Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00298/17.5BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/30/2018
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário:
I-No âmbito das peças processuais que apresentou em juízo nesta acção a Autora alega a dominialidade de uma parcela de terreno afectado por imputadas acções dos Réus, cujo pedido de reconhecimento formula;
I.1-os terrenos que integram o domínio público estão fora do comércio jurídico e, como tal, os litígios inerentes aos mesmos não podem ser considerados de direito privado, mas antes de direito público; donde não se tratar de uma típica acção reivindicatória de direito privado.
II-O conceito de relação jurídica administrativa erigido pela CRP (também com expressão no artº 1º/1 do ETAF) deve ser entendido como o elemento chave de distinção na repartição de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos, sendo que, na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública, em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:União das Freguesias de Silvares, Pias, Nogueira e Alvarenga
Recorrido 1:JJMR
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar a decisão recorrida
Ordenar a baixa dos autos
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
A União das Freguesias de Silvares, Pias, Nogueira e Alvarenga intentou acção administrativa contra JJMR e esposa, SFCS, todos melhor identificados nos autos, pedindo que:
A) seja declarado que integra o domínio público da autora a parcela de terreno de 151 m2 melhor identificada nos artigos 5°, 6° e parte final do artigo 8°, em conformidade com a planta junta, na margem sul e poente do caminho público da jurisdição da autora, que constituiu a Travessa de V…
B) sejam condenados os Réus a reconhecerem que essa mesma parcela de terreno integra o domínio público da autora e a não continuarem a ocupação da mesma.
C) sejam condenados os Réus a absterem-se de, por qualquer forma, realizar quaisquer actos que impeçam a sua utilização por parte da Autora, nomeadamente com ocupação da referida parcela de terreno para efeitos de alargamento do supra citado caminho, e que impeçam a sua consequente utilização pelo público;
D) sejam condenados os Réus a pagarem à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 100,00 € (cem euros diários), por cada dia de atraso na sua entrega a autora.
Por decisão proferida pelo TAF de Penafiel foi julgada verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal e absolvidos da instância os Réus.
Desta vem interposto recurso.

Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:
1. No âmbito das peças processuais que apresentou em juízo no âmbito da presente ação, a Recorrente alega a dominialidade de uma parcela de terreno, afetado por imputadas ações dos Réus, aqui Recorridos, cujo pedido de reconhecimento formula.
Ora,
2. Os terrenos que integram o domínio público estão fora do comércio jurídico e, como tal, os litígios inerentes aos mesmos não podem ser considerados de direito privado, mas antes de direito público;
3. Donde não se tratar de uma típica ação reivindicatória de direito privado.
Na verdade,
4. A Recorrente é um ente público que procura defender, por via da presente ação, o domínio público da freguesia (nos termos configurados pelos Decreto-Lei nº 280/2007, de 7 de agosto), e não o seu domínio privado.
Assim,
5. O conceito de relação jurídica administrativa erigido pela CRP (também com expressão no artº 1º, nº 1, do ETAF) deve ser entendido como o elemento chave de distinção na repartição de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos.
6. Sendo que, na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública, em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
Assim,
7. Os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e atos de delimitação destes com bens de outra natureza que, antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cf. artº 4º, nº 1, e), do ETAF/84), passaram, depois daquela reforma, a integrar o âmbito da jurisdição dos Tribunais Administrativos.
Destarte,
8. A sentença recorrida violou, entre o mais, as normas constantes do artigo 211º, nº 1, da CRP, do artigo 13º do CPTA e dos artigos 1º, nº 1, 4º e 44 do ETAF.
Pelo que, deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser revogada a decisão de que se recorre, sendo a mesma substituída por outra que declare ser da jurisdição administrativa o conhecimento da presente ação, com as legais consequências,
Com o que farão JUSTIÇA!
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Não houve contra-alegações.
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O MP não emitiu parecer.
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Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO/DE DIREITO
É objecto de censura a decisão que, por incompetência em razão da matéria do Tribunal, absolveu da instância os Réus.
Na óptica da Recorrente esta violou, entre o mais, o disposto nos artigos 211º/1 da CRP, 13º do CPTA e 1º/1, 4º e 44 do ETAF.
Avança-se, desde já, que lhe assiste razão.
Antes, atente-se no seu discurso jurídico fundamentador:
Da competência em razão da matéria dos Tribunais Administrativos
Nos termos do disposto no artigo 13º do NCPTA, “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”, i.e, ao contrário do que sucede no CPC, no âmbito do NCPTA todas as questões relativas à competência dos tribunais administrativos são simplificadas e de conhecimento oficioso, precedendo o conhecimento de qualquer outra questão.
Dispõe o art. 98º do CPC que “se a incompetência for arguida antes de ser proferido o despacho saneador, pode conhecer-se dela imediatamente ou reservar-se a apreciação para esse despacho; se for arguida posteriormente ao despacho, deve conhecer-se logo da arguição”.
Finalmente, o art. 130º do CPC estatui que não é lícito realizar no processo actos inúteis, pelo que afigurando-se ao Tribunal ocorrer a excepção da incompetência material do Tribunal, sendo a mesma de conhecimento oficioso e atento o facto de que o princípio da proibição de actos inúteis, impõe-se ao juiz providenciar, de imediato, pelo regular andamento dos autos, não se dando o prévio contraditório pois, tratando-se de um caso relativamente simples quanto a saber se este tribunal é materialmente competente para o conhecimento da acção, considera-se manifestamente desnecessária a actuação do princípio do contraditório, conforme permite o nº 3 do artigo 3º do CPC.
Vejamos:
Decorre da leitura da PI que o objecto da presente acção se refere à alegada ocupação pelos Réus de uma parcela de terreno m.i. no art. 8º da PI e que a Autora defende ser parte do domínio público e não propriedade dos Réus, pois nunca foi desafectada do domínio publico e que nessa condição se mantém ao contrário do alegado pelos Réus, os quais alegam ser proprietários da mesma razão pela qual a Autora deu entrada à presente acção “nos termos do disposto no artigo 1311° do Código Civil”.
Os Réus deduziram, além do mais, contestação por reconvenção na qual peticionam, além do mais, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a supra referida parcela de terreno.
Ora no caso dos autos é explicitamente referido pela Autora no art. 25º da PI que a presente acção é instaurada nos termos do disposto no artigo 1311° do Código Civil.
O art. 1311º do Código Civil (CC), preceito legal ao abrigo do qual a Autora deu entrada à presente acção, configura uma norma típica de direito privado e prevê no nosso ordenamento jurídico a acção de reivindicação, a qual surge como uma típica manifestação do direito de sequela cuja essência e ultima ratio é a de afirmar o direito de propriedade e pôr fim a uma situação ou actos que o violem, tendo como primeiro objectivo a declaração de existência do direito e, como objectivo ulterior, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos:
-o de reconhecimento de um direito; e o,
-de restituição da coisa, (objecto desse direito).
Compete aos autores, neste tipo de acção provar que são proprietários, constituindo o facto jurídico de que emerge a propriedade a causa de pedir da acção de reivindicação, tendo eles de alegar, como o fizeram, que a coisa se encontra em poder de outrem (dos Réus).
Estes (os Réus), ao invés, peticionam em reconvenção o reconhecimento precisamente do efeito jurídico diametralmente oposto ao pretendido pela Autora, i.e. e em suma, está em causa a propriedade da parcela de terreno m.i. no art. 8º da PI.
Assim sendo, como se nos afigura ser, para que possa proceder a presente acção tornar-se-á necessária, por um lado, a comprovação da propriedade da coisa reivindicada, e, por outro lado, da identidade entre a coisa reivindicada e a (ilegitimamente) possuída pelos Réus, cujo ónus da prova incumbe à Autora por serem factos constitutivos do seu direito - art, 342° n° 1, do CC.
Caso se comprove a propriedade do imóvel e que este se encontra detido por terceiro, a sua entrega ao reivindicante só pode ser contrariada com base em situação jurídica (obrigacional ou real) que legitime a recusa de restituição – cfr. 1311º n° 2 do CC, i.e., mediante a alegação e prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem - cfr. art. 342° n° 2 do CC.
Cfr. referido no Acórdão proferido pelo Tribunal dos Conflitos no processo nº 12/10, de 26-09-2013, “(…) as ações de reivindicação são reais, o que imediatamente as distingue das ações de responsabilidade civil, que têm natureza obrigacional. A devolução da coisa, pedida pelo «dominus» que a reivindica, não constitui uma qualquer indemnização «in natura», mas a lógica consequência da sequela, que é um atributo característico dos direitos reais. E nem sequer é exata outra tese do acórdão - a de que a «reivindicatio» visa „a reposição no estado anterior ao ato ofensivo do direito de propriedade; pois a reivindicação tem por fim típico a devolução da coisa no seu estado atual, pedido a que poderá acrescer um outro, que será de ressarcimento, se esse estado for pior do que era antes por responsabilidade do detentor.
É desnecessário aduzir mais argumentos, ante a evidência de que a ação dos autos, enquanto ação de reivindicação, é alheia a uma qualquer responsabilidade extracontratual do réu. Donde se segue que a premissa menor do silogismo judiciário enunciado no acórdão „sub censura é falsa, inquinando a respetiva conclusão.
Ora, não há no ETAF uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de ações de reivindicação („vide, a propósito, o seu art. 4°). Solução que bem se compreende, pois o que nelas essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo „dominus existe e é oponível ao réu, por forma a tirar a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público - se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção.
Consequentemente, e de concluir que a competência «ratione materiae» para conhecer da presente ação de condenação cabe, a título residual, aos tribunais comuns (…)”.
Esta jurisprudência do Tribunal dos Conflitos tem sido mantida, conforme se verifica entre outros no Acórdão proferido no processo n° 052/14, de 26-01-2017, com o seguinte sumário:
“I. As ações de reivindicação são ações reais, que não se confundem com as ações obrigacionais em que se exerça a responsabilidade civil extracontratual.
II. Assim, a «reivindicatio» não cabe na previsão do art. 4.º, n.º 1, al g), do ETAF.
III. E, porque também não cabem em qualquer outra das previsões do mesmo artigo, as ações de reivindicação devem ser conhecidas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual [cfr. art.66.º do anterior CPC e atual art. 64.° do CPC/2013, art. 18.° da LOTJ e atual art. 40.º, n.º 1, da LOSJ).”.
Em conclusão, é entendimento deste tribunal que tal como emerge do art. 25º da PI e com base na causa de pedir implícita à PI apresentada, o litígio a resolver não decorre de uma relação jurídico administrativa enformada pelo direito administrativo, sendo, ao invés, um litígio a resolver com base em normas de direito privado, não se inserindo por esse motivo, na competência dos Tribunais Administrativos, tal como a mesma é definida nos artigos 1º e 4° do NETAF.
Ora, a competência material dos tribunais administrativos encontra-se fixada nos artigos 1º, 4º e 44º do NETAF e art. 212º nº 3 da CRP, sendo certo que pelos motivos expostos, por entendermos que não está em causa uma relação jurídico-administrativa mas sim de uma questão a resolver com recurso a normas de direito privado, a competência para apreciar o presente litígio se mostra excluída do âmbito de aplicação do art. 4º do NETAF sendo competente para o seu conhecimento os Tribunais da Jurisdição Comum.
A incompetência em razão da matéria integra-se no âmbito das incompetências absolutas – art. 96º alínea a) do CPC – e configura uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso do Tribunal, que obsta ao conhecimento do mérito da causa – artigos art. 89º nºs 2 e 4 al. a) do NCPTA -, determinado a absolvição do Réu da instância, o que se determina.
X
Para dirimir a questão em análise importa saber se a matéria colocada como objecto da causa, maxime o pedido e a causa de pedir configuram alguma das situações em que a lei atribui a competência especificamente aos tribunais administrativos.
Vejamos, portanto, se a matéria se enquadra na previsão do artº 1º do ETAF, isto é, se deve qualificar-se como litígio emergente de relação jurídica administrativa.
Para ajudar a delimitar o conceito de relação jurídica administrativa o nº 4º do mesmo diploma efectua uma enumeração exemplificativa, através da qual podemos encontrar critérios ou efectuar uma delimitação de fronteiras, usando as técnicas de interpretação da lei.
A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou uma sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público.
Fazendo apelo ao preceituado no artº 13° do CPTA, é seguro que a competência do tribunal é de ordem pública e deve preceder o conhecimento de qualquer outra matéria.
Acresce que a incompetência absoluta se configura como uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e que conduz à absolvição da instância, sendo, de resto, do seu conhecimento oficioso, conforme resulta das disposições conjugadas dos artºs 576°/1 e 2, 577°/al. a), 578º/1ª parte e 278°/1, al. a), do novo CPC, (artºs 62º/2, 101º, 102º, 105º/1, 288º/1, al. a), 493º/1 e 2 e 494º/al. a), todos do antigo CPC ex vi artº 1º do CPTA).
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo um dos elementos de cuja verificação depende o dever do juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida. Como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em relação ao objecto da lide, tal como é configurado pelo autor.
Desta forma, o problema da (in)competência de determinado tribunal tem de ser resolvido em função do modo como se encontra articulado e fundamentado o pedido do autor, não sendo incumbência do réu definir o âmbito do mesmo. Dito de outra maneira, a competência do tribunal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, constituindo uma questão que será decidida de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, não importando averiguar quais deviam ser as partes ou os termos dessa pretensão. É, portanto, o pedido do demandante que determina a competência do tribunal - cfr. Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 104, e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª ed., pág. 139.
Na verdade, na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram -Antunes Varela /Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, ob. cit./197.
Com efeito, o artº 212°/3 da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Acresce que, em sintonia com o referido normativo, estatui o artº 1º/1 do ETAF, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na arquitectura deste quadro legal, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto, além do mais, a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal - artº 4°/1/al. a), do ETAF.
Em termos gerais, compete aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. O que nos permite extrair a ilação de que à jurisdição administrativa incumbirá, em regra, o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribuiu a outra jurisdição.
Neste sentido, as relações jurídicas administrativas pressupõem o relacionamento de dois ou mais sujeitos, num feixe de posições activas e passivas, regulado por normas jurídicas administrativas e sob a égide da realização do interesse público.
O critério material da distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - cfr. Vieira de Andrade em Justiça Administrativa, 9ª ed., pág. 103. Já Fernandes Cadilha, em Dicionário de Contencioso Administrativo, 117/118, afirma: por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração), que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
A competência do tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos Autores é determinante, sublinha o Acórdão do STA de 27/01/2010, no proc. 017/09.
Assim sendo, há que atentar na configuração que o A. faz da acção, a saber, o pedido formulado e a concreta causa de pedir em que se baseia.
Voltando ao caso concreto, temos que, no âmbito das peças processuais que apresentou em juízo nesta acção, a Recorrente alega a dominialidade de uma parcela de terreno, afectado por imputadas acções dos Réus, aqui Recorridos, cujo pedido de reconhecimento formula.
Ora, os terrenos que integram o domínio público estão fora do comércio jurídico e, como tal, os litígios inerentes aos mesmos não podem ser considerados de direito privado, mas antes de direito público; donde, como bem alegado, não se tratar de uma típica acção reivindicatória de direito privado.
Na verdade, a Autora/Recorrente é um ente público que procura defender, por via da presente acção, o domínio público da freguesia (nos termos configurados pelos DL 280/2007, de 7 de agosto), e não o seu domínio privado.
Assim, o conceito de relação jurídica administrativa erigido pela CRP (também com expressão no artº 1º/1, do ETAF) deve ser entendido como o elemento chave de distinção na repartição de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos, conforme acima apontado, sendo que, na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública, em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
Logo, os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza que, antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cfr. artº 4º/1, e), do ETAF/84), passaram, depois daquela reforma, a integrar o âmbito da jurisdição dos Tribunais Administrativos.
Em suma:
-a competência em razão da matéria afere-se pelo pedido formulado e pela natureza da relação jurídica que serve de fundamento a esse pedido, tal como a configura o autor - Acórdãos da Relação de Évora de 8/11/1979, Colectânea de Jurisprudência, 1979, IV, pág. 1397, do Supremo Tribunal de Justiça de 3/2/1987, BMJ 364, pág. 591, e de 9/5/1995, Colectânea de Jurisprudência /Acórdãos STJ, 1995, II, pág. 68; do Supremo Tribunal Administrativo de 10/3/1988, rec. 25.468, de 27/11/1997, rec. 34.366, e do Tribunal de Conflitos, de 23/9/2004, proc. 05/04; na Doutrina, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1ª ed., vol. I, pág. 88;
-aos tribunais administrativos cabe dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (artºs 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 212º/3 da Constituição);
-como advertia Manuel de Andrade em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra 1979, pág. 91: “(...) a competência do tribunal … afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)"; (….)É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão …" -no mesmo sentido, e entre outros, o Acórdão do STA de 03/05/2005, no proc. 046218;
-no caso em análise a jurisdição administrativa e fiscal é competente para a presente controvérsia;
-o conceito de relação jurídica administrativa erigido pela CRP (também com expressão no artº 1º/1, do ETAF) consiste no elemento chave de distinção na repartição de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos;
-na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública, “em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” - J.C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 55/56;
-por outro lado, “O conceito de relação jurídica administrativa pode, ser tomado em diversos sentidos. Em sentido subjetivo, onde se inclui qualquer relação jurídica em que intervenha a Administração, designadamente uma pessoa coletiva, pelo que tenderia a privilegiar-se igualmente um critério orgânico como padrão substancial de delimitação. Já em sentido predominantemente objetivo, abrangeria as relações jurídicas em que intervenham entes públicos, mas desde que sejam reguladas pelo Direito Administrativo. E há ainda um outro sentido, que faz corresponder o carácter “administrativo” da relação ao âmbito substancial da própria função administrativa.” - Acórdão do STA, de 28/10/2009, proc. 0484/09;
-tal como se decidiu no Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 28/09/2010, proc. 023/09, na competência destes tribunais integram-se:
“(…)
os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cfr. artº 4º/1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição.
Aliás, diríamos que é esse o seu campo próprio, atenta a natureza pública do bem objecto dessa relação jurídica e o consequente estatuto de direito público (administrativo) desse bem, também denominado “estatuto de dominialidade”;
-é que, se é certo que as referidas questões não estão expressamente enunciadas no nº 1 do artº 4º do ETAF, não é menos verdade que deixaram de integrar as alíneas deste preceito que respeitam à delimitação negativa da jurisdição e que integram os seus nº 2 e 3;
-efectivamente, não existindo hoje qualquer outra norma que as exclua do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, elas cairão, necessariamente, no âmbito da cláusula geral do artº 1º/1 do ETAF, verificados os demais pressupostos da relação jurídica administrativa;
-a este propósito continua o prof. Vieira de Andrade: “Julgamos que o desaparecimento desta exclusão ao implicar a aplicação da cláusula geral, vai trazer para os tribunais administrativos a competência para conhecer da impugnação dos atos de qualificação dominial, que são atos administrativos, quer se trate de atos de classificação, quer de afetação (vide M. Caetano, Manual II, 8ª ed., pág. 850 e segs)., bem como as ações relativas a questões de delimitação do domínio público com outros domínios que são questões de direito administrativo. Na realidade sempre se entendeu que um dos privilégios inerentes à propriedade pública, em comparação com a propriedade privada, é o poder da Administração de delimitar unilateralmente o domínio público (M. Caetano, obra cit., pág. 856);
-as razões de exclusão, no anterior ETAF, estavam ligadas à ideia de que tudo o que respeitava à propriedade devia ser julgado perante os tribunais judiciais, por desconfiança relativamente aos tribunais administrativos e pela pressuposição da limitação dos seus poderes - são por isso razões que deixaram de justificar o desvio relativamente ao critério substancial de definição do âmbito da jurisdição administrativa.” - obra citada, 150;
-no mesmo sentido, Ana Raquel Gonçalves Moniz, em O domínio Público: o critério e o regime jurídico da dominialidade, Almedina, 2006, 531 e segs.;
-e também assim ensinam Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira em CPTA e ETAF anotados, vol. I, Almedina, reimpressão da edição de Nov. de 2004, págs. 35/36.
Por tudo o que atrás se deixou dito, é claro que a decisão recorrida, como aventado, violou as normas constantes dos artigos 211º/1 da CRP, 13º do CPTA e 1º/1, 4º e 44 do ETAF.
Procedem, pois, as conclusões da Recorrente.
***
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revogando-se a decisão e julgando-se o tribunal a quo competente em razão da matéria.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.
Porto, 30/05/2018
Ass. Fernanda Brandão
Ass. Frederico Branco
Ass. Rogério Martins