| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
«AA» instaurou acção administrativa de impugnação de acto administrativo contra o Instituto da Segurança Social, IP, ambos melhor identificados nos autos, formulando os seguintes pedidos:
“O ATO ADMINISTRATIVO PRATICADO PELA RÉ NO DIA 8 DE NOVEMBRO DE 2016 SER DECLARADO NULO; E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE CONSIDERE, PARA EFEITO DE CÁLCULO DA PENSÃO DE INVALIDEZ RELATIVA DO AQUI AUTOR, A CARREIRA CONTRIBUTIVA EFETUADA NA CPAS NA PARTE EM QUE NÃO SE SOBREPONHA À CARREIRA CONTRIBUTIVA EFETUADA NA SEGURANÇA SOCIAL (CONCRETAMENTE OS ANOS DE 1989, 1990, 1991, 1992, 1993, 1994, 1995, 1996, 2000 E 2001) COM EFEITOS RETROATIVOS À DATA DE 10 DE OUTUBRO DE 2016; BEM COMO SEJA A RÉ CONDENADA AO PAGAMENTO DE TODAS AS QUANTIAS QUE NÃO FORAM PAGAS A TÍTULO DE PENSÃO DE INVALIDEZ AO AQUI AUTOR POR FORÇA DA NÃO CONSIDERAÇÃO DE TODA A CARREIRA CONTRIBUTIVA NO CÁLCULO DA PENSÃO, DESDE 10 DE OUTUBRO DE 2016.”.
Por saneador-sentença proferido pelo TAF de Braga julgou-se verificada a excepção de intempestividade da prática do acto processual e absolveu-se a Entidade Demandada da instância.
Deste vem interposto recurso.
Alegando, o Autor concluiu:
I - A desconsideração da totalidade da carreira contributiva para efeito de cálculo da pensão de invalidez do aqui Recorrente viola o disposto no artigo 63.º n.º 4 da Lei Fundamental, isto é, o direito ao aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador, aqui Recorrente.
II - Essa ilegalidade determina a existência de uma nulidade nos termos do artigo 161.º n.º 1 e 2 al. d) do Código do Procedimento Administrativo.
III - O direito constitucional previsto no art. 63.º n.º 4 da CRP constitui um direito fundamental, tal como sufraga a melhor doutrina e a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
IV - No mais, a ilegalidade em causa nos presentes autos ofende o conteúdo essencial do direito fundamental em causa, na medida em que a não consideração dos períodos contributivos do aqui Recorrente para a CPAS nos períodos em que se não se sobrepuseram aos efetuados na Segurança Social, determina o esvaziamento total do disposto no art. 63.º n.º 4 da CRP e, portanto, a violação indubitável do conteúdo essencial desse direito.
V- Por isso, a imputação da nulidade ao ato praticado pela Recorrida não tem por fundamento a existência de um erro de cálculo no domínio da definição do quantum da pensão de invalidez relativa do Recorrente, mas a privação do direito à contagem de todo o tempo de serviço prestado.
VI - E o esvaziamento total do disposto no art. 63.º n.º 4 da CRP determina a existência de uma violação do direito de uma existência condigna, que por sua vez determina a nulidade do ato praticado pela Recorrida, tal como entendeu o Supremo Tribunal de Justiça Administrativo no acórdão proferido no dia 1 de fevereiro de 2024, no âmbito do processo nº 0195/18.7BEPNF.
Não foram juntas contra-alegações.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1 - Em 29 de Setembro de 2015, o Autor requereu a atribuição de pensão de invalidez (cfr. fls. 1 a 6 do PA);
2 - Em 8 de Novembro de 2016, ao Autor foi deferida a atribuição de pensão de invalidez (cfr. fls. 11 do PA- que se dá aqui por inteiramente reproduzida);
3 - Por Oficio, datado de 8 de Novembro de 2016, foi comunicado ao Autor a decisão referida em 2) (cfr. doc. 1 junto com a p.i. e fls. 33 do PA - que se dá aqui por inteiramente reproduzido);
Em 24 de Novembro de 2016, o Autor interpôs reclamação do despacho referido em 2) (cfr. fls. 14 e 15 do PA);
Por Ofício, com registo de saída de 28 de Maio de 2021, foi comunicado ao Autor a decisão relativa à sua reclamação (cfr. fls. 27 do PA).
10 - Em 18 de Novembro de 2024, o Autor instaurou a presente acção (cfr. fls. 1 dos presentes autos).
DE DIREITO
Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Sem embargo, por força do artigo 149.º do CPTA, o Tribunal, no âmbito do recurso de apelação, não se quedará por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decidirá “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
Assim, está posta em causa a decisão que julgou verificada a excepção de intempestividade da prática do acto processual e, consequentemente, absolveu da instância a Entidade Demandada.
O Recorrente pede que o ato administrativo praticado pelo Réu, no dia 8 de novembro de 2016, seja declarado nulo e substituído por outro que considere, para efeito de cálculo da sua pensão de invalidez, a carreira contributiva efetuada na CPAS na parte em que não se sobreponha à carreira contributiva efetuada na segurança social.
Cremos que lhe assiste razão.
Vejamos,
O Tribunal a quo entendeu que a violação do princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho para efeitos da pensão de invalidez do aqui Recorrente plasmado no nº 4 do artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa possui um desvalor jurídico que não é a nulidade, mas a anulabilidade, determinando, consequentemente, a intempestividade da impugnação efetuada e absolvendo a Recorrida da instância.
Ora, o Tribunal a quo não questiona sequer se, de facto, existiu a violação do princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho prestado pelo Recorrente, limitando-se apenas a duvidar do desvalor jurídico a imputar à referida ilegalidade, a saber: se determina a existência de uma nulidade ou de uma anulabilidade.
O artigo 161.º n.ºs 1 e 2 al. d) do CPA estatui que:
“1 - São nulos os atos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
2 - São, designadamente, nulos:
(...)
d) Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;”
Ora, dúvidas não podem existir de que o direito constitucional previsto no art. 63.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa constitui um direito fundamental.
Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1, 2ª ed., pág. 935): «(...) o direito ao aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador constitui um direito fundamental constitucionalmente densificado, assumindo a natureza de “um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias» e sendo, nessa medida, aplicável o regime específico dos direitos, liberdades e garantias (...)»
E no mesmo sentido J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. 1, 4ª ed., pág. 819):
“A este propósito, o nº 4, acrescentado pela LC nº 1/89, pretende salientar o princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho para efeitos de pensões de velhice e invalidez, acumulando-se os tempos de trabalho prestados em várias atividades e respetivos descontos para os diversos organismos da segurança social. Em rigor, não se trata de contagem de tempos de trabalho, mas sim de contagem de tempos de serviços juridicamente relevantes para o exercício do direito à segurança social (direito à aposentação e valor da pensão) (cfr. Acs. TC n°s 411/99 e 72/02), dando a Constituição abertura quer para o pagamento retroativo de contribuições, quer para a consideração de outros tempos de serviço como equivalentes à entrada de contribuições. Deve notar-se que o princípio constitucional em referência se deve articular com o princípio da manutenção de direitos adquiridos e com o princípio da manutenção dos direitos em curso de aquisição consagrados em convenções internacionais (Convenção da OIT n° 48 e n° 128) (...). Estes princípios impõem que sejam considerados todos os períodos de qualificação (de atividade profissional, de residência, de seguro) relevantes para o reconhecimento de direitos e cálculo de pensões. Em termos técnicos, acabou por se impor a prorratização, isto é, a totalização dos períodos de seguro e a repartição das cargas prestacionais de acordo com a duração dos períodos cumpridos em cada um dos sistemas (cfr. Ac. TC n° 411/99).”
O mesmo Tribunal Constitucional sufraga este entendimento de forma particularmente elucidativa quer no Acórdão nº 554/2003 de 12 de novembro de 2003 no processo n.º 96/01, quer no Acórdão nº 411/1999 de 29 de junho de 1999 no processo nº 1098/98 aqui trazidos pelo Recorrente.
Daí resulta: A alteração constitucional de 1989 pretendeu, assim, promover um aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador, independentemente do sistema de segurança social a que ele tenha aderido, e desde que tenha efectuado os descontos legalmente previstos.
É ainda hoje essa a intenção, que se encontra claramente manifestada no n° 4 do artigo 63° da Constituição (versão de 1997):
"Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado."
Quando o texto constitucional remete para "os termos da lei", fá-lo para efeitos de concretização do direito, não a título de cláusula habilitativa de restrições. A utilização da expressão "todo o tempo de trabalho...", em conjugação com o segmento "independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado" impõe, nesta matéria, a obrigação, para o legislador ordinário, de prever a contagem integral do tempo de serviço prestado pelo trabalhador, sem restrições que afectem o núcleo essencial do direito.
Como o direito à contagem do tempo de serviço para efeitos de aposentação tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, aplica-se-lhe o regime destes.
Temos, assim, que o direito do aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador previsto no art. 63.º n.º 4 da Lei Fundamental constitui um Direito Fundamental.
Como é sabido, a lei determina que o ato é nulo se ofender o conteúdo essencial de um direito fundamental (cfr. artigo 161.º n.º 2 al. d) do Código do Procedimento Administrativo).
Ora, o Tribunal a quo começa por afirmar que para um ato ser nulo é necessário:
“(...) que tal ofensa incida sobre o núcleo essencial desse mesmo direito fundamental, ou seja, que a pessoa fique privada em absoluto desse mesmo direito.”. Isto é, o Tribunal sufragou o entendimento segundo o qual a violação de um direito fundamental consubstancia-se numa privação absoluta desse mesmo direito.
Deste modo, para existir a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental - em particular do previsto no artigo 63.º n.º 4 da Lei Fundamental - não é necessário a privação absoluta desse direito, mas tão só a violação, para lá de qualquer dúvida, daquilo que esse direito tem de essencial.
Ora, a não consideração de todos os períodos contributivos do aqui Recorrente para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores nos períodos que não se sobrepuseram aos efetuadas para a Segurança Social, determina a violação indubitável do conteúdo essencial do direito previsto no art. 63.º n.º 4 da Lei Fundamental, razão suficiente para se verificar a falada nulidade nos termos do art. 161.º n.º 2 al. d) do CPA.
Ademais, do que se trata nos presentes autos não é de um erro de cálculo no domínio da definição do quantum da pensão de invalidez, mas da privação de um direito constitucionalmente previsto, isto é, a negação ao aqui Recorrente do direito à contagem de todo o tempo de serviço que, por sua vez, se manifesta inevitavelmente no quantum da prestação social, mas que com ela não se confunde.
Naturalmente que, por isso mesmo, sempre existirá um erro de cálculo; porém não é esse erro que conduz à nulidade, mas antes a desconsideração total do tempo de trabalho realizado pelo Recorrente que, por sua vez, conduz a um cálculo errado da pensão de reforma por invalidez.
E é, repete-se, o esvaziamento total do disposto no art. 63.º n.º 4 da Lei fundamental que viola o princípio da dignidade da pessoa humana ínsito no art. 1.º daquela lei e não o cálculo errado da pensão de reforma. Dito de outro modo, é esse esvaziamento que constitui uma violação inaceitável do direito de uma existência condigna que por sua vez determina a nulidade do ato praticado, conforme bem invocado pelo Apelante.
Esta leitura foi sufragada pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no dia 1 de fevereiro de 2024 no âmbito do processo nº 0195/18.7BEPNF, de cujo sumário se extrai:
(…)
X - Não sendo o direito à segurança social um direito uno, nem homogéneo, antes abrangendo no seu seio diversos direitos e faculdades, contempla a refração constante do disposto no n.º 4, do artigo 63.º da Constituição, referente à consideração do tempo total de serviço prestado pelo trabalhador.
XI - Constitui o direito à pensão um direito social que obriga o Estado e as instituições de segurança social a assegurar o seu respetivo acesso, no seu papel de garante de um sistema nacional de proteção social, designadamente, na fase de aposentação ou reforma, considerando “todo o tempo de trabalho (…) independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado”, como estabelecido no n.º 4, do artigo 63.º da Constituição.
XII - A admitir-se a atuação da Entidade Recorrida, a norma constitucional ficaria esvaziada no seu sentido e o direito à contagem de todo o tempo de serviço seria afetado no seu núcleo essencial, o que está vedado pelo n.º 3, do artigo 18.º da Lei fundamental, pois eliminando uma parte do tempo de trabalho prestado pela Recorrente, já não seria todo o tempo de trabalho a contribuir para efeito do direito à pensão, mas apenas uma parte dele.
Em suma,
A desconsideração total e absoluta dos períodos contributivos do aqui Recorrente para a CPAS nos períodos que não se sobrepuseram aos efetuados pela Segurança Social para efeito de cálculo da pensão por invalidez relativa, ofendem o conteúdo essencial do direito fundamental previsto no art. 63.º n.º 4 da Lei Fundamental, enquanto manifestação do princípio da dignidade da pessoa humana;
Consequentemente, o desvalor jurídico a imputar à violação do disposto no art. 63.º n.º 4 da Lei Fundamental é, in casu e tendo em conta a factualidade em causa, a nulidade;
Donde ser imperiosa a revogação da sentença recorrida.
Procedem, pois, as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a remessa dos autos ao TAF a quo a fim de seguir a normal tramitação, caso a tal nada mais obste.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.
Porto, 04/7/2025
Fernanda Brandão
Paulo Ferreira de Magalhães
Isabel Jovita |