| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
I. Relatório
L..., titular do número de identificação de pessoa colectiva 50.......92, melhor identificada nos autos, veio, nesta impugnação judicial contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa visando autoliquidação de IRC, relativa ao ano de 2007, no montante de €1.035.061,15, interpor recurso do despacho interlocutório proferido, em 23/03/2022, pela Meritíssima Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou prejudicado o pedido de inquirição das testemunhas arroladas, por ter sido determinado o aproveitamento da inquirição realizada no processo n.º 2...4/...0BEPRT; bem como interpor recurso da sentença, prolatada na mesma data, que julgou improcedente essa impugnação, afastando a aplicabilidade da isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC, por a Recorrente desenvolver, para além da actividade de gestão de resíduos, uma actividade de natureza comercial.
A Recorrente terminou as suas alegações de recurso da decisão interlocutória formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
“1. Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que indeferiu a inquirição das testemunhas arroladas pela Recorrente em sede de petição inicial.
2. No entender da Recorrente, o despacho em crise é nulo por falta de fundamentação, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável por remissão do n.º 3 do artigo 613.º do CPC, por sua vez aplicável por remissão da alínea e) do artigo 2.º do CPPT.
3. Acresce que, de acordo com o princípio da verdade material e do inquisitório não deve ser vedada à Recorrente a inquirição de testemunhas que auxiliariam o Tribunal na descoberta da verdade e na justa composição do litígio (cfr. artigo 13.º do CPPT).
4. A realização da inquirição de testemunhas omitida afigura-se essencial para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa sendo que, a não se realizar, onerará a decisão final com uma distorcida perceção dos factos e, no limite, uma grave omissão de pronúncia.
5. Ao presente recurso deve ser reconhecido efeito suspensivo por forma evitar o incontornável recurso de uma decisão que venha a ser proferida sem ter em conta os factos que deveriam ter sido objeto de prova testemunhal e, em virtude da decisão recorrida, não foram (cfr. artigo 647.º do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do artigo 2.º do CPPT.
TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO, SE REQUER A V. EXAS. A ANULAÇÃO E REVOGAÇÃO DO DESPACHO RECORRIDO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE, QUE SE ORDENE A REALIZAÇÃO DA INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS OMITIDA NOS AUTOS.
MAIS SE REQUER, ATENTO O EFEITO ÚTIL QUE SE VISA ACAUTELAR, QUE O PRESENTE RECURSO SUBA IMEDIATAMENTE E EM SEPARADO.”
O recurso foi admitido para subida imediata, nos próprios autos e em simultâneo com o recurso interposto da decisão final, uma vez que o despacho interlocutório e a sentença foram proferidos na mesma data, em 23/03/2022.
A parte contrária não contra-alegou.
Como referimos, na mesma data, foi prolatada sentença que julgou a impugnação improcedente.
Desta sentença, também foi interposto recurso, cujas alegações a Recorrente resumiu nas seguintes conclusões:
“A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela ora Recorrente contra a autoliquidação de IRC relativa ao ano de 2007, no montante de € 1.035.061,15.
B. O Tribunal a quo entendeu que a Recorrente não podia beneficiar da isenção de IRC prevista na alínea a) do n.º 1 do Código do IRC, sustentando, para o efeito, que “a equiparação que o artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, fazia entre associações de municípios e autarquias locais apenas tinha razão de ser nos casos de impostos em que não existisse qualquer referência expressa àquelas; o que não era, notoriamente, o caso do IRC, que distinguia umas e outras entidades”.
C. Concluiu ainda o Tribunal que a Recorrente também não poderia beneficiar da isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC por (supostamente) exercer uma atividade de natureza comercial – a atividade de venda de produtos (energia, recicláveis, adubos e outros).
D. Porém, por um lado, entende a Recorrente que dos depoimentos das testemunhas, assim como dos documentos constantes dos autos, resultam provados factos essenciais à boa decisão da causa, que foram descurados pelo Tribunal a quo, razão pela qual se afigura essencial a reapreciação da prova; por outro lado, e salvo o devido respeito, considera ainda a Recorrente que a sentença recorrida assenta numa errada apreciação do direito invocado na impugnação e nas alegações.
E. A Recorrente entende que deveriam constar do probatório da sentença recorrida os seguintes factos – que resultam provados da prova produzida nos autos, tanto documental como testemunhal:
1. O objeto social da L... é a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios seus associados e por outras entidades que a associação venha a admitir, bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento de infraestruturas necessárias para o efeito (cfr. n.º 1 do artigo 2.º dos estatutos da L...).
2. A L... foi constituída em face da impossibilidade de os municípios seus associados fazerem individualmente a adequada gestão dos resíduos produzidos nas suas jurisdições (cf. depoimento das testemunhas AA [00:12:54]).
3. O ciclo do tratamento e valorização dos resíduos compreende 4 etapas: a valorização energética, a valorização orgânica, a valorização multimaterial e o confinamento técnico (cfr. “Relatório e Contas 2007”).
4. A L... tem necessidade de valorizar os resíduos e de lhes atribuir um destino na medida em que não seria possível, dentro do espaço geográfico dos municípios, depositar a totalidade dos resíduos aí produzidos (cf. depoimento das testemunhas AA [00:19:40] e BB [01:13:14]).
5. A valorização energética consiste no aproveitamento do poder calorífico dos resíduos obtido através de um processo de combustão, no qual é produzida energia elétrica, que é, posteriormente, injetada na rede, mediante o pagamento de tarifa fixa (não negociável) (cf. “Relatório e Contas 2007” e depoimento da testemunha AA [00:14:53]).
6. A L... procede à combustão dos resíduos por necessidade, como alternativa à libertação de biogás – prática com grande impacto ambiental (cfr. depoimento da testemunha AA [00:14:53]).
7. Para além da gestão de resíduos, a L... dedica-se à realização, de forma totalmente gratuita, de atividades de sensibilização e educação ambiental, com as quais suporta custos (cf. “Relatório e Contas 2007” e depoimento da testemunha AA [00:22:10; 00:40:43; 00:44:40]).
8. A L... desenvolve a sua atividade exclusivamente na área dos seus associados (cfr. n.º 4 do artigo 2.º dos estatutos da L...).
9. A L... exerce a sua atividade por conta e risco dos municípios associados (cfr. n.º 4 do artigo 2.º), os quais estão obrigados a cobrir, até 31 de março de cada ano, os prejuízos verificados no ano económico anterior (cf. n.º 3 do artigo 30.º dos estatutos da L...).
10. Por força dos estatutos, (cfr. alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 6º), os municípios que constituem a L... são obrigados a entregar-lhe a totalidade dos resíduos sólidos urbanos recolhidos nas respectivas circunscrições concelhias e a ela recorrer em exclusivo para os serviços por ela prestados.
11. De acordo com o disposto nos estatutos, cumpre aos municípios associados “efetuar a contribuição financeira para a associação, a título de comparticipação para investimento, bem como contribuições para fazer face a despesas correntes” (cf. alínea d) do artigo 6.º), e ainda “efetuar o pagamento da respetiva quota parte dos encargos com o tratamento de resíduos” (cf. alínea f) do artigo 6.º).
12. A atividade da L... não é orientada para a obtenção de lucro, nem para a sua distribuição (cf. depoimento das testemunhas AA [00:22:10] e BB [01:29:24]).
13. A L... não fixa livremente, em regime de mercado, as contraprestações que recebe pelos bens que “vende” (cf. depoimento da testemunha AA [00:36:49]).
14. A L... afeta a totalidade dos seus resultados à prossecução do interesse público, não procedendo a qualquer distribuição pelos municípios associados (cf. depoimento das testemunhas AA [00:22:10; 00:40:43; 00:44:40] e BB [01:29:24]).
15. A L... está vinculada ao regime de contabilidade estabelecido para os municípios (POCAL – Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 54-A/99, de 22 de Fevereiro) (cf. “Relatório e Contas 2007”).
F. A Recorrente entende que a factualidade ora relatada era sobremaneira relevante para a boa decisão da causa, razão pela qual, a seu ver, se impõe a reapreciação da prova produzida – nomeadamente, a prova testemunhal –, com o concomitantemente alargamento do probatório.
G. Por outro lado, considera também a Recorrente que a sentença recorrida assenta numa errada apreciação do direito invocado na impugnação e nas alegações.
H. Com a entrada em vigor da Lei n.º 11/2003 (que retoma os termos da Lei n.º 172/99), deve ter-se por revogada a norma do Código do IRC sobre a isenção de IRC aplicável às associações de municípios.
I. Esta conclusão impõe-se por força do princípio de direito, plasmado no n.º 2 do artigo 7º do Código Civil, segundo o qual a lei nova revoga a lei anterior com a qual seja incompatível.
J. Não se aplica in casu, a regra segundo a qual “a lei geral não revoga a lei especial” (cfr. o n.º 3 do artigo 7º do Código Civil, porquanto a alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC não configura norma especial face ao artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, que seria “lei geral”.
K. A alínea b) do n.º 1 do artigo 9º do Código do IRC não se pode, portanto, aplicar à situação da Recorrente; o regime que se deve aplicar à situação ora em análise é o do artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, o qual estabelece que as associações de municípios beneficiam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais, entre as quais se conta a isenção de IRC, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do respetivo Código.
L. Caso assim não se entenda – no que não se concede –, sempre se deverá considerar que a Recorrente beneficia da isenção de IRC prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC.
M. Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC, estão isentas de IRC – para o que aqui releva – as associações de municípios que não exerçam atividades comerciais, industriais ou agrícolas.
N. Por sua vez, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 3.º do Código do IRC, “são consideradas de natureza comercial, industrial ou agrícola todas as atividades que consistam na realização de operações económicas de caráter empresarial, incluindo as prestações de serviços”.
O. Note-se, no entanto, que, como o próprio Tribunal a quo reconhece não é qualquer venda ou prestação de serviços que configura uma atividade comercial para efeitos da aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC.
P. Com efeito, o Tribunal a quo qualifica a atividade de “gestão de resíduos sólidos urbanos” – atividade que também consiste na prestação de um serviço – como um “serviço público essencial” (por contraposição às supostas atividades de natureza comercial desenvolvidas pela Recorrente).
Q. Afigura-se portanto premente esclarecer – para efeitos da aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC – o que distingue uma venda ou uma prestação de serviços com natureza comercial de uma venda ou prestação de serviços que não revista essa natureza.
R. De acordo com o Supremo Tribunal Administrativo, «[o] conceito de operações económicas de carácter empresarial é integrado por factos e circunstâncias da vida real, sujeitos à formulação de um juízo expresso no binómio provado/não provado, designadamente
- o propósito de obtenção de lucros e sua distribuição pelos sócios;
- o exercício de actividades em concorrência com agentes económicos privados;
- a livre fixação dos preços dos serviços que presta, em regime de mercado;
- a participação em concursos públicos, em igualdade de circunstâncias com agentes económicos privados» (vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do Processo n.º 419/12.4BEPRT).
S. Ademais, o preceito em causa não poderá deixar de ser interpretado de acordo com a lógica sistemática do Código do IRC, o qual, em vários preceitos que consagram isenções, confere relevância ao destino dos resultados da actividade em causa assim como à (in)existência de qualquer interesse direto ou indirecto dos membros dos órgãos estatutários nos resultados da exploração das atividades em causa.
T. Da análise dos artigos 10.º e 11.º do Código do IRC conclui-se que o legislador pretendeu isentar de imposto as entidades que levassem a cabo determinadas atividades – que o legislador entendeu que seriam de incentivar, atenta a sua vocação para satisfazer interesses públicos – contanto que os resultados desta atividade fossem afetos à prossecução dessas atividades e não à acumulação de capital ou à distribuição de lucros.
U. Esta é também a lógica subjacente à alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º: a ratio legis que subjaz à norma aponta no sentido de que as associações de municípios deverão usufruir da isenção de IRC, na medida em que exerçam, exclusivamente, atividades subordinadas à prossecução do interesse público.
V. Assim, também no quadro da aplicação deste preceito não poderá deixar de se ter em conta o destino dos proveitos auferidos, assim como a (in)existência de qualquer interesse, direto ou indireto, dos membros dos órgãos estatutários nos resultados da exploração das atividades em causa.
W. Com efeito, se se entende que a isenção se justifica pela prossecução do interesse público, então não se vislumbra razão para que uma associação seja dela excluída, mesmo sendo certo que absolutamente TODOS os resultados da atividade que exerce – em obediência àquele interesse coletivo – são afetos e, nessa medida, destinados, a esta finalidade.
X. Assim, não parecem restar dúvidas de que a ratio do preceito em causa impõe que se atenda ao destino dos proveitos auferidos, assim como à (in)existência de qualquer interesse direto ou indireto dos membros dos órgãos estatutários nos resultados da exploração das atividades em causa.
Y. A Recorrente é uma associação de municípios que se dedica à realização de um serviço público – a gestão, tratamento e valorização de resíduos sólidos urbanos – que é da competência dos Municípios (cf. alíneas f) e g) do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho) e que estes decidiram levar a cabo sob a forma associativa, por forma a aproveitarem sinergias e, assim, aumentarem a sua eficiência; é este o seu escopo, a sua finalidade e a sua vocação.
Z. A atividade da Recorrente não é, de todo, orientada para a obtenção de lucro – muito menos para a sua distribuição –, mas antes para a prestação de um serviço público – a gestão, tratamento e valorização de resíduos sólidos urbanos; este é o seu fim, e não um meio para a obtenção de lucro.
AA. A Recorrente exerce toda a sua atividade de forma totalmente desinteressada e altruísta, afetando a totalidade dos seus resultados à prossecução do interesse público, não procedendo a qualquer distribuição pelos municípios associados, que são quem suporta o risco da sua atividade (cf. n.º 3 do artigo 30.º dos estatutos).
BB. Os membros dos órgãos estatutários da Recorrente não têm, por si ou interposta pessoa, qualquer interesse direto ou indireto nos resultados de exploração das atividades prosseguidas.
CC. A Recorrente exerce a sua atividade de forma bastante limitada e alheia a qualquer lógica concorrencial: apenas poderá desenvolver a sua atividade por referência a um determinado tipo de resíduos – os resíduos urbanos (e não outros) – e na área dos municípios associados (correspondente a cerca de 1% do território nacional); significa isto o seguinte: não só não pode qualquer entidade exercer a atividade que a Recorrente exerce na sua circunscrição territorial (porque a mesma é uma atribuição dos municípios, que estes delegaram na Recorrente); como não pode a Recorrente concorrer com outras entidades (que exerçam atividade noutras circunscrições), na medida em que não pode exercer a atividade fora da circunscrição dos municípios associados.
DD. A Recorrente não fixa livremente, em regime de mercado, as contrapartidas auferidas pelos serviços que presta ou pelos bens que vende, nem tão-pouco decide quem são os destinatários dos outputs resultantes da sua atividade (mormente de valorização).
EE. Estando impedida de realizar a sua atividade fora da área dos municípios associados, é, ademais, evidente que a Recorrente não pode participar em concursos públicos.
FF. Tudo sopesado, não poderá deixar de se concluir que a Recorrente beneficia da isenção de IRC prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC – independentemente da realização de quaisquer vendas ou prestações de serviços.
GG. Importa, ademais, notar que se os associados levassem a cabo estas atividades individualmente – ao invés de o fazerem sob a forma associativa – nunca as receitas delas decorrentes seriam tributadas, uma vez que os Municípios se encontram isentos de IRC, dispondo estes, desse modo, de mais rendimento disponível para financiar essas atividades; sendo que não se vislumbra qualquer razão para discriminar e penalizar os Municípios por escolherem exercer esta atividade sob a forma associativa.
HH. Assim, a interpretação da alínea b) do artigo n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC preconizada pelo Tribunal a quo não pode deixar de se considerar inconstitucional por violação dos princípios da igualdade (cf. artigo 13.º da CRP) e da autonomia local (cf. artigo 6.º da CRP).
TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.”
A Recorrida não contra-alegou.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de os recursos interpostos não merecerem provimento.
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Com dispensa dos vistos legais, tendo-se obtido a concordância dos Meritíssimos Juízes-adjuntos, nos termos do artigo 657.º, n.º 4 do CPC; submete-se o processo à Conferência para julgamento.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a decisão interlocutória é nula, por falta de fundamentação, e se errou, em concreto, de facto e de direito, sobre a não realização da diligência de inquirição de testemunhas, quando o tribunal já havia decidido o aproveitamento da prova testemunhal realizada noutro processo; e se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, de facto e de direito, ao afastar a aplicabilidade da isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC, por a Recorrente desenvolver, para além da actividade de gestão de resíduos, uma actividade de natureza comercial.
III. Fundamentação
1. Matéria de facto
Foi proferida a seguinte decisão interlocutória recorrida em 23/03/2022:
“Vem a Impugnante requerer, no artigo 81.º do requerimento apresentado a fls.450 a 468 do SITAF, que seja realizada a inquirição de testemunhas.
Ora, esse pedido queda prejudicado, uma vez que resulta dos autos que foi determinado o aproveitamento da inquirição realizada no processo 2...4/...0BEPRT (fls 336 a 338 do processo físico).
Notifique o presente despacho em simultâneo com a sentença.
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Segue sentença.”
Na sentença recorrida foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“Factos provados
A) A “Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas” emitiu a Informação n.º ...9/...6, de 18/10/2006, com o seguinte teor:
“ASSUNTO: Enquadramento fiscal – Associação de Municípios
DIPLOMA: CIRC ARTIGO: 9.º
ENTIDADE INTERESSADA: L...
…a Divisão de Inspecção I, da Direcção de Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finança do P..., solicitou a apreciação jurídica do enquadramento tributário em sede de IRC do sujeito passivo L..., nipc 50.......92.
A questão que se apresentava tinha a ver com a incompatibilidade entre a Lei que contém o regime das Associações de Municípios e o Código do IRC, no que respeita ao regime fiscal das associações de municípios.
Por um lado, temos a Lei 11/200, de 13.05, …, determinando no seu artigo 36.º que “as comunidades e as associações beneficiam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais”, dendo estas isentas de IRC, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC.
Por outro lado, temos a alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do mesmo Código do IRC que exclui da isenção deste imposto as associações de municípios que exerçam actividades comerciais, industriais ou agrícolas.
L...
1. A L... é uma associação de municípios de fins especiíficos, sendo pessoa colectiva de direito público, criada para a realização de fins específicos comuns aos municípios que a integram.
2. Dos estatutos da L... consta como objecto imediato a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios associados, e por outras entidades que a associação venha a admitir, bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento das infra-estruturas necessárias para o efeito. Contudo, a L... pode ainda, por si ou associada a terceiros, dedicar-se ao tratamento de outros resíduos sólidos, ao tratamento de resíduos hospitalares e à exploração de actividades de natureza energética conexas com o seu objecto.
Resumo das informações anteriores
3. Na sua informação, a DF do porto propugna que a isenção estabelecida no art.º 36.º da Lei 11/2003 aplica-se às associações enquanto no exercício da actividade de interesses específicos comuns aos municípios (associados) e no que respeita às outras actividades, prestadas a título secundário, com carácter comercial e industrial, seriam tributadas de acordo com o disposto no art.º 15.º n.º 1 alínea b) e art.ºs 48.º e 49.º do Código de IRC, sendo afastada a isenção.
4. Entendem que a não ser retirada esta interpretação do art.º 36.º da Lei 11/2003. De 13.05, não faz qualquer sentido a existência, no Código do IRC, da alínea b), do n.º 1. Do art.º 9.º, pois o referido artº 36.º encaminharia automaticamente o enquadramento de qualquer associação de municípios para a alínea a) do n.º 1 do art.º 9.º do Código do IRC, porque as “equipara” a autarquias locais.
5. Na informação n.º .../2006 desta Direcção de Serviços também se tentou uma via de compatibilização dos regimes.
6. Todavia, fomos de opinião que a actividade desenvolvida pela L..., não obstante consubstanciar um serviço público, assenta numa estrutura empresarial, pelo que a considerámos, para efeitos de IRC, como uma entidade que exerce, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.
7. No entanto, trata-se de uma entidade em concreto que além de realizar interesses compreendidos nas atribuições dos municípios (tratamento dos lixos), pela própria natureza da actividade, também promove outros interesses de teor mais empresarial e que poderiam ser desenvolvidos, em concorrência por privados.
8. Pelo que, em nossa opinião, as actividades desenvolvidas pela L... poderiam ser decompostas em dois grupos.
9. Por um aldo, a actividade que poderia ser directamente exercida por cada um dos municípios, não havendo dúvidas que a equiparação às autarquias, para efeitos de isenção fiscal, funcionaria. Como se disse, talvez seja essa a razão da existência da norma de natureza fiscal prevista nos diplomas autónomos.
10. E, assim, poder-se-ia entender que os rendimentos, obtidos pela L..., que respeita, à prestação de serviços efectuada directamente às Câmaras deviam ser considerados isentos, naqueles termos, já que são esses os rendimentos provenientes da realização de interesses compreendidos nas atribuições dos respectivos municípios
11. Por outro aldo, fruto das próprias circunstâncias da evolução técnica do tratamento do lixo, a L... obtém rendimentos de outras actividades que exigem estrutura empresarial e que podem ser exercidas por quaisquer entidades provadas.
12. Quanto a estes, já não actuaria a equiparação a autarquias locais para efeitos fiscais e estariam sujeitos a imposto nos termos gerais.
13. Contudo, a Senhora Directora de Serviços, entendeu ser de ouvir o Centro de Estudos Fiscais (CEF) nesta matéria, visto que o tratamento, em sede de IRC, das associações de municípios não se lhe afigura isento de dúvidas, face às sucessivas publicações de leis que regulam o respectivo regime jurídico e atenta a incompatibilidade entre os regimes fiscais estabelecidos nestas leis e no artigo 9.º do Código do IRC, mostrando-se inadequada a resolução da questão através das regras de aplicação da lei no tempo e do estabelecimento de uma relação de especialidade entre as duas leis (Cfr informação n.º .../2006 da DSIRC).
Parecer n.º 85/2006 do CEF
14. Quanto à actividade da L..., o Parecer do CEF conclui que esta exerce, a título principal, actividades de natureza comercial e industrial, tal como estas são definidas no artigo 3.º, n.º 4, do Código do IRC, apesar de, naturalmente, estas actividades se integrarem no âmbito das atribuições dos municípios, pois não poderiam os municípios constituir associação que visasse a realização de actividades que exorbitassem das suas atribuições.
15. No que concerne á remissão genérica operada pelo artigo 36.º da Lei 11/2003, de 13/05, para as normativas legais que estabelecem isenções para as autarquias ocais não deve ser entendida como prejudicando as normas especiais que expressamente se referem às associações de municípios, como a da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC.
16. De acordo com o citado Parecer, neste sentido militam importantes razões de forma e de substância.
17. Caso a remissão fosse entendida como dirigida à alínea a) do n.º 1 do artigo 9º do Código do IRC, seria subtraído qualquer efeito útil à alínea b); havendo que considera-la implicitamente revogada a partir da entrada em vigor da Lei 11/2003, de 13 de Maio.
18. Por outro lado, o artigo 36.º da citada lei possui um campo de aplicação muito mais vasto, estendendo-se a todos os impostos, não existindo razões para pensar que o legislador tenha querido proceder à revogação implícita de todas as normas que se refiram, de modo especial, às associações de municípios.
19. Assim, no que respeita à interpretação da lei, aquele Parecer conclui que o artigo 36º da Lei 11/2003, de 13.05, deve interpretar-se nos sentido de remeter, em matéria de IRC, para a alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código, querendo isto dizer que as associações de municípios apenas gozarão de isenção deste imposto quando as actividades que exerçam não possuam natureza comercial, industrial ou agrícola, condição que não se verifica quanto á actividade exercida pela L....
20. No sentido de trazer maior clareza e segurança ao regime fiscal aplicável às associações de municípios, sugere-se, no parecer, uma alteração ao artigo 9.º do Código do IRC no sentido de fundir as alíneas a) e b) do n.º 1.
Conclusão
Face a todas as questões levantadas na informação n.º 384/2006 desta Direcção de Serviços, o CEF emitiu parecer no sentido de deixar à instância própria, neste caso, ao Código do IRC, a definição do regime fiscal destas entidades, no que àquele imposto se refere.
De facto, foi entendido que a remissão genérica do artigo 36º da Lei 11/2003, de 13.05, não prejudica a aplicação de normas especiais como a da alínea b) do n.º 1 do artigo 9º do Código do IRC.
Assim, as associações de municípios apenas beneficiam de isenção de IRC quando não exerçam actividades comerciais, industriais ou agrícolas.
Neste caso, uma vez que a L... exerce, a título principal, actividades de natureza comercial e industrial, tal como estas são definidas no n.º 4 do artigo 3.º do Código do IRC, consistindo a sua fonte de rendimentos na realização de operações económicas de carácter empresarial, não obstante serem desenvolvidas no âmbito das atribuições dos municípios, não está isenta, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 9º do Código do IRC.
Quanto à proposta de alteração legislativa, somos de opinião que não introduz nenhuma modificação de substância, nem acrescenta mais-valia no que concerne à interpretação do regime. (…) ”
Fls 101 a 109 e 370 a 379.
B) Em 24/04/2009, a Impugnante apresentou declaração periódica de rendimentos Modelo 22, relativa ao exercício de 2007, de que resultou uma autoliquidação no montante de € 1.035.061,15.
Fls 89 a 94 dos autos e fls 208 do P.R.G..
C) Em 24/04/2008, a Impugnante apresentou Reclamação graciosa do acto de autoliquidação.
Fls 190 a 198.
D) Em 24/11/2009, foi proferido o seguinte “Parecer” pela “Divisão da Justiça Administrativa e Contenciosa da Direcção de Finanças de P...”:
[dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original]
Fls. 200 a 206
E) Em 26/11/2009, foi proferido “Projecto de Despacho”, com o seguinte teor:
[dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original]
Fls. 200
F) Em 18/12/2009, foi proferido o seguinte “Parecer” pela “Divisão da Justiça Administrativa e Contenciosa da Direcção de Finanças de P...”:
[dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original]
Fls. 208 e 209
G) Em 18/12/2009, foi proferido “Despacho”, com o seguinte teor:
[dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original]
Fls. 208
H) Em 24/04/2009, a Impugnante apresentou, junto do Serviço de Finanças de ..., a garantia bancária n.º GAR/09....87... do ... de 21/04/2009, no valor de € 1.345.981,16, para suspensão do processo de execução “…que eventualmente venha a ser instaurado…”.
Fls. 201 e 202 do P.R.G.
I) Em 14/07/2009, foi instaurado o P.E.F. n.º ...1... - Certidão de dívida nº 2... 6...29 - ascendendo a quantia exequenda a € 1.035.061,15.
Fls 52 do P.A. e fls 209 do P.R.G..
J) Em 2007, a Impugnante obteve um volume total de negócios de €34.358.088,06, que se decompõe em:
- venda de produtos (energia, recicláveis, adubos e outras): € 20.327.620,87, representando 59% do volume total de negócios.
- prestação de serviços (tarifas cobradas aos Municípios associados): € 14.030.467,19, representando 41% do volume total de negócios.
Páginas 59, 60 e 75 do “Relatório e Contas 2007” da Impugnante, disponível em: https://www.L....pt/pt/bibliotecas/relatorio-contas/
K) Do “Relatório e Contas 2007” da Impugnante, consta o seguinte:
“O crescimento de 15% no Volume de Negócios, face a 2006, ficou a dever-se essencialmente ao aumento de aproximadamente 28% na venda de produtos, o que traduz a preocupação da L... na busca de outras fontes de receita que não as tarifas cobradas aos Municípios associados.”
Página 59 do “Relatório e Contas 2007” da Impugnante, disponível em: https://wwwA....pt/pt/bibliotecas/relatorio-contas/
L) Em 2007, a Impugnante desenvolveu a actividade de venda de produtos (energia, recicláveis, adubos e outras).
Páginas 33, 59, 60, 75, 80, 81 e 104 do “Relatório e Contas 2007” da Impugnante, disponível em: https://www.L....pt/pt/bibliotecas/relatorio-contas/ e requerimento da Impugnante a fls 450 a 468 do SITAF.
Factos não provados
O Tribunal não detectou a alegação de factos com relevo para a decisão, a dar como não provados.
Motivação da decisão da matéria de facto
A decisão da matéria de facto baseou-se no exame do teor dos documentos constantes dos autos e no “Relatório e Contas 2007” da Impugnante”, que não foram impugnados, bem como na posição assumida pela impetrante, conforme referido em cada uma das alíneas do probatório.
Os depoimentos prestados pelas testemunhas não se mostraram relevantes para a decisão da presente causa, assim como os documentos juntos pela impetrante a fls 469 a 568 do SITAF.”
***
Apesar de a fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa em crise reproduzir parcialmente a descrição do objecto da Recorrente, constante dos seus Estatutos, bem como a motivação da sentença recorrida, para mais fácil apreensão, autonomiza-se a seguinte matéria, aditando-se à decisão da matéria de facto os seguintes pontos:
M) A Impugnante, ora Recorrente, foi constituída através de escritura pública a ... como associação de municípios, pelos municípios de .E.., de G..., da M.., de T..., do P..., da V... e de C..., tendo sido publicado o seu estatuto no Diário da República a ... e sido alterado a ... – cfr. Documento n.º 2 junto com a petição inicial.
N) De acordo com o artigo 2.º dos Estatutos da Impugnante, aqui Recorrente, republicados no D.R. n.º ... de ...1, III Série, fls. 12.158-(24) a 12.158-(29):
“1. A associação tem por objecto imediato a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios associados, e por outras entidades que a associação venha a admitir, bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento das infra-estruturas necessárias para o efeito.
2. A associação pode ver ampliado aquele seu objecto imediato a vir a prosseguir quaisquer fins compreendidos nas atribuições dos municípios associados, com excepção daqueles que, pela sua natureza ou por disposição legal, devam ser exercidos directamente por eles.
3. Pode ainda, a associação, por si ou associada a terceiros, dedicar-se:
a) Ao tratamento de outros resíduos sólidos;
b) Ao tratamento de resíduos industriais ou hospitalares;
c) À exploração de actividades de natureza energética conexas com o seu objecto.
4 - A associação desenvolverá a sua actividade na área dos municípios associados, por sua conta e risco, através de serviços próprios, como serviço intermunicipalizado ou por qualquer outra forma legalmente possível.” - cfr Documento nº 2 junto com a petição inicial.
O) De acordo com o artigo 6.º dos Estatutos da Impugnante, aqui Recorrente, republicados no D.R. n.º ... de ..., III Série, fls. 12.158-(24) a 12.158-(29):
“Constituem deveres dos municípios associados: (…)
c) Entregar à associação a totalidade dos resíduos sólidos domésticos recolhidos no respectivo concelho, salvo decisão em contrário tomada pelos órgãos competentes da associação, quer em regime de administração directa quer noutro regime;
d) Efectuar a contribuição financeira para a associação, a título de comparticipação para investimentos, bem como contribuições para fazer face a despesas correntes nos termos estabelecidos nos presentes estatutos;
(…)
f) Recorrer em exclusivo à associação, para a prestação dos serviços por ela programados; (…)” – cfr. Documento n.º 2 junto com a petição inicial.
P) De acordo com os artigos 28.º a 31.º dos Estatutos da Impugnante, ora Recorrente, republicados no D.R. n.º ... de ..., III Série, fls. 12.158-(24) a 12.158-(29):
“Artigo 28.º Plano
1- A gestão da associação obedecerá a um sistema de planeamento a curto e médio prazos, assente em critérios de rentabilidade, tanto na concepção como na exploração da sua actividade.
2- Designadamente a gestão da associação deve obedecer às seguintes orientações:
a)Manutenção do equilíbrio económico e financeiro, mediante prática de preços que assegurem a cobertura dos custos;
b) Obtenção de maior rentabilidade, com a inerente redução de custos.
3- A gestão económica e financeira será balizada pelos seguintes instrumentos:
a) Planos de actividades anuais e plurianuais;
b) Orçamento.
4- (…)
Artigo 29.º Contabilidade
A associação adopta o regime de contabilidade estabelecido para os municípios.
Artigo 30.º Contribuição financeira dos municípios
1- As contribuições financeiras dos municípios associados, quer para investimento quer para despesas correntes, serão fixadas pela assembleia intermunicipal, sob proposta do conselho de administração.
2- As contribuições financeiras dos municípios associados são exigíveis a partir da aprovação do orçamento.
3- Para além das contribuições financeiras definidas anteriormente, os municípios associados obrigam-se a cobrir anualmente, até 31 de Março de cada ano, os prejuízos verificados no ano económico anterior.”
Artigo 31.º Reservas
A associação poderá fazer provisões e reservas para investimento.” – cfr. Documento n.º 2 junto com a petição inicial.
2. O Direito
Foi primeiramente interposto recurso da decisão interlocutória, proferida em 23/03/2022, que julgou prejudicado o pedido de inquirição das testemunhas arroladas formulado na peça processual apresentada pela impugnante em 17/03/2022, por ter sido determinado o aproveitamento da inquirição realizada no processo n.º 2...4/...0BEPRT.
Antes de prosseguirmos na análise deste recurso, que subiu nos autos em simultâneo com o recurso da sentença também recorrida, importa esclarecer que, na sequência da apresentação da petição de impugnação, foi proferida uma primeira sentença pelo tribunal recorrido, em 20/03/2019, que havia julgado procedente a presente impugnação, determinando a anulação da autoliquidação de IRC impugnada, referente ao ano de 2007. Não se conformando com aquela sentença, a AT interpôs recurso da mesma para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por Acórdão de 12/01/2022, decidiu anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos “a fim de aí, após fixação da pertinente matéria de facto, se proferir nova sentença que leve em consideração a factualidade entretanto apurada." Segundo este aresto, bastaria confrontar a natureza da isenção sob exame (isenção subjectiva mista) com os exíguos elementos de facto levados ao probatório para vincar que existe uma absoluta insusceptibilidade de se poder discutir os exactos termos e extensão em que a entidade impugnante exerceu actividades comerciais, industriais ou agrícolas.
Após a remessa dos autos ao Tribunal “a quo”, por despacho proferido em 17/02/2022, foi a Recorrente notificada para:
1. Informar quais os proveitos provenientes da actividade de recolha e tratamento de resíduos hospitalares a que se refere nos artigos 148.º a 152.º da petição inicial;
2. Informar em que consiste:
- a actividade de venda de produtos (energia, recicláveis, adubos e outras) referida nas páginas 33, 59, 60, 75, 80, 81 e 104 do “Relatório e Contas 2007”;
- a verba “Outras receitas correntes” referida na página 81 do “Relatório e Contas
2007”;
- a verba “Outros serviços” referida na página 84 do “Relatório e Contas 2007”.
A Recorrente apresentou a tal peça processual em resposta a esse despacho judicial, em 17/03/2022, prestando os esclarecimentos solicitados, mas também aludindo a factos que entendeu irem de encontro às necessidades vertidas na jurisprudência do STA, que considerou relevantes para efeitos de dilucidar a real actividade da aqui Recorrente, aduzindo factos com vista a demonstrar que a actividade exercida não teria natureza comercial, e retirando conclusões, formulando juízos de valor e ilações de facto e de direito. Foi para prova também destes factos que a Recorrente requereu a inquirição das testemunhas por si arroladas na petição inicial que deu origem aos presentes autos. No final dessa peça processual de resposta ao despacho de 17/02/2022 a impugnante rematou nos seguintes termos: “A L... está convicta de que a inquirição das testemunhas por si arroladas – que, desde já, se requer a V. exa. – contribuiria significativamente para o cabal esclarecimento de todos os factos – incluindo aqueles acabados de expor – relevantes para a boa decisão da causa, sendo, portanto, a mesma imposta pelos princípios da justiça, do inquisitório e da descoberta da verdade material”.
O despacho recorrido considerou prejudicado este pedido de inquirição das testemunhas arroladas pela Recorrente, em virtude de ter sido “determinado o aproveitamento da inquirição realizada no processo 2...4/...0BEPRT (fls. 336 a 338 do processo físico)”.
Começando, então, pelo despacho interlocutório, a Recorrente, num primeiro momento, imputa-lhe vício de nulidade, por falta de fundamentação, pelo que iniciaremos sindicando a fundamentação do despacho recorrido.
Ora, analisando o pedido da Recorrente e o teor do despacho recorrido, ressalta que o tribunal recorrido não procedeu à realização da inquirição de testemunhas porque já tinha sido decidido aproveitar a inquirição realizada num outro processo. Logo, é manifesto não padecer a decisão interlocutória da apontada nulidade, por falta de fundamentação, inexistindo qualquer violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º ex vi artigo 613.º, n.º 3, ambos do CPC.
Ainda assim, a Recorrente insiste que as testemunhas deveriam ter sido inquiridas, pois auxiliariam o tribunal na descoberta da verdade material, de acordo com o princípio do inquisitório, levando à justa composição do litígio e à boa decisão da causa.
De harmonia com o disposto no artigo 13.º CPPT, aos juízes dos tribunais tributários incumbe a direcção e julgamento dos processos da sua jurisdição, devendo realizar ou ordenar as diligências que considerem úteis ao apuramento da verdade relativamente aos factos que lhes seja lícito conhecer.
Por sua parte, o artigo 114.º do mesmo diploma prevê que, não conhecendo logo do pedido, o juiz ordena as diligências de prova necessárias.
Porém, desses preceitos não decorre que o juiz esteja obrigado à realização de todas as provas que sejam requeridas pelas partes, antes o dever de realizar e ordenar as correspondentes diligências se deve limitar àquelas que o tribunal considere, no seu livre juízo de apreciação, como úteis ao apuramento da verdade.
Como entende Jorge Lopes de Sousa, no seu CPPT, anotado e comentado, 5.ª edição, na anotação 9 ao artigo 13.º, é o critério do juiz que prevalece no que concerne a determinar quais as diligências que são úteis para o apuramento da verdade, sendo inevitável em tal determinação uma componente subjectiva, ligada à convicção do juiz; o que não significa que a necessidade da realização das diligências não possa ser controlada objectivamente, em face da sua real necessidade para o apuramento da verdade, em sede de recurso (v. Jorge de Sousa, in CPPT anotado e comentado, páginas 168 e 169).
Mantém pertinência o decidido no Acórdão do STA, de 05/04/2000, no âmbito do processo n.º 024713:
“No processo judicial tributário vigora o princípio do inquisitório, o que significa que o Sr. Juiz não só pode, como também deve, realizar todas as diligências que considere úteis ao apuramento da verdade.
Deste modo, tendo sido sugerida a realização de uma diligência, o Sr. Juiz só não deve fazer se a considerar inútil ou dilatória em despacho devidamente fundamentado.”
In casu, a fundamentação do despacho em crise aponta claramente para a inutilidade da diligência, esclarecendo cabalmente que, em rigor, a mesma já estaria realizada.
Saliente-se que, apesar de o poder de realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados estar previsto oficiosamente, sempre poderá ser exercido a requerimento das partes ou do Ministério Público, não perdendo de vista que a descoberta da verdade material deve ser conjugada com os princípios da eficácia e racionalidade do processo tributário – cfr. anotação ao artigo 99.º da Lei Geral Tributária, efectuada por António Lima Guerreiro, na página 413, na Edição de Rei dos Livros.
No processo de impugnação judicial compete ao juiz examinar se é legalmente permitida a produção da prova testemunhal oferecida pelas partes em face das normas que disciplinam a admissibilidade desse meio de prova, e, no caso afirmativo, aferir da relevância da factualidade alegada perante as várias soluções plausíveis para as questões de direito colocadas, só podendo dispensar essa prova no caso de concluir que ela é manifestamente impertinente, inútil ou desnecessária – cfr. Acórdão do STA, de 28/01/2015, proferido no âmbito do processo n.º 01091/13.
Importa recordar que foi a própria impugnante que requereu, em 19/03/2012, o aproveitamento da prova testemunhal produzida no âmbito do processo n.º 2...4/...0BEPRT – cfr. fls. 286 a 290 do processo físico.
O tribunal recorrido ponderou devidamente tal pedido, pois, para aferir da identidade dos factos e das testemunhas arroladas nos autos de impugnação judicial n.º 2...4/...0BEPRT com os do presente processo, solicitou a junção de cópia da petição inicial referente a esses autos – cfr. fls. 292 do processo físico.
A Fazenda Pública não se opôs a tal aproveitamento da prova testemunhal, pelo que o tribunal determinou a junção da acta de inquirição de testemunhas e os depoimentos das testemunhas no processo n.º 2...4/...0BEPRT aos presentes autos, tendo considerado, assim, efectuada a inquirição das testemunhas arroladas nos presentes autos, em 03/05/2012 – cfr. fls. 336 a 338 do processo físico.
Não está, portanto, em causa não ter sido realizada a diligência solicitada na petição de impugnação, mas antes que as mesmas testemunhas prestassem novamente depoimento em face do julgamento realizado pelo STA, a que aludimos supra, e tendo em conta os novos factos alegados e outros densificados na referida peça processual apresentada em 17/03/2022.
A este propósito, alerta a Recorrente que a inquirição aproveitada foi realizada em 23 de Novembro de 2011 – data muito anterior à do Acórdão proferido nos presentes autos pelo Supremo Tribunal Administrativo que ordenou a baixa dos autos para ampliação da matéria de facto, assim como ao Acórdão que fixou as circunstâncias que deveriam ser relevadas para efeitos da aferição do exercício de uma actividade comercial. Assim, naturalmente, a inquirição não versou – ou pelo menos de forma suficiente/ampla – sobre aquelas circunstâncias, razão pela qual entende a Recorrente que deveria ter sido realizada nova inquirição.
Não há dúvida que o facto de já ter sido produzida, ou no caso aproveitada, prova testemunhal nos autos não constitui impedimento legal a que seja produzida mais prova, pelo contrário, se a prova produzida for insuficiente sempre deverá o juiz ordenar prova adicional.
Neste circunstancialismo, é notório ter a Meritíssima Juíza “a quo” entendido ser essa produção de prova complementar/adicional inútil, no sentido de que considerou bastante a prova testemunhal já produzida e aproveitada, sendo desnecessário “mais” prova.
Defende a Recorrente que a realização da inquirição de testemunhas omitida era essencial para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, pois a sua falta onerará a decisão final com uma distorcida percepção dos factos.
Em concreto, esses factos susceptíveis de integrar o elenco da factualidade a provar por via testemunhal parecem ser principalmente os alegados pela Recorrente nessa peça processual de resposta apresentada na sequência do acórdão do STA prolatado nos presentes autos, relacionados com os princípios (mormente, ambientais) que regem a actividade prosseguida pela impugnante, com os constrangimentos a que se encontra sujeita a actividade (em termos geográficos, em matéria de fixação de preços, etc.), bem como os factos em que se traduz a ausência de escopo lucrativo da Recorrente e o destino dos proveitos auferidos.
Ora, a concretização do princípio do inquisitório em direito fiscal abstrai-se de aspectos formais, relevando somente, como vimos, averiguar se determinada diligência é substancialmente útil. No entanto, não podemos deixar de constatar que a argumentação da impugnante nessa peça processual não se resumiu a um esclarecimento dos factos alegados na petição inicial. A impugnante, compreendendo bem que não teria acolhimento a sua tese quanto à isenção de tributação em IRC, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC (pois o STA claramente o julgou nos presentes autos) e que somente estava já em discussão o enquadramento na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC, sendo fulcral dilucidar se a impugnante não exerceu, em 2007, actividades comerciais, industriais ou agrícolas, mesmo que a título acessório; ajustou, notoriamente, a factualidade invocada na petição inicial, tendo em vista realizar a demonstração salientada no acórdão do STA.
É, no mínimo, temerário que o princípio da estabilidade da instância, e na falta de acordo das partes, permita a alteração que a impugnante tentou levar a cabo através dessa peça processual apresentada em 17/03/2022.
É paradigmático o fundamento em que assenta a petição inicial, pois a construção jurídica baseia-se na ideia da actividade exercida a título principal, colocando as actividades acessórias sempre ao serviço da principal – cfr., por exemplo, o artigo 145.º da petição inicial – para o que necessita, muitas vezes de recorrer ao exercício de outras actividades, a esta acessórias, como meio de financiamento da actividade principal – é o que acontece no caso concreto! É que, em rigor, dúvidas não podem existir sobre o facto de a L... não exercer, a título principal, uma actividade comercial e industrial – cfr. artigo 116.º.
Na petição inicial, a impugnante afirma expressamente que, em virtude da sua actividade assim resumida, aufere proveitos resultantes da venda de produtos e prestação de serviços, nomeadamente aos municípios seus associados e outras entidades públicas – cfr. artigo 8.º. Sendo expressivo que no artigo 148.º da petição inicial se declare: “tendo em conta que a actividade de carácter empresarial da L... se resume à recolha e tratamento de resíduos hospitalares, bem se percebe também, como já dissemos, que os respectivos (e eventuais) lucros só sejam possíveis porque a L... aproveita todo um know-how e uma estrutura montada para a sua actividade principal de serviço público,” “assim logrando objectivos de economia de escala que de outra forma nunca conseguiria”. (cfr. artigo 149.º) “Ademais, os proveitos resultantes desta actividade empresarial acessória são sempre aplicados no desenvolvimento das condições em que é levada a cabo a actividade principal” (artigo 150.º). E, depois, na peça processual de 17/03/2022, se negue expressamente que tal actividade tenha sido exercida pela impugnante: a actividade de recolha e tratamento de resíduos hospitalares não é nem nunca foi exercida pela L... (…) nunca – frise-se: nunca – a Recorrente tratou e ou valorizou resíduos hospitalares, nem nunca fez a gestão dos mesmos, até porque não tem competência para o fazer (…)
É com alguma perplexidade que lemos cada passagem da peça apresentada em 17/03/2022, pelo carácter inovatório que encerra. Note-se que, quanto ao exercício da actividade de recolha e tratamento de resíduos hospitalares, seria matéria a levar linearmente ao probatório, na medida em que não consubstanciaria matéria controvertida.
A versão dos factos sobre a actividade efectivamente exercida pela impugnante em 2007 sofreu alterações de discurso na peça apresentada em 17/03/2022 em relação à petição inicial. Inovadoramente, a impugnante afirmou não valorizar resíduos para os vender, mas por imposição legal, a propósito da venda de produtos, como resultado necessário do ciclo de gestão de resíduos. Por outro lado, essa peça, que seria um esclarecimento, mostra-se eivada de ilações, conclusões e juízos de valor, designadamente ao afirmar que a Recorrente não tem escopo lucrativo, mas que se limita a prestar um serviço público – a gestão, tratamento e valorização de resíduos sólidos urbanos.
Neste contexto, este tribunal tem imensa dificuldade em individualizar os factos simples sobre os quais incidiria a prova testemunhal requerida, principalmente porque neste recurso da decisão interlocutória também identifica a matéria de forma genérica/temática: factos relacionados com os princípios (mormente, ambientais) que regem a actividade prosseguida pela impugnante, com os constrangimentos a que se encontra sujeita a actividade (em termos geográficos, em matéria de fixação de preços, etc.), bem como os factos em que se traduz a ausência de escopo lucrativo da Recorrente e o destino dos proveitos auferidos.
Nestes termos, não se mostram concretamente identificados os factos simples sobre os quais seria necessário repetir a prova testemunhal, tendo por base a factualidade invocada na petição inicial e contraditada pela parte contrária; pelo que não vislumbramos utilidade em voltar a inquirir as mesmas testemunhas, cuja prova já foi aproveitada. Salientamos que o acórdão do STA verificou insuficiência da matéria de facto levada ao probatório, que traduzisse a actividade real da impugnante, mas, obviamente, a ampliação da matéria de facto pressupõe que os factos tenham sido invocados no momento processual próprio, salvo tratando-se, comprovadamente, de factos supervenientes ou de factos de conhecimento oficioso – cfr. artigo 99.º da LGT e 13.º do CPPT.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso da decisão interlocutória proferida em 23/03/2022.
Debrucemo-nos, agora, sobre o objecto do recurso que visa a sentença final.
Desde logo, a Recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto, defendendo que deveria constar do probatório da sentença recorrida a seguinte matéria, entendendo resultar provada da prova produzida nos autos, tanto documental como testemunhal:
“1. O objeto social da L... é a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios seus associados e por outras entidades que a associação venha a admitir, bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento de infraestruturas necessárias para o efeito (cfr. n.º 1 do artigo 2.º dos estatutos da L...).
2. A L... foi constituída em face da impossibilidade de os municípios seus associados fazerem individualmente a adequada gestão dos resíduos produzidos nas suas jurisdições (cf. depoimento das testemunhas AA [00:12:54]).
3. O ciclo do tratamento e valorização dos resíduos compreende 4 etapas: a valorização energética, a valorização orgânica, a valorização multimaterial e o confinamento técnico (cfr. “Relatório e Contas 2007”).
4. A L... tem necessidade de valorizar os resíduos e de lhes atribuir um destino na medida em que não seria possível, dentro do espaço geográfico dos municípios, depositar a totalidade dos resíduos aí produzidos (cf. depoimento das testemunhas AA [00:19:40] e BB [01:13:14]).
5. A valorização energética consiste no aproveitamento do poder calorífico dos resíduos obtido através de um processo de combustão, no qual é produzida energia elétrica, que é, posteriormente, injetada na rede, mediante o pagamento de tarifa fixa (não negociável) (cf. “Relatório e Contas 2007” e depoimento da testemunha AA [00:14:53]).
6. A L... procede à combustão dos resíduos por necessidade, como alternativa à libertação de biogás – prática com grande impacto ambiental (cfr. depoimento da testemunha AA [00:14:53]).
7. Para além da gestão de resíduos, a L... dedica-se à realização, de forma totalmente gratuita, de atividades de sensibilização e educação ambiental, com as quais suporta custos (cf. “Relatório e Contas 2007” e depoimento da testemunha AA [00:22:10; 00:40:43; 00:44:40]).
8. A L... desenvolve a sua atividade exclusivamente na área dos seus associados (cfr. n.º 4 do artigo 2.º dos estatutos da L...).
9. A L... exerce a sua atividade por conta e risco dos municípios associados (cfr. n.º 4 do artigo 2.º), os quais estão obrigados a cobrir, até 31 de março de cada ano, os prejuízos verificados no ano económico anterior (cf. n.º 3 do artigo 30.º dos estatutos da L...).
10. Por força dos estatutos, (cfr. alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 6º), os municípios que constituem a L... são obrigados a entregar-lhe a totalidade dos resíduos sólidos urbanos recolhidos nas respectivas circunscrições concelhias e a ela recorrer em exclusivo para os serviços por ela prestados.
11. De acordo com o disposto nos estatutos, cumpre aos municípios associados “efetuar a contribuição financeira para a associação, a título de comparticipação para investimento, bem como contribuições para fazer face a despesas correntes” (cf. alínea d) do artigo 6.º), e ainda “efetuar o pagamento da respetiva quota parte dos encargos com o tratamento de resíduos” (cf. alínea f) do artigo 6.º).
12. A atividade da L... não é orientada para a obtenção de lucro, nem para a sua distribuição (cf. depoimento das testemunhas AA [00:22:10] e BB [01:29:24]).
13. A L... não fixa livremente, em regime de mercado, as contraprestações que recebe pelos bens que “vende” (cf. depoimento da testemunha AA [00:36:49]).
14. A L... afeta a totalidade dos seus resultados à prossecução do interesse público, não procedendo a qualquer distribuição pelos municípios associados (cf. depoimento das testemunhas AA [00:22:10; 00:40:43; 00:44:40] e BB [01:29:24]).
15. A L... está vinculada ao regime de contabilidade estabelecido para os municípios (POCAL – Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 54-A/99, de 22 de Fevereiro) (cf. “Relatório e Contas 2007”)”.
Reconhecendo que alguns aspectos poderão facilitar a compreensão dos moldes em que é exercida a actividade da impugnante, optámos por aditar à decisão da matéria de facto a descrição a respeito do objecto e da gestão económico-financeira que consta dos Estatutos da Recorrente, conforme pontos M), N), O) e P) supra.
Nesta conformidade, já não nos pronunciaremos acerca dos pontos 1, 8, 9, 10, 11 e 15, na medida em que directa ou indirectamente já passaram a constar da decisão da matéria de facto.
Quanto aos restantes pontos, ou são circunstanciais (pontos 2, 3 e 4), ou são irrelevantes (pontos 5, 6 e 7) ou são conclusivos (pontos 12, 13 e 14), pelo que jamais poderão integrar a decisão da matéria de facto. Além disso, a esmagadora maioria desta matéria não foi invocada na petição inicial, apesar de reconhecermos a sua natureza instrumental.
Em face do que fica julgado quanto à factualidade, mostra-se, agora, estabilizada a decisão da matéria de facto.
Como já referimos, atento o julgamento realizado pelo STA nos presentes autos, concluiu esse alto tribunal que às associações de municípios, como é o caso da Recorrente, não se aplica a isenção prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de I.R.C., mas poderá aplicar-se a isenção prevista na alínea b) se a Recorrente não exercer actividades comerciais, industriais ou agrícolas.
Vejamos como julgou a questão a sentença recorrida:
“Do pedido de anulação do acto de autoliquidação
A “L...” intentou a presente Impugnação por não se conformar com o indeferimento da Reclamação graciosa que apresentou do acto de autoliquidação de I.R.C., relativo ao exercício de 2007 (alíneas B) a G) dos factos provados), uma vez que considera que beneficia da isenção de I.R.C. decorrente do artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13/05, conjugada com a alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do C.I.R.C..
Vejamos.
A Impugnante foi constituída como associação dos municípios de .E.., G..., M.., T..., P..., V..., C... e ..., através de escritura pública de 12/11/1982, estando os seus Estatutos publicados no Diário da República, III série, n.º ... de ... alterados em ... e publicados no Diário da República, III série, n.º ... de ... (fls 95 a 100).
O regime jurídico estabelecido para as associações de municípios começou por estar previsto no Decreto-Lei n.º 266/81, de 15/09, que veio a ser revogado e substituído sucessivamente pelos Decretos-Lei n.º 99/84, de 29/03; 412/89, de 29/11; pela Lei n.º 179/99, de 21/09 e pela Lei n.º 11/2003, de 13/05 (esta com início de vigência em 11/08/2003 e término em 01/09/2008, uma vez que veio a ser revogada pela Lei n.º 45/2008).
Ora, no caso em apreço, releva a Lei n.º 11 /2003 (uma vez que era o diploma que se encontrava em vigor no exercício a que respeita o acto de autoliquidação impugnado: 2007), que no seu artigo 36.º dispõe que as associações de municípios beneficiam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais.
Trata-se, portanto, de uma norma remissiva.
Analisado o C.I.R.C., verifica-se que, no capítulo das isenções, o artigo 9.º refere o seguinte:
“1 - Estão isentos de IRC: a) O Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais, bem como qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, compreendidos os institutos públicos, com excepção das entidades públicas com natureza empresarial;
b) As associações e federações de municípios e as associações de freguesia que não exerçam actividades comerciais, industriais ou agrícolas;…”. [sublinhado nosso]; estabelecendo o n.º 4 do artigo 3.º do C.I.R.C. que, “… são consideradas de natureza comercial, industrial ou agrícola todas as actividades que consistam na realização de operações económicas de carácter empresarial, incluindo as prestações de serviços.”
Aqui chegados, surge então a questão: às associações de municípios (como é o caso da L...) aplica-se a isenção prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do C.I.R.C. ou a isenção prevista na alínea b)?
A esta questão respondeu o Acórdão do S.T.A. de 12/01/2022 proferido nos presentes autos (fls 399 a 415 do SITAF), nos seguintes termos:
“(…) A base de incidência do I.R.C. encontra-se consagrada no artº.3, do C.I.R.C., sendo, nos termos do seu nº.2, definido o lucro tributável como o resultante da "diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código".
Constituindo a incidência uma regra, a isenção de tributação consubstancia uma excepção consagrada pelo legislador. Estamos perante uma isenção quando a lei subtrai à tributação, através da previsão normativa de um facto impeditivo, situações e sujeitos que, de outro modo, estariam abrangidos pelo âmbito da norma de incidência do imposto. No artº.9, do C.I.R.C., surgem previstas as isenções subjectivas ou pessoais, ou seja, que atendem à qualidade ou natureza dos sujeitos passivos (cfr.artº.2, do C.I.R.C.), que assim vêm em seu favor delimitada negativamente a incidência do imposto (cfr.Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pág.53 e seg.; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág.105 e seg.).
Revertendo ao caso dos autos, começamos por referir que a entidade recorrida "L..." é uma pessoa colectiva de direito público e foi constituída como Associação de Municípios de fins específicos, integrando os Municípios de .E.., G..., M.., T..., P..., V..., ... e C... (cfr.alíneas A) e D) do probatório).
A Lei 11/2003, de 13/05, diploma que estabeleceu o regime de criação das comunidades intermunicipais e se aplica ao caso dos autos, previa no seu artº.1, nº.2, a existência de dois tipos de comunidades: comunidades intermunicipais de fins gerais e associações de municípios de fins específicos. Mais se consagrava no artº.2, da mesma lei que a associação de municípios de fins específicos é uma pessoa colectiva de direito público criada para a realização de interesses específicos comuns aos municípios que a integram. Por sua vez, nos termos do artº.5, do citado diploma, as associações eram criadas para a prossecução de determinados fins públicos no âmbito das atribuições concedidas às autarquias locais, designadamente, na área do ambiente. E, nos termos do seu artº.6, os recursos financeiros das associações assim criadas compreendiam, entre outros, o produto da venda de bens e serviços (cfr.alínea g), do nº.3). Dispunha ainda o artº.36, da aludida Lei 11/2003, que "As comunidades e as associações beneficiam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais".
Por sua vez, o artº.9, nº.1, als.a) e b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2007, tinha a seguinte redacção:
1 - Estão isentos de IRC:
a) O Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais, bem como qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, compreendidos os institutos públicos, com excepção das entidades públicas com natureza empresarial;
b) As associações e federações de municípios e as associações de freguesia que não exerçam actividades comerciais, industriais ou agrícolas;
(…)
Ora, no que diz respeito à matéria nuclear em apreciação nos presentes autos, somos forçados a acompanhar o discurso jurídico constante do Ac. deste S.T.A.-2ª.Secção, de 10/03/2021, rec.03161/16.3BEPRT, o qual o signatário subscreveu enquanto adjunto, quando aponta que "…apenas a isenção contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC pode aqui ser equacionada - aliás, em bom rigor, só ela o era, mesmo nos termos da legislação anterior, uma vez que a equiparação que o artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, fazia entre associações de municípios e autarquias locais apenas tinha razão de ser nos casos de impostos em que não existisse qualquer referência expressa àquelas; o que não era, notoriamente, o caso do IRC, que distinguia umas e outras entidades. Assim, e como vimos, a isenção contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC não é uma isenção subjectiva simples, mas antes mista (com elemento objectivos, portanto): nem todas as associações de municípios se encontram isentas, mas tão só aquelas "que não exerçam actividades comerciais, industriais ou agrícolas."…" (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 27/10/2021, rec.04/16.1BEPRT).
Com esta visão hermenêutica da concatenação entre o artº.36, da Lei 11/2003, de 13/05, e o artº.9, nº.1, als.a) e b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2007, deve concluir-se que padece a sentença recorrida de erro de julgamento de direito ao enquadrar a possível isenção de I.R.C. da entidade recorrida no citado artº.9, nº.1, al. a), do C.I.R.C., norma que consagra uma isenção subjectiva simples que atende unicamente à qualidade do sujeito isento.(…)”.
Concluiu, assim, o S.T.A. que às associações de municípios, como é o caso da Impugnante, não se aplica a isenção prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do C.I.R.C. mas poderá aplicar-se a isenção prevista na alínea b) se a Impugnante não exercer actividades comerciais, industriais ou agrícolas.
Importa, assim, aferir sobre a actividade concretamente desenvolvida pela Impugnante no exercício de 2007, sendo de salientar que da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do C.I.R.C. resulta que basta o exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas, mesmo que exercidas a título acessório, para que a associação de municípios não esteja abrangida pela isenção de I.R.C. (neste sentido: Acórdão do S.T.A. de 27/10/2021, proferido no processo n.º 4/16.1BEPRT 0757/18).
Revertendo ao caso em análise, resultou provado que, no exercício de 2007, a impetrante desenvolveu duas actividades: a actividade de gestão de resíduos sólidos urbanos (prestação de serviços/tarifas cobradas aos Municípios associados) e a actividade de venda de produtos (energia, recicláveis, adubos e outras), sendo de salientar que esta foi mesmo a sua principal fonte de receitas, representado 59% do volume de negócios total (alíneas J) a L) dos factos provados).
Ora, a actividade de gestão de resíduos sólidos urbanos dos municípios associados, não possui cunho empresarial (nem industrial ou agrícola), verificando-se mesmo que essa actividade reveste uma natureza eminentemente de serviço público essencial e nem mesmo a circunstância hipotética de poder ser exercida por privados retira esse carácter de serviço público (pelo menos, no sentido de utilidade pública).
Já quanto à atividade de venda de produtos (energia, recicláveis, adubos e outras), a conclusão não é a mesma, pois não nos oferece dúvidas que consubstancia uma actividade de natureza comercial, não relevando o facto de se tratar de uma actividade “acessória” ou da especial afectação dos resultados dessa actividade (neste sentido, vide o Acórdão do S.T.A. de 27/10/2021, proferido no processo n.º 4/16.1BEPRT).
De facto, as alegações da impetrante, vertidas no requerimento a fls 450 a 468 do SITAF, de que essa actividade resulta necessáriamente do ciclo de gestão de resíduos, a não distribuição de eventuais lucros obtidos e o facto dos proveitos resultantes dessa atividade serem investidos na actividade “principal” não possuem qualquer relevância para efeitos do aludido normativo, que se foca exclusivamente no não exercício de actividades de determinado cariz.
Face ao exposto, conclui-se que a Recorrente desenvolve (para além da actividade de gestão de resíduos) uma actividade de natureza comercial, o que se mostra suficiente para afastar a isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do C.I.R.C., sendo de manter o acto de autoliquidação que vem impugnado. (…)”
Nas conclusões G) a K) das alegações do recurso, a Recorrente continua a insistir que beneficia da isenção de IRC, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC, porém, remetemos para o Acórdão do STA, proferido nos presentes autos, que também acompanhou o discurso jurídico constante do Acórdão do STA, de 10/03/2021, proferido no âmbito do processo n.º 03161/16.3BEPRT, com o qual concordamos, e a que a sentença recorrida também aderiu, conforme transcrição supra. Pelo que, improcedem estas conclusões das alegações do recurso.
No que tange às conclusões L) a FF) das alegações do recurso, têm sido vários os arestos a julgar esta questão da isenção de IRC prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC, tendo a sentença recorrida sustentado a sua decisão nesses julgamentos relativos à mesma impugnante, ora Recorrente.
Com efeito, relativamente a este assunto, já se pronunciou recentemente este Tribunal Central Administrativo Norte, no processo n.º 264/14.2BEPRT, no processo n.º 2739/08.3BEPRT, ambos de 3 de Fevereiro de 2022, no processo n.º 419/12.4BEPRT, de 17 de Fevereiro de 2022, no processo n.º 3161/16.3BEPRT, de 31 de Março de 2022, em situações análogas à presente, cujo elemento diferenciador é tão-só o ano a que respeitam as liquidações, que louvando-se também na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que discorre dos acórdãos proferidos em 27/10/2021 e 10/11/2021, nos processos n.º 4/16.1BEPRT e 2857/12.3BEPRT, sufraga o entendimento que a Impugnante se encontra sujeita a IRC, na medida em que exerce uma actividade comercial ou industrial e o Código do IRC não distingue entre actividade exercida a título principal ou acessório, tributando-as da mesma forma.
Nestes autos não é controvertido que a Recorrente exerce, a título principal, a actividade de “reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios associados”. Paralelamente, a Recorrente desenvolveu, em 2007, a actividade de venda de produtos (energia, recicláveis, adubos e outras) - cfr. alínea L) do probatório.
É pacífico o enquadramento da actividade principal no disposto no artigo 9.º, n.º 1, alínea b) do Código de IRC. Quanto à actividade (acessória), cujo exercício em 2007 não se mostra questionado pela Recorrente [tão-pouco foi impugnada a matéria vertida no ponto L) do probatório], a conclusão a que se chega não é a mesma.
A actividade de venda de produtos é, notoriamente, uma actividade comercial.
A própria impugnante havia admitido na sua petição inicial exercer actividade de carácter empresarial, resumindo-a, contudo, à recolha e tratamento de resíduos hospitalares (apesar de em peça processual posterior, como vimos, entretanto o vir negar).
Simplesmente defendia que o exercício desta actividade acessória surgia como meio de financiamento da actividade principal e que inexistia qualquer distribuição de lucros.
No entanto, não podemos deixar de salientar que a não distribuição de eventuais lucros obtidos e o facto de os proveitos resultantes de actividade acessória serem investidos na sua actividade principal não possuem qualquer relevância para efeitos da aludida alínea b), que se foca no exercício de actividades de determinado cariz e não no destino a dar ao resultado dessas actividades.
A verdade é que o Tribunal “a quo” deu como assente que a Impugnante desenvolveu, de facto, a actividade de venda de produtos, ou seja, deu como existente essa outra actividade secundária de aproveitamento dos resíduos, o que é confirmado pela Recorrente nas suas alegações, ao admitir que “a L... aufere proveitos resultantes da venda de produtos e prestação de serviços, nomeadamente aos municípios seus associados e outras entidades públicas,…” e que “Os proveitos resultantes das suas actividades acessórias só são possíveis porque a L... aproveita todo o know-how e estrutura montada para a sua actividade principal de serviço público, assim logrando objectivos de economia de escala que de outra forma nunca conseguiria…”.
Pois bem, é irrelevante que a dita actividade desenvolvida possa ser considerada acessória da actividade principal desenvolvida a favor de municípios, pois que, pelo menos, para efeitos do disposto no C.I.R.C., a mesma foi autonomizada, conforme resulta da previsão “todas as actividades que consistam na realização de operações económicas de carácter empresarial, incluindo as prestações de serviços”, constante também do art. 3º nº 4 do CIRC, sendo que tal encontra-se directamente ligado à regra de incidência, a qual, de acordo com o art. 3º nº 1 do CIRC é diversa, consoante seja exercida uma actividade com a dita natureza, “a título principal”, ou não - assim, aquela regra aplica-se sobre o “lucro”, ou o “rendimento global, corresponde à soma algébrica dos rendimentos das diversas categoriais consideradas para efeitos de IRS e, bem assim, dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito”, conforme melhor consta expresso nas suas alíneas a) e b).
Tal significa que não merece censura o exposto na decisão recorrida no sentido de que a Recorrente desenvolve uma actividade de natureza comercial, o que se mostra suficiente para afastar a isenção prevista na alínea b) do artigo 9º do CIRC, não relevando para essa asserção, como igualmente considerou o Tribunal “a quo”, o facto de se tratar de uma actividade acessória ou da especial afectação dos resultados dessa actividade, na medida em que a Recorrente enquadra-se no art. 2º nº 1 al. a) do CIRC e é passível de tributação quanto ao rendimento global obtido pela actividade a que se refere a al. L) da matéria de facto, nos termos do art. 3º nº 1 al. b) do mesmo diploma, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão no que concerne ao presente recurso – cfr. Acórdão do STA, de 27/10/2021, proferido no âmbito do processo n.º 4/16.1BEPRT.
Não poderá deixar de se concluir, como o efectuou a sentença recorrida, que a Recorrente não beneficia da isenção de IRC prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC, na medida em que realizou, em 2007, vendas de produtos, ou seja, desenvolveu, claramente, também uma actividade comercial.
Por último, a Recorrente, nas conclusões GG) e HH), alega que a interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC preconizada pelo tribunal recorrido (e aqui confirmada) é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da autonomia local.
Quanto à violação da autonomia local, prevista no artigo 6.º da CRP, tal princípio significa, designadamente, que as autarquias locais são formas de administração autónoma territorial, de descentralização territorial do Estado, dotadas de órgãos próprios, de atribuições específicas correspondentes a interesses próprios e não meras formas de administração indirecta ou mediata do Estado – cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira in CRP anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, página 234. Todavia, este princípio não é absoluto, pelo que não exclui, em certos termos, a tutela estadual – cfr. artigo 242.º da CRP.
Nesta conformidade, não encontramos in casu quaisquer óbices aos municípios continuarem a organizar-se sob a forma de associações de municípios, pois sempre estarão sujeitos a uma tutela de legalidade, nomeadamente, por via das mais diversas medidas restritivas.
O princípio da igualdade tributária ou contributiva, que a Recorrente também considera violado, está intimamente ligado ao princípio da capacidade contributiva.
Recordamos que o princípio da capacidade contributiva é expressão do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto. E, neste sentido, constitui corolário tributário dos princípios da igualdade e da justiça fiscal (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 197/2016 e 211/2017).
«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação.
Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos impostos – dos “impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (na formulação clássica portuguesa, de Teixeira Ribeiro, “A justiça na tributação” in “Boletim de Ciências Económicas”, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe refere como “capacidade para pagar”) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício).
Assim, estamos a falar de IRC e, especificamente, do exercício de actividades comerciais, pelo que tal interpretação preconizada para os presentes autos revela um tratamento igual para os contribuintes que aufiram rendimentos provenientes de uma actividade comercial, pelo que não vislumbramos que a interpretação realizada da norma do artigo 9.º, n.º 1, alínea b) do Código de IRC deva ser afastada por violação do princípio da igualdade.
Por tudo o exposto, improcedem na totalidade as alegações deste recurso, pelo que também deverá ser negado provimento ao mesmo e mantida a sentença recorrida na ordem jurídica.
O valor deste processo ascende a €1.035.061,15, preceituando o artigo 6.º, n.º 7 do RCP que, nas causas de valor superior a €275.000,00, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz, de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.
No caso, entendemos que se justifica a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida pelo recurso à luz do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do RCP, uma vez que as questões a decidir no recurso não se afiguraram particularmente complexas, encontrando-se na sua maioria já tratadas pelo STA, a conduta processual das partes não é merecedora de qualquer censura ou reparo e o concreto valor das custas a suportar pela parte vencida se afiguraria, não havendo dispensa do pagamento do remanescente, algo desproporcionado relativamente ao concreto serviço público prestado.
Conclusões/Sumário
I – A isenção vertida na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC não configura uma isenção subjectiva simples, porque faz depender o tratamento mais favorável aí consagrado de uma condição objectiva - o não exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas – tratando-se de uma isenção subjectiva mista.
II – A Recorrente desenvolve uma actividade de natureza comercial, o que se mostra suficiente para afastar a isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código de IRC, não relevando para essa asserção o facto de se tratar de uma actividade acessória ou da especial afectação dos resultados dessa actividade.
IV. Decisão
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento a ambos os recursos.
Custas a cargo da Recorrente, devendo a conta a final desconsiderar o pagamento do remanescente da taxa de justiça devida.
Porto, 06 de Outubro de 2022
Ana Patrocínio
Paula Moura Teixeira
Conceição Soares |