Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00321/21.9BEPRT-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/11/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:LEGITIMIDADE PROCESSUAL PASSIVA
MÉDICOS
PARTICULARES
Sumário:I- A legitimidade passiva, enquanto pressuposto processual, afere-se pela forma como o Autor configurou a sua causa de pedir e respetivo pedido [artigos 9.º, n.º 1, 2ª parte e 10.º, n.º 1, do CPTA e ainda o artigo 30.º, n.º 3, do CPC].
II- Do que resulta que, para a sua aferição, relevará apenas a forma como o Autor configurou a sua pretensão, quer quanto ao objeto, quer quanto aos sujeitos da relação material controvertida, sendo, para este efeito, irrelevante se, a final, se vier a verificar que um daqueles sujeitos nunca teria, à luz do direito material, qualquer interesse em contradizer a sua pretensão.
III- No quadro em apreço, isto é, tendo em atenção as pretensões formuladas nos presentes autos e [ainda] o modo como a Autora conforma a causa de pedir, assoma em evidente que os Réus particulares têm interesse em se defender, pois naquelas formulações, podem ser condenados e assim sofrer os correspondentes prejuízos que resultaria de uma eventual procedência da presente ação.
IV- Forçosamente se conclui, então, que se existe a possibilidade de condenação dos Réus particulares nos presentes autos, não pode haver ilegitimidade passiva, dado que há um manifesto interesse em contradizer.
V- E tal não obsta a “natureza particular” dos médicos Réus.
VI- Esta posição de abrangência é confirmada no art.º 10º n.º 9 do C.P.T.A., que permite que a ação seja proposta, não apenas contra os entes públicos, mas também contra todos os outros interessados [ainda que sejam particulares], quando o envolvimento destes se situe ainda no âmbito de uma relação jurídica administrativa.
VII- Independentemente do regime de responsabilidade civil a operar no caso concreto - contratual [de rigor mais discutível] ou extracontratual -, estamos na presença de uma ação intentada contra uma entidade pública e três médicos particulares, todos eles envolvidos numa relação jurídico-administrativa com a Autora da ação, na qual vem assacada responsabilidade, a par da entidade pública, aos ditos médicos particulares pela produção dos danos na esfera da Autora reclamados nos autos.
VIII- O que permite acomodar largamente a aplicação da normação que se vem de analisar, e, qua tale, admitir-se a dedução da presente ação também contra os médicos particulares visados nos autos.
Recorrente:AA
Recorrido 1:HOSPITAL GERAL DE SANTO ANTÓNIO, E.P.E., e Outro(s)...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Recurso Contencioso Anulação (LPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
AA, Autora nos autos à margem referenciados de AÇÃO ADMINISTRATIVA em que são Réus o HOSPITAL GERAL DE SANTO ANTÓNIO, E.P.E., BB, CC e DD, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho saneador promanado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, na parte em que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva do dos Médicos Réus supra identificados, absolvendo-os da instância.
Em alegações, a Recorrente formula as conclusões que ora se reproduzem, que delimitam o objeto do recurso: “(…)
I. O presente Recurso versa exclusivamente sobre matéria de Direito, nos termos infra consignados, incidindo sobre o douto Despacho Saneador na parte em que foi considerada procedente a exceção de ilegitimidade dos Réus BB, CC e DD (doravante, 2.°, 3.° e 4.° Réus).
II. Através de Petição Inicial, a Autora, ora Recorrente, interpôs Acção Administrativa comum contra os Réus, ora Recorridos, pretendendo que seja declarado que os Réus praticaram assédio moral contra a Autora desde 2015, que sejam os Réus condenados a pagar à Autora, solidariamente, a quantia de 50.000,00 Euros a título de indemnização pela prática de assedio moral no local de trabalho e danos não patrimoniais, que sejam os Réus condenados a pagar à Autora, solidariamente, a quantia de 1.533,44 Euros a título de danos patrimoniais já liquidados, a que acrescerão aqueles que se vencerão no decurso da presente acção, e que sejam os Réus condenados a pagar à Autora a quantia de 61.933,81 Euros a título de indemnização pelo dano da perda de chance.
III. Citados para, querendo, contestar, os Recorridos, entre outras excepções, invocaram a falta de legitimidade processual dos 2.°, 3.° e 4.° Réus.
IV. No Despacho Saneador em sindicância, julgou o Tribunal a quo procedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual dos 2.°, 3.° e 4.° Réus, absolvendo-os, por conseguinte, da instância.
V. A legitimidade é um pressuposto processual respeitante à relação entre as partes e o objecto do processo - a relação material controvertida. Constitui assim uma posição do Autor e do Réu em relação ao objecto do processo, aferida em face da relação jurídica controvertida, tal como desenhada pelo Autor.
VI. Daí que para a boa decisão do essencial à causa seja necessário que estejam presentes no processo as “partes exactas” - aquele que pode fazer valer juridicamente a pretensão em concreto invocada, e aqueles a quem juridicamente pode ser oposta tal posição jurídica, por serem directamente atingidos e prejudicados pela eventual procedência da pretensão. O que importa à legitimidade processual é, de facto, o modo como são configuradas a concreta causa de pedir e pedido, e que as partes sejam os sujeitos da relação jurídica substantiva tal como ela é apresentada (independentemente da sua veracidade).
VII. Colhendo do disposto no artigo 10.°, n.° 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Réu será parte legítima quando tiver interesse directo em contradizer - interesse esse que se exprime pelo prejuízo que da procedência da acção lhe possa advir.
VIII. In casu, entendeu a Meritíssima Julgadora que a “outra parte” na relação material controvertida seria apenas e tão-só a Entidade Empregadora - a 1.a Ré -, por considerar que, “assentando a relação configurada pela Recorrente na responsabilidade contratual” da Entidade Empregadora, aplicar-se-ia o artigo 800.° do Código Civil, o qual responsabiliza a 1.a Ré pelos actos cometidos pelos 2.°, 3.° e 4.° Réus.
IX. Todavia, e na esteira dos ensinamentos de ANTUNES VARELA, um mesmo facto pode originar diferentes tipos de responsabilidade - ainda que responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual sejam, naturalmente, distintas conceitualmente, uma vez que as duas variantes da responsabilidade civil não constituem compartimentos estanques, funcionando antes como vasos comunicantes, o que explica que, de facto, seja possível subtrair de um mesmo quadro fáctico diferentes tipos de responsabilidade civil, imputáveis ao mesmo agente ou a diferentes agentes.
X. Acresce que a própria situação de mobbing no trabalho é um fenómeno psicossocial complexo, podendo revestir variegadas formas, estas compatíveis entre si - nomeadamente, no que concerne ao critério dos agentes, o mobbing horizontal e o mobbing vertical, podendo ainda ser combinado/misto, se for levado a cabo através da cadeia hierárquica (vertical), e pelos colegas de trabalho (horizontal), em simultâneo.
XI. Daí advém que peticionando a Recorrente a condenação dos 2.°, 3.° e 4.° Réus no pagamento de determinados valores, solidariamente, por força dos factos ilícitos praticados por cada um destes na qualidade de mobbers, não se poderá confundir tal pedido, realizado ao abrigo do regime da responsabilidade civil extracontratual, com o pedido de condenação da 1.a Ré ao abrigo do regime da responsabilidade civil contratual.
XII. Não se pode partir do princípio errado de que toda a causa de pedir e pedido indemnizatório são baseados no contrato de trabalho pelo facto de estarmos perante uma questão laboral, uma vez que o fenómeno do mobbing não se pode compreender com uma visão de tal modo restritiva, uma vez que o mobbing é um fenómeno que só se compreende atendendo à especial complexidade da situação fáctica, à vulnerabilidade que caracteriza a posição do trabalhador, e ainda ao papel dos agentes executores da perseguição - sejam estes últimos a Entidade Empregadora, colegas, superiores hierárquicos, ou todos em simultâneo.
XIII. De facto, além de vincar a responsabilidade da Entidade Empregadora pelos episódios de mobbing vertical e horizontal ocorridos, a Recorrente descreveu ainda exaustivamente os factos voluntários, ilícitos e culposos praticados pelos 2.°, 3.° e 4.° Réus, bem como os danos causados e concomitante nexo causal. Ora vide para uma melhor intelecção: quanto aos factos voluntários, ilícitos e culposos praticados pelo 2.° Réu, o Artigo 96.° da Petição Inicial, no que tange ao esvaziamento de funções da Recorrente, os Artigos 103.° a 106.° da Petição Inicial, no que tange à ameaça de mobilização da Recorrente para um outro hospital e os Artigos 181.° e 182.° da Petição Inicial, no que tange à ameaça de mobilização da Recorrente para um outro hospital; quanto aos factos voluntários, ilícitos e culposos praticados pelo 3.° Réu os artigos 67.° e 68.° da Petição Inicial, no que tange ao esvaziamento de funções da Recorrente, o artigo 77.° da Petição Inicial, no que tange à indicação dada à Recorrente de que não teria mais direito a qualquer formação, o artigo 96.° da Petição Inicial, no que tange ao esvaziamento de funções da Recorrente, os artigos 103.° a 106.° da Petição Inicial, no que tange à ameaça de mobilização da Recorrente para um outro hospital e os artigos 181.° e 182.° da Petição Inicial, no que tange à ameaça de mobilização da Recorrente para um outro hospital; quanto aos factos voluntários, ilícitos e culposos praticados pelo 4.° Réu, o artigo 96.° da Petição Inicial, no que tange ao esvaziamento de funções da Recorrente, os artigos 103.° a 106.° da Petição Inicial, no que tange à ameaça de mobilização da Recorrente para um outro hospital, e os artigos 181.° e 182.° da Petição Inicial, no que tange à ameaça de mobilização da Recorrente para um outro hospital.
XIV. Ainda, quanto aos danos causados e respectivo nexo com os factos praticados pelos 2.°, 3.° e 4.° Réus, vide os artigos 166.° e 167.° da Petição Inicial, no que tange ao estado físico e psicológico da Recorrente, os artigos 169.° a 170.°, no que tange à impossibilidade de realizar o exame de especialidade em função de tal estado, os artigos 175.° a 180.°, no que tange ao episódio agudo sofrido pela Recorrente na sua doença de base em razão do estado de coisas, os artigos 181.° a 184.°, no que tange ao impacto da ameaça dos Réus no estado nervoso da Recorrente, a qual sofreu, em razão dessa, uma Hemorragia Cerebral, os artigos 190.° a 194.°, no que tange à impossibilidade da Recorrente de realizar o exame de especialidade em razão do seu estado físico e psicológico, nomeadamente dando entrada nas urgências por cefaleia e perda de visão à direita, os artigos 203.° a 208.°, no que tange aos prejuízos causados à Recorrente inerentes ao seu percurso profissional, os artigos 249.° a 251.° e 255.° a 258.° no que tange ao impacto do assédio moral praticado na vida da Recorrente, os artigos 261.° a 268.°, no que tange aos prejuízos causados à Recorrente, os artigos 271.° a 274.°, no que tange aos valores despendidos pela Recorrente em razão dos factos praticados pelos Réus, bem como os artigos 292.° a 296.°, no que tange ao dano de perda de chance.
XV. Peticionou por conseguinte a Recorrente a declaração da prática de assédio moral por todos os Réus, bem como a condenação de todos os Réus no pagamento, em relação de solidariedade, de 50.000,00 Euros a título de indemnização pela prática de assédio moral no local de trabalho e danos não patrimoniais, 1.533,44 Euros a título de danos patrimoniais já liquidados, a que acrescerão aqueles que se vencerão no decurso da presente acção e 61.933,81 Euros a título de indemnização pelo dano da perda de chance.
XVI. É por conseguinte evidente que a relação material controvertida, nos termos em que foi delineada pela Recorrente (n.° 3 do art. 30.° do Código de Processo Civil), não só traz à liça a responsabilidade contratual da 1.a Ré, como a responsabilidade extracontratual dos 2.°, 3.° e 4.° Réus, referenciando assim factos praticados por todos estes, na qualidade de mobbers, e peticionando a condenação dos mesmos precisamente por revestirem a qualidade de perpetradores de tais actos, nos termos melhor configurados em sede de Petição Inicial.
XVII. Tanto assim é que os 2.°, 3.° e 4.° Réus demonstraram, em sede de Contestação, um verdadeiro interesse em contradizer, utilizando os mesmos mais de 324 (trezentos e vinte e quatro) artigos para impugnarem o alegado pela Recorrente no que a si diz respeito. Ora vide: entre os artigos 206.° a 212.° e 236.° a 246.°, os Réus defendem-se, por impugnação, da ameaça e da tentativa de mudança de local de trabalho da Autora, relatando a reunião havida no dia 21 de Junho de 2016, enquadrando a mesma na sua tese; nos artigos 213.° a 235.°, 249.° a 251.°, 292.° a 300.°, 309.° a 321.°, os Réus pronunciam-se sobre o esvaziamento de funções da Autora; nos artigos 255.° a 261.° e 263.° a 270.° os Réus explicam, na sua fantasiosa tese, o ocorrido quanto à não inscrição da Autora; nos artigos 272.° a 283.° e 283.° (2.°) a 291.°, os Réus alegam os factos essenciais da sua defesa relativos às mudanças sucessivas da Autora no Serviço de Urgência.
XVIII. O 1.°, 2.°, 3.° e 4.° Réus são todos eles sujeitos da relação litigiosa, evidenciando-se a existência de um interesse directo em contradizer os factos que lhes foram imputados. A própria procedência da acção implica, necessariamente, por força do pedido, uma desvantagem para os 2.°, 3.° e 4.° Réus, a qual os mesmos, logicamente, têm interesse em impedir.
XIX. Tendo sido atribuídos, como foram, aos 2.°, 3.° e 4.° Réus comportamentos lesivos da dignidade e saúde psíquica da Recorrente, razões inexistem para que os mesmos não respondam lado a lado com a Entidade Empregadora, ainda que ao abrigo de qualificações jurídicas diferentes, em razão de se tratarem estes de mentores e executantes da perseguição, ocorrendo uma extensão da legitimidade passiva por força da sua responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos do artigo 483.°, n.° 1 do Código Civil.
XX. Dúvidas não podem existir de que a exceptio de ilegitimidade passiva deveria ter sido julgada desde logo improcedente, não devendo ocorrer a absolvição dos 2.°, 3.° e 4.° Réus da instância.
XXI. Efetivamente, atento o ínsito no n.° 3 do art. 30.° do Código de Processo Civil, sempre os Réus teriam legitimidade. A provar-se que praticaram os actos invocados em sede de Petição Inicial, serão condenados no pedido formulado. Se não se provar tal matéria, serão absolvidos do pedido..., mas nunca da instância - tratando-se dos princípios basilares mais básicos da lei processual civil.
XXII. Com a alteração do Código de Processo Civil de 95/96, o Legislador, tomando posição expressa, - e acolhendo a doutrina de Barbosa de Magalhães - apontou no sentido de, para efeitos de legitimidade, a título subsidiário, considerá-la “tal como é configurada pelo autor1’, o que revela desde logo o desacerto do Tribunal a quo.
XXIII. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, entre outros, o artigo 10.°, n.° 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, bem como o artigo 30.° do Código de Processo Civil.
XXIV. Razão pela qual se requer desde já a V. Exas., Senhores Desembargadores, que revoguem a decisão proferida quanto à ilegitimidade passiva dos 2.°, 3.° e 4.° Réus, julgando a excepção improcedente (…)”.
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Notificados que foram para o efeito, os Recorridos produziram contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido quanto à decidida falta de legitimidade processual passiva dos Réus BB, CC e DD, para intervir em juízo.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu o parecer a que se alude no nº.1 do artigo 146º do CPTA.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, a questão a dirimir resume-se a saber se o despacho saneador recorrido, ao julgar procedente a exceção de ilegitimidade passiva dos Médicos Réus, absolvendo-os da instância, incorreu em erro de julgamento de direito, por violação do “(…) artigo 10.º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, bem como o artigo 30.º do Código de Processo Civil (…)”.
É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III. 1 – DE FACTO
O Tribunal a quo não fixou factos, em face do que aqui se impõe estabelecer a matéria de facto, rectius, ocorrências processuais, mais relevante à decisão a proferir:
A- Em 02.02.2021, a Autora, aqui Recorrente deduziu a presente Ação Administrativa no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto [cfr. fls. 1 e seguintes dos autos principais – suporte digital -, teor se dá por integralmente reproduzido].
B- Nela demandou o Hospital Geral de Santo António, E.P.E., BB, CC, e DD [idem].
C- E formulou o seguinte petitório:”(…)
Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, nos seguintes termos:
a) Ser declarado que os Réus praticaram assédio moral contra a Autora desde 2015;
b) Serem os Réus condenados a pagar à Autora, solidariamente, a quantia de 50.000,00 Euros a título de indemnização pela prática de assedio moral no local de trabalho e danos não patrimoniais;
c) Serem os Réus condenados a pagar à Autora, solidariamente, a quantia de 1.533,44 Euros a título de danos patrimoniais já liquidados, a que acrescerão aqueles que se vencerão no decurso da presente acção;
d) Ser os Réus condenados a pagar à Autora a quantia de 61.933,81 Euros a título de indemnização pelo dano da perda de chance.
A todos estes valores deverão acrescer juros de mora vencidos desde a data de vencimento dos respectivos créditos até efectivo e integral pagamento” [idem].
D) Em 25.02.2022, foi promanado despacho saneador, no qual, de entre outras determinações, foi julgada procedente a suscitada exceção de ilegitimidade processual dos Réus BB, CC e DD, absolvendo-os da instância [cfr. fls. 702 e seguintes dos autos principais – suporte digital, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
E) Sobre esta decisão judicial sobreveio, em 28.06.2022, o presente recurso jurisdicional [cfr. fls. 823 e seguintes dos autos principais -suporte digital, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
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III. 2 - DO DIREITO
Cumpre decidir, sendo que, como se referiu supra, a única questão que se mostra controversa e objeto do presente recurso jurisdicional consiste em saber se o despacho saneador recorrido, ao julgar procedente a exceção de ilegitimidade passiva dos Médicos Réus, absolvendo-os da instância, incorreu em erro de julgamento de direito, por violação do “(…) artigo 10.º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, bem como o artigo 30.º do Código de Processo Civil (…)”.
Vejamos, convocando, desde já, a fundamentação de direito que, neste particular conspecto, ficou vertida na decisão judicial recorrida: ”(…)

Da legitimidade dos Réus
Os 2.°. 3.° e 4.° Réus alegam ser partes ilegítimas na presente ação porquanto, conforme decorre da petição inicial, a Autora veio demandar a Ré com base em alegadas violações do contrato administrativo de provimento, entretanto convertido em contrato de trabalho em funções públicas que celebrou com o Centro Hospitalar e Universitário do Porto, E.P.E., fundamentando a sua ação em normativos que regem os deveres do empregador e as suas obrigações com o trabalhador. Ora, os sujeitos de tal relação jurídica laboral são a Autora, na qualidade de trabalhadora, e o Centro Hospitalar, nenhum facto alegando a A. que possa sustentar a solidariedade na obrigação de indemnização.
Por outro lado, alega também que o 1.° Réu é parte ilegítima porquanto desde 1 de janeiro de 2005 que a entidade patronal da A. é a Administração Regional de Saúde do Norte, não obstante a sua formação se desenvolver no Hospital Geral de Santo António, S.A..
A Autora replicou dizendo que a legitimidade e responsabilidade dos 2.°, 3.° e 4.° Réus advém da sua qualidade de assediantes e não da existência de qualquer vínculo contratual com a A., pelo que se trata de responsabilidade extracontratual prevista no Código de Trabalho.
Quanto à legitimidade do 1.° Réu, alega que são os Réus que confirmam no artigo 108.° da contestação que celebraram com a A. um contrato que consta como documento n.° 2 junto à petição inicial, que foi o único contrato que a A. celebrou durante o seu Internato Médico, inexistindo qualquer segundo contrato. O regime aplicável à colocação dos médicos em regime de internato resultava das normas ali previstas, não existindo qualquer vínculo à Administração Regional de Saúde do Norte, mas sim ao estabelecimento concreto de saúde onde o internato se realizava. De todo o modo, o poder de direção do Internato médico da A. sempre residiu no 1.° Réu, sendo-o exercido pelos 2.°, 3.° e 4.° Réus.
Vejamos.
Dispõe o artigo 10.°, n.° 1 do CPTA que “cada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”. Tal norma retoma a regra geral enunciada no artigo 30.° do CPC, segundo o qual a legitimidade passiva corresponde à contraparte na relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, devendo este demandar em juízo quem alegadamente estiver colocado, no âmbito dessa relação, em posição contraposta à sua.
Segundo Sónia Kietzmann Lopes, in “O assédio moral no trabalho”, O Assédio no Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, 2014, pp. 161 e 162, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=k5rY8GLEm_c%3d&portalid=30:
“O n.° 3 do artigo 29.° do Código do Trabalho manda aplicar à prática de assédio o disposto no artigo 28.° do mesmo diploma. Este preceito dita, por sua vez, que “A prática de acto discriminatório lesivo de trabalhador ou candidato a emprego confere-lhe o direito a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais de direito”.
Dúvidas não restam, pois, de que a vítima de assédio moral no trabalho pode fazer valer a pretensão de ser indemnizada pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que o comportamento em questão lhe causou e isto independentemente de a relação laboral ter chegado a cessar.
(...)
Cremos, contudo, que o ressarcimento dos danos decorrentes do assédio moral no trabalho se verificará, o mais das vezes, por recurso ao instituto da responsabilidade contratual. É que, em regra, estamos em face da violação de deveres contratuais secundários ou acessórios. Como tal, opera a presunção de culpa prevista no artigo 799.° do Código Civil.
(...)
Em acórdão datado de 12 de março de 2014 (.) [acórdão do STJ, de 12/03/2014, processo n.° 590/12.5TTLRA.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt], o Supremo Tribunal de Justiça analisou ainda a questão de saber em que medida pode o empregador ser responsabilizado pelo mobbing praticado por um seu trabalhador, superior hierárquico do assediado. Concluiu ser de aplicar o disposto no artigo 800.° n.° 1 do Código Civil, isto é, a responsabilização do empregador pelos atos de pessoa que utiliza para cumprimento dos deveres acessórios ou secundários ofendidos por meio da conduta assediante.”.
Face à configuração fáctico-jurídica que o Autor fez na petição inicial como litígio emergente de vínculo de emprego público baseado em assédio moral e, como tal, com remissão para normas do Código do Trabalho, a outra parte na relação material controvertida é o empregador com quem celebrou contrato - Hospital Geral de Santo António, S.A., atualmente Centro Hospitalar Universitário do Porto, E.P.E. conforme alteração de designação ocorrida em 04.08.2018 (conforme explanado na questão prévia da contestação), contrato esse que se encontra junto à petição inicial, como documento n.° 2 e que sustenta a relação jurídica atinente ao internato médico, no âmbito do qual alegadamente ocorreram os factos em causa nos presentes autos. Assim, o 1.° Réu é parte legítima nos termos das normas acima explanadas.
Apesar de a Autora na réplica se referir a responsabilidade extracontratual do 2.°, 3.° e 4.° Réus, a relação configurada pela mesma na petição inicial assenta em responsabilidade contratual do empregador, sendo que o mesmo é responsável pelos atos praticados pelos seus representantes legais ou pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, nos termos do artigo 800.°, n.° 1 do Código Civil. Assim e face à responsabilidade do 1.° Réu pelos atos eventualmente praticados pelos demais Réus, nos termos do artigo 800.° do CC, para os efeitos da responsabilidade contratual, os Réus BB, CC e DD são partes ilegítimas na presente ação configurada com base em responsabilidade contratual, inexistindo por parte dos mesmos interesse em contradizê-la.
Atendendo ao exposto, procede a exceção de ilegitimidade dos Réus BB, CC e DD, pelo que se absolve os mesmos da instância nos termos dos artigos 89.°, n.° 4, al. e) e n.° 2 do CPTA (…)”.
Espraiada a fundamentação vertida na decisão judicial recorrida, e após exame dos argumentos esgrimidos pela Recorrente, adiante-se, desde já, que o assim decidido não é de manter.
Na verdade, e no que para aqui releva, a legitimidade passiva, enquanto pressuposto processual, afere-se pela forma como o Autor configurou a sua causa de pedir e respetivo pedido [artigos 9.º, n.º 1, 2ª parte e 10.º, n.º 1, do CPTA e ainda o artigo 30.º, n.º 3, do CPC].
Assim, considerar-se-ão partes legítimas, os sujeitos da relação material controvertida tal como “desenhado” pelo Autor na sua petição inicial, independentemente da titularidade da posição jurídica substantiva [cfr. EE, in A Justiça Administrativa, 4ª edição, Almedina, pp. 257 e seguintes e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, Almedina, pp. 154 e seguintes].
Por isso, embora constitua um pressuposto processual relativo às partes, a legitimidade processual não é uma condição de procedência da ação [cfr. entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 17 de novembro de 1996, proferido no processo n.º 03... e de 1 de outubro de 1998, proferido no processo n.º 04..., ambos acessíveis em www.dgsi.pt] distinguindo-se, por isso, da legitimidade-condição ou material [cfr. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12 de dezembro de 2002, proferido no processo n.º 0828/02, acessível em www.dgsi.pt].
Do que resulta que, para a sua aferição, relevará apenas a forma como o Autor configurou a sua pretensão, quer quanto ao objeto, quer quanto aos sujeitos da relação material controvertida, sendo, para este efeito, irrelevante se, a final, se vier a verificar que um daqueles sujeitos nunca teria, à luz do direito material, qualquer interesse em contradizer a sua pretensão.
Quer isto tanto significar, com reporte ao caso em apreciação, que a resposta a dar à questão da legitimidade dos Médicos Réus radica na forma como a Autora apresentou a sua pretensão em juízo, maxime, na forma como contrapôs a sua posição à dos Réus particulares e com que fundamentos pretende obter da mesma o por si peticionado.
Neste particular conspecto, dir-se-á que não oferece controvérsia que os presentes autos respeitam a uma ação administrativa tendente (i) ao reconhecimento judicial de “(…) que os Réus praticaram assédio moral contra a Autora desde 2015 (…)”, e do consequente (ii) direito à indemnização pela sua prática e respectivos danos causados.
É também consensual que a “causa de pedir eleita” nos autos no tocante às pretensões jurisdicionais supra elencadas radica numa alegada ilegal atuação dos Réus em face à Autora, consubstanciada na prática proibida de assédio moral, que originou os danos reclamados nos presentes autos.
Apresenta-se também pacífico que a Autora dedica, no mais essencial, os artigos 96º, 103º a 106º e 181º a 182º ao 2º Réu; os artigos 67º, 68º, 77º, 96º, 103º a 106º, e 181 a 182º ao 3º Réu; e os artigos 96º, 103º e 181º a 182º ao 4º Réu, imputando-lhes a prática de comportamentos ilícitos e culposos ilícitos variados, como sejam, (i) a impossibilidade de realização de formação adicional, (ii) o esvaziamento das suas funções e ainda a (iii) a ameaça de mobilização para outro Hospital.
De facto, na ótica da Autora, ao praticar estes comportamentos, os Médicos Réus tornaram-se responsáveis pelos danos reclamados nos autos.
No quadro em apreço, isto é, tendo em atenção as pretensões formuladas nos presentes autos e [ainda] o modo como a Autora conforma a causa de pedir, assoma em evidente que os Médicos Réus têm interesse em se defender, pois naquelas formulações, podem ser condenados e assim sofrer os correspondentes prejuízos que resultaria de uma eventual procedência da presente ação.
Forçosamente se conclui, então, que se existe a possibilidade de condenação dos Réus particulares nos presentes autos, não pode haver ilegitimidade passiva, dado que há um manifesto interesse em contradizer.
E tal não obsta a “natureza particular” dos médicos Réus.
De facto, esta posição de abrangência é confirmada no art.º 10º n.º 9 do C.P.T.A., que permite que a ação seja proposta, não apenas contra os entes públicos, mas também contra todos os outros interessados [ainda que sejam particulares], quando o envolvimento destes se situe ainda no âmbito de uma relação jurídica administrativa.
Independentemente do regime de responsabilidade civil a operar no caso concreto - contratual [de rigor mais discutível] ou extracontratual -, dúvidas podem subsistir que estamos na presença de uma ação intentada contra uma entidade pública e três médicos particulares, todos eles envolvidos numa relação jurídico-administrativa com a Autora da ação, na qual vem assacada responsabilidade, a par da entidade pública, aos ditos médicos particulares pela produção dos danos na esfera da Autora reclamados nos autos.
O que permite acomodar largamente a aplicação da normação que se vem de analisar, e, qua tale, admitir-se a dedução da presente ação também contra os médicos particulares visados nos autos.
Deste modo, não tendo sido este o caminho trilhado do despacho saneador recorrido, é mandatório concluir que este não fez correta subsunção do tecido fáctico apurado nos autos ao bloco legal aplicável, sendo, por isso, merecedora da censura que a Recorrente lhe dirige.
Consequentemente, impõe-se conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, devendo revogar-se o despacho saneador recorrido na parte em que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva do dos Réus particulares supra identificados, devendo os autos prosseguir também contra estes.
Ao que se provirá em sede de dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, e revogar o despacho saneador recorrido na parte em que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva dos Réus particulares supra identificados, devendo os autos prosseguir também contra estes.
Custas pelos Recorridos.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 11 de novembro de 2022,
Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia