesmo crispação entre médicos e pacientes que se deseja sejam parceiros na actividade médico-terapêutica.” Além disso, um simples tratamento, com o mais vulgar dos medicamentos, pode levar a consequências muito graves que nem o próprio médico legitimamente pensou (Repare-se na dispensa de esclarecimento afirmada por Costa Andrade, ob. e loc. citados, relativamente aos “tratamentos de rotina”). Na verdade, um mínimo de risco é inerente à quase totalidade dos atos médicos. A exigência para além dum plano de razoabilidade, pode levar, outrossim, à renúncia, por parte do médico, relativamente a certos tratamentos, despindo a ciência médica dum elemento que, sempre dentro de parâmetros de razoabilidade, a caracteriza que é a assunção deste risco (Cfr., a este propósito, Rute Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico Reflexões Sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, in Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 15, página 440). Mantendo-se sempre a obrigação de informação, mas assim pensada, não fica, nem poderia ficar clara a linha delimitativa que, perante cada caso, deve distinguir entre o que o médico deve dizer ao doente (podendo ser responsabilizado se o não disser) e o que o médico não carece de abordar. André Pereira, no seu citado Estudo, dá-nos conta da evolução em França. A Cour de Cassation terá decidido que o médico não fica dispensado de indicar ao doente os riscos pelo facto de estes só se realizarem excecionalmente (Acórdão de 7.10.1998), entendimento também subscrito pela jurisdição administrativa, mas tal levou a que a responsabilidade médica por violação dos deveres de informação se tenha tornado demasiado pesada “tendo começado a sentir-se uma forte carga indemnizatória quer sobre a clínica privada, quer sobre a medicina em hospitais públicos.” Os Tribunais - segundo afirma – continuam tal entendimento, apesar da vinda a lume, entretanto, da Lei de 4.3.2002 que alude apenas a riscos frequentes ou os riscos graves normalmente previsíveis, ignorando os riscos graves de verificação excecional. O Supremo Tribunal Alemão, no seu Acórdão de 22.12.2010 3StR 239/10[1], com citação abundante da sua própria jurisprudência, que mantém constante, reafirmou o entendimento de que deve ser prestada ao paciente informação base (“Grundaufklärung”) em termos “gerais e completos” (“Grossen und Ganzen”), com inclusão das chances e riscos da intervenção, nestes se compreendendo todos os riscos graves ligados à operação, mesmo os de verificação rara, mas sem necessidade duma descrição médica exacta. José Lago (Consientemiento Informado y Responsabilidade Civil, Estudo inserto na revista Julgar, Número Especial de 2014, 163) dá-nos conta de que a Sala Civil do Tribunal Supremo Espanhol vem distinguido consoante se trate de intervenções de medicina curativa ou necessária ou apenas “satisfactiva, reparadora o no necessária”. Neste segundo caso, as exigências relativas ao conteúdo informativo são mais rigorosas, do que no primeiro, tendo em conta “a necessidade de evitar que se silenciem os riscos excecionais ante cujo conhecimento o paciente poderia subtrair-se a uma intervenção não necessária ou de uma necessidade relativa.” Entre nós, Álvaro Rodrigues (ob. citada, 346) defende que: “Quanto aos efeitos secundários, sequelas e riscos do tratamento a doutrina recomenda o esclarecimento daqueles que se verificam com frequência, não havendo necessidade de focar os riscos de carácter excepcional na sua verificação. Mais uma vez, aqui, como em tudo na vida, o melhor critério será o da ponderação dos interesses em jogo, mediante uma atitude ética e conscienciosa, que procurando devolver a saúde ao doente, tenha sempre no horizonte o direito deste à sua liberdade de decisão convenientemente esclarecida.” Também André Pereira, no seu apontado Estudo, após incursão detalhada pela jurisprudência e doutrina estrangeiras, escreve (página 478): “Assim, partindo da constatação de que a medicina é uma actividade que gera riscos, na tarefa da imputação objectiva dos danos, devemos destrinçar quais os riscos que a ordem jurídica pretende que sejam suportados pelo doente e quais devem ser suportados pelo médico. Os últimos devem ser comunicados ao paciente, para que este, em liberdade e em consciência decida sobre se autoriza a intervenção, autocolocando-se em perigo; não sendo esclarecidos, o médico deverá compensar o doente pelos danos causados. Os primeiros (os que devem ser suportados pelo paciente) por motivos vários como a extrema raridade, a sua imprevisibilidade, o conhecimento comum, entre outros motivos, não carecem de ser transmitidos; se se verificarem deverá ser o paciente a suportá-los: casum sentit dominus.” Em Portugal o esclarecimento médico está numa fase embrionária. Procura do médico como elemento “tranquilizador” e não “assustador”, baixo nível cultural dos doentes, principalmente dos idosos, algum “doutorismo” ou distanciação por parte de alguns médicos, ideia assente de que o doente, já fragilizado pela doença, não está interessado em acumular a revelação dos riscos à sua própria fragilidade, tradição de pouca atenção à envolvência jurídica dos actos médicos até algo correr mal e outras razões levam a que, por regra, os atos não preencham os requisitos que as jurisprudência francesa e alemã vêm exigindo. A interpretação da lei não pode nem deve abstrair da realidade social que visa disciplinar. De outro modo, pode abrir-se um caminho de ressarcimento, praticamente ilimitado e desadequado face à nossa realidade social, sempre que algo corre mal nos actos médicos. Não tendo havido negligência, o doente teria ao seu alcance, na esmagadora maioria dos casos, a deficiente informação médica. “O incumprimento de qualquer um destes deveres [de esclarecimento e de obtenção do consentimento esclarecido] tem servido, como veremos, de artifício para se alcançar a tutela do doente em situações em que dificilmente ele obteria o ressarcimento de danos sofridos aquando da prestação de assistência médica deficiente. Serviu para fundar o fenómeno ressarcitório em situações em que se constatava a produção de um dano por ocasião da prestação debitória do médico, mas em que não era possível identificar um comportamento desvalioso por parte daquele profissional. Tal aproveitamento ínvio permitiu um funcionamento eficaz do sistema de responsabilidade civil, em casos perante os quais ele, à primeira vista, sucumbiria.” – Rute Pedro, ob. citada, página 79. No outro prato da balança, o Direito não pode deixar de ser aplicado, encerrando também um efeito disciplinador. Na interpretação dos textos legais supra citados, hão-de os tribunais tudo ponderar em ordem a se situarem no ponto de equilíbrio dos interesses em jogo. Noutro prisma, a imposição da revelação de todos os riscos da intervenção médica, incluindo os de verificação rara ou excecional, determinaria a abertura dum leque de tal modo vasto que desembocaria na “lição” de medicina que supra afastámos e transcenderia até os conhecimentos necessários ao desempenho das próprias funções do médico que leva a cabo a essência do tratamento. Numa intervenção cirúrgica, como exemplo mais frequente, teria o doente de ser esclarecido primeiro pelo anestesista sobre as possíveis complicações da anestesia e sua probabilidade de não serem controladas, depois, pelo cardiologista, sobre o que pode acontecer a tal nível, depois, pelo pneumologista sobre os riscos da “respiração induzida” e aí por diante. E a prova de que assim é reside no facto de, perante complicações sérias emergentes dum tratamento, mormente duma cirurgia, o cirurgião se socorrer de colegas de outras especialidades. Havendo até casos de doentes que, perante tais complicações, são transferidos de hospital porque só o segundo está vocacionado para tratar o que, na visão mais abrangente, seriam riscos a comunicar ao doente antes da intervenção. Deste modo, ponderando tudo o que acaba de se escrever e sempre tendo em conta apenas o que pode interessar para a solução deste caso, cremos poder assentar nas seguintes ideias: Com ressalvas que aqui não importam, o doente tem direito a ser informado, pelo médico, em ordem a poder decidir sobre se determinado acto médico que o vise deve ou não ser levado a cabo; Tal direito é disponível; O conteúdo do dever de informação é elástico, não sendo, nomeadamente, igual para todos os doentes na mesma situação; Abrange, salvo ressalvas que aqui não interessam e além do mais, o diagnóstico e as consequências do tratamento; Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo tratamento e aos seus riscos; Não se exigindo, todavia, uma referência à situação médica em detalhe; Nem a referência aos riscos de verificação excecional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento. (…)” Posto isto, e retomando o caso presente, atente-se no facto de que o primitivo Autor assinou um documento de consentimento para a realização do tratamento que lhe foi aplicado, especificamente, uma colecistectomia por via aberta, documento este no qual estão taxativamente elencadas as complicações pós-operatórias mais frequentes. O conteúdo de tal documento foi livremente assinado pelo paciente, após lhe ter sido realizado o diagnóstico, que se revelou o correto, e a indicação de tratamento, a referida intervenção cirúrgica. Resultou ainda provado, como resulta ex abundanti dos registos clínicos juntos aos autos, que o paciente foi questionado, pelos diversos médicos que o observaram, sobre quais as patologias de que padecia, já diagnosticadas, tendo o mesmo procedido à referência à diabetes, à asma brônquica, à tuberculose (o que havia sucedido há já largos anos), e à cólica renal de que tinha padecido. Esta matéria é pertinente no sentido de sublinhar que o paciente, primitivo Autor, tinha um padrão cultural que lhe permitia ter um elevado grau de consciencialização das patologias de que padecia, e de que poderiam as mesmas afigurar-se de relevantes para que pudessem os médicos, da melhor forma possível, adaptar os tratamentos escolhidos à condição clínica do paciente. É tal afirmação verdadeira, quando se verifica que aquele teve o cuidado de mencionar patologias que haviam ocorrido há já mais de 30 anos. Todavia, é também certo que em nenhum momento foi a matéria da patologia dentária abordada pelo paciente, nem tampouco questionada pelos médicos que o observaram. Ora, tal não é suficiente para que possa afirmar-se, como o fizeram os Autores habilitados no seu articulado, que incorreu o Réu em violação do dever de cuidado que sobre si impendia. Reportando-nos aos argumentos supra transcritos, em momento algum se poderá exigir dos médicos a obrigação de discutir, com todos os detalhes, todas as ocorrências que poderão advir da execução de um tratamento cirúrgico, como é a colecistectomia. Ainda que sejam certos riscos graves ou ligados especificamente ao tratamento implicado, como é o caso da aplicação de uma anestesia geral, com respiração induzida, a partir do momento em que sejam os mesmos reputados de raros, não era exigível aos médicos que passassem à exposição, discussão e envolvimento de tais riscos. Na verdade, e conforme foi afirmado por todos os profissionais médicos ouvidos ao longo da audiência de discussão e julgamento, é muito raro que complicações de ordem dentária, não visíveis numa consulta ordinária, gerem problemas ou riscos na administração de anestesia geral ou ao longo de uma cirurgia num local totalmente distinto, como é a zona abdominal. Tampouco poderá exigir-se dos médicos, neste juízo de ponderação, que, no questionário pré-operatório percorram todo o tipo e espécie de patologia, idealmente configurável, e demais complicações, pelo menos, suscetíveis de surgir ao longo da cirurgia. Precisamente considerando a natureza de risco de qualquer prática médica, tais parâmetros de razoabilidade impõem a conclusão da não exigibilidade de alerta para tal tipo de riscos e, concomitantemente, da realização de um questionário prévio quanto a esse tipo de patologias. Contrariamente, seria antes exigível ao paciente, primitivo Autor, conhecedor que era da instabilidade dos seus dentes do maxilar inferior, e tendo sido já cabalmente diagnosticado pelo seu dentista, em data anterior à da realização da cirurgia, transmitir tal informação aos médicos que o observaram, aquando da formulação da pergunta genérica, realizada a todos os doentes: “De que outras doenças é que sofre?”. Na verdade, pode tal omissão de tal prestação de informação configurar, inclusivamente, culpa do lesado, nos termos do previsto no artigo 570º do Código Civil. Por outro lado, sublinhe-se ainda que, conforme resultou do probatório coligido, o consentimento informado emitido pelo primitivo Autor continha ainda a seguinte menção: “Autorizo a realização dos atos médicos indicados, bem como os procedimentos adicionais que sejam necessários no meu próprio interesse e justificados por razões clínicas.” (sublinhado nosso). Do que vem se expor, resulta que o consentimento prestado por J.A.S. abrangia quaisquer tratamentos, além daqueles expressamente descritos (colecistectomia laparoscópica), que, no desenrolar da cirurgia, surgissem como necessários, justificados e no seu próprio interesse. Dimana com absoluta clareza da matéria de facto dada como provada que, atento o risco de queda dos dentes e a sua aspiração pelo paciente, em situação de relaxamento e sem reflexos para a sua expulsão, bem como sofrendo aquele de asma brônquica, a não extração dos dentes seria suscetível de pôr em risco a sua própria vida. Resulta ainda claro, advindo do senso comum, que se revelava impossível voltar atrás ou aguardar, despertar o paciente e obter consentimento informado para a extração dentária, impondo-se aos médicos, naquele momento, uma decisão. Assim, e no entender deste Tribunal, a decisão tomada pelos médicos ao serviço do Réu foi tomada a coberto da segunda parte do referido consentimento informado, uma vez que tomou em exclusiva consideração os interesses do paciente, especificamente, obviar a um risco grave e sério de infeção pulmonar ou, até, morte por asfixia. Aliás, o próprio paciente acaba por admitir, no seu petitório, que a decisão de extrair os dentes procurou apenas obviar tais riscos, graves e sérios, para a sua vida, como decorre dos artigos 14º a 18º da sua petição inicial. Por fim, alegam ainda os Autores habilitados que, caso tivesse o primitivo Autor sido alertado do risco de poderem ser-lhe extraídos cinco dentes do maxilar inferior, jamais teria este consentido na realização da intervenção cirúrgica. Não obstante o alegado, não lograram os Autores habilitados provar tal facto, ónus este que sempre sobre os mesmos impendia, de acordo com o constante no artigo 342º do Código Civil. Efetivamente, a prova realizada, no que a esta matéria respeita, limitou-se ao avançar de suposições e asserções feitas por familiares de J.A.S., que não foram suficientes para formar um juízo de verosimilhança quanto ao alegado facto. Consequentemente, e do que vem sendo exposto, resulta claro que não incorreram os agentes ao serviço do Réu em qualquer violação das legis artis ou de um qualquer dever de cuidado especial que sobre os mesmos impendia. Adiante-se que seria até legítimo afirmar que a não adoção da referida decisão de extrair os dentes, caso se tivessem verificado problemas respiratórios ou pulmonares, poderia, essa sim, ser objeto de censurabilidade jurídica, por omissão dos deveres de cuidado a que os profissionais médicos se encontram obrigados.». O primitivo Autor não informou, no formulário que preencheu previamente à realização da operação, que tinha problemas dentários graves. Apesar de ter informado de outras doenças de que padecia, até desde há trinta anos. E apesar de em momento anterior à cirurgia ter sido questionado pela anestesista quanto ao uso de próteses dentárias. Anestesista que não detectou qualquer problema notório – facto provado em r. Só em momento posterior à intubação, quando o primitivo Autor se encontrava inconsciente e sob a luz intensa da mesa de operações, é que a anestesista ao serviço do Réu se apercebeu da gravidade da doença gengival e dentária por aquele apresentada, estando dois dentes a abanar e com risco de desprendimento imediato – facto provado sob a alínea s. Não era, pois, previsível a ocorrência desta situação grave no decurso da própria operação cirúrgica previamente planeada. E não havia a hipótese de, naquele momento, pedir o consentimento expresso do paciente para a operação que se mostrava necessária, a extracção dos dentes. Situação que se deveu ao próprio paciente que não alertou, como devia, para os problemas dentários de que padecia. Pois só com esse dever de informação a equipe médica poderia ter previsto a necessidade de realizar tal operação e pedir o consentimento do paciente. Já no decurso da operação e estando o paciente anestesiado é de presumir o consentimento pois a alternativa seria, com grave risco para a saúde e até para a vida do primitivo Autor, interromper a operação e deixar passar o efeito da anestesia para depois reiniciar todo o procedimento médico-cirúrgico. Como nos diz Bárbara Sofia Brito da Silva Roque, em “Os actos médicos na perspectiva jurídico-penal: o consentimento do paciente e o dever de esclarecimento do médico”- Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no âmbito do Mestrado em Direito Forense, sob orientação do Senhor Professor Doutor Germano Marques da Silva, Lisboa, Março de 2016, páginas 15 e 16: “Consagrado autonomamente no artigo 39.º e, especialmente para o domínio das intervenções médico-cirúrgicas, no número 2 do artigo 156.º do Código Penal, o consentimento presumido emerge como uma autêntica causa de justificação, distinta do consentimento efetivo. Fora do Código Penal este instituto está também previsto em diversas normas, de que são exemplos o artigo 47.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e o artigo 9.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, bem como o ponto 8 da Carta dos direitos e deveres do doente. De aplicação subsidiária face ao consentimento efetivo, o consentimento presumido deve ser mobilizado nas situações em que se verifica risco para a vida ou para a saúde, em que, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 156.º do Código Penal, o paciente está inconsciente ou por outra razão incapaz de consentir e não está representado por um representante legal, a intervenção é urgente ou, por força da alínea b) do mesmo artigo, no caso de alargamento do âmbito da operação.” Desta forma conclui-se pela verificação de uma causa de exclusão da ilicitude – o consentimento presumido, previsto nos artigos 31º, nº 2, alínea d), 38º e 39, todos do Código Penal. 2. Restantes pressupostos da responsabilidade civil. Excluída a ilicitude, afastada está a responsabilidade civil, quer contratual, quer extracontratual do Réu. Os pressupostos da responsabilidade civil são de verificação cumulativa, pelo que a ausência de verificação de um pressuposto, no caso a ilicitude, conduz à absolvição do Réu do pedido. Nestes termos, e face a tudo o que antecede, está a presente ação votada à improcedência. Não merece, pois, provimento o presente recurso, impondo-se manter a decisão recorrida. * IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional, pelo que mantêm a decisão recorrida.Custas pelos Recorrentes. * Porto, 15.11.2019Rogério Martins Luís Garcia Conceição Silvestre |