Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00608/19.0BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/05/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:ROGÉRIO PAULO DA COSTA MARTINS
Descritores:ACÇÃO PARA RECONHECIMENTO DE DIREITO; ACTO NULO; FALTA DE NOTIFICAÇÃO; FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO; VIOLAÇÃO DO CONTEÚDO DE ESSENCIAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL;
SEGURANÇA SOCIAL; SUBSÍDIO POR INCAPACIDADE; N.º2 DO ARTIGO 59º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS;
ARTIGO 150º E ALÍNEA G) DO N.º2 DO ARTIGO 161º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO;
ARTIGO 63.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; ALÍNEA D) DO N.º 2 DO ARTIGO 161º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO.;
Sumário:
1. A falta de notificação do acto não é um vício do acto, gerador de nulidade ou anulabilidade, porque a notificação é um acto posterior e externo ao acto impugnado. Contende apenas com o prazo para impugnar o acto - n.º2 do artigo 59º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

2. A falta de é um vício conducente à mera anulabilidade, face à regra geral de invalidade dos actos administrativos, consagrada no n.º1 do artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo. Isto sendo certo que o vício de falta de fundamentação se distingue do vício de falta absoluta de forma legal – alínea g) do n.º2 do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo. Como seria o caso de um acto praticado de forma oral fora dos casos excepcionais permitidos por lei – artigo 150º do Código de Procedimento Administrativo.

3. A violação do direito fundamental à segurança social consagrado no artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa, tem como consequência a nulidade do acto administrativo quando afecte, de forma socialmente inaceitável, o direito a uma existência condigna.

4. Tendo o Autor invocado que está incapacitado para o trabalho há mais de três anos e sem auferir quaisquer rendimentos, e se vê obrigado a suportar as despesas médicas inerentes relacionadas com o acidente de que foi vítima (o que só consegue graças à ajuda de alguns familiares, está em causa, em termos abstractos, esse mínimo necessário para uma existência condigna garantido pelo subsídio a que o Autor se sente com direito e negado pelo acto impugnado.

5. Tal acto é, assim, em abstracto, nulo por violação do conteúdo essencial de um direito equiparado a direito fundamental – alínea d) do n.º 2 do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo.
6. Pelo que é tempestiva a acção para o reconhecimento de um direito que implique afastar da ordem jurídica um acto tido como nulo, como é o caso, face às disposições combinadas do n.º1 do artigo 58º e do n.º2 do artigo 69º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

«AA» veio interpor RECURSO JURISDICIONAL do saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, de 05.12.2023, proferido na acção que moveu contra o Estado Português e o Instituto da Segurança Social, I.P., e pelo qual foram julgadas procedente as excepções de ilegitimidade passiva do primeiro Réu e de intempestividade da prática de acto processual, com a consequente absolvição de ambos os Réus da instância.

Invocou para tanto, em síntese, que: a decisão recorrida é nula por não se ter pronunciado sobre a nulidade do acto impugnado; padece, em todo o caso, de erro de direito, tendo violado o disposto nos A sentença recorrida violou, frontalmente, os artigos 63.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 161.º, n.º 2 alíneas d) e g) e art. 162.º, n.º2 do CPA e os artigos 7.º e 58.º, n.º1 do CPTA.

O Estado Português, representado pelo Ministério Público, contra-alegou defendendo a manutenção da decisão recorrida.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

I. Vem o presente recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de ... que julgou procedente as excepções de ilegitimidade passiva do Réu Estado Português e de intempestividade da prática de acto processual e absolveu os Réus da instância.

II. O acto sindicado cabe na previsão das alíneas d) e g) do n.º 2 do art.º. 161.º e é, por isso, nulo. E isto porque,

III. Conforme o Recorrente alegou e sustentou na sua p.i., a falta de notificação e a falta de fundamentação do acto sindicado, determinam a nulidade do acto de indeferimento porquanto carece em absoluto de forma legal (art. 161.º, n.º2, al. g) do CPA).

IV. Concomitantemente, por se tratar de um acto que ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental – a saber, o direito à segurança social consagrado no art. 63.º da CRP– a consequência do indeferimento será a da sua nulidade (art. 161.º, n.º2, al,. d) do CPA).

V. A nulidade é invocável a todo o tempo e é, de resto, de conhecimento oficioso - 58.º, n.º1 do CPTA e art. 162.º, n.º2 do CPA.

VI. Em consequência, afigura-se-nos inegável tempestividade da acção.

VII. Acresce que, a sentença recorrida não apreciou, de todo, a nulidade invocada.

VIII. Ocorreu, por isso, manifesta omissão de pronúncia quanto a essa mesma nulidade invocada, nos termos da alínea d) do nº.1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 35.º CPTA.

IX. A omissão de pronúncia é, como é consabido, sancionada com a nulidade da sentença- art. 615º n.º 1 al. d) CPC, nulidade que vai expressamente arguida para os devidos efeitos legais.

X. A sentença recorrida violou, frontalmente, os artigos 63.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 161.º, n.º 2 alíneas d) e g) e art. 162.º, n.º2 do CPA e os artigos 7.º e 58.º, n.º1 do CPTA.

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II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1. Em 15.10.2015, foi emitido certificado de incapacidade temporária para o trabalho, em nome do Autor, com data de início em 13.10.2015 e 24.10.2015 – cfr. doc. ... junto com a petição inicial.

2. Por ofício datado de 16.10.2015, com data de expedição a 20.10.2015, foi o Autor notificado, em 11.11.2015, do seguinte ao que o Autor deu cumprimento – cfr. doc. ... junto com a petição inicial:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

3. Em 12.10.2016, o Autor dirigiu ao Diretor do Centro Regional da Segurança Social de ..., o seguinte requerimento – cfr. doc. ... junto com a petição inicial:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

4. Por ofício datado de 20.10.2016, foi o Autor notificado do seguinte – cfr. doc. ... junto com a petição inicial:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

5. Em anexo foi remetido ofício com o seguinte teor – cfr. doc. ... junto com a petição inicial:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

6. Em 31.10.2016, o Autor remeteu novo requerimento ao Réu – cfr. doc. ... junto com a petição inicial:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

7. Por ofício datado de 11.11.2016, com data de expedição a 16.11.2016, foi o Autor notificado do seguinte – cfr. doc. ... junto com a petição inicial:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

8. Em 28.11.2016, o Autor apresentou requerimento junto do Réu, como seguinte teor – cfr. doc. ... junto com a petição inicial:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

9. Por ofício datado de 23.12.2016, com data de expedição a 27.12.2016, foi o Autor notificado do seguinte – cfr. doc. ... junto com a petição inicial:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

10. Entre Abril de 2017 e Dezembro de 2018, o Autor apresentou requerimentos junto do Réu, pedindo esclarecimentos e audiências, quanto ao seu pedido de subsídio de doença – cfr. docs 10 e seguintes juntos com a petição inicial.

11. Em 30.03.2017, o Autor formulou pedido de protecção jurídica com nomeação de patrono – cfr. doc. junto com a petição inicial.

12. Por ofício de 13.03.2018, foi nomeada a mandatária que subscreve a petição inicial apresentada nestes autos – cfr. doc. junto com a petição inicial.

13. A petição inicial, que motiva estes autos, deu entrada este Tribunal, em 02.04.2019 – cfr. registo SITAF.

*
III - Enquadramento jurídico.

1. A nulidade da sentença.

Determina a alínea d) do n.º1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Este preceito deve ser compaginado com a primeira parte do n.º2, do artigo 608º, do mesmo diploma: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Conforme é entendimento pacífico na nossa jurisprudência e na doutrina, só se verifica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, a que aludem os citados preceitos, quando o juiz se absteve de conhecer de questão suscitada pelas partes e de que devesse conhecer (cfr. Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão), p.140; e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 11.9.2007, recurso 059/07, de 10.09.2008, recurso 0812/07, de 28.01.2009, recurso 0667/08, e de 28.10.2009, recurso 098/09).

O erro de direito não se integra no conceito de falta de fundamentação ou omissão de pronúncia.

O erro no enquadramento jurídico leva à revogação da sentença e não à declaração de nulidade, nos termos da invocada norma da alínea d), do n.º1 do artigo 615º do actual Código de Processo Civil.

Refere a recorrente que a decisão recorrida padece de nulidade por não se ter pronunciado sobre o vício da nulidade imputado ao acto impugnado.

Mas sem razão.

Como se diz na decisão recorrida, tratando-se aqui de acção para a condenação à prática do acto devido importa é decidir se a pretensão substantiva do autor procede, sendo irrelevante, no caso da improcedência, eventuais vícios do acto.

E, em todo o caso, julgando a decisão recorrida procedente matéria de excepção, estava prejudicado o conhecimento de mérito, ou seja, dos vícios do acto impugnado, ainda que eventualmente procedentes, na procedência da pretensão material do autor – n.º2 do artigo 89º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Pelo que se a decisão recorrida se tivesse pronunciado sobre a verificação ou não do vício de nulidade do acto impugnado, aí sim, padeceria de nulidade, não por omissão de pronúncia, mas por excesso de pronúncia.

Termos em que se julga não verificada esta nulidade.

O que não prejudica concluir-se pela verificação de erro na decisão recorrida, ao julgar verificada a excepção de intempestividade para a prática de acto processual, questão que de seguida se apreciará.

2. O acerto da decisão.

2.1. A excepção da ilegitimidade passiva.

O Recorrente embora no cabeçalho das suas alegações refira a decisão recorrida no seu todo, no desenvolvimento das alegações e nas respectivas conclusões não apresenta qualquer divergência com a decisão recorrida quanto à absolvição do Réu Estado Português da instância por ilegitimidade passiva.

Pelo que se entende que se conformou com a decisão recorrida no que toca à ilegitimidade passiva, a qual, por isso, transitou em julgado nessa parte, não constituindo objecto do presente recurso a absolvição do Réu Estado Português da instância.

2.2. A intempestividade para a prática de acto processual.

A questão que aqui se coloca é tão-só a de saber se os vícios imputados ao acto impugnado são, em abstracto, susceptíveis de conduzir à respectiva nulidade ou não.

Não cabe nesta sede, de apreciação da matéria de excepção na acção, neste caso da intempestividade para a prática de acto processual, apreciar se o acto é, em concreto, nulo, ou não, pois isso é já conhecimento de mérito da acção.

E, por outro lado, o Recorrente apenas imputa ao acto impugnado vícios que, no seu entender, conduzem à respectiva nulidade, aceitando assim que, sendo um acto meramente anulável, já se teria verificado a caducidade do direito de acção.

Quanto à falta de notificação do acto não se trata de um vício do acto porque a notificação é um acto posterior e externo ao acto impugnado.

Contende apenas com o prazo para impugnar o acto - n.º2 do artigo 59º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Como o Autor acabou por ser notificado mostra-se irrelevante, em qualquer caso, esta irregularidade.

No que diz respeito à falta de fundamentação, como se sustenta na decisão recorrida, é entendimento pacífico o de que se trata de vício conducente à mera anulabilidade, face à regra geral de invalidade dos actos administrativos, consagrada no n.º1 do artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo.

Isto sendo certo que o vício de falta de fundamentação se distingue do vício de falta absoluta de forma legal – alínea g) do n.º2 do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo.

Como seria o caso de um acto praticado de forma oral fora dos casos excepcionais permitidos por lei – artigo 150º do Código de Procedimento Administrativo.

O que aqui não ocorre, porque o acto foi praticado por escrito.

Resta, pois, verificar se o acto impugnado é, em abstracto, susceptível de afectar o conteúdo essencial de um direito fundamental.

É entendimento pacífico o de que a violação do direito fundamental à segurança social consagrado no artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa, tem como consequência a nulidade do acto administrativo quando afecte, de forma socialmente inaceitável, o direito a uma existência condigna.

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 13.06.2014, no processo 00071/12.7BEBRG, Acórdão de 13-06-2014:

Na verdade, naquelas circunstâncias típicas previstas no n.º 3, do artigo 63.º, quando esteja em causa a própria subsistência mínima e, portanto, a existência socialmente condigna, o direito à segurança social adquire uma urgência e uma força vinculante que o tornam directamente aplicável e o subtraem, em ampla medida, ao poder de legislar extrai-se do princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa) um direito fundamental a um mínimo de existência condigna.”

Ora o Autor invocou no artigo 58º da petição inicial que:

“Incapacitado para o trabalho há mais de três anos e sem auferir quaisquer rendimentos, vê-se ainda o A. obrigado a suportar as despesas médicas inerentes relacionadas com o acidente de que foi vítima (o que só consegue graças à ajuda de alguns familiares)”.

Está, portanto, aqui em causa, em termos abstractos, esse mínimo necessário para uma existência condigna garantido pelo subsídio a que o Autor se sente com direito e negado pelo acto impugnado.

Tal acto é, assim, em abstracto, repte-se, nulo por violação do conteúdo essencial de um direito equiparado a direito fundamental – alínea d) do n.º 2 do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo.

Não se pode afirmar como se faz na decisão recorrida que o Autor deveria ter regido em tempo contra a decisão administrativa da qual discorda.

O Autor reagiu pela presente acção e reagiu em tempo porque não há prazo para pedir o reconhecimento de um direito que implique afastar da ordem jurídica um acto tido como nulo, como é o caso, face às disposições combinadas do n.º1 do artigo 58º e do n.º2 do artigo 69º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Termos em que, ao contrário do decidido, se impõe, conhecer de mérito da acção, devendo esta seguir os trâmites legais, designadamente de instrução e julgamento, caso nada mais a tal obste.

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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO, pelo que revogam a decisão recorrida determinando a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que aí prossiga os seus termos legais com vista ao conhecimento de mérito, se nada mais a tal obstar.

Custas pelo Recorrido.

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Porto, 05.04.2024



Rogério Martins
Isabel Costa
Fernanda Brandão