Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00452/19.5BEMDL
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/22/2024
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Paula Moura Teixeira
Descritores:IVA; CORREÇÕES ARITMÉTICAS;
VICIO PROCEDIMENTAL NA RECLAMAÇÃO GRACIOSA;
EFEITOS INVALIDANTES SOBRE A LEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO IMPUGNADA ;
Sumário:
I - A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objeto imediato a decisão da reclamação e por objeto mediato os vícios imputados ao ato de liquidação.

II - Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao ato tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao ato tributário.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
A Recorrente, AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, melhor identificada nos autos, interpôs recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por [SCom01...] LDA, contra a decisão que indeferiu o pedido formulado no processo de reclamação graciosa n.º ........................510, dirigido contra as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios por referência ao ano de 2014, no valor de 12.553,82€

A Recorrente não se conformou com a decisão tendo interposto o presente recurso formulou nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem:

1ª – A decisão recorrida, limitando-se, como se limita à apreciação da ausência de audição da testemunha arrolada, julgando por isso verificado um vicio procedimental, não pode projetar os efeitos invalidantes sobre a legalidade da liquidação impugnada.

2º - A Administração tributária não está obrigada a aceitar todas as diligências requeridas pelo contribuinte, desde logo aquelas que, como no caso dos autos – inquirição de testemunha – não são idóneas para contrariar a prova documental.

3º Entende por fim a Fazenda Pública, de que o Tribunal a quo ao decidir pela anulação da decisão da reclamação graciosa, julgando a impugnação procedente e considerando prejudicado o conhecimento dos vícios da liquidação impugnada incorreu em erro de julgamento.

Nestes termos, e nos mais que serão por Vossas Excelências doutamente supridos, deve o presente recurso ser julgado procedente, com as legais consequências nomeadamente a anulação da sentença e a consequente decisão sobre o objeto da causa declarando a legalidade da liquidação impugnada, assim se fazendo Justiça .(…)”


1.2. A Recorrida apresentou contra-alegações tendo formulado as seguintes conclusões:
I - A sentença recorrida não padece de vício de omissão de pronúncia.

II - A Impugnante, aqui Recorrida, invocou na petição inicial: erro na qualificação e na quantificação, vício de fundamentação e vícios próprios da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

III - No que concerne ao erro na qualificação e na quantificação, vício próprio do ato de liquidação, decidiu a sentença recorrida o seguinte:
"para além da Impugnante ser uma sociedade por quotas cuja atividade principal consiste na construção de outras obras de engenharia civil, a fatura em questão no caso nos autos está datada (9/12/2014); está numerada sequencialmente (1400/00011); contém os bens transmitidos nas quantidades que nela se descriminam (rodapé, baguete, aro, portas, aglomerado carvalho, madeira mogno e madeira afizélia); O preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável (designadamente o valor de 56.973,60 e "IVA-autoliquidação").
A al. a), do n.º 1, do art. 20, dá direito à dedução do IVA suportado a montante que se concretize na aquisição de bens e serviços que se destinem à realização de operações tributáveis. Não é o pagamento efetuado pelo alienante que lhe confere qualquer direito à dedução, mas o facto de se ter suportado efetivamente o valor correspondente a esse imposto junto daquele que lhe podia conferir tal direito.
Assim, "o direito à dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito a dedução." — Neste sentido, cfr. acórdão do STA de 3/7/2013, Proc. 01148/11 e acórdãos do TJUE nele citados.
Procede a impugnação com fundamento nesta causa de pedir." (destacado nosso)

IV - Com base no erro de quantificação e qualificação o Tribunal «a quo» concluiu ab inicio pela procedência da ação.

V - A sentença recorrida conheceu de todas as questões suscitadas pela aqui Recorrida na sua petição inicial, pelo que não incorreu em omissão de pronúncia.

VI - Por força do artigo 58.º da LGT, a AT está obrigada a realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.

VII - O órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento "todos os meios de prova admitidos em direito" e "no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar atas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspeções oculares", independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte, abrangendo, portanto, a prova testemunhal.

VIII - Não tem suporte legal o entendimento adotado pela Recorrente adotado de que a prova testemunhal arrolada pela Impugnante, aqui Recorrida, não seria apta a abalar a "prova objetiva, consistente e convincente que no âmbito do processo inspetivo foi carreada para os autos".

IX - A prova testemunhal requerida pela Recorrida em sede de reclamação graciosa era admissível e indispensável para a descoberta da verdade, pelo que, entende a Recorrida que andou bem o Tribunal «a quo» quando concluiu pela existência de um vício procedimental que acarreta a invalidade da decisão da reclamação graciosa.

X - A AT no relatório de inspeção fundamentou o seu entendimento de que o IVA no valor de €13.103,93 não seria dedutível, unicamente alicerçada no facto de, alegadamente, a morada que consta na fatura como local de descarga, corresponder a um lote de terreno sem construção sendo que, o Tribunal «a quo» deu como provado que "a morada do local de descarga corresponde a um lote de terreno onde existe uma construção" (ponto 4 dos factos provados), pelo que falece o único argumento no qual a AT alicerçou a sua correção, pelo andou bem o tribunal «a quo» quando decidiu pela anulação da liquidação impugnada.

XI - Com efeito, não padece a douta sentença recorrida do alegado de erro de julgamento em matéria de direito.

Nestes termos, não deve ser dado provimento ao recurso apresentado pela Fazenda Pública, assim se fazendo JUSTIÇA!

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal emitiu parecer no sentido de: “1º - O recurso interposto pela recorrente AT totalmente procedente, entendendo que, em sede de reclamação graciosa, a preterição da audição da testemunha arrolada foi legal, justa e adequada ao caso concreto (cf. artigo 69º, al. e) do CPPT), devendo ainda serem apreciados os demais vícios apontados na impugnação; 2º - Tendo em conta o ponto anterior, devem os autos baixar à 1ª instância para apreciação e decisão judicial sobre os demais vícios invocados pela impugnante; e
2º - Tendo em conta o ponto anterior, devem os autos baixar à 1ª instância para apreciação e decisão judicial sobre os demais vícios invocados pela impugnante; e
3º - Com custas processuais a cargo da recorrida, incluindo taxa de justiça por ter proferido contra-alegações. (cf. artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” artigo 2º, alínea e), do CPPT, e artigos 6º, nº 2 e 7º, nº 2, do Regulamento de Custas Processuais e Tabela I – B anexa).”

Atendendo a que o processo se encontra disponível em suporte informático, no SITAF, dispensa-se os vistos do Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, com o seu consentimento, submetendo-se à Conferência para julgamento.

2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sendo a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito ao julgar procedente a impugnação judicial e consequentemente ao anular a liquidação impugnada, com fundamento em vício procedimental, concretamente por falta de audição da testemunha indicada em sede de Reclamação Graciosa, bem como se errou ao não conhecer os demais vícios assacados às liquidações impugnadas.

3. JULGAMENTO DE FACTO
Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:
“(…)
1. A Impugnante é uma sociedade por quotas cuja actividade principal consiste na construção de outras obras de engenharia civil, ..., tendo ainda como actividade secundária a compra e venda de bens imobiliários, cuja data de incio de activiodade se reporta a 1/1/2005 – Cfr. fls. 5 do Relatório de Inspecção Tributária (RIT);
2. A contabilidade da Impugnante foi objecto de inspecção tributária que incidiu no exercício de 2014, cujo Relatório de Inspecção Tributária aqui se dá por reproduzido, com o seguinte destaque:
“(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)”
3. No âmbito do procedimento inspetivo, foi detetada a existência de uma factura registada em compras, no valor de 56,973,60€, datada de 09/12/2014, ao fornecedor [SCom02...], Lda. sem liquidação de IVA, por aplicação da regra de inversão do sujeito passivo, cujo motivo invocado pela impugnante para a não liquidação, foi “ IVA- Autoliquidação” – Cfr. doc 8 da PI, que aqui se reproduz, com o seguinte destaque:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
4. A morada do local de descarga corresponde a um lote de terreno onde existe uma construção – docs 2 e 3 juntos aquando o exercício, por escrito, da audiência prévia quanto ao projecto de decisão da reclamação graciosa da PI; e doc 10 da PI;
5. Por despacho de 7/11/2018 a AT sancionou o RIT no qual se justificam, entre outras, as correcções efectuadas em sede de IVA relativamente a 2014 – Doc 2 da PI;
6. Nessa sequência a Impugnante foi notificada da demonstração de liquidação de IVA e para pagar o montante de IRC referente a 2014 e para pagar o montante de 12.553,82€ - docs 4 a 7 da PI;
7. Em 29/4/2019 apresenta reclamação graciosa - Cfr. fls. 5 e ss do PA;
8. Por oficio de 24/6/2019 a Impugnante é notificada para audiência prévia quanto ao projecto de manutenção da decisão de liquidação – Fls. 42 (ou 38) do PA;
9. Na audiência prévia a aqui Impugnante arrola uma testemunha para ser inquirida – Fls. 42 e 43 (também numerada como fls. 46 e 47) do PA;
10. A reclamação graciosa foi indeferida – Fls. 48 (ou 53) do PA;
11. No que respeita ao depoimento da testemunha, a AT teve a seguinte posição: “ (...) Relativamente à indicação de prova testemunhal (...) nos termos do disposto no art.º 69.º, alínea e) do CPPT ”são regras fundamentais do procedimento de reclamação graciosa a limitação dos meios probatórios à forma documental...” pelo que sou de entendimento que em face da concreta questão aqui em análise, que se prende com a falta de documento comprovativos da necessidade dos bens adquiridos, local onde foram adquiridos, local onde foram aplicados, como foram transportados da morada de descarga para a morada do destino final e a quem foram facturados,// Temos assim que os meios de prova (...) não se compagina com a prova testemunhal requerida (...) “ – Fls. 45/v ( também numerada como fls. 49/V).

Não se provou:

a) Que o local da descarga dos materiais referidos na factura supra descriminada tivessem sido descarregados na obra da sociedade “[SCom03...], Lda”, no Porto, sita na Avenida ..., ... Porto – A declaração da “[SCom03...]” emitida em 22/10/2019, relativamente a um facto que teria ocorrido em 9/12/2014 não nos merece credibilidade, tanto mais que o RIT data de 2/11/2018 e a presente impugnação deu entrada em 23/10/2019 – cfr. última fl. do RIT e fls. 2 dos autos;. (…)”

4. JULGAMENTO DE DIREITO
4.1. No presente recurso está em causa, a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou procedente a Impugnação Judicial deduzida pela Impugnante contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativamente ao exercício de 2014, emitida na sequência de ação inspetiva realizada à contabilidade do sujeito passivo, no âmbito qual não foi aceite a dedução do IVA relevada na contabilidade da Recorrida, tendo procedido a correções meramente aritméticas à matéria tributável.
Na sentença recorrida concedeu-se provimento à impugnação judicial, no que concerne ao erro na qualificação e na quantificação do IVA, considerou-se que: “Por sua vez, a sentença recorrida no que concerne ao erro de quantificação do IVA, refere: (…)
As faturas são emitidas com inversão do sujeito passivo quando é o adquirente dos bens ou serviços a (auto)liquidar o IVA – cfr. alínea j) do nº 1 do artigo 2º do CIVA. Esta inversão do sujeito passivo de IVA ocorre na construção civil e aplica-se sempre que se esteja na presença de uma aquisição de serviços na construção civil e o adquirente seja sujeito passivo de IVA em Portugal, realizando operações que confiram o direito total ou parcial à dedução deste imposto. A AT releva para efeitos de dedução do IVA “independentemente da “morada certa ou incerta”, do local de descarga, em que obra foi aplicada e consequentemente faturada, a aquisição daqueles bens, e demonstrar a necessidade dos mesmos para os fins que a sociedade prossegue, facto que, no nosso humilde entendimento, não logrou fazer.” – art.º 10.º da contestação e fls. 22 do RIT.
(…)
Ora, para além da Impugnante ser uma sociedade por quotas cuja actividade principal consiste na construção de outras obras de engenharia civil, a factura em questão no caso nos autos está datada (9/12/2014); está numerada sequencialmente (1400/00011); contém os bens transmitidos nas quantidades que nela se descriminam (rodapé, baguete, aro, portas, aglomerado carvalho, madeira mogno e madeira afizélia); O preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável (designadamente o valor de 56.973,60 e “IVA- autoliquidação” )
A al. a), do nº.1, do art. 20, dá direito à dedução do IVA suportado a montante que se concretize na aquisição de bens e serviços que se destinem à realização de operações tributáveis. Não é o pagamento efectuado pelo alienante que lhe confere qualquer direito à dedução, mas o facto de se ter suportado efectivamente o valor correspondente a esse imposto junto daquele que lhe podia conferir tal direito. Assim, “o direito à dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efectuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito a dedução.” – Neste sentido, cfr. acórdão do STA de 3/7/2013, Proc. 01148/11 e acórdãos do TJUE nele citados.
Procede a impugnação com fundamento nesta causa de pedir..(…)”
No que concerne ao vício de violação do princípio da audiência prévia, o Mmo. Juiz a quo alinhou o seguinte discurso argumentativo: “(…)
AT indeferiu a inquirição da testemunha nos termos do disposto no art.º 69.º, alínea e) do CPPT que, segundo a sua posição, limita os meios probatórios à forma documental. Ora, com todo o respeito, discordamos.
(…)
Embora na alínea e) deste art. 69.°- se fale em «direito de o órgão instrutor ordenar diligências», a realização de todas as diligências necessárias para a descoberta da verdade constitui um verdadeiro dever, como resulta inequivocamente daquele art. 58.° da LGT, em que se estabelece que «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» . Por isso, a omissão da realização das diligências que forem indispensáveis para a descoberta da verdade, constituirá vício procedimental que, repercutindo-se no acto de decisão da reclamação graciosa, acarreta a sua anulabilidade”
Assim, a violação do direito de audição, porque a AT não ouviu a testemunha arrolada, leva à invalidade do RIT e subsequente liquidação do imposto impugnado. - art.º 163º do CPA.(…)”
A Recorrente, Autoridade Tributária, insurge-se contra o assim decidido alegando que a decisão recorrida, limita-se à apreciação da ausência de audição da testemunha arrolada, julgando por isso verificado um vicio procedimental, não podendo projetar os efeitos invalidantes sobre a legalidade da liquidação impugnada.
E que a Administração Tributária não está obrigada a aceitar todas as diligências requeridas pelo contribuinte, desde logo aquelas que, como no caso dos autos – inquirição de testemunha – não são idóneas para contrariar a prova documental.
As questões suscitadas nestes autos foram já objeto de recente acórdão deste TCAN, proferido no processo n.º 453/19.3BEMDL de 8.02, ainda inédito, onde as partes, as questões a apreciar, e as sentenças são idênticas, com a diferença dos impostos a tratar (sendo neste o IRC e nos presente autos o IVA.)
Por semelhança ao caso sub judice e por economia de meios, visando a interpretação e aplicação uniforme do direito (cfr. artigo 8.º n.º 3 do Código Civil), acolhemos a argumentação jurídica aduzida no acórdão desta Secção, proferido no citado acórdão, o qual foi relatado, pela, o 2.ª Adjunta, deste processo.
Não ocorrendo justificação para dessa jurisprudência nos afastarmos, passaremos a transcrever, a fundamentação de tal aresto, aderindo a todo o seu discurso fundamentador com as adaptações indispensáveis à situação jurídica em análise.
“(…) De acordo com as conclusões das alegações de recurso a primeira questão que cumpre dilucidar é se errou o Tribunal a quo, no seu julgamento, ao anular a liquidação impugnada com fundamento em vício procedimental da Reclamação Graciosa.
Como bem refere a Recorrente, o processo de Impugnação Judicial instaurado na sequência e por causa de indeferimento expresso de uma Reclamação Graciosa tem por objecto imediato esse mesmo indeferimento e por objecto mediato o acto de liquidação cuja anulação é visada a final.
Sobre esta questão, já se pronunciou reiterada e uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente no acórdão de 16.06.2004, lavrado in Processo nº 01877/03, que por adesão à sua proficiente fundamentação, parcialmente se transcreve: “Ora, a impugnante invocou, na impugnação judicial seguinte à reclamação, vícios ou ilegalidades tanto do acto tributário de liquidação como do próprio procedimento da reclamação graciosa. Sendo que a sentença, como se referiu, anulou aquele por vício deste: preterição do direito de audição.
Pelo que há que definir o objecto da impugnação judicial do indeferimento da reclamação: se a própria liquidação, se a decisão de indeferimento da reclamação, se ambas.
Segundo dispõe o artº. 68°, n.º 1 do CPPT, a reclamação "visa a anulação total ou parcial dos actos tributários" e – artº. 70°, nº 1 -"pode ser deduzida com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial".
A interligação entre os dois processos é tal que o n. º2 daquele primeiro normativo proíbe a reclamação " quando tiver sido apresentada impugnação judicial com o mesmo fundamento". O que está em sintonia com o disposto no art. 111°, n.ºs 3 e 4, donde "resulta uma preferência absoluta do processo judicial sobre o processo administrativo de impugnação de um mesmo acto tributário, impedindo-se que seja apreciada, por via administrativa, a legalidade de um acto tributário que seja objecto de impugnação judicial” - cfr. CPPT, cit., pág. 342, nota 11.
Assim, do indeferimento da reclamação, sem dúvida que emerge a manutenção do acto tributário de liquidação. Todavia, também a própria decisão de indeferimento está em causa, pois dela cabe impugnação judicial, nos termos expostos.
Propendemos, até, ao entendimento de que esta constitui o seu objecto imediato e a liquidação o seu objecto mediato - cfr. o Ac. deste STA, de 07/06/2000 rec. 21.556.
Todavia, tal diferenciação não tem relevo uma vez que, assim sendo, os dois integram o conhecimento do tribunal: o acórdão do STA de 06/11/1996, rec. 20.519, seguido pelo aresto daquela mesma data proferido no recurso 24.803, considera objecto imediato da impugnação o acto de liquidação, mas logo acrescenta que aí se conhece tanto dos aspectos atinentes aos vícios próprios do indeferimento da reclamação como das ilegalidades imputadas ao acto tributário que aquele considerou não existirem.
Como ali se refere, ainda que a decisão da reclamação não constitua um acto tributário "stricto sensu", "não estava o legislador impedido de o fazer equivaler a um acto tributário para efeitos de escolha do respectivo processo judicial, desde que esse meio processual se revelasse como sendo o mais funcionalmente adequado à defesa do direito em causa".”(Em sentido idêntico v. também o recente acórdão deste Supremo Tribunal e Secção, de 12.10.2011, proferido no Processo nº 0463/11)
Daqui resulta então que, deduzida impugnação judicial do indeferimento de uma reclamação graciosa, das duas uma: a) ou o tribunal confirma o indeferimento, mantendo se o acto tributário impugnado; b) ou o tribunal anula esse indeferimento, nomeadamente por vício procedimental; neste caso, o tribunal tem de apreciar os vícios imputados ao acto de liquidação, uma vez que a impugnação tem por objecto, tanto a decisão da reclamação, como os vícios do próprio acto de liquidação. E não colhe aqui o argumento no sentido de que com a anulação da decisão da reclamação graciosa fica prejudicado o julgamento da liquidação impugnada e ainda que o julgamento desta, antes da decisão da reclamação graciosa, constituiria a prática de um acto inútil que é proibido por lei. Esta conclusão estaria correcta se a impugnação do indeferimento fosse autónoma da do acto de liquidação. Então, anulado o indeferimento, a Administração Tributária poderia/deveria praticar novo acto que poderia manter ou alterar o acto de liquidação. No presente caso, o legislador entendeu que a impugnação deveria abranger, quer a reclamação, quer o acto de liquidação, pelo que a Administração Tributária não tem de praticar novo acto, já que o tribunal está obrigado a conhecer dos vícios imputados ao acto de liquidação na impugnação do indeferimento da reclamação. E bem se compreende esta opção do legislador pois que, numa situação como a dos autos, a Administração Tributária poderia indeferir novamente a reclamação, após sanação do vício formal, obrigando novamente o contribuinte a impugnar o acto de liquidação com os fundamentos anteriormente invocados. Assim, melhor é que o tribunal conheça logo dos vícios imputados ao acto tributário na impugnação do indeferimento da reclamação. (…)» (vide, entre outros os acórdãos do STA de 12.10.2011, lavrado in Proc. 0463/11, de 18-06-2014, lavrado in proc. 01942/13, de 12/10/2016, lavrado in proc. 0427/16: de 30.10.2019, lavrado in proc. 02453/05.1BEPRT 0402/18).
Importa, pois, conhecer da verificação do fundamento no qual se alicerçou a sentença a quo para determinar a anulação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa e consequente anulação da liquidação posta em crise que, como salientado supra, se reconduziu à violação do direito de audição por falta de inquirição da testemunha indicada pela Reclamante.
Como é sabido, o exercício do direito de audição prévia constitui uma relevante manifestação do princípio do contraditório e uma sólida garantia de defesa dos direitos do administrado/contribuinte, sendo doutrinal e jurisprudencialmente reconhecido como um princípio estruturante da actividade administrativa, cujo desrespeito se traduz na violação de uma formalidade essencial que, em princípio, é determinante da ilegalidade do próprio acto (entre outros, acórdão do STA de 23/1/2008, lavrado in processo nº 837/07).
No exercício do direito de audição, o contribuinte pode, pois, aduzir argumentos novos e alegar nova factualidade que contribuam para a formação da decisão, passíveis de conduzir à reapreciação da matéria em questão e até à alteração do sentido da decisão.
Assim, se o contribuinte, no exercício do direito de audição, suscitar elementos novos (de facto ou de direito), estes serão tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão (artigo 60º, nº 7 da LGT), sob pena de a falta de apreciação dos mesmos constituir vício de forma, por deficiente fundamentação, susceptível de implicar a anulação da decisão. Todavia, o direito de audição no procedimento tributário não se esgota com a possibilidade de o contribuinte se pronunciar sobre todas as questões que são objecto do procedimento antes da decisão final, inclui, igualmente, a faculdade de requerer a realização de diligências e proceder à junção de documentos (neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, in CPPT, anotado e comentado, 2011, 6ª edição, Volume I, p. 440).
Logo, se o contribuinte requerer a realização de diligências, a Administração Tributária tem o dever de as realizar, desde que elas se revelem adequadas e úteis ao apuramento de factos cujo conhecimento seja necessário para a decisão a proferir.
Assim, a violação do direito de audição, na vertente ora apreciada, concretamente o direito de o contribuinte requerer a audição de testemunha, só ocorrerá se for omitida a realização da diligência que se revele imprescindível à averiguação de factos cujo conhecimento seja necessário para a justa e rápida decisão do procedimento - cf. Jorge Lopes de Sousa, ob. cit, p. 441..
Volvendo in casu, a Recorrida questionou a falta de realização da diligência por si requerida em sede de audição prévia no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa, a saber, a inquirição de uma testemunha que indicara (sua contabilista). Assaca, assim, à decisão impugnada um vício procedimental que inquinou inelutavelmente o acto de liquidação de ilegalidade, que impunha a respectiva anulação, tese que o Tribunal a quo, erroneamente (como ao deante melhor se explicitará), sufragou.
Vejamos, pois, da bondade do decidido.
Em sede de Reclamação Graciosa, o artigo 69º, al. e) do CPPT estabelece uma clara limitação dos meios probatórios à forma documental e aos elementos oficiais que os serviços disponham.
Ainda que a legislação tributária consagre, no âmbito do procedimento tributário, o princípio da plenitude probatória, permitindo que o órgão instrutor possa utilizar “todos os meios de prova admitidos em direito” (artigo 72.º da LGT), certo é que, em procedimentos de segundo grau, como é o caso da reclamação graciosa, subsiste a regra da limitação dos meios probatórios à “forma documental e aos elementos oficiais de que os serviços disponham”, sem prejuízo da realização de outras diligências complementares que se mostrem indispensáveis à descoberta da verdade material - artigo 72.º do CPPT (cfr. Joaquim Freitas da Rocha, in Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª edição, Coimbra, págs. 98-99; Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, ob. cit., págs. 520-530).
Acresce que, como esclarecidamente escreve JOAQUIM FREITAS DA ROCHA in LIÇÕES DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO, 8ª edição, Coimbra, a propósito do art. 58º da LGT (...) Note-se que o conceito de ” dever” da administração Tributária deve ser interpretado em termos hábeis, sendo importante, nomeadamente ter atenção que não poderá significar a obrigatoriedade de realizar todas as diligências que sejam requeridas ou mais tarde reclamadas, nem a admissibilidade absoluta e inquestionável de todos os meios probatórios, mas apenas a vinculação da Administração a realizar as diligências tendentes a alcançar o apuramento da realidade e da verdade dos factos, admitindo e valorando as provas com as quais os interessados podiam razoavelmente confiar como provas atendíveis, para em seguida decidir sobre essa base.(…)”
Volvendo à situação decidenda, a AT não admitiu a produção de prova testemunhal indicada no procedimento de Reclamação Graciosa, alicerçada em três fundamentos, por um lado na limitação dos meios probatórios nesse tipo de procedimento à prova documental, na desnecessidade e na inidoneidade da prova testemunhal para a análise da factualidade apurada em sede inspectiva. Concretamente, a Administração Tributária justificou a não inquirição da testemunha indicada pela Reclamante por um lado na restrição da natureza da prova que constitui, nos termos do artigo 69.º, alínea e), do CPPT, uma das regras fundamentais do procedimento de Reclamação Graciosa e, subsidiariamente, na própria inutilidade da prova a produzir, tendo em consideração a factualidade subjacente ao objeto do procedimento tributário.
Lida a decisão de indeferimento em apreço, a AT ali plasmou o entendimento de que a diligência requerida não era pertinente, em face dos elementos probatórios já existentes no processo e não ser esse depoimento indispensável à descoberta da verdade material, tanto mais que a testemunha indicada é contabilista e o sujeito passivo pretendia com o respectivo depoimento fazer prova das saídas de dinheiro não documentadas na contabilidade da empresa e que os Serviços Inspectivos tinham detectado na análise feita aos extratos bancários, relativos à conta titulada pela Recorrida e sedeada no Banco 1..., sendo que, como ali se escreve, “no caso concreto temos que o tema de prova (factos obrigatoriamente titulados por documentos por exigência legal e bem assim os lançamentos contabilísticos correspondentes a esses factos) não se compagina com a produção da prova testemunhal requerida, Da mesma forma que não existe “contabilidade oral”, a prova dos factos que devam ser contabilisticamente relevados não pode, naturalmente, ser feita por testemunhas. (…)”.
Ora, perante os elementos coligidos pelos Serviços Inspectivos (Despesas não documentadas, despesas de representação e distribuição de lucros, saídas de caixa) [in casu dedução de IVA] a mesma decidiu em conformidade com o carácter inócuo da prova testemunhal, para a demonstração da factualidade alegada pela Reclamante dirigida a contrariar as conclusões alcançadas pela AT em sede inspectiva.
Como bem realçou o Ministério Público no seu parecer, entendimento que acompanhamos, a recusa da audição da testemunha em sede de Reclamação Graciosa foi devida e acertadamente justificada pela AT, não sendo, por essa razão merecedora de qualquer de qualquer censura.
Não podemos, contudo, deixar de expressa a perplexidade perante o decidido pelo Tribunal recorrido, no que tange à sufragada tese da indispensabilidade da audição da testemunha indicada pela Reclamante, porquanto revisitado o articulado inicial da Reclamação Graciosa e procedendo à sua análise por confronto com petição inicial da Impugnação Judicial, constatamos que a aqui Recorrente repete ”ipsis verbis” nesta última peça processual os fundamentos nos quais sustenta a ilegalidade da liquidação posta em crise (obviamente, com excepção do vício procedimental apreciado supra) e indica uma testemunha (a mesma contabilista),.
Sendo que, por despacho lavrado a fls.50 do processo físico (pág. 190 do SITAF) o [ in casu por despacho de 24.03.2021, pag. 177 do SITAF] Mmo. Juiz a quo indeferiu a inquirição das testemunhas indicadas pela Impugnante (entre elas, a contabilista do sujeito passivo), nos seguintes termos: “O processo já contém todos os elementos necessários à decisão porque a prova dos factos indicados está, ou tem de estar, documentalmente fixada, ou constitui matéria de direito, ou ela não pode ser feita pela narração de percepções sobre factos passados que interessam ao julgamento da causa – que é o que define uma pessoa como testemunha(…)”. Ora, foi precisamente esta apontada inocuidade da produção de prova testemunhal para a decisão a proferir em sede de Reclamação Graciosa que justificou que a AT não tivesse procedido à audição da testemunha indicada pela Reclamante.
Mas, ainda que assim não fosse, nunca a procedência do vício procedimental assacado à Reclamação Graciosa em análise teria a virtualidade de inquinar o acto tributário sob escrutínio, porquanto a apontada (mas não verificada) preterição da formalidade em apreço não assume a eficácia invalidante que a sentença lhe atribui.
Assim, na procedência das conclusões de recurso apreciadas, não pode a sentença a quo manter-se na ordem jurídica. (…)” fim de citação.
No presente processo e como resulta dos quatros parágrafos que antecedem o segmento decisório, consta da sentença recorrida : “Embora na alínea e) deste art. 69.°- se fale em «direito de o órgão instrutor ordenar diligências», a realização de todas as diligências necessárias para a descoberta da verdade constitui um verdadeiro dever, como resulta inequivocamente daquele art. 58.° da LGT, em que se estabelece que «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» .
Por isso, a omissão da realização das diligências que forem indispensáveis para a descoberta da verdade, constituirá vício procedimental que, repercutindo-se no acto de decisão da reclamação graciosa, acarreta a sua anulabilidade”
Assim, a violação do direito de audição, porque a AT não ouviu a testemunha arrolada, leva à invalidade do RIT e subsequente liquidação do imposto impugnado. - art.º 163º do CPA.
Procede a impugnação fundada nesta causa de pedir.(…)”~
Como consta da supra transcrição a sentença recorrida no que concerne ao erro de qualificação e quantificação do IVA, considerou procedente a impugnação da liquidação do IVA em questão.
Como decorre das alegações de recurso a Recorrente, não questiona esse segmento da decisão que bem ou mal, aqui não está em questão, considerando-o procedente. E não vindo este segmento impugnado e tal como se refere na fundamentação do acórdão n.º 453/19.3BEMDL, que vimos acompanhar, “ Certo é que este segmento da sentença recorrida não foi objecto do recurso interposto pela Fazenda Publica, tendo, consequentemente, transitado em julgado, consolidando-se, assim, na ordem jurídica.”
Nesta conformidade transpondo parcialmente a fundamentação do acórdão desta TCAN, supra identificado, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento pois a procedência do vício procedimental assacado à Reclamação Graciosa em análise não tem a virtualidade de inquinar o ato tributário sob escrutínio, porquanto a apontada (mas não verificada) preterição da formalidade em apreço não assume a eficácia invalidante que a sentença lhe atribui.
Assim, na procedência das conclusões de recurso apreciadas, não pode a sentença a quo manter-se na ordem jurídica, no segmento impugnado.
Por fim, uma última nota, na 3.ª conclusão a Recorrente alega que o Tribunal a quo ao decidir pela anulação da decisão da reclamação graciosa, julgando a impugnação procedente e considerando prejudicado o conhecimento dos vícios da liquidação impugnada incorreu em erro de julgamento.
Confrontando a petição inicial, contestação, sentença recorrida e mesmo as motivações das alegações, as questões equacionadas em sede de IVA, foram todas apreciadas, pelo que não foram consideradas prejudicadas pela decisão dada, pelo que a sentença recorrida não incorreu no alegado em erro de julgamento.

4.2. E assim formulamos as seguintes conclusões:
I - A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objeto imediato a decisão da reclamação e por objeto mediato os vícios imputados ao ato de liquidação.

II - Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao ato tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao ato tributário.

5. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, em conceder parcial provimento ao recurso interposto, revogar a sentença no segmento recorrido e julgar improcedente a impugnação judicial, na parte recorrida, mantendo-se a anulação da liquidação do IVA, já decretada.

Custas pela Recorrente, nos termos do art.º 527.º do CPC.-
Porto, 22 de fevereiro de 2024

Paula Maria Dias de Moura Teixeira
Carlos Alexandre Morais de Castro Fernandes
Ana Paula Rodrigues Coelho dos Santos