Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00235.24.0BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/05/2025
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:VITOR SALAZAR UNAS
Descritores:OPOSIÇÃO;
LITISPENDÊNCIA;
HERDEIRA; CABEÇA DE CASAL;
Sumário:
I- A exceção de litispendência encontra-se prevista como sendo dilatória e de conhecimento oficioso, no art.º 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, al. l), do CPTA [aplicável por força da alínea d), do art. 2.º do CPPT].
II- No entanto, o seu regime geral resulta do estabelecido no CPC [aplicável por remissão do art.º 1.º do CPTA], sendo certo que, também neste caso, vem prevista como exceção dilatória e igualmente de conhecimento oficioso, nos termos dos art.ºs 577.º, al. i) e 578.º.
III- Para que se verifique, a exceção dilatória de litispendência, conforme o disposto nos arts. 580.º e 581.º do CPC., é imperioso que se preencha o requisito da tríplice identidade, ou seja, que, cumulativamente, se verifique entre as ações em análise: [i] identidade de sujeitos processuais; [ii] identidade de causa de pedir; [iii] e identidade dos pedidos formulados.
IV- A falta de verificação de qualquer um daqueles pressupostos cumulativos, é impeditivo para que se verifique a exceção.
V- Não há identidade de sujeitos processuais quando a autora numa ação se apresenta como herdeira e numa outra como cabeça de casal de uma herança.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais, do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte:

I – RELATÓRIO:
A Herança de Júlio Marques Saraiva, com o número de identificação fiscal 750 239 921, interpôs recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que indeferiu liminarmente a oposição à execução por litispendência.
A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
«(…).
A) No âmbito da Oposição à Execução com o Processo nº 99/24.4BEVIS que corre temos no TAFV, a Fazenda Pública, na sua Contestação invocou erro na forma de processo, invocando que tal erro se afere pelo pedido (fundamentando tal erro no pedido formulado), referindo, para além do mais, que "1. O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido ...". Ou seja, existe a hipótese de a referida Oposição à Execução não vir a proceder, precisamente devido ao alegado pedido.
B) Da Sentença recorrida consta, para além do mais, o seguinte: "...Se, nos presentes autos, em termos formais, isso é claro - "(...) Termos em que se solicita que seja declarada extinta referida execução n° 1228202301147382 (...)" -, пo Processo n.º 99/24.4BEVIS é mais rebuscado, pois vem pedido, cito. "(...) que seja declarada nula ou anulada a liquidação e/ou autoliquidação em causa, o IUC do ano de 2023 da viatura com a matrícula DM-91-96, anulando-se também todos os custos conexos com a respetiva falta de pagamento, nomeadamente juros e custas (...)". Todavia, vindo o sobredito pedido formulado no âmbito de um processo de oposição à execução fiscal, cujo escopo primacial é o da extinção da execução fiscal, deve o mesmo ser interpretado em termos da sua substância (anti-formalismo e princípio pro actione), do que resulta que um pedido implícito, que é o da extinção da execução fiscal. De facto, a peticionada declaração de nulidade ou anulação da liquidação de IUC subjacente à dívida executiva teria como consequência lógica e necessária a anulação da certidão de dívida que deu origem à instauração do PEF e a pretendida anulação de juros e custas tem por evidente referência os juros e as custas liquidadas no âmbito do PEF. Daqui decorre que, no Processo n. 99/24.4BEVIS, como nos presentes autos, vem pedida a extinção do PEF n.° 1228202301147382 pelo que entre ambos os processos há identidade quanto aos pedidos ....”
C) Ou seja, esta Sentença recorrida assenta numa hipótese condicional, ou seja num pressuposto que não se verificou ainda em sede própria, logo inexistente, e poderá não se vir a verificar mais tarde, bastando que no âmbito do Processo n. 99/24.4BEVIS não se venha a ter a mesma interpretação (que se adotou no âmbito da sentença recorrida) do pedido aí formulado.
D) Acresce que, no âmbito do referido Processo n° 99/24.4BEVIS, a autora é “Maria Arlete Pereira da Costa Lopes Saraiva, cabeça de casal e herdeira da Herança de Júlio Marques Saraiva ..." e nestes autos a autora é a "Herança de Júlio Marques Saraiva, com o nº 750239921..."
E) Pelo que não se verifica a invocada litispendência.
Termos em que, com o doutro suprimento de V.as Ex.s, deve este recurso ser declarado procedente. Espera-se justiça»
*
Foram apresentados contra alegações, as quais a Recorrida concluiu do seguinte modo:
1. O recurso de apelação que é apresentado pela recorrente não se enquadra em nenhuma das alíneas do nº 3 do artigo 647º do CPC, sendo certo que a recorrente também não deu cumprimento ao disposto no nº 4 deste mesmo preceito legal, motivo pelo qual, o efeito a atribuir ao pressente recurso não poderá ser suspensivo como pretende a recorrente, mas sim devolutivo conforme decorre da lei.
2. E mais se diga, pese embora a recorrente pretenda que seja atribuído ao recurso que apresenta efeito suspensivo, a verdade é que não efetua qualquer esforço de fundamentação para demonstrar o acerto da sua pretensão.
3. Nestes termos, por manifesta falta de fundamentação deve improceder o pretendido efeito suspensivo e ser atribuído ao recurso interposto pela recorrente, efeito devolutivo.
4. Não obstante a recorrente submeter à reapreciação deste Venerando Tribunal a decisão proferida pelo Tribunal “ a quo” a verdade é que não identifica de forma concreta e inequívoca quais os eventuais vícios de que a mesma eventualmente enferme que sejam suscetíveis de a invalidar e, em consequência, conduzir à sua eventual revogação.
5. Com efeito, se atentarmos no discurso recursivo da ora recorrente verificamos que o mesmo é totalmente omisso quanto às normas que eventualmente tenham sido violadas pelo Tribunal “ a quo”, assim como é totalmente omisso quanto aos factos e provas que eventualmente tenham sido objeto de uma errónea apreciação e valoração, pelo que, o mesmo não deverá ser admitido por incumprimento do disposto nos artigos 639º e 640º do CPC.
6. Sem prescindir, a recorrente efetua uma errónea interpretação da decisão recorrida, porquanto, ao invés de ter presente a globalidade da fundamentação que ali é espelhada, socorre-se de dois extratos da decisão recorrida para efetuar uma “espécie” de “puzzle” interpretativo e retirar ilações descontextualizadas que naturalmente visam desvirtuar a fundamentação e o sentido da decisão sob recurso.
7. Na verdade, se atentarmos na fundamentação lacónica da recorrente facilmente percebemos que a mesma assenta em errados pressupostos de facto e de direito que inevitavelmente impõem a improcedência da sua pretensão. Com efeito, a recorrente alega que a decisão sob recurso assenta num pressuposto que ainda não se verificou no âmbito dos autos de oposição 99/24.4BEVIS, sendo certo que do confronto entre a decisão recorrida e a fundamentação recursiva se pode verificar que o aludido pressuposto, é uma “espécie” de “construção” jurídica efetuada a partir dos referidos dois extratos da decisão recorrida que, uma vez desagregados da globalidade da decisão e juntos da forma como a recorrente efetua, apresentam o seguinte teor (….) deve o mesmo ser interpretado em termos da sua substância (anti-formalismo e princípio pro actione), do que resulta que um pedido implícito, que é o da extinção da execução fiscal (…) pelo que entre ambos os processos há identidade quanto aos pedidos (…)”
8. Sucede que, contrariamente à tese defendida pela recorrente, a douta decisão recorrida não assenta num pressuposto ou hipótese condicional dependente da decisão que venha a ser proferida nos autos de oposição nº 99/24.4BEVIS, porquanto, para ser aferir da existência de litispendência entre aqueles autos e os presentes autos bastará verificar se estamos perante a repetição da mesma ação nestes dois processos, situação que dependerá da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, de modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão que o Tribunal já tenha proferido, sendo certo que in casu, o Tribunal “ a quo” já proferiu decisão nos presentes autos, pretendendo-se evitar a repetição da causa pendente que subjaz aos autos de oposição nº 99/24.4BEVIS e não como defende a recorrente esperar pela decisão que venha a ser proferida naqueles autos para se poder aferir da litispendência nos presentes autos.
9. Por outro lado, como bem refere a douta decisão recorrida, “ quando entre duas causas haja identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causas de pedir, verifica-se a repetição da causa, sendo que, quando a primeira das causas esteja ainda em curso, há lugar à litispendência, que, de acordo com o artigo 582.º, n.º 1, do CPC, “(…) deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar(…)”, o que se justifica, pois o escopo primacial da litispendência é o de obstar a que os tribunais sejam colocados na posição de repetir decisões ou de emitir decisões contraditórias. No caso em apreço, está em causa um PEF que foi instaurado contra um único executado, ele, Júlio Marques Saraiva - Cabeça de Casal da Herança, com o número de identificação de pessoa colectiva 750 239 921, tendo em vista a cobrança coerciva de uma dívida relativa a IUC, referente ao ano 2023 e ao veículo com a matrícula DM-91-96, no valor de 56,57 €. No âmbito do sobredito PEF, foram apresentadas duas oposições à execução fiscal, que, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu foram autuadas, a primeira, sob o Processo n.º 99/24.4BEVIS (cf. o facto provado) e, a segunda, a que correspondem os presentes autos, sob o Processo n.º 235/24.0BEVIS. (nosso destacado)
10. Termos em que, no caso em apreço inexiste o alegado pressuposto ou hipótese condicional, pelo que se impõe concluir pela improcedência do fundamento indicado pela recorrente, mantendo-se a decisão recorrida.
11. Conforme já foi expendido pelo STA6 a litispendência materializa-se na repetição de uma causa pendente radicando «O conceito nuclear da litispendência (…) na definição dos parâmetros que permitem aferir da identidade das causas, com vista a determinar se uma é, ou não, a repetição da outra.».
12. Parâmetros esses que legalmente se encontram definidos no artigo 581.º do Código de Processo Civil, no qual o legislador, dispondo igualmente de modo conjunto sobre a litispendência e o caso julgado, deixa claro no seu n.º 1 que a causa se repete quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. Identidades essas que devem ser julgadas verificadas quando presentes as seguintes circunstâncias: (1) identidade de sujeitos «quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica» (2); do pedido «quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico» ( 3) e da causa de pedir «quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico».
13. Resulta, assim, que a litispendência só ocorrerá se, cumulativamente, nas ações em apreciação intervierem as mesmas partes, sob a mesma qualidade jurídica, pretendendo obter o mesmo efeito jurídico e, esse efeito jurídico tiver por causa o mesmo facto jurídico. No caso concreto, como bem fundamentou o Tribunal “ a quo” todos estes requisitos se verificam.
14. Assumem essa mesma qualidade jurídica a ora recorrente e a Fazenda Pública; o efeito jurídico nuclear que se pretende obter com uma e outra das ações em referência é precisamente o mesmo, isto é, a extinção do PEF n.º 1228202301147382, sendo que, como é sabido "para que haja identidade de pedido entre duas ações não é necessária uma rigorosa identidade formal entre um e outro, bastando que sejam coincidentes o objetivo fundamental de que dependa o êxito de cada uma delas", e são os mesmos os factos concretos, como linearmente resulta da factualidade e razões jurídicas aduzidas em ambos os processos.
15. Aqui chegados, face ao exposto, devem improceder as alegações arguidas em recurso no sentido de censurar a decisão recorrida que se deve julgar acertada por estarem efetivamente verificados todos os pressupostos de que está dependente o reconhecimento da exceção de litispendência que foi declarada.
16. Termos em que, se impõe concluir pelo acerto da douta decisão recorrida, devendo manter-se no ordenamento jurídico, com as consequências legais daí decorrentes.
Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências deve ser negado provimento ao presente recurso e em consequência manter-se a decisão recorrida.»
*
O Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, do qual se extratam os seguintes termos:
«(…).
Refira-se que nos termos dos artigos 608.º n.º 2, 635.º n.º 4 e 5 e 639.º n.º 1 e 2 do CPC aplicável ex vi artigo 281º do CPPT, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões (cf. artigo 282º, n.º 2 do CPPT), não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso.
Assim, a oponente, na sua qualidade de Recorrente apresentou as suas alegações de recurso, terminado com 5 (cinco) conclusões, que brevitatis causa se dão por integralmente reproduzidas.
Assim e com interesse para a causa, a Recorrente cingiu o seu recurso à seguinte questão, em resumo, que constitui o objeto do recurso:
1) – Inexistência de litispendência.
Esta figura jurídica encontra-se prevista e definida no artigo 581.º do Código de Processo Civil, no qual o legislador, dispondo igualmente de modo conjunto sobre a litispendência e o caso julgado, deixa claro no seu n.º 1 que a causa se repete quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. Identidades essas que devem ser julgadas verificadas quando presentes as seguintes circunstâncias:
(1) identidade de sujeitos «quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica»;
(2) do pedido «quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico»; e
(3) da causa de pedir «quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico».
Ainda, acerca desta matéria, disse o Acórdão do TCAS de 30.11.2017, in www.dgsi.pt, o seguinte:
“A litispendência, materializando-se na repetição de uma causa pendente, constitui excepção dilatória, que tem por objectivo evitar que o tribunal contradiga ou reproduza uma decisão anterior. O conceito nuclear da litispendência radica, pois, na definição dos parâmetros que permitem aferir da identidade das causas, com vista a determinar se uma é, ou não, a repetição da outra. Quando os fundamentos invocados e os efeitos jurídicos pretendido num e noutro meio processual sejam (podendo ser) os mesmos, (…) justifica-se julgar procedente a excepção da litispendência, uma vez que existe a possibilidade de virem a ser proferidas decisões em sentido diverso ou repetidas.”
Afirmou, por outro lado, o STA de 15.10.2014, Processo nº 906/14, o seguinte:
“I - A litispendência, materializando-se na repetição de uma causa pendente, constitui excepção dilatória, que tem por objectivo evitar que o tribunal contradiga ou reproduza uma decisão anterior.
II - A litispendência só ocorrerá se, cumulativamente, nas acções em apreciação, intervierem as mesmas partes, sob a mesma qualidade jurídica, pretendendo obter, nessas acções, o mesmo efeito jurídico e esse efeito jurídico tiver por causa o mesmo facto jurídico.”
Ora, no caso, é isento de dúvidas que as partes não são as mesmas pois que, nestes autos, a oponente é a Herança de Júlio Marques Saraiva, enquanto na Oposição nº 99/24.4 BEVIS a oponente é Maria Arlete Pereira da Costa Lopes Saraiva, herdeira de Júlio Marques Saraiva e que calha também ser a cabeça de casal da referida herança jacente, o que pese embora são pessoas jurídicas distintas e diferentes, pois que a herança é um sujeito processual e uma sua herdeira é outro sujeito processual, ainda que seja cabeça de casal da mesma herança.
Com o que, forçoso é concluir, não estamos perante litispendência (por falta de identidade de sujeitos) e, por isso, o despacho de indeferimento liminar ao reconhecê-lo, merece censura e deve ser revogado.»

*
Com dispensa dos vistos legais [cfr. artigo 657.º, n.º 4, do Código de Processo Civil], cumpre apreciar e decidir o presente recurso.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR.
Cumpre apreciar e decidir a questão colocada pela Recorrente, cujo objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações – cfr. artigos 608º, nº e, 635º, n.ºs 4 e 5, todos do Código de Procedimento e de processo tributário (CPPT) -, que se centra em saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter declarado a litispendência e, em consequência, indeferido liminarmente a oposição, nos termos do disposto no art. 590.º, n.º 1, do CPC.
A título prévio, temos que emitir pronúncia sobre a não admissibilidade do recurso trazida à lide pela Recorrida nas contra alegações [conclusões 4 e 5].

DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Entende a Recorrida que «[n]ão obstante a recorrente submeter à reapreciação deste Venerando Tribunal a decisão proferida pelo Tribunal “ a quo” a verdade é que não identifica de forma concreta e inequívoca quais os eventuais vícios de que a mesma eventualmente enferme que sejam suscetíveis de a invalidar e, em consequência, conduzir à sua eventual revogação,».; «Com efeito, se atentarmos no discurso recursivo da ora recorrente verificamos que o mesmo é totalmente omisso quanto às normas que eventualmente tenham sido violadas pelo Tribunal “ a quo”, assim como é totalmente omisso quanto aos factos e provas que eventualmente tenham sido objeto de uma errónea apreciação e valoração, pelo que, o mesmo não deverá ser admitido por incumprimento do disposto nos artigos 639º e 640º do CPC.»
No que concerne à violação do disposto no art. 640.º [ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão da matéria de facto], do CPC, cumpre apenas de dizer que a Recorrente não impugna a (parca) matéria de facto, mas tão somente as ilações que o tribunal retirou para concluir pela litispendência. Ou seja, a Recorrente entende que a conclusão extraída pelo tribunal não é de aceitar por não ser uma decorrência lógica dos factos provados.
Neste conspecto, por que as ilações, ainda assim, constituem matéria de facto, não estamos em presença de um recurso que verse sobre matéria de direito, cujo julgamento se mostra totalmente dependente da resposta que for dada ao recurso da matéria de facto, não se impunha que fossem indicadas as normas violadas, como decorre da alínea a), do n.º 2, do art. 639.º, do CPC.
Para além do mais, a omissão das normas violadas nunca seria motivo de rejeição de recurso, mas quando muito daria lugar ao convite ao aperfeiçoamento, nos termos do n.º 3 do art. 639.º, do CPC.
Pelo exposto, inexiste fundamento para não admitir e conhecer o mérito do recurso.
Uma última nota para dizer que, relativamente ao pedido de fixação como devolutivo do efeito de recurso [conclusões 1. a 3.], mostra-se prejudicado o conhecimento desta pretensão recursiva, na medida em que ao recurso foi atribuído precisamente efeito meramente devolutivo, conforme resulta do despacho proferido a 26.03.2025.

*

IV - FUNDAMENTAÇÃO:
IV.1 – DE FACTO
Na sentença foi fixada matéria de facto nos seguintes termos:
«Com interesse para a decisão que se segue, julgo provado o seguinte facto:
1. a 07.02.2024, no âmbito do PEF n.º 1228202301147382, foi apresentada oposição à execução fiscal, que, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, foi autuada sob o Processo n.º 99/24.4BEVIS e de cuja petição inicial exaro, entre o mais, o seguinte
(…)
Maria Arlete Pereira da Costa Lopes Saraiva, cabeça de casal e herdeira da Herança de Júlio Marques Saraiva, com o nº 750239921, vem por este meio, apresentar Oposição à Execução, no âmbito do Processo nº 1228202301147382, que corre termos no Serviço de Finanças da Guarda, com os seguintes fundamentos:
1. (…)
2. Ora, ocorre ilegitimidade porque. durante o período a que respeita a dívida exequenda, a referida viatura não foi possuída pela Herança de Júlio Marques Saraiva nem por Maria Arlete Pereira da Costa Lopes Saraiva nem por qualquer outro herdeiro da referida herança.
3. Efetivamente, há muitos anos, o falecido Júlio Marques Saraiva vendeu ou entregou a referida viatura a um terceiro (que a cabeça de casal não consegue identificar), não tendo, no entanto, o referido terceiro, procedido ao abate da mesma ou ao registo da referida viatura no nome do mesmo, nem pago os respetivos tributos que estão em dívida nestes autos;
4. (…)
Termos em que se solicita que seja declarada nula ou anulada a liquidação e/ou autoliquidação em causa, o IUC do ano de 2023 da viatura com a matrícula DM-91-96, anulando-se também todos os custos conexos com a respetiva falta de pagamento, nomeadamente juros e custas.
(…)
- cf. no SITAF, o registo 004960734, de 19.02.2024, relativo ao Processo n.º 99/24.4BEVIS.
Nada mais julgo ou é de julgar provado ou não provado, tendo o Tribunal formado a sua convicção a partir da consulta ao SITAF e da análise crítica dos documentos juntos aos autos, que dou aqui por integralmente reproduzidos.»
*
V – DE DIREITO:
Importa, então, apurar se a decisão em crise padece de erro de julgamento por ter julgado verificada a exceção de litispendência e, nessa conformidade, ter indeferido a oposição em sede liminar, nos termos do disposto no art. 590.º, n.º 1, do CPC,
Litispendência?
Para conhecimento desta questão, atentemos, antes de mais, na fundamentação exteriorizada na sentença em escrutínio.
«Sob a epígrafe Conceitos de litispendência e caso julgado, consigna o artigo 580.º n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ao processo judicial tributário por via do artigo 2.º alínea e), do CPPT, que “(…) As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado (…)”.
A litispendência verifica-se, assim, nos termos da sobredita norma, quando haja repetição de uma causa, estando a causa anterior ainda em curso.
São requisitos da verificação da repetição da causa, na modalidade de litispendência, os constantes no artigo 581.º do CPC, que, sob a epígrafe Requisitos da litispendência e do caso julgado, estabelece o seguinte:
“(…)
1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
(…)”
Deste modo, quando entre duas causas haja identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causas de pedir, verifica-se a repetição da causa, sendo que, quando a primeira das causas esteja ainda em curso, há lugar à litispendência, que, de acordo com o artigo 582.º, n.º 1, do CPC, “(…) deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar(…)”, o que se justifica, pois o escopo primacial da litispendência é o de obstar a que os tribunais sejam colocados na posição de repetir decisões ou de emitir decisões contraditórias.
No caso em apreço, está em causa um PEF que foi instaurado contra um único executado, ele, Júlio Marques Saraiva - Cabeça de Casal da Herança, com o número de identificação de pessoa colectiva 750 239 921, tendo em vista a cobrança coerciva de uma dívida relativa a IUC, referente ao ano 2023 e ao veículo com a matrícula DM-91-96, no valor de 56,57 €.
No âmbito do sobredito PEF, foram apresentadas duas oposições à execução fiscal, que, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu foram autuadas, a primeira, sob o Processo n.º 99/24.4BEVIS (cf. o facto provado) e, a segunda, a que correspondem os presentes autos, sob o Processo n.º 235/24.0BEVIS.
No Processo n.º 99/24.4BEVIS, a oposição foi deduzida por, CITO, “(…) Maria Arlete Pereira da Costa Lopes Saraiva, cabeça de casal e herdeira da Herança de Júlio Marques Saraiva, com o nº 750239221 (…)”, ou seja, por Júlio Marques Saraiva - Cabeça de Casal da Herança, com o NIPC 750 239 221, representada pela respectiva cabeça de casal, independentemente da sua condição de herdeira, comum a todos os interessados na herança.
No Processo n.º 235/24.0BEVIS, a oposição foi deduzida por, cito “(…) Herança de Júlio Marques Saraiva, com o nº 750239221 (…)”, ou seja, por Júlio Marques Saraiva - Cabeça de Casal da Herança, com o NIPC 750 239 221, que, visto o requerimento que foi dirigido à Segurança Social no âmbito do pedido de protecção jurídica (cf. o DOC N 1 que instruiu a petição inicial), é também representada por Maria Arlete Pereira da Costa Lopes Saraiva, a cabeça de casal.
Donde, entre aquele Processo n.º 99/24.4BEVIS e os presentes autos há identidade quanto aos sujeitos.
Mais, entre aquele Processo n.º 99/24.4BEVIS e os presentes autos existe, também, identidade quanto aos [pedidos], pois, em qualquer dos casos é peticionada a extinção da execução fiscal, que é o escopo primacial do processo de oposição.
Se, nos presentes autos, em termos formais, isso é claro – “(…) Termos em que se solicita que seja declarada extinta referida execução nº 1228202301147382 (…)” -, no Processo n.º 99/24.4BEVIS é mais rebuscado, pois vem pedido, cito, “(…) que seja declarada nula ou anulada a liquidação e/ou autoliquidação em causa, o IUC do ano de 2023 da viatura com a matrícula DM-91-96, anulando-se também todos os custos conexos com a respetiva falta de pagamento, nomeadamente juros e custas (…)”.
Todavia, vindo o sobredito pedido formulado no âmbito de um processo de oposição à execução fiscal, cujo escopo primacial é o da extinção da execução fiscal, deve o mesmo ser interpretado em termos da sua substância (anti-formalismo e princípio pro actione), do que resulta que um pedido implícito, que é o da extinção da execução fiscal.
De facto, a peticionada declaração de nulidade ou anulação da liquidação de IUC subjacente à dívida executiva teria como consequência lógica e necessária a anulação da certidão de dívida que deu origem à instauração do PEF e a pretendida anulação de juros e custas tem por evidente referência os juros e as custas liquidadas no âmbito do PEF.
Daqui decorre que, no Processo n.º 99/24.4BEVIS, como nos presentes autos, vem implicitamente pedida a extinção do PEF n.º 1228202301147382, pelo que entre ambos os processos há identidade quanto aos pedidos.
Finalmente, é cristalino que, entre o Processo n.º 99/24.4BEVIS e os presentes autos existe identidade quanto às causas de pedir, porquanto em ambos o efeito jurídico pretendido (a extinção do PEF n.º 1228202301147382) dimana do mesmo facto, ele, no ano a que respeita o IUC subjacente à dívida em execução fiscal, a herança já não possuía o veículo com a matrícula DM-91-96, na medida em que o falecido Júlio Marques Saraiva a vendeu e entregou a um terceiro, cuja identidade se desconhece, fundamento de oposição à execução fiscal previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 204.º do CPPT.
Ocorrem, assim, cumulativamente, os três pressupostos de que a Lei faz depender a verificação da litispendência.
Nos termos do que dispõe o artigo 577.º, alínea i), do CPC, a litispendência constitui excepção dilatória, que, de acordo com o artigo 576.º, n.º 2, do mesmo Código, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e tem como consequência a absolvição da instância.
Porém, no caso em apreço, sendo de julgar verificada a excepção dilatória de litispendência, mas constatando, como constato, que os autos se encontram, ainda, na fase liminar, haverá lugar ao indeferimento liminar da oposição, de acordo com o estatuído no artigo 590.º, n.º 1, do CPC.»
Conforme espelham as conclusões de recurso, a Recorrente pugna, para além do mais, pela não verificação de identidade de sujeitos processuais, pressuposto cumulativo com os demais, o que, a não se verificar-se, torna inviável a ocorrência da litispendência, nos termos do art. 581.º, do CPC. E, adiantamos, assiste razão à Recorrente.
A exceção de litispendência encontra-se prevista como sendo dilatória e de conhecimento oficioso, no art.º 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, al. l), do CPTA [aplicável por força da alínea d), do art. 2.º do CPPT].
No entanto, o seu regime geral resulta do estabelecido no CPC [aplicável por remissão do art.º 1.º do CPTA], sendo certo que, também neste caso, vem prevista como exceção dilatória e igualmente de conhecimento oficioso, nos termos dos art.ºs 577.º, al. i) e 578.º.
Para que se verifique, a exceção dilatória de litispendência, conforme o disposto nos arts. 580.º e 581.º do CPC., é imperioso que se preencha o requisito da tríplice identidade, ou seja, que, cumulativamente, se verifique entre as ações em análise: [i] identidade de sujeitos processuais; [ii] identidade de causa de pedir; [iii] e identidade dos pedidos formulados. A falta de verificação de qualquer um daqueles pressupostos cumulativos, é impeditivo para que se verifique a exceção.
Realizado este enquadramento legal, vejamos agora as particularidades do caso concreto.
Conforme se retira do introito da petição inicial e sinalizado no relatório da sentença, a autora na presente ação é a «Herança de Júlio Marques Saraiva» [representada pela cabeça de casal Maria Arlete Pereira da Costa Lopes Saraiva] que não se confunde, porém, com a autora da oposição n.º 99/24.4BEVIS Maria Arlete Pereira da Costa Lopes Saraiva, ainda que esta se identifique como «cabeça de casal e herdeira da Herança de Júlio Marques Saraiva, com o nº 750239921.» Razão pela qual, também, em cada uma delas solicitou proteção jurídica nos (seus diferentes) respetivos nomes.
Sendo que ambas têm personalidade judiciária. A segunda, nos termos gerais previstos no art. 11.º, n.º 1, do CPC «a personalidade judiciária consiste na suscetibilidade se ser parte», e a primeira, por força do disposto no art. 12.º, n.º 2 do mesmo diploma «Têm ainda personalidade judiciária: a) A herança jacente]. Para além do mais, em abstrato, possuem as duas legitimidade processual, conforme irradia do art. 30.º do CPC, por serem titulares de (diferentes) interesses considerando a relação material controvertida configurada em cada uma das ações [na presente ação a autora defende interesses próprios da herança, na outra ação a autora defendem os seus interesses pessoais enquanto herdeira].
Donde, não sendo os mesmos os sujeitos processuais, não se verifica um dos requisitos cumulativos da litispendência, fundamento suficiente para não a julgar verificada.
Em conclusão, no caso objeto, não se verifica a exceção de litispendência, tal como constitui pretensão da Recorrente, razão pela qual se impõe a revogação da sentença, mostrando-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
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Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais, do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso e, nessa conformidade, revogar a sentença e ordenar a baixa dos autos à primeira instância para prosseguimento da ação, se nada mais obstar.

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Assim, nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC., formula-se o seguinte SUMÁRIO:
I- A exceção de litispendência encontra-se prevista como sendo dilatória e de conhecimento oficioso, no art.º 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, al. l), do CPTA [aplicável por força da alínea d), do art. 2.º do CPPT].
II- No entanto, o seu regime geral resulta do estabelecido no CPC [aplicável por remissão do art.º 1.º do CPTA], sendo certo que, também neste caso, vem prevista como exceção dilatória e igualmente de conhecimento oficioso, nos termos dos art.ºs 577.º, al. i) e 578.º.
III- Para que se verifique, a exceção dilatória de litispendência, conforme o disposto nos arts. 580.º e 581.º do CPC., é imperioso que se preencha o requisito da tríplice identidade, ou seja, que, cumulativamente, se verifique entre as ações em análise: [i] identidade de sujeitos processuais; [ii] identidade de causa de pedir; [iii] e identidade dos pedidos formulados.
IV- A falta de verificação de qualquer um daqueles pressupostos cumulativos, é impeditivo para que se verifique a exceção.
V- Não há identidade de sujeitos processuais quando a autora numa ação se apresenta como herdeira e numa outra como cabeça de casal de uma herança.
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VI – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais, do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso e, nessa conformidade, revogar a sentença e ordenar a baixa dos autos à primeira instância para prosseguimento da ação, se nada mais obstar.

Custas pela Recorrida.

Porto, 5 de junho de 2025


[Vítor Salazar Unas]
[Maria do Rosário Pais]
[Ana Patrocínio]