Decisão Texto Integral: | 1. RELATÓRIO
1.1 A Administração tributária (AT), na sequência de diversas diligências no âmbito dos poderes de fiscalização que lhe assistem, considerou que CARLOS (adiante Contribuinte, Impugnante ou Recorrente) omitiu na declaração que apresentou para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 1991 o rendimento de esc. 18.343.525$00, que auferiu nesse ano, pelo que procedeu à correcção do rendimento colectável declarado, acrescendo-lhe este montante, e à consequente liquidação adicional de imposto e respectivos juros compensatórios, do montante global de esc. 11.431.263$00.
1.2 O Contribuinte impugnou essa liquidação alegando, em síntese, que não foi notificado da alteração do rendimento colectável declarado, nem dos respectivos fundamentos, o que o impediu de deduzir a competente reclamação, assim violando o «direito de reclamação que assiste aos impugnantes sempre que se verifique uma alteração do seu rendimento colectável» (() As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, são transcrições.), previsto nos arts. 67.º, n.º 1, e 68.º do Código do IRS (CIRS) (() As referências aos CIRS, aqui como adiante, reportam-se à versão do código anterior à revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho. ), o que constitui «preterição de formalidades essenciais, que inquinam todo o processado e consequentemente a liquidação que ora se impugna».
Concluiu pedindo que seja anulada a liquidação adicional.
1.3 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu julgou a impugnação improcedente.
Para tanto, considerou, em resumo e se bem interpretamos a sentença, o seguinte:
– é certo que o Impugnante devia ter sido notificado da decisão que alterou o rendimento declarado, como o impunha o art. 64.º do Código de Processo Tributário (CPT) sob pena de não produção dos respectivos efeitos;
– no entanto, quando deduziu a impugnação judicial, o Contribuinte «já tinha conhecimento da fundamentação da correcção efectuada»;
– assim, «apesar do Impugnante ter sido notificado de forma irregular, resulta dos autos, bem como do seu comportamento processual que igualmente tomou conhecimento da motivação de facto e de direito da liquidação de IRS/1990 efectuada»;
– «a deficiente notificação da liquidação jamais acarretaria a anulação da liquidação notificada, já que existindo, como existe, fundamentação do acto em crise […], e não tendo sido, como não foi, pedida a sua notificação ou a passagem de uma certidão (cfr. 22 do CPT), não há vício de falta de fundamentação e o acto de liquidação não é anulável, pois a simples irregularidade, ou falta, de notificação dos fundamentos não gera invalidade do acto, dado que aquela é posterior e exterior a este, e a legalidade da notificação é diferente da ilegalidade do acto notificado»;
– a formalidade legal omitida degradou-se em não essencial «pois o Impugnante não ficou inibido de reclamar graciosamente, nem de impugnar judicialmente a liquidação apesar da omissão da formalidade legal imposta, razão pela qual foi atingido o objectivo visado pela lei, não havendo, por isso, qualquer invalidade a decretar»;
– aliás, a «realizar-se a notificação agora e nesta sede, só traria prejuízos ao Impugnante uma vez que, deixando incólume o próprio acto de liquidação, o obrigaria à dedução de uma nova impugnação com os inconvenientes do protelamento no tempo da definição da sua situação tributária e das delongas e custos processuais, além do que constituiria neste momento o cometimento de um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (cfr. art. 137º do CPC)».
1.4 Inconformado com essa sentença, o Impugnante dela recorreu para este Tribunal Central Administrativo Norte e o recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
1.5 O Recorrente apresentou as alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:
«
1.º Omissão do dever de pronuncia [sic] – A sentença recorrida não se pronuncia sobre a questão essencial suscitada – a falta de notificação da decisão de alteração dos rendimentos declarados por forma a que o contribuinte pudesse, querendo, reclamar no prazo de 30 dias e com efeito suspensivo, para a Comissão de Revisão, nos termos do art.º 68.º do CIRS.
2.º Nos termos do art.º 67.º e sgs do CIRS e sempre que se verifique a alteração dos rendimentos declarados, deve o contribuinte ser notificado da decisão e dos fundamentos de facto e de direito.
3.º A lei não se basta com a notificação da liquidação adicional – exige que se chame ao procedimento o contribuinte para que ele possa de forma consciente aceitar as alterações decididas ou contra elas reagir.
4.º A omissão de notificação da decisão de alteração dos rendimentos constitui um vício de lei por preterição de formalidades essenciais que inquina de nulidade todo o processado posteriormente.
5.º Pronuncia [sic] indevida sobre meios de prova juntos aos autos e dos quais não foi o recorrente notificado não tendo podido pronunciar-se sobre os mesmos.
6.º Oposição entre os fundamentos e a decisão
Em face do que se alega, deverá revogar-se a decisão recorrida com todas as consequências legais».
1.6 A Fazenda Pública não contra alegou.
1.7 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, pronunciando-se nos termos do art. 668.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC), considerou que a sentença não enferma de nulidade alguma.
1.8 Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Norte, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso.
Para tanto, quanto ao mérito da decisão, apesar de concordar com o Recorrente quando este afirma que «deveria ter sido notificado nos termos do disposto no artº 67º do CIRS», adere à fundamentação expendida na sentença e no parecer do Ministério Público em 1.ª instância por considerar, como eles, que «a preterição da referida notificação em nada prejudica os interesses de defesa dos Recorrentes e em nada invalida o acto final de liquidação que definiu a concreta situação tributária dos contribuintes, sendo igualmente certo que sempre poderiam ter usado da faculdade estabelecida pelo artº 22º do C.P.T., o que não fizeram».
Mais considerou que «[f]ace aos documentos invocados na sentença, não se vislumbra qualquer oposição ou contradição entre os mesmos e a decisão proferida» e que «[o]s documentos a que se faz referência na sentença, apresentados pela Fazenda Pública na sua resposta, foram notificados aos Recorrentes – cfr. fls. 53 a 62».
1.9 Foram colhidos os vistos dos Juízes adjuntos.
1.10 No presente recurso, as questões que cumpre apreciar e decidir são as de saber:
1.ª - se se verifica a nulidade processual decorrente da falta de notificação ao Impugnante dos documentos juntos pela Fazenda Pública e em que o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção (cf. conclusão 5.ª);
2.ª - se a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia (cf. 1.ª conclusão);
3.ª - se a sentença recorrida enferma de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão (cf. conclusão 6.ª);
4.ª - se a sentença recorrida padece de erro de julgamento quando considerou que a preterição da formalidade legal (notificação da alteração dos rendimentos declarados) se degradou de essencial em não essencial (cf. conclusões 2.ª a 4.ª).
Deixaremos ainda uma nota sobre os motivos por que entendemos que a primeira questão que deixámos enunciada se situa no âmbito das nulidades processuais, ao invés de, como foi qualificada pelo Recorrente, constituir nulidade da sentença por «pronúncia indevida». * * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
2.1.1 Na sentença recorrida o julgamento de facto foi efectuado nos seguintes termos:
« III. FUNDAMENTAÇÃOFACTOS PROVADOS
Em face dos elementos juntos aos autos, sobretudo com base no teor dos documentos em cada uma das seguintes alíneas, considero assente, com interesse para a decisão da causa que:
A) Em 1995-11-27, foi lavrada informação da Direcção Distrital de Finanças de Aveiro, que justifica a elaboração de DC-2 e correspondente anexo, para o exercício de 1990, para apuramento do IRS em falta, com fundamento “…o sujeito passivo (…) apresentou as declarações de rendimento mod. 1, nos termos da a) do n.º 1 do art. 57º do CIRS, relativamente ao ano de 1990 (…). 2. Com base nos ofícios n.º 728 e 3030 de 95.05.02 e 95.11.07, respectivamente, emanados da Administração Fiscal Alemã, e face a diligências efectuadas na empresa “ABC – INDÚSTRIA DE CALÇADO, Lda.” (…), verificamos que esta auferiu “proveitos” no valor total de Esc. 36.687.050$00 em 1990 e (…), não tendo os mesmos sido contabilizados. Assim, para efeitos de IRC, foram elaborados os competentes DC-22. Além disso, os referidos valores foram depositados directamente na conta n.º , do Banco Alemão “BADEN-WURTEMBERGISCHE BANK AG, DONAUESCHINGEN” da qual são titulares os sócios-gerentes da empresa “ABC – INDÚSTRIA DE CALÇADO, Lda.”. 3. Ora, face ao disposto na al. h) do art. 6º do CIRS, que refere serem tributados em IRS «os lucros das sociedades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta dos lucros», estes rendimentos são considerados provenientes da aplicação de capitais (Cat. E). 3.1 Sabendo que a participação dos sócios gerentes no capital social da “ABC – INDÚSTRIA DE CALÇADO, Lda.” é de 50%, cabe a cada um, os seguintes valores, os quais foram omitidos às declarações de rendimentos par efeitos de IRS. 1990 – Esc. 18.343.525$00… ” (cfr. fls. 58 e 59 dos autos, cujo teor aqui se dá pró integralmente reproduzido);
B) Na mesma data, foi levantado Auto de Notícia, tendo, a Perita de Fiscalização Tributária, verificado em resultado da visita efectuada ao sujeito passivo, ora Impugnante, que o mesmo “…apresentou a declaração mod. 1 nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 57º do CIRS. Contudo, tendo auferido rendimentos de capitais (Cat. E), porquanto recebeu da empresa “ABC – INDÚSTRIA DE CALÇADO, Lda.”, da qual é sócio-gerente, rendimentos nos termos da alínea h) do art. 6º do CIRS, o qual refere que são tributados em IRS «os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta dos lucros», no montante de Esc. 18.343.525$00, em 1990 e Esc. 604.283$00 em 1991, estava obrigado a apresentar declaração do mod. 2 de acordo com a al. b) do referido art. 57º do CIRS, devendo fazer constar os referidos rendimentos da declaração mod. 2, através da apresentação do correspondente anexo E, nos mencionados exercícios, pelo que infringiu o disposto no art. 6º do CIRS o que constitui contra-ordenação prevista e punível pelo art. 34º do RJIFNA…” (cfr. fls. 57 ds autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
C) Na sequência de fiscalização cruzada, foi fixado ao Impugnante, em sede de IRS/1990, o rendimento colectável de Esc. 31.397.885$00 (trinta e um milhões trezentos e noventa e sete mil oitocentos e oitenta e cinco escudos) e a consequente liquidação adicional de IRS/1990, no montante de Esc. 11.431.263.000 (onze milhões quatrocentos e trinta e um mil duzentos e sessenta e três escudos), determinada por recurso a correcções técnicas, em razão da observação directa de um facto omitido e relevante para a tributação (cfr. fls. 7, 9, 11 a 13, 54, 56 a 59 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
D) Em 1996-03-28, foi o Impugnante notificado de que lhe foi fixado o rendimento colectável referente ao IRS/1991, “…tendo por base os fundamentos constantes dos anexos seguintes: fotocópia da informação dos serviços de fiscalização [que se reporta ao IRS/1990, objecto da presente impugnação, bem como ao IRS/1991 igualmente em falta]…” (cfr. fls. 56 a 59 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
E) Em 1996-05-02, o Impugnante deduziu a presente impugnação (cfr. carimbo aposto a fls. 2 dos autos).
FACTOS NÃO PROVADOS: Não se provaram outros factos com interesse para a decisão de mérito, as demais asserções da douta petição constituem meras considerações pessoais e conclusões de facto ou direito».
2.1.2 O julgamento da matéria de facto efectuado em 1.ª instância não merece qualquer censura, nem vem posto em causa.
2.1.3 Sem prejuízo do que vimos de dizer, afigura-se-nos ainda com interesse para a decisão a proferir deixar registadas as seguintes ocorrências processuais (() Por comodidade, vamos continuar a identificação seguida na sentença.):
F) Por despacho de 25 de Setembro de 2001, a Juíza do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Aveiro ordenou «Notifique o Impugnante da contestação e documentos juntos» (cf. despacho a fls. 60).
G) Em cumprimento desse despacho, a Secretaria daquele Tribunal remeteu cópias do mesmo e da documentação nele referida à Mandatária do Impugnante por carta registada em 28 de Setembro de 2001 (cf. cópias da carta e do respectivo talão de registo postal, a fls. 61 e 62).
2.2 DE FACTO E DE DIREITO
2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR
A AT, no âmbito dos seus poderes de fiscalização, procedeu a diversas diligências que a levaram a concluir que Carlos não declarou como rendimento do ano de 1990 o montante de esc. 18.343.525$00, que considerou integrar a alínea h) do art. 6.º do CIRS («Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 19º»).
Consequentemente, procedeu à correcção da matéria tributável declarada, à qual acresceu aquele montante.
Em consequência dessa alteração, a AT procedeu à liquidação adicional de IRS e respectivos juros compensatórios.
Notificado dessa liquidação, o Contribuinte veio impugná-la, pedindo a sua anulação. Alega, em síntese, que não foi notificado da decisão que alterou a matéria tributável declarada e dos respectivos fundamentos, o que o impediu de reclamar desse acto, direito que lhe assistia nos termos dos arts. 67.º, n.º 1, e 68.º, do CIRS, sendo que tal omissão constitui preterição de formalidade essencial, ilegalidade que se repercute no acto de liquidação.
A sentença não atendeu o pedido do Impugnante. Apesar de dar como assente que o Impugnante não foi notificado da alteração da matéria tributável declarada e de considerar que essa notificação se impunha nos termos do art. 64.º do CPT, entendeu a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que a formalidade omitida se degradou de essencial em não essencial. Isto, porque o Contribuinte, pese embora a omissão daquela formalidade, tomou conhecimento da fundamentação de facto e de direito da liquidação, sendo, aliás, que a falta ou irregularidade da notificação deste acto, que está devidamente notificado, não gera a invalidade do acto.
O Impugnante não se conformou com o decidido e recorreu da sentença para este Tribunal Central Administrativo Norte.
Sustenta o Recorrente, se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões:
– que a sentença omitiu pronúncia quanto à questão da falta de notificação da decisão que alterou os rendimentos declarados «por forma a que o contribuinte pudesse, querendo, reclamar» para a Comissão de Revisão (1.ª conclusão);
– que a lei exige que seja notificada ao contribuinte a decisão de alteração dos rendimentos declarados e que, omitida essa notificação e contrariamente ao que decidiu a sentença recorrida, se verifica preterição de formal essencial que inquina todo o processado ulterior (2.ª, 3.ª e 4.ª conclusões);
– que a sentença se pronunciou indevidamente sobre meios de prova juntos aos autos (os documentos de fls. 56 a 59, apresentados com a resposta da Fazenda Pública) sem que os mesmos tivessem sido notificados ao Impugnante, que assim se viu impedido de pronunciar-se sobre os mesmos (5.ª conclusão);
– que a sentença padece de oposição entre os fundamentos e a decisão (6.ª conclusão).
Daí que, como deixámos dito supra, no ponto 1.10, consideramos que as questões que cumpre apreciar e decidir neste recurso são, por esta ordem, as seguintes:
1.ª - se ocorre a nulidade processual por falta de notificação ao Impugnante dos documentos juntos pela Fazenda Pública com resposta e em que o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção quanto a determinados factos que deu como assentes (cf. conclusão 5.ª); apesar de o Recorrente ter qualificado a invocada falta de notificação como «pronúncia indevida» do Tribunal de 1.ª instância, reconduzindo essa omissão a um dos seus efeitos (qual seja o de o Tribunal não poder considerar esses elementos de prova sem que estivesse sobre eles garantido o contraditório), entendemos que a questão não deve colocar-se ao nível da validade formal da sentença, mas antes no campo da verificação da regularidade da tramitação do processo, designadamente do cumprimento do princípio do contraditório;
2.ª - se a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia, por não ter considerada a falta de notificação da alteração da matéria tributável declarada sob a óptica da impossibilidade de o Contribuinte deduzir reclamação desse acto para a Comissão de Revisão (cf. 1.ª conclusão);
3.ª - se a sentença recorrida enferma de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão (cf. conclusão 6.ª);
4.ª - se a sentença recorrida padece de erro de julgamento quando considerou que a preterição da formalidade legal (falta de notificação ao Contribuinte da alteração da matéria tributável) se degradou de essencial em não essencial (cf. conclusões 2.ª a 4.ª).
2.2.2 DA NULIDADE PROCESSUAL POR FALTA DE NOTIFICAÇÃO DA APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTOS QUE FORAM USADOS COMO MEIOS DE PROVA
Sob a veste da nulidade da sentença por excesso de pronúncia, o Recorrente veio insurgir-se contra a circunstância de na sentença terem sido dado como assentes factos com base em documentos cuja junção aos autos nunca lhe foi notificada, o que inviabilizou a possibilidade de ele se pronunciar sobre os mesmos.
É inequívoco que o Impugnante tem o direito de conhecer todos os meios de prova produzidos no processo e de sobre eles se pronunciar, cumprindo ao juiz, de acordo com o disposto no art. 3.º, n.º 3, do CPC, «observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem». O princípio do contraditório é um princípio estruturante de todo o nosso ordenamento adjectivo.
Como deixámos já dito, o invocado atropelo às regras processuais é susceptível de integrar nulidade processual (omissão de uma formalidade prescrita por lei e susceptível de influir no exame ou na decisão da causa – cf. art. 201.º, n.º 1, do CPC), mas não, como sustentou o Recorrente, vício formal da sentença (nulidade) por excesso de pronúncia. Este apenas se verifica quando o juiz, exorbitando os poderes de cognição que a lei lhe confere (cf. art. 660.º, n.º 2, do CPC), conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (cf. art. 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC, e art. 125.º, n.º 1, do CPPT).
No caso, é manifesto que não se verificou qualquer desvio ao formalismo processual prescrito na lei. Contrariamente ao que sustenta o Recorrente, os documentos apresentados pela Fazenda Pública com a resposta foram-lhe notificados, como resulta dos autos, designadamente, de fls. 56 a 62, e foram-no em cumprimento de despacho da Juíza do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Aveiro (onde então corria termos o processo), que expressamente ordenou que o Impugnante fosse notificado daqueles documentos, assim assegurando o respeito pelo princípio do contraditório.
Improcede, pois, a invocada nulidade processual.
2.2.3 DA NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sustenta o Recorrente que a sentença enferma de vício formal porque «não se pronuncia sobre a questão essencial suscitada – a falta de notificação da decisão de alteração dos rendimentos declarados por forma a que o contribuinte pudesse, querendo, reclamar no prazo de 30 dias e com efeito suspensivo, para a Comissão de Revisão, nos termos do art.º 68.º do CIRS».
Salvo o devido respeito, a situação configurada pelo Recorrente não é de omissão de pronúncia, que consiste na violação pelo tribunal do dever de conhecer de todas as questões que lhe sejam suscitadas pelas partes e cuja decisão não esteja prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art. 125.º, n.º 1, do CPPT e arts. 660.º, n.º 2, e 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC).
Questões, como a doutrina e a jurisprudência tem vindo a dizer uniforme e repetidamente, não se confundem com argumentos ou razões. Como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, «Para se estar perante uma questão é necessário que haja a formulação do pedido de decisão relativamente a matéria de facto ou de direito sobre uma concreta situação de facto ou jurídica sobre que existem divergências, formulado com base em alegadas razões de facto ou de direito» (() Código de Procedimento e de Processo Tributário, 4.ª edição, nota 10 ao art. 125.º, págs. 565/566, com numerosa citação de jurisprudência e doutrina.).
A nosso ver, no caso, não se verifica o invocado vício formal da sentença. O Contribuinte invocou que não foi notificado da alteração da matéria tributável declarada e a Juíza do Tribunal a quo pronunciou-se sobre esta questão. É certo que o fez em sentido diverso do pretendido pelo Impugnante, dando-lhe um enquadramento jurídico diferente do sustentado na petição inicial, mas isso não constitui omissão de pronúncia. Poderá, isso sim, é constituir erro de julgamento. Deste conheceremos adiante.
A questão da falta de notificação da alteração da matéria tributável foi decidida, não há omissão de pronúncia relativamente a ela. O que sucedeu foi que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu não concedeu relevância à argumentação aduzida pelo Impugnante, considerando, ao invés, que a formalidade omitida se tinha degradado de essencial em não essencial, motivo por que entendeu não decretar a anulação do acto impugnado com fundamento em preterição de formalidade legal.
Pelo que vimos de dizer, entendemos que se não verifica a invocada omissão de pronúncia.
2.2.4 DA NULIDADE DA SENTENÇA POR OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Sustenta o Recorrente que os fundamentos da sentença estão em oposição com a decisão nela proferida, motivo por que a sentença enferma de nulidade.
Tal nulidade, prevista no art. 125.º, n.º 1, do CPPT (e na alínea c) do art. 668.º, n.º 1, do CPC), apenas ocorre quando os fundamentos invocados na sentença deveriam conduzir, num processo lógico, à solução oposta à que foi adoptada na decisão.
Segundo o Recorrente, tendo a Juíza considerado na sentença que a falta de notificação da alteração da matéria tributável declarada tem como efeito a ineficácia do acto, não podia concluir, como concluiu, que a realização da notificação agora só causaria prejuízo ao Impugnante.
Salvo o devido respeito, também aqui a situação não é de nulidade da sentença, podendo apenas integrar erro de julgamento.
Na tese sustentada na sentença, a omissão de formalidade legal degradou-se de essencial em não essencial porque o conhecimento da fundamentação do acto de alteração da matéria tributável declarada no ano de 1990 adveio ao Contribuinte por outro modo (a notificação efectuada relativamente à alteração da matéria tributável do ano de 1991, que teve por base os mesmos fundamentos), motivo por que, sempre nessa tese, a efectuar-se agora a notificação em causa, tal constituiria acto inútil pois o acto de liquidação ficaria incólume e apenas teria como consequência a possibilidade de o Contribuinte deduzir nova impugnação. Por isso, a sentença decidiu pela improcedência da impugnação judicial.
Salvo o devido respeito, não vislumbramos oposição alguma entre os fundamentos e a decisão. Na tese sustentada na sentença, a impugnação judicial não poderia ter outro destino senão o que lhe foi dado: a improcedência. Assim, a sentença não padece da nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão que o Recorrente lhe assaca.
Questão diferente, mas que se situa já no âmbito da validade substancial da sentença, é a de saber se nesta se decidiu bem ou mal. É dessa questão que nos ocuparemos de seguida.
2.2.5 DO ERRO DE JULGAMENTO
É inequívoco que a lei impunha a notificação ao Contribuinte da alteração da matéria tributável declarada. Tal notificação, como bem considerou a Juíza do Tribunal de 1.ª instância, impunha-se nos termos do disposto no art. 64.º, n.ºs 1 e 2, do CPT, que dispunha: «
1. Os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam notificados.
2. As notificações conterão sempre a decisão, os seus fundamentos e meios de defesa e prazo para reagir contra o acto notificado, bem como a indicação da entidade que o praticou e se o fez no uso de delegação ou de subdelegação de competências.
3. […]».
A notificação da decisão de alteração dos rendimentos declarados e respectivos fundamentos estava também prevista no art. 67.º, n.º 1, do CIRS, como bem invoca o Recorrente.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu dá como assente que o Contribuinte não foi notificado da alteração dos rendimentos declarados e considera que a lei impunha tal notificação. No entanto, com o argumento de que o Contribuinte teve conhecimento da fundamentação desse acto por outra via, qual seja a notificação efectuada relativamente à alteração dos rendimentos declarados do ano de 1991, que teve por base os mesmos fundamentos, considerou que a formalidade omitida se degradou de essencial em não essencial, e que o Contribuinte «não ficou inibido de reclamar graciosamente, nem de impugnar judicialmente a liquidação apesar da omissão da formalidade imposta, razão pela qual foi atingido o objectivo visado pela lei, não havendo, por isso, qualquer invalidade a decretar».
O Impugnante não se conforma com este entendimento e continua a sustentar em sede de recurso, como fizera já na petição inicial, que a formalidade omitida o impediu de reclamar do acto de fixação dos rendimentos sujeitos a tributação ao abrigo do disposto no art. 68.º do CIRS.
Vejamos:
No domínio da vigência do CPT, por regra, apenas o acto final do procedimento administrativo de liquidação (a liquidação do imposto ou liquidação em sentido estrito) era impugnável, podendo, todavia, ter como fundamento qualquer ilegalidade praticada na determinação da matéria tributável, com uma única excepção: o acto de fixação da matéria tributável não ter dado origem à liquidação de imposto, caso em que se permitia ao contribuinte impugnar directamente o acto de fixação da matéria tributável, que, nesse caso, é o acto final do procedimento tributário (princípio da impugnação unitária, que mereceu consagração expressa no referido art. 89.º do CPT).
À luz da lei em vigor à data (arts. 84.º e 136.º do CPT, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 47/95, de 10 de Março), impunha-se ao contribuinte, como condição da impugnação judicial com fundamento em errónea quantificação da matéria tributável (qualquer que fosse o método utilizado e já não, como na primitiva redacção daqueles artigos, apenas quando a quantificação fosse feita por métodos indiciários), a prévia reclamação da decisão que fixe a matéria tributável.
Ou seja, no caso de fixação da matéria tributável pela AT a que se tivesse seguido liquidação de imposto, o contribuinte, caso pretendesse discutir a quantificação da matéria tributável, só o podia fazer na impugnação e desde que previamente tivesse reclamado da decisão administrativa para a comissão de revisão (cfr. arts. 84.º, n.º 3, 136.º, n.º 1, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 47/95, de 10 de Março).
O Contribuinte podia também, nos termos do art. 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 154/91 (diploma que aprovou o CPT), optar pelo regime de revisão da matéria tributável previsto no CIRS. E de acordo com o disposto no n.º 3 (() O n.º 3 foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 47/95, de 10 de Março, e corresponde ao anterior n.º 2.) desse preceito, «Para efeitos da impugnação regulada no art. 136.º será sempre obrigatória a prévia reclamação da matéria tributável fixada».
Assim, como bem sustenta o Recorrente, podia também reclamar nos termos do art. 68.º do CIRS, cujo n.º 1 dispunha: «Da decisão que altere ou fixe o rendimento colectável poderão os sujeitos passivos reclamar, no prazo de 30 dias a contar da data da notificação da decisão, para a comissão distrital de revisão […]».
A falta de notificação da decisão que corrigiu a matéria tributável declarada pelo Contribuinte impediu-o, pois, de reclamar e, porque essa reclamação é condição sine qua non da abertura da via judicial de impugnação, impediu-o também de impugnar contenciosamente com fundamento em errónea quantificação da matéria tributável. Salvo o devido respeito, é assim manifesto que a formalidade legal omitida impediu a realização do objecto que o legislador pretende alcançar com a mesma, motivo por que não pode considerar-se, como considerou a sentença recorrida, que a formalidade se tenha degradado de essencial em não essencial.
Sempre salvo o devido respeito, a sentença recorrida tratou a questão sob a perspectiva da falta de comunicação dos fundamentos da alteração da matéria tributável, quando o que estava em causa era a impossibilidade de reclamar desta alteração e suas consequências, perspectiva que, embora a sentença tenha mencionado ser aquela que o Impugnante sustentou, foi olvidada no tratamento jurídico dado aos factos.
Pelo que ficou dito, sem necessidade de mais considerandos, entendemos que a sentença não pode manter-se, motivo por que, a final, a revogaremos e julgaremos a impugnação judicial procedente.
Na verdade, a referida omissão de formalidade legal, pese embora reportada à fixação da matéria tributável, repercute-se no acto final do procedimento (a liquidação em sentido estrito), determinando a sua anulação.
2.2.6 CONCLUSÕES
Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - No domínio do CPT, por regra, apenas o acto final do procedimento administrativo de liquidação (a liquidação do imposto ou liquidação em sentido estrito) era impugnável, podendo, todavia, ter como fundamento qualquer ilegalidade praticada na determinação da matéria tributável (princípio da impugnação unitária, que mereceu consagração expressa no referido art. 89.º do CPT), com uma única excepção: o acto de fixação da matéria tributável não ter dado origem à liquidação de imposto, caso em que se permitia ao contribuinte impugnar directamente o acto de fixação da matéria tributável, que, nesse caso, é o acto final do procedimento tributário.
II - À luz da lei em vigor à data (art. 84.º do CPT, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 47/95, de 10 de Março), impunha-se ao contribuinte, como condição da impugnação judicial com fundamento em errónea quantificação da matéria tributável, (qualquer que fosse o método utilizado e já não, como na primitiva redacção daquele artigo, apenas quando a quantificação fosse feita por métodos indiciários), a prévia reclamação da decisão que fixe a matéria tributável.
III - Demonstrado que está que a AT omitiu a notificação da decisão que fixou a matéria tributável, verifica-se preterição de formalidade essencial, pois o Contribuinte, em consequência dessa omissão, ficou impedido de reclamar da quantificação da matéria tributável para a comissão de revisão, bem como ficou também impossibilitado, atento o referido em I, de impugnar a consequente liquidação adicional com fundamento em errónea quantificação da matéria tributável.
IV - A sentença que, apesar de dar como assente a falta de notificação e de considerar que esta era imposta por lei, considerou que a preterição dessa formalidade legal se tinha degrado de essencial em não essencial por o contribuinte ter tomado conhecimento da fundamentação do acto de fixação da matéria tributável por outro meio, pelo que não ficou cerceado o seu direito de impugnar judicialmente ou reclamar graciosamente da liquidação, enferma de erro de julgamento, motivo por que deve ser revogada, como pedido pelo Impugnante em sede de recurso jurisdicional.
* * * 3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte acordam, em conferência, conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação judicial procedente.
Sem custas. * Porto, 18 de Janeiro de 2007
Francisco Rothes
Dulce Neto
Fonseca Carvalho |