Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00044/09.7BEPNF
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/11/2024
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Virgínia Andrade
Descritores:IRS;
SUSPENSÃO PRAZO CADUCIDADE – INVESTIGAÇÃO CRIMINAL;
JULGAMENTO MATÉRIA DE FACTO;
Sumário:
I. A falta de notificação do parecer do Magistrado do Ministério Público, quando aí não tenha sido suscitada questão nova ou questão sobre a qual as partes ainda não tenham tido oportunidade de se pronunciar, não viola o princípio do contraditório, estatuído no artigo 3.º do CPC.

II. Por forma a operar o alargamento do prazo de caducidade previsto no .º 1 do artigo 45.º da LGT, os factos averiguados em sede do procedimento inspectivo terão de ser iguais aos que dão origem à investigação criminal ou foram investigados.

III. A matéria de facto só deve integrar factos concretos e não formulações genéricas, de direito ou conclusivas, nomeadamente quando, por si só, traduzam uma afirmação ou uma valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões.

IV. A motivação do julgamento da matéria de facto tem como indicações normativas que o juiz analise criticamente as provas e indique os fundamentos decisivos da sua convicção à luz do que estabelecia à data o n.º 2 do artigo 653.º do CPC (actual n.º 4 do artigo 607.º).*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1 – RELATÓRIO

«AA» vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação de IRS n.º ...............025 do ano de 2002, no montante de €7.656,44.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
”1.ª - Vai o presente recurso interposto do que a sentença de fls. 168/181 julgou improcedente da impugnação judicial de fls. 2/72, deduzida contra a liquidação de IRS, ano de 2002, mantendo parcialmente a liquidação impugnada.
2.ª – As questões a decidir no presente recurso podem apresentar-se nos seguintes termos:
I - A liquidação adicional do imposto (IRS, 2002) que se impugna nos presentes autos foi, ou não, efectuada e notificada quando tinha já transcorrido o prazo estabelecido nos artigos 92.º do Código do IRS (CIRS) e 45.91 e 4-1.ª parte da Lei Geral Tributária?
II - Como foram apurados os rendimentos que, no ano de 2002, a AT imputou à ora Recorrente, corrigindo a sua declaração modelo 3 de IRS?
Enquadravam-se esses rendimentos na categoria E – rendimentos capitais (lucros)?
Provou-se que esses lucros foram realizados pela sociedade [SCom01...], S.A., e que foram por ela distribuídos a todos os seus sócios?
3.ª - A liquidação adicional de IRS, ano de 2002, em causa nestes autos, foi efectuada em 18-08-2008 (fls. 30) e notificada à Recorrente em 18-09-2008 (fls. 70).
4ª - Tratando-se de um imposto periódico, o direito à liquidação caducou, neste caso, em 31-12-2006, devendo dentro deste prazo estar realizada, em termos válidos, a respectiva liquidação.
5ª - É o que resulta da aplicação, conjugada, das normas dos arts. 92.° do CIRS; 45.º/1 e 4, 1.º parte, da LGT; e 5.º/5 do Decreto-Lei n.° 398/98, de 17 de Dezembro.
6.ª - No caso dos autos não tem aplicação a norma do n.° 5 do art. 45.° da LGT pelas razões já explanadas em 25.5., 25.6., 25.6.1 e 25.6.2.
7.ª-A Recorrente, engenheira de profissão e acionista da [SCom01...], S.A. (doravante apenas [SCom01...]), colaborou com outros profissionais, todos, como ela, trabalhadores da [SCom01...], na realização, em 2002 e 2003, de vários trabalhos das suas especialidades para obras a serem construídas em Angola.
8.ª - Aqueles trabalhos - que os seus executantes designaram por projecto Angola - foram acordados, em Angola, entre o Eng. «BB» (então, como agora, presidente do conselho de administração da [SCom01...]) e o Eng.° «CC» (gerente duma empresa angolana, sob a firma [SCom02...], Ida.).
9.° - Os termos em que o que veio a chamar-se projecto Angola foi acordado entre aqueles dois negociadores do contrato estão explicados nos respectivos depoimentos gravados («BB» - 6:24 a 7:38; «CC» 01:00:56 a 01:01:46 e 01:01:55 a 01:02:23)
10.ª - Dessas explicações ressalta que o conjunto de trabalhos a executar no âmbito do projecto Angola constituía a primeira experiência de trabalho para Angola que era proposto ao presidente do conselho de administração da [SCom01...], Eng.° «BB» («BB» - 6:24 a 7:38 e 15:48 a 15:57).
11.ª - Natural de Angola, tendo ali vivido grande parte da sua vida e mantendo até à presente data relações de negócio muito estreitas com Angola, onde se desloca com frequência, o Eng.° «BB» quis rodear esta primeira colaboração com Angola da maior prudência, de modo a nunca comprometer o bom nome e prestígio alcançados pela [SCom01...] com trabalhos executados em algumas das melhores empresas portuguesas («BB» - 05:15 a 05:54 e 06:24 a 07:38).
12.ª - Por seu lado, o Eng.° «CC» tinha, na época, o maior interesse em que os trabalhos acordados com o Eng.° «BB» fossem apresentados em Angola como da empresa angolana [SCom02...] 01:01:55 a 01:02:23; 01:04:28 a 01:04:44; e 01:05:20 a 01:05:32).
13.ª - Tudo isto está explicado nos depoimentos, gravados, das testemunhas «BB» e «CC».
14.ª - No chamado projecto Angola participaram 9 dos accionistas da [SCom01...], incluindo a Recorrente, além de outros profissionais (engenheiros, arquitectos, desenhadores, administrativos), todos trabalhadores da [SCom01...]
15.ª - Todos esses participantes do projecto Angola que foram arrolados como testemunhas neste processo declararam em audiência que esses trabalhos não foram executados para a [SCom01...], mas para a [SCom02...], em Angola, consoante lhes foi esclarecido pelo Eng.° «BB».
16.ª - Daí que todos os trabalhos efectuados neste âmbito tivessem que ser (e foram executados fora do horário laboral vigente.
17ª - Tudo isto consta dos depoimentos gravados das testemunhas que foram inquiridas a estas matérias, o que impunha um julgamento diferente do que foi incompreensivelmente feito a fls. 171 - 2.° parágrafo, relativamente às testemunhas «DD» e «EE» («DD» - 01:25:03 a 01:26:28; 01:26:28 a 01:26:40 e 01:26:46 a 01:26:48 e «EE» - 01:31:15 a 01:32:25).
18.ª - Nenhum dos colaboradores do projecto Angola foi pago pela [SCom01...].
19.°-Todos os pagamentos foram feitos a partir de duas contas bancárias sediadas no Banco 1... (agência de ... - ...).
20.ª - Essas contas estão completamente identificadas nos autos,
21.ª - têm por titulares os 9 sócios da [SCom01...] que participaram no projecto Angola,
22.ª - os quais facultaram à AT o acesso, sem quaisquer limitações, às referidas contas.
23.ª - Dos 11 accionistas que a [SCom01...] tinha ao tempo dos factos (ano de 2002), não participaram no projecto Angola os acionistas «FF» e «GG».
24.ª - Por isso mesmo, nada receberam daquele projecto, a título de remuneração ou a qualquer outro, designadamente a título de participação nos lucros auferidos pela [SCom01...], uma vez que essa actividade não foi realizada pela sociedade.
25.ª - Outro foi o entendimento da AT, acolhido pela sentença recorrida, de que o rendimento (lucro) do projecto Angola pertenceu à [SCom01...],
26.ª – dele tendo sido distribuído à impugnante o montante de €17.568,36€
27.ª - Daí a tributação em IRS, rendimentos da categoria E [art. 5.º/ 2-h) do CIRS),
28.ª - quando a realidade tributária enquadraria as remunerações pagas à Impugnante como rendimentos da categoria B (rendimentos profissionais).
29.ª - Independentemente de o rendimento conseguido com o projecto Angola jamais ter pertencido à [SCom01...], acresce ainda a bizarria de o "lucro" atribuído à [SCom01...] ter sido apurado com base nas contas bancárias referidas na conclusão 15.4 - de que a [SCom01...] não é titular - e não, como teria de ser, com base na escrita e contabilidade da [SCom01...].
30.ª - E a agravar a arbitrariedade do seu procedimento, a AT apenas relevou dessas contas os fluxos de entrada.
31.ª - O Ministério Público emitiu parecer, a fls. 156/162, de que a Impugnante/Recorrente não foi notificada, tendo dele tomado conhecimento apenas na consulta que fez do processo, com a finalidade de elaborar as presentes alegações.
32ª - Por quanto ficou já alegado, inclusive nas presentes conclusões, e pelas declarações, gravadas, prestadas pelas testemunhas «FF» e «HH», nenhuma dúvida pode restar de que a Recorrente não recebeu quaisquer lucros atribuídos pela [SCom01...] em resultado do projecto Angola («FF» - 40:45 a 43:54 e «HH» - 01:13:45 a 01:15:51),
33.ª - pelo que deverá ser retirada do probatório a respectiva alínea H) - fls. 169.
34.°- Constam dos autos elementos de prova que impunham que fosse dado por provado a existência das contas n.°s ..6/..............73 e nº...6/............66 cujos titulares eram «BB», «II» (ora Recorrente), «JJ», «KK», «LL», «HH», «MM», «NN» e «OO».
35.ª - Ainda quando se admitisse - o que só como hipótese se considera - que a Recorrente obteve, em 2002, rendimentos de capitais calculados sobre uma nona parte de metade de 97.337,62 € (48.668,81 €), essa nona parte corresponderia a 5.407,64 € e não 17.568,36 € como vem referido na sentença recorrida a fls. 181.
36.ª - A determinação do rendimento que foi acrescido ao declarado pela ora Recorrente no ano 2002 - considerado, aliás, como lucro atribuído pela [SCom01...] -, foi apurado através das contas bancárias identificadas em 7. supra, e não com base na escrita e contabilidade da [SCom01...].
37.ª - Com este procedimento, a correção dos rendimentos da Recorrente foi tida por meramente aritmética.
38.ª - Tal, porém, é simplesmente absurdo: a parte dos lucros alegadamente atribuída pela [SCom01...] à Recorrente pressupunha o apuramento dos lucros da [SCom01...].
39.ª - Apurado essencialmente à margem da contabilidade da [SCom01...], por utilização das contas bancárias referidas em 10. supra, o lucro (parcialmente distribuído à Recorrente, na versão da AT, aceite pela sentença recorrida) só podia fazer-se por recurso a métodos indiretos de avaliação a matéria tributável fixada à Recorrente, para efeitos de IRS, ano de 2002.
40.ª - Pelo que a sentença recorrida deveria ter considerado inadequada a utilização de correcções meramente aritméticas.
41.ª - A análise da prova testemunhal produzida revela-se manifestamente deficiente.
42.ª - Não foram analisadas todas as provas produzidas.
43.ª – Foram desconsiderados depoimentos relevantíssimos e deficientemente interpretados depoimentos perfeitamente claros, o que ao longo destas alegações se referiu, indicando os nomes das testemunhas e, pelo menos em alguns casos, o local da gravação.
44.ª - Decidindo como decidiu, a sentença recorrida não fez correcta interpretação das normas do art. 45. da LGT; aplicáveis neste caso; mostra-se insuficientemente e incongruentemente fundamentada e enferma de erro de julgamento, com inobservância da norma do n° 1 do art. 205.º da CRP e violação do n.° 2 do art. 653.° do CPC.
Nestes termos e nos mais, de direito, aplicáveis, deve ser concedido provimento ao presente recurso e proferido ACORDÃO que revogue a sentença de fis. 168/181, com as inerentes consequências legais, para que assim se cumpra a LEI e se faça JUSTIÇA.”

Não houve contra-alegações.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso.
Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos (cfr. artigo 657.º n.º 4 do Código de Processo Civil, submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.
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Objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta do artigo 608.º n.º 2, artigo 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir i) se ocorre nulidade processual por omissão de notificação do parecer do Magistrado do Ministério Público, ii) do erro de julgamento quanto à caducidade do direito à liquidação adicional, iii) da deficiente análise e apreciação da prova testemunhal produzida e documental junta aos autos e erro de julgamento de facto , iv) do erro em ter considerado adequado o método de avaliação tributável utilizado v) do erro de julgamento quanto ao erro nos pressupostos de facto.

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2 - Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
O Tribunal a quo decidiu a matéria de facto da seguinte forma, que aqui se reproduz: “
3 - Fundamentação.
3.1 - De facto.
3.1.1 - Com relevância para a decisão da causa, o tribunal julga provado:
A) A impugnante foi sujeita a uma acção inspectiva interna ao IRS de 2002, documentada no projecto de relatório consta de fis. 33 a 40, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
B) A impugnante exerceu o direito de audição pelo requerimento junto aos autos de fls. 59 a 67, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
C) Os serviços de inspeção tributária (SIT) analisaram o exercício do direito de audição da impugnante e pelos fundamentos constantes do relatório de inspeção tributária (RIT) que consta de fls. 44 a 58, cujo teor aqui se dá por reproduzido, concluíram pela correção da matéria tributável de natureza meramente aritmética do IRS de 2002 da impugnante no montante de €18.687,73.
D) A correcção da matéria tributável da impugnante deu origem à alteração dos rendimentos declarados de fls. 68 e 69, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
E) Esta alteração originou a liquidação impugnada, realizada em 18/8/2008, e às demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas que constam de fis. 28 a 30, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
H) No ano de 2002, a impugnante auferiu rendimentos da categoria E provenientes da [SCom01...] para além dos rendimentos declarados (confissão parcial da impugnante no artigo 47.° da petição inicial e exercício do direito de audição de fis. 18 a 26).
I) Em 2002, para além dos rendimentos declarados, a impugnante auferiu rendimentos da categoria E não inferiores a €10.815,29 que não declarou fiscalmente (confissão parcial da impugnante no artigo 47.° da petição inicial e exercício do direito de audição de fis. 18 a 26).
J) O despacho de arquivamento do inquérito n.º ...95/04.1 TDPRT, do DIAP do Porto, consta de fls. 109 a 119, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e data de 14/7/2009, tendo-se tornado definitivo (fls.103 a 121).
3.1.2 - Com relevância para a decisão da causa, o tribunal julga não provado:
1 - A impugnante fazia parte duma sociedade irregular que utilizava as contas bancárias n.°s ..6/..............73 e nº...6/............66.
2 - O rendimento tributável da categoria E imputado à impugnante pelos SIT resultava da distribuição de lucros dessa sociedade.
3.2 - Motivação
O tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa, com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e ao processo administrativo, na parte em que não foram impugnados, e bem assim na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados (art. 74.° da Lei Geral Tributária (LGT)), também são corroborados pelos documentos juntos aos autos (arts. 76.°, n.° 1, da LGT e 362.° e seguintes do Código Civil (cc) identificados em cada um dos factos.
A confissão realizada pela impugnante na petição inicial do recebimento dos rendimentos é determinante para a decisão da causa. Com efeito, embora invoque uma motivação diferente da alegada pela administração tributária, a impugnante confessa que recebeu o ano de 2002, pelo menos €10.815,29, correspondente a 1/9 do alegado rendimento obtido na sociedade irregular de €97.337,62. Pese embora, o tribunal não tivesse ficado convencido da existência desta sociedade comercial irregular, conforme se explicará de seguida, o tribunal não pode ignorar essa confissão da impugnante, porquanto representa a confissão do recebimento efectivo dum rendimento de categoria E, não declarado.
Logo, pelo menos esse rendimento, confessadamente recebido e não declarado, sempre teria de ser tribunal.
Porém, o tribunal, pelos motivos constantes do RIT, considerou que o rendimento de €448.910,55 distribuído aos titulares da conta bancária n.° ..6/..............73, constituem efectivamente um rendimento omitido da [SCom01...].
Com efeito, o RIT demonstrou objetivamente nos autos que através da ação inspectiva realizada à [SCom01...], apurou que a referida conta era utilizada para ocultar rendimentos dessa sociedade, designadamente, de serviços prestados pela [SCom01...] não facturados efectuar pagamentos com valores provenientes da [SCom01...] depositados na aludida conta, depositar nessa conta os montantes correspondentes a despesas de ajudas de custos contabilizados na [SCom01...] e redistribuir esses montantes pelos seus trabalhadores, operações que foram verificadas na ação inspectiva realizada à [SCom01...] e que determinaram a correção do seu lucro tributável pelo referido montante.
A impugnante apesar de invocar a existência duma sociedade comercial irregular constituída pelos acionistas da [SCom01...] que faziam parte da referida conta e que o referido valor depositado nessa conta respeitava a essa sociedade, a qual alegadamente obteve um lucro de €97.337,62, nos termos alegados por si no exercício do direito de audição, não logrou fazer prova desses factos, nem de infirmar as conclusões do RIT.
Com efeito, a Impugnante juntou prova testemunhal para fazer prova desses, só que a prova testemunhal, apesar de corroborar a sua versão, não se revelou suficientemente consistente para convencer o tribunal que na realidade existia essa sociedade comercial irregular e que distribuiu os alegados lucros de €97.337,62, em partes iguais pelos titulares da conta.
A prova testemunhal não foi suficientemente consistente para convencer o tribunal, porquanto foi produzida por pessoas com interesse directo ou indireto na causa por terem interesse nos mesmos factos («BB», «FF» e «PP») ou por trabalharem para esta empresa («HH», «QQ» e «RR»), não tendo nenhum deles apresentado qualquer explicação plausível para a constituição e existência da referida sociedade comercial irregular em virtude dos trabalhos prestados para o denominado projecto Angola.
Por outro lado, as testemunhas «DD» e «EE» declararam que prestaram serviços a pedido do Engenheiro «BB», mas não esclareceram de forma peremptória e assertiva que não trabalhavam para a [SCom01...]. Ao invés, a testemunha «DD» chegou a dizer que o serviço prestado era para a [SCom01...].
A versão da ocultação dos rendimentos constantes da referida conta é ainda corroborada pela forma como lhes eram realizados os pagamentos. As testemunhas declararam que recebiam em dinheiro e não passavam recibos e que quem lhe pagava era a testemunha «QQ» que era técnico oficial de contas da [SCom01...].
Esta constatação é ainda corroborada pelas regras da experiência. Com efeito, as testemunhas também não apresentaram qualquer depoimento coerente e plausível para ser a referida testemunha «QQ» a fazer os pagamentos. Embora pudesse dizer-se que também trabalhava para a referida sociedade irregular, são demasiadas coincidências não explicadas e inverosímeis.
Estas coincidências não explicadas são ainda feridas pelas regras da experiência, porquanto não consegue compreender-se como é que uma sociedade comercial irregular consegue prestar serviços durante dois anos de valores tão avultados, atendendo aos valores elevados movimentados nas constas bancárias em causa nestes autos, relativas aos serviços prestados em 2002 e 2003. Acresce que a prestação de tais serviços, pelos montantes em causa, exigiria condições e meios técnicos e logísticos que a impugnante não alegou, nem demonstrou que a referida sociedade comercial irregular tivesse e também não se coadunam com a mera prestação de serviços das testemunhas «DD» e «EE»
Mas, se ponderarmos nos meios e capacidade humana e técnica que a [SCom01...] dispunha, conforme invoca a impugnante no seu exercício do direito de audição, e os conjugarmos com os registos contabilísticos dos custos realizados na sua contabilidade, cujos valores foram depositados na conta bancária em causa nestes autos bem como na outra conta bancária em causa no ano de 2003 e na sua redistribuição pelos funcionários da [SCom01...], nos montantes depositados nessas contas em dinheiro e em cheques emitidos por terceiros e que as referidas prestações de serviços do denominado projec-to Angola vieram a ser contabilizados na [SCom01...] a partir do ano de 2004, afigura-se verosimil a conclusão retirada pela administração tributária que as referidas contas destinavam-se a ocultar proventos não declarados da [SCom01...] e não a movimentar o dinheiro da alegada sociedade comercial irregular referente ao denominado projecto Angola.
Como já se referiu, outro facto relevante para a convicção do tribunal foi o denominado projecto Angola ter passado a ser contabilizado na [SCom01...] a partir do ano de 2004. Conjugando toda a prova a prova produzida é bem mais plausível que os alegados pagamentos relativos a esse projecto depositados nas contas bancárias em causa nestes autos nos anos de 2002 e 2003 respeitem a rendimentos omitidos à [SCom01...] por serviços prestados por si e não contabilizados, do que respeitarem a pagamento de serviços prestado pela invocada sociedade irregular, que não demonstrou ter meios técnicos e instalações e logística adequada a prestar serviços de montantes tão elevados. Com efeito, essa contabilização veio demonstrar que a partir de 2004 os serviços prestados pela [SCom01...] passaram a ser contabilizados, ao contrário do que vinha sendo feito até aí.
Acresce que esta conclusão é ainda reforçada parcialmente pela confissão da impugnante quanto à existência das referidas contas bancárias, a distribuição dos montantes que delas constam pelos seus titulares como rendimentos dessa atividade, que corroboram a existência de rendimentos ocultos à contabilidade da [SCom01...] porquanto são movimentos provenientes da mesma atividade, com conexão efectiva à [SCom01...] e com a aceitação dos valores aí movimentados. A impugnante só não aceita é que o montante considerado pelos SIT de €448.9410,55 é efetivamente o rendimento tributável ocultado à [SCom01...] porque alegadamente haveria custos e não teriam sido considerados os movimentos de saída dessas constas. Porém, a impugnante não tem razão, na medida em que o total dos depósitos realizados nessa conta excedem em muito esse montante, porquanto totalizaram o valor de €909.616,52, dos quais a administração tributária só considerou o valor das entradas de origem externa à [SCom01...] e aos próprios titulares das contas, bem como ao valor das saídas. Isto é, os SIT consideraram que o montante de €448.910,55 era o valor da matéria tributável subtraída à [SCom01...], porquanto era o valor das entradas nessa conta, que não eram provenientes nem da [SCom01...] nem dos titulares da conta, pelo que constituía o valor dos rendimentos efetivamente subtraídos à [SCom01...].
Esta conclusão não é abalada pelo facto de não fazerem parte da conta todos os acionistas da [SCom01...]. Este facto apenas revela que eles não tiveram uma participação directa nesses factos, mas também não são prejudicados porquanto os custos dessa actividade foram contabilizados na [SCom01...] e os proveitos não. E quando foram realizadas as correcções foram repostos os valores indevidamente ocultados repondo-se a verdade material.
Por isso, o tribunal ficou convencido que as referidas contas destinavam-se efetivamente a ocultar rendimentos não declarados da [SCom01...] e não a movimentar o dinheiro da alegada sociedade comercial irregular, que constitui um mero pretexto para justificar aqueles movimentos.
Motivo pelo qual o tribunal julgou provada a matéria de facto das alínea H) e l) e a matéria de facto não provada.
Aqui cumpre esclarecer que o tribunal na alínea H) não julgou provado que o montante dos rendimentos da categoria E provenientes da [SCom01...], para além dos rendimentos declarados, ascendiam ao montante de €18.687,73, porquanto iremos ver que o tribunal não concorda com a quantificação realizada.
A matéria de facto não provada eram factos alegados pela impugnante sobre quem recaia o respectivo ónus da prova (art. 74.°, n.° 1, da LGM), pelo que não tendo a impugnante feito prova suficientemente consistente para convencer o tribunal, a mesma teve de ser julgada contra si (art. 516° do CPC), isto é, teve de ser julgada não provada.
A restante matéria alegada pelas partes não foi julgada provada ou não provada por constituir conceito de direito, matéria conclusiva ou não relevar para a decisão da causa.”

2.3. Aditamento oficioso à fundamentação de facto:
Dispondo os autos dos elementos probatórios para o efeito indispensáveis e ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 1 do CPC, afigura-se-nos alterar a decisão sobre a matéria de facto assente, proferida em 1ª instância quanto ao ponto J), na medida em que, reportando-se o mesmo ao despacho de arquivamento do inquérito que correu termos no DIAP do Porto sob o n.º ....95/04.1TDPRT, deve ser levado ao probatório o respectivo teor na parte essencial do mesmo e não já uma mera referência como fez o Tribunal a quo.
Assim, o ponto J) da matéria de facto provada passará a ter a seguinte redacção:
J) Consta do despacho de arquivamento do inquérito n.º ...95/04.1TDPRT, emitido em 14.07.2009 pelo DIAP do Porto, de entre o mais o seguinte:
Iniciaram-se os presentes autos com informação da Polícia Judiciária de fls. 3 a 6 do Vol. 1, na qual é denunciada a existência duma conta bancária, no Banco 1..., de que é titular a sociedade "[SCom01...], SA", onde existe um fluxo de movimento a crédito, relativo ao ano de 2002, de cerca de 2 milhões de euros.
Mais se participa que os representantes/procuradores de tal conta em nome daquela sociedade, conjuntamente com dois indivíduos, são titulares de uma segunda conta bancária na mesma instituição, a qual registou, no mesmo ano de 2002, depósitos que totalizam um montante próximo dos 500 mil euros.
Procedeu-se, pois, a inquérito, no decurso do qual se realizaram todas as diligências úteis e necessárias tendo-se, nomeadamente, coligido para os autos os elementos bancários imprescindíveis ao seguimento da investigação.
Foi então efectuada uma accão inspectiva à supradita sociedade, cuja actividade consiste na elaboração de projectos industriais, infraestruturas de tratamento de esgotos de área comerciais, Áreas de Serviços nas Auto-estradas, bem como projectos de engenharia de estruturas, águas e esgotos, vias de comunicação dentro de unidades fabris, loteamentos e projectos de arquitectura para comércio e habitação.
Com base nos elementos contabilísticos e bancários recolhidos no decurso destes autos, foi possível concluir as acções inspectivas, quer à sociedade "[SCom01...], SA", doravante designada abreviadamente por "[SCom01...]", quer aos nove (9) accionistas daquela sociedade, que eram os titulares das contas bancárias nº...73 e nº...6/............66, do Banco 1... (Banco 1...), contas aquelas que não estavam espelhadas na contabilidade da empresa.
Concluídas aquelas ações inspectivas, a Inspeção Tributária procedeu, então, às correcções devidas para os anos de 2002 e 2003, quer em sede de IRC, no caso da sociedade, quer em sede de IRS, categoria E, no caso dos seus nove accionistas.
Com efeito, naquelas acções concluiu-se pela existência de movimentos financeiros nas mencionadas contas bancárias que tinham sido omitidos pela "[SCom01...]" na sua contabilidade, pelo que houve lugar a correcções técnicas ao lucro tributável, tendo também sido apurados os montantes de IVA não liquidado e não entregue nos Cofres do Estado.
Naquelas duas contas bancárias entraram transferências de terceiros, em especial de «PP», cidadão Angolano, que não foi possível identificar, quantias em numerário e depósitos de cheques emitidos por terceiros.
Das supraditas entradas de dinheiro em tais contas foi excluído, pelos Serviços de Inspeção Tributária, tudo aquilo que não se relacionasse com a "[SCom01...]"; para fazer tal "selecção" aqueles Serviços (…)
Efectuadas as competentes correcções técnicas, e quanto á sociedade, apurou-se como valores omitidos, isto é, como valores de prestações de serviços que não foram facturadas e, por conseguinte, não declarados à Administração Tributária, os montantes de IVA e de IRC que se passam a identificar.
(…)
EM SEDE DE IRS
Conforme acima já foi exposto, os lucros obtidos pela sociedade "[SCom01...]" foram distribuídos pelos nove (9) acionistas, na proporção das quotas, a título de lucros de entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados.
Ora, nos termos do art° 5° n°2 alínea h) do Cód. do IRS, tais rendimentos são sujeitos a IRS, razão pela qual os acionistas da “[SCom01...]" foram também sujeitos a inspecções tributárias, na sequência das quais veio a ser apurado o montante de IRS devido por cada um deles.
Porém, e conforme se alcança da tabela de fls. 1457, a vantagem patrimonial ilegítima obtida só ultrapassa os €15.000 em relação a três dos nove administradores da sociedade arguida, designadamente, «BB», «OO» e «HH», pelo que se procedeu à sua constituição e interrogatório como arguidos (fls. 1119 a 1122, 1123 a 1126, 1127 a 1130 do Vol. IV.
Concluída a investigação e uma vez analisados os elementos recolhidos nos autos, conclui-se que a conduta individual de cada um daqueles três arguidos, em matéria de Imposto sobre o Rendimento Singular (IRS), mostra-se tão só susceptível de integrar um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo ar° 103° n°1 do RGIT.
Todavia, compulsados os autos, verifica-se que os montantes de IRS em falta foram, entretanto, pagos (docs. de fls. 1561, 1569 a 1572 Vol. 59), bem como os demais acréscimos legais.
Assim, ponderado todo o circunstancialismo em que ocorreram os factos em análise e ouvida a Administração Tributária a fls. 1639 e 1640 do Vol. V, afigura-se haver fundamento bastante para se optar também, nesta parte, pelo arquivamento do processo, nos termos do art 44° n° 1 do RGIT verificados que estão, no caso concreto, todos os pressupostos da possibilidade de dispensa de pena, prevista no art° 22° n° 1 do RGIT, (…)” – cfr. fls. 103 a 121 do processo físico.
Da mesma forma, consideramos ser de alterar o ponto C) da matéria de facto assente, passando a constar do mesmo a seguinte redacção:
“C) Os serviços de inspeção tributária analisaram o exercício do direito de audição da impugnante e pelos fundamentos constantes do relatório de inspeção tributária, concluíram pela correção da matéria tributável de natureza meramente aritmética do IRS de 2002 da impugnante no montante de €18.687,73, deste decorrendo entre o mais o seguinte: “(…)
A.3) Resultado Da Acção Inspectiva à [SCom01...]
A.3.1) Contas Tituladas Pelos Accionistas
Foram identificadas por via judicial as contas bancárias: n° ..6/..............73 e n° nº...6/............66, confirmando-se serem tituladas por 9 dos 11 accionistas: «BB», «KK», «MM», «NN», «AA», «LL», «OO», «SS», «HH», os quais autorizaram à Administração Fiscal o acesso às referidas contas.” - cfr. fls. 37 a 50 do processo administrativo junto aos autos.

***
2.2 – O direito
Constitui objecto do presente recurso a sentença proferida pelo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgou parcialmente improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação de IRS do ano de 2002, na parte em que a liquidação excede o valor apurado correspondente à correcção de matéria tributável de €17.568,36.

2.2.1. Da falta de notificação do parecer do Ministério Público

Na 31ª conclusão das alegações de recurso, a Recorrente vem invocar que “O Ministério Público emitiu parecer, a fls. 156/162, de que a Impugnante/Recorrente não foi notificada, tendo dele tomado conhecimento apenas na consulta que fez do processo, com a finalidade de elaborar as presentes alegações
Assim, não obstante, a Recorrente não extrair qualquer consequência do alegado, por não invocar nulidade processual ou violação do princípio do contraditório, iremos apreciar da consequência de não ter sido notificado o parecer do Magistrado do Ministério Público.
Vejamos.
Previa à data o n.º 1 do artigo 201.º do CPC que “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”
Por outro lado, “apresentadas as alegações ou findo o respectivo prazo e antes de proferida a sentença, o juiz dará vista ao Ministério Público para, se pretender, se pronunciar expressamente sobre as questões de legalidade que tenham sido suscitadas no processo ou suscitar outras nos termos das suas competências legais”, sendo ouvidos o Impugnante e o Representante da Fazenda Pública, quando o Ministério Público suscitar questão que obste ao conhecimento do pedido – cfr. n.º 1 e n.º 2 do artigo 121.º do CPPT.
Nos termos do disposto no artigo 3.º do CPC “1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”, devendo o juiz observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – cfr. n.º 3.
Tais preceitos têm como objectivo evitar as chamadas decisões surpresa, que, a verificar-se, consubstancia uma nulidade processual.
Não obstante o que foi dito, tem sido considerado de forma unanime pela jurisprudência que “O respeito, in casu, pelo princípio do contraditório, apenas tem aplicação nos casos em que no parecer do Ministério Público se suscite uma questão nova ou se suscitem questões sobre as quais as partes ainda não tenham tido oportunidade de se pronunciar, situação em que se impõe a oportunidade de o recorrente e recorrido se pronunciarem antes da decisão sobre tal realidade.” - cfr. Acórdão do STA de 7.04.2022, proc. n.º 0299/13.2BEPNF 0460/17.
No caso pressente, do parecer emitido pelo Magistrado do Ministério Público que consta de fls. 167 do SITAF, decorre que este se pronunciou sobre a caducidade do direito à liquidação, a falta de fundamentação da liquidação, o vício de violação de lei consubstanciado na avaliação da matéria tributável, considerando ser de improceder a impugnação judicial intentada.
Assim, considerando que em sede do articulado inicial a Recorrente apresentou como fundamentos da sua pretensão i) a caducidade do direito à liquidação, ii) a falta de fundamentação do acto tributário, iii) o erro sobre os pressupostos em que assentou a tributação, iv) o direito a juros indemnizatórios, questões igualmente apreciadas na decisão recorrida, não se vislumbra a violação do princípio do contraditório, uma vez que todas as questões apreciadas em sede do parecer emitido pelo Magistrado do Ministério Público respeitam aos concretos fundamentos apresentados pela Recorrente, não introduzindo na discussão quaisquer elementos ou argumentos novos que justificassem a oportunidade da Recorrente contradizer.
Nesta senda, impõe-se concluir que a omissão da notificação do parecer do Magistrado do Ministério Público não viola o princípio do contraditório, improcedendo a nulidade processual que poderia decorrer da falta de menção do sobredito parecer.

2.2.2 – Do erro de julgamento quanto à caducidade da liquidação

O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel julgou improcedente a caducidade do direito da liquidação por ter considerado que o prazo que decorre do artigo 45.º n.º 1 da LGT foi alargado por efeito do inquérito criminal que correu termos sob o n.º ...95/04.1TDPRT no DIAP do Porto.
A Recorrente vem defender que o n.º 5 do artigo 45.º da LGT, aditado pela Lei n.º 60-A/2005 de 30.12 (LOE para 2006), não tem aplicação ao caso dos autos por considerar, no essencial, que a sua aplicação implicaria a violação de vários princípios constitucionais, como o da Justiça, da proibição do excesso, da legalidade e da irretroactividade.
Vejamos.
Apesar da alegação dos princípios constitucionais que aqui demos conta, a Recorrente não logrou explanar as razões de facto e de direito que consubstanciam a sua alegação, o que se impunha.
Isto porque, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 639.º do CPC “Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) as normas jurídicas violadas; b) o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; (…)”
Tal, consagra a teoria da substanciação a respeito da causa de pedir, uma vez que é exigido que esta seja preenchida, integrada por factos concretos, susceptíveis de fundamentar o direito invocado, e não por meras qualificações jurídicas ou outros juízos de valor.
Como decidiu este Tribunal no Acórdão de 1.03.2019, proc. 02570/14.7BEBRG “Não basta invocar a verificação em abstrato de qualquer violação de princípio ínsito em lei ordinária ou inconstitucionalidade, importando que a sua verificação seja densificada e demonstrada, o que não ocorreu. Com efeito, não é de conhecer por omissão de substanciação no corpo de alegação, a violação dos princípios Constitucionais, designadamente por interpretação desconforme mormente à Lei Fundamental, se o Recorrente se limita a afirmar a referida desconformidade de interpretação e de aplicação, sem apresentar, do seu ponto de vista, as razões de facto e de direito do discurso jurídico fundamentador nem, sequer, a modalidade a que reverte o vício afirmado”. No mesmo sentido vide o decidido no Acórdão do STA de 29.04.2003, proc. 00211/03.
No caso dos presentes autos, a Recorrente, para além de nas conclusões formuladas remeter a sua alegação para o corpo do recurso, não logrou apresentar as razões pelas quais considera verificar-se a violação dos princípios constitucionais alegados.
Nesta senda, improcede o alegado no que respeita à violação dos princípios da justiça, da proibição do excesso, da legalidade e da irretroatividade, por omissão de substanciação no corpo de alegação.
Invoca também a Recorrente que a situação que se discute nos autos não está abrangida pela disposição do n.º 5 do artigo 45.º da LGT, pois o direito à liquidação aqui em causa não se reporta a factos que constituíram o objecto do inquérito.
Vejamos.
Como se depreende do estatuído pelo artigo 298.º nº 2 do Código Civil, ex vi artigo 2.º alínea d) da LGT, a caducidade é o instituto por via da qual os direitos, que, por força da lei ou por vontade das partes têm de exercer-se em determinado prazo, se extinguem pelo seu não exercício nesse prazo.
Como decorria do disposto no n.º 4 do artigo 76.º do CIRS, aplicável à data dos factos, “Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.”
Nesta senda, estatui o n.º 1 do artigo 45.º da LGT que “o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”,
Por sua vez, o n.º 4.º do mesmo normativo legal estatuía à data dos factos aqui em questão que “O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu.”
De tais preceitos resulta que o prazo de caducidade do direito à liquidação é de quatro anos e sendo o IRS um imposto periódico, o prazo de caducidade conta-se a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário.
Assim, respeitando o IRS aqui em questão ao ano de 2002, o prazo de caducidade conta-se a partir de 31.12.2002, terminando em 31.12.2006.
Acresce que, com o aditamento (entrado em vigor em 1.01.2006), ocorrido com a Lei n.º 60-A/2005 de 31.12, o n.º 5 do artigo 45.º da LGT passou a dispor que “sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano”.
A ratio legis de tal normativo funda-se no entendimento que, encontrando-se a liquidação dependente de sentença a proferir no âmbito desse processo, tal liquidação não pode ficar prejudicada pela demora da decisão judicial. Assim, o prazo de caducidade é alargado até ao arquivamento do inquérito ou até ao trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano.
Parafraseando José Maria Pires Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes (in “Lei Geral Tributária -Comentada e Anotada” – Editora Almedina, 2015, pág. 412), “Em resultado da existência de um determinado processo criminal poderão resultar certos factos, cuja qualificação e quantificação como factos tributários depende do que for considerado definitivamente assente em termos criminais, nomeadamente da determinação da existência e medida da responsabilidade criminal do arguido. Por outro lado, tratando-se de factos graves, e atendendo às consequências onerosas, em termos de sanção, advenientes do estabelecimento dessa responsabilidade, o processo criminal é revestido de especiais garantias de defesa, podendo a sua duração ser bastante dilatada, o que não é compatível com os breves prazos de caducidade normalmente vigentes no âmbito tributário”.
Ora, a condição objectiva da aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT são os factos, isto é, exige-se que a liquidação tenha na sua origem factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, não se cingindo, no entanto, aos factos que respeitem à liquidação em causa, mas outrossim, àqueles factos que redundaram nos factos da liquidação controvertida.
“O Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou em diversos Acórdãos no sentido da necessária identidade de factos (identidade objectiva), isto é, os factos averiguados na inspecção tributária terão de ser iguais aos que dão origem à investigação criminal ou foram investigados (vide entre outros Acs. do STA de 01/10/2014, processo n.º 178/14, de 11/11/2015, processo n.º 0190/14 e de 06/12/2017, processo n.º 073/16, (…)” – cfr. Acórdão do TCA Sul de 15.03.2023, proc. n.º 1673/15.5BEALM.
No caso presente, temos que o Meritíssimo Juiz a quo decidiu que não se verificava a caducidade do direito à liquidação, atenta a instauração e encerramento do processo de inquérito que seguiu termos no DIAP do Porto sob o n.º ...95/04.1 TDPRT.
Ora, como decorre de fls. 1 do relatório do procedimento inspectivo referenciado no ponto c) da matéria de facto assente, a aqui Recorrente foi alvo de acção inspectiva por parte dos Serviços de Inspecção Tributária “efetuada no âmbito do processo de inquérito criminal n.º ...95/04.1TDPRT, com vista à qualificação das correcções, que se mostra devidas para efeitos de IRS, relativas ao recebimento de rendimentos da categoria “E” (…)”, aí tendo sido dado conta que “Foram confirmadas por via judicial as contas bancárias: ..6/..............73 e nº nº...6/............66, confirmando-se serem tituladas por 9 dos 11 accionistas: (…) «AA» (…)” e ainda que “Tendo sido qualificados os valores ocultados pela [SCom01...], aos elementos de escrita e aos valores declarados à Administração Fiscal para efeitos de IRC e IVA, que totalizam 448.910,55€, tendo ainda sido comprovado que os valores ocultados destinaram-se aos accionistas titulares das referidas contas, através de transferências bancárias, pagamentos por cheques e pagamentos de despesas inclusive, pela utilização de cartão, valores que saíram da conta bancária em causa.(…)”
Por outro lado, do processo de inquérito que correu termos no DIAP do Porto sob o n.º ...95/04.1 TDPRT, coligido na matéria de facto, ponto J), decorre que o processo de inquérito versou sobre a existência das contas bancárias identificadas no relatório do procedimento inspectivo (..6/..............73 e nº nº...6/............66), nomeadamente os movimentos financeiros percepcionados, suas origens, tendo aí sido concluído pela omissão de prestações de serviços prestados pela sociedade [SCom01...], SA, não facturados e omitidos aos registos contabilísticos e aos valores declarados para efeitos de IRC e IVA.
Acresce que, do mesmo decorre que foi considerada para efeitos de investigação a existência de tais montantes em sede de IRS e na pessoa dos nove accionistas, onde se inclui a aqui Recorrente, tendo no entanto sido concluído que a vantagem patrimonial ilegítima obtida só ultrapassa os €15.000,00 em relação a três dos noves administradores da sociedade, onde não se encontra incluída a aqui Recorrente.
Face aos circunstancialismos vários relatados em sede daquele processo de inquérito, foi decidido arquivar o processo.
Nesta senda, contrariamente ao invocado pela Recorrente, temos que concluir que para efeitos de aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT, o processo de inquérito criminal foi instaurado relativamente aos factos a que respeita a liquidação em questão nos presentes autos, improcedendo nesta parte as alegações do recurso.

2.2.3. Da deficiente apreciação da prova testemunhal e erro de julgamento de facto

A Recorrente vem recorrer da decisão da matéria de facto, como decorre das conclusões 7ª a 28ª, 32ª a 34ª, considerando que das declarações prestadas pelas testemunhas «FF» e «HH», nenhuma dúvida pode restar de que a Recorrente não recebeu quaisquer lucros atribuídos pela [SCom01...] em resultado do projecto Angola, pelo que deverá ser retirada do probatório a respectiva alínea H).
Vejamos.
Com decorre da alínea H) da matéria de facto fixada pelo Juiz do Tribunal a quo “No ano de 2002, a impugnante auferiu rendimentos da categoria E provenientes da [SCom01...] para além dos rendimentos declarados (confissão parcial da impugnante no artigo 47.° da petição inicial e exercício do direito de audição de fis. 18 a 26).”
A questão que ora cumpre apreciar e decidir foi, muito recentemente, decidida por este Tribunal Central Administrativo do Norte, em Acórdão proferido em 12.01.2023, no âmbito do processo n.º 496/08.2BEPNF, em conhecimento de recurso interposto pela aqui Recorrida relativamente a IRS do ano de 2003, e em que a alegação é do mesmo teor da produzida nos presentes autos, distinguindo-se quanto à alínea do probatório, uma vez que nos presentes autos a Recorrente pretende a eliminação da alínea H) e naqueles a alínea g), sendo que as mesmas comportam em si o mesmo facto, distinguindo-se somente no ano a que respeitam os rendimentos
Ora, visando a interpretação e aplicação uniforme do direito à luz do disposto no artigo 8.º nº 3 do Código Civil, e porque concordamos com tal decisão e respectivos fundamentos, por semelhança ao caso sob apreciação, acolhemos a argumentação jurídica aduzida naquele Acórdão, na medida em que não se vislumbra justificação para decidirmos em sentido contrário, passando-se aqui a citar o mesmo:
“(…) Cumpre reconhecer razão a Recorrente quanto à sua peticionada eliminação, se bem, que não pelas razões por si expostas, mas pela simples razão de que estamos perante um facto notoriamente “conclusivo”, que em si define o objecto da acção de que o recebimento dos lucros não declarados proveio da [SCom01...] e de que estamos perante rendimentos da categoria E. É que o vetusto artigo 646º, n.º 4 do CPC determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito, a que se aplicava, por analogia, à matéria conclusiva. Sem necessidade de grandes considerações doutrinais ou jurisprudenciais sobre a noção de “matéria conclusiva”, certo é que podemos ter por líquido que a matéria de facto só deve integrar factos concretos e não formulações genéricas, de direito ou conclusivas, mormente quando, como in casu, preenche, só por si, a hipótese legal, dispensando qualquer subsunção jurídica ou, dito de outro modo, traduzam uma afirmação ou uma valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões.
Revertendo ao caso concreto, a referência no item G) de que em 2003 “(...) a impugnante auferiu rendimentos da categoria E provenientes da [SCom01...] para além dos rendimentos declarados”, resolve só por si a querela sobre qual a categoria dos rendimentos não declarados e a sua proveniência enquanto lucros, da [SCom01...] e
não da sociedade regular, só não resolve, dissemos nós, a contenda sobre o valor atender, tratando-se como tal de matéria conclusiva, nunca a mesma deveria ter sido reconduzida ao probatório, determinando-se a sua expurgação da matéria de facto ao
abrigo do artigo 646º n.º 4 do então CPC.”
Com efeito, parafraseando Helena Cabrita, (in “A fundamentação de facto e de direito da decisão cível”, págs. 106, 110 e 111), “Os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo, desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos forem considerados provados ou não provados, toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência), com base nessa única resposta”.
Nesta medida, considerando que nos presentes autos a alínea do probatório em questão é a alínea H), e pelas razões supra citadas, impõe-se assim proceder à eliminação desta alínea do probatório, apesar da fundamentação para tal se mostrar distinta.
A Recorrente vem também sustentar na conclusão 34ª que constam dos autos elementos de prova que impunha que fosse dado por provado a existência das contas n.°s ..6/..............73 e nº...6/............66 cujos titulares eram «BB», «II» (ora Recorrente), «JJ», «KK», «LL», «HH», «MM», «NN» e «OO».
Consideramos não ser de proceder tal, por desnecessário à decisão da causa, senão vejamos.
Na sentença recorrida foi dado como provado no seu ponto C) que “C) Os serviços de inspeção tributária (SIT) analisaram o exercício do direito de audição da impugnante e pelos fundamentos constantes do relatório de inspeção tributária (RIT) que consta de fls. 44 a 58, cujo teor aqui se dá por reproduzido, concluíram pela correção da matéria tributável de natureza meramente aritmética do IRS de 2002 da impugnante no montante de €18.687,73.”
Nesta medida, não obstante, não constar do facto provado o teor do relatório proferido pelos Serviços da Inspecção Tributária, consideramos relevante fazer constar do sobredito facto parte dele, e, ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 1 do CPC, o ponto C) da matéria de facto passou a ter a seguinte redacção: “C) Os serviços de inspeção tributária analisaram o exercício do direito de audição da impugnante e pelos fundamentos constantes do relatório de inspeção tributária, concluíram pela correção da matéria tributável de natureza meramente aritmética do IRS de 2002 da impugnante no montante de €18.687,73, deste decorrendo entre o mais o seguinte: “(…)
A.3) Resultado Da Acção Inspectiva à [SCom01...]
A.3.1) Contas Tituladas Pelos Accionistas
Foram identificadas por via judicial as contas bancárias: n° ..6/..............73 e n° nº...6/............66, confirmando-se serem tituladas por 9 dos 11 accionistas: «BB», «KK», «MM», «NN», «AA», «LL», «OO», «SS», «HH», os quais autorizaram à Administração Fiscal o acesso às referidas contas.” - cfr. fls. 37 a 50 do processo administrativo junto aos autos.”
Assim, é ostensivo que o facto que a Recorrente pretende que seja aditado ao probatório não é um facto controvertido, uma vez que na análise efectuada pelos Serviços de Inspecção Tributária no decurso do procedimento inspectivo estes constataram a existência das contas n.º ...73 e n.º nº...6/............66, tendo dado conta que os titulares das mesmas eram precisamente «BB», «II» (ora Recorrente), «JJ», «KK», «LL», «HH», «MM», «NN» e «OO».
Nesta senda, improcede o aditamento da matéria de facto pretendida pela Recorrente.
Vem também a Recorrente defender que a análise da prova testemunhal produzida revela-se manifestamente deficiente.
Vejamos.
Como decorria à data do disposto no n.º 2 do artigo 653.º do CPC (actual n.º 4 do artigo 607.º) “A matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular, a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e que os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.
Parafraseando Abílio Neto (in “Código de Processo Civil Anotado”, 22ª Edição actualizada, Ediforum, pag. 885), em comentário ao n.º 2 do artigo 653.º do CPC e enunciando a decisão do Acórdão nº 55/85 do Tribunal Constitucional de 25.03.1985, “A fundamentação das decisões jurisdicionais cumpre, em geral, duas funções: a) Uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitindo às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido; b) Outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão – que -procura, dir-se-à por outras palavras garantir a “transparência” do processo e da decisão”
Nesta medida “a motivação do julgamento da matéria de facto tem como indicações normativas que o juiz analise criticamente as provas e indique os fundamentos decisivos da sua convicção - art. 607 nº 4 do CPC - o que não induz qualquer formulário ou guião que seja de respeitar. Esta análise e indicação é realizada em liberdade de convicção e de forma, importando essencialmente que depois de se saber que matéria foi julgada como provada e não provada se saiba também das razões objetivas dessa convicção e que remetem para a indicação dos elementos probatórios e para o que eles relevam na economia da credibilidade. Reportando aos elementos probatórios e compatibilizando toda a matéria de facto adquirida, o que se pretende é que de uma forma lógica, dinâmica e organizada o que se julga como provado e não provado tenha expressão na motivação, dispensando-se por isso que esta seja realizada facto por facto.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.06.2022, proc. 558/15.0T8AGH.L1.S1.
Acresce que, “Quando a prova é gravada, a sua análise crítica constitui complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento” – cfr. Lebre de Freitas (in Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2ª edição, pág. 660]
Ora, da motivação da matéria de facto realizada na decisão recorrida verificamos que aquela se estende da pág. 3 a parte da pag. 6 da decisão, daí decorrendo o seguinte: “O tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa, com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e ao processo administrativo, na parte em que não foram impugnados, e bem assim na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados (art. 74.° da Lei Geral Tributária (LGT)), também são corroborados pelos documentos juntos aos autos (arts. 76.°, n.° 1, da LGT e 362.° e seguintes do Código Civil (cc) identificados em cada um dos factos.
A confissão realizada pela impugnante na petição inicial do recebimento dos rendimentos é determinante para a decisão da causa. Com efeito, embora invoque uma motivação diferente da alegada pela administração tributária, a impugnante confessa que recebeu o ano de 2002, pelo menos €10.815,29, correspondente a 1/9 do alegado rendimento obtido na sociedade irregular de €97.337,62. Pese embora, o tribunal não tivesse ficado convencido da existência desta sociedade comercial irregular, conforme se explicará de seguida, o tribunal não pode ignorar essa confissão da impugnante, porquanto representa a confissão do recebimento efectivo dum rendimento de categoria E, não declarado.
Logo, pelo menos esse rendimento, confessadamente recebido e não declarado, sempre teria de ser tribunal.
Porém, o tribunal, pelos motivos constantes do RIT, considerou que o rendimento de €448.910,55 distribuído aos titulares da conta bancária n.° ..6/..............73, constituem efectivamente um rendimento omitido da [SCom01...].
Com efeito, o RIT demonstrou objetivamente nos autos que através da ação inspectiva realizada à [SCom01...], apurou que a referida conta era utilizada para ocultar rendimentos dessa sociedade, designadamente, de serviços prestados pela [SCom01...] não facturados efectuar pagamentos com valores provenientes da [SCom01...] depositados na aludida conta, depositar nessa conta os montantes correspondentes a despesas de ajudas de custos contabilizados na [SCom01...] e redistribuir esses montantes pelos seus trabalhadores, operações que foram verificadas na ação inspectiva realizada à [SCom01...] e que determinaram a correção do seu lucro tributável pelo referido montante.
A impugnante apesar de invocar a existência duma sociedade comercial irregular constituída pelos acionistas da [SCom01...] que faziam parte da referida conta e que o referido valor depositado nessa conta respeitava a essa sociedade, a qual alegadamente obteve um lucro de €97.337,62, nos termos alegados por si no exercício do direito de audição, não logrou fazer prova desses factos, nem de infirmar as conclusões do RIT.
Com efeito, a Impugnante juntou prova testemunhal para fazer prova desses, só que a prova testemunhal, apesar de corroborar a sua versão, não se revelou suficientemente consistente para convencer o tribunal que na realidade existia essa sociedade comercial irregular e que distribuiu os alegados lucros de €97.337,62, em partes iguais pelos titulares da conta.
A prova testemunhal não foi suficientemente consistente para convencer o tribunal, porquanto foi produzida por pessoas com interesse directo ou indireto na causa por terem interesse nos mesmos factos («BB», «FF» e «PP») ou por trabalharem para esta empresa («HH», «QQ» e «RR»), não tendo nenhum deles apresentado qualquer explicação plausível para a constituição e existência da referida sociedade comercial irregular em virtude dos trabalhos prestados para o denominado projecto Angola.
Por outro lado, as testemunhas «DD» e «EE» declararam que prestaram serviços a pedido do Engenheiro «BB», mas não esclareceram de forma peremptória e assertiva que não trabalhavam para a [SCom01...]. Ao invés, a testemunha «DD» chegou a dizer que o serviço prestado era para a [SCom01...].
A versão da ocultação dos rendimentos constantes da referida conta é ainda corroborada pela forma como lhes eram realizados os pagamentos. As testemunhas declararam que recebiam em dinheiro e não passavam recibos e que quem lhe pagava era a testemunha «QQ» que era técnico oficial de contas da [SCom01...].
Esta constatação é ainda corroborada pelas regras da experiência. Com efeito, as testemunhas também não apresentaram qualquer depoimento coerente e plausível para ser a referida testemunha «QQ» a fazer os pagamentos. Embora pudesse dizer-se que também trabalhava para a referida sociedade irregular, são demasiadas coincidências não explicadas e inverosímeis.
Estas coincidências não explicadas são ainda feridas pelas regras da experiência, porquanto não consegue compreender-se como é que uma sociedade comercial irregular consegue prestar serviços durante dois anos de valores tão avultados, atendendo aos valores elevados movimentados nas constas bancárias em causa nestes autos, relativas aos serviços prestados em 2002 e 2003. Acresce que a prestação de tais serviços, pelos montantes em causa, exigiria condições e meios técnicos e logísticos que a impugnante não alegou, nem demonstrou que a referida sociedade comercial irregular tivesse e também não se coadunam com a mera prestação de serviços das testemunhas «DD» e «EE»
Mas, se ponderarmos nos meios e capacidade humana e técnica que a [SCom01...] dispunha, conforme invoca a impugnante no seu exercício do direito de audição, e os conjugarmos com os registos contabilísticos dos custos realizados na sua contabilidade, cujos valores foram depositados na conta bancária em causa nestes autos bem como na outra conta bancária em causa no ano de 2003 e na sua redistribuição pelos funcionários da [SCom01...], nos montantes depositados nessas contas em dinheiro e em cheques emitidos por terceiros e que as referidas prestações de serviços do denominado projec-to Angola vieram a ser contabilizados na [SCom01...] a partir do ano de 2004, afigura-se verosimil a conclusão retirada pela administração tributária que as referidas contas destinavam-se a ocultar proventos não declarados da [SCom01...] e não a movimentar o dinheiro da alegada sociedade comercial irregular referente ao denominado projecto Angola.
Como já se referiu, outro facto relevante para a convicção do tribunal foi o denominado projecto Angola ter passado a ser contabilizado na [SCom01...] a partir do ano de 2004. Conjugando toda a prova a prova produzida é bem mais plausível que os alegados pagamentos relativos a esse projecto depositados nas contas bancárias em causa nestes autos nos anos de 2002 e 2003 respeitem a rendimentos omitidos à [SCom01...] por serviços prestados por si e não contabilizados, do que respeitarem a pagamento de serviços prestado pela invocada sociedade irregular, que não demonstrou ter meios técnicos e instalações e logística adequada a prestar serviços de montantes tão elevados. Com efeito, essa contabilização veio demonstrar que a partir de 2004 os serviços prestados pela [SCom01...] passaram a ser contabilizados, ao contrário do que vinha sendo feito até aí.
Acresce que esta conclusão é ainda reforçada parcialmente pela confissão da impugnante quanto à existência das referidas contas bancárias, a distribuição dos montantes que delas constam pelos seus titulares como rendimentos dessa atividade, que corroboram a existência de rendimentos ocultos à contabilidade da [SCom01...] porquanto são movimentos provenientes da mesma atividade, com conexão efectiva à [SCom01...] e com a aceitação dos valores aí movimentados. A impugnante só não aceita é que o montante considerado pelos SIT de €448.9410,55 é efetivamente o rendimento tributável ocultado à [SCom01...] porque alegadamente haveria custos e não teriam sido considerados os movimentos de saída dessas constas. Porém, a impugnante não tem razão, na medida em que o total dos depósitos realizados nessa conta excedem em muito esse montante, porquanto totalizaram o valor de €909.616,52, dos quais a administração tributária só considerou o valor das entradas de origem externa à [SCom01...] e aos próprios titulares das contas, bem como ao valor das saídas. Isto é, os SIT consideraram que o montante de €448.910,55 era o valor da matéria tributável subtraída à [SCom01...], porquanto era o valor das entradas nessa conta, que não eram provenientes nem da [SCom01...] nem dos titulares da conta, pelo que constituía o valor dos rendimentos efetivamente subtraídos à [SCom01...].
Esta conclusão não é abalada pelo facto de não fazerem parte da conta todos os acionistas da [SCom01...]. Este facto apenas revela que eles não tiveram uma participação directa nesses factos, mas também não são prejudicados porquanto os custos dessa actividade foram contabilizados na [SCom01...] e os proveitos não. E quando foram realizadas as correcções foram repostos os valores indevidamente ocultados repondo-se a verdade material.
Por isso, o tribunal ficou convencido que as referidas contas destinavam-se efetivamente a ocultar rendimentos não declarados da [SCom01...] e não a movimentar o dinheiro da alegada sociedade comercial irregular, que constitui um mero pretexto para justificar aqueles movimentos.
Motivo pelo qual o tribunal julgou provada a matéria de facto das alínea H) e l) e a matéria de facto não provada.
Aqui cumpre esclarecer que o tribunal na alínea H) não julgou provado que o montante dos rendimentos da categoria E provenientes da [SCom01...], para além dos rendimentos declarados, ascendiam ao montante de €18.687,73, porquanto iremos ver que o tribunal não concorda com a quantificação realizada.
A matéria de facto não provada eram factos alegados pela impugnante sobre quem recaia o respectivo ónus da prova (art. 74.°, n.° 1, da LGM), pelo que não tendo a impugnante feito prova suficientemente consistente para convencer o tribunal, a mesma teve de ser julgada contra si (art. 516° do CPC), isto é, teve de ser julgada não provada.
A restante matéria alegada pelas partes não foi julgada provada ou não provada por constituir conceito de direito, matéria conclusiva ou não relevar para a decisão da causa.”
Assim, da motivação apresentada podemos concluir que o Juiz a quo, visitando com critério e explicação a matéria de facto que considerou resultar provada da instrução dos autos, atendeu à diversa prova constante dos autos (com referência ao conteúdo dos documentos, confissão e depoimentos), tendo assim ponderado toda a prova produzida sobre a factualidade em questão.
Com efeito, da referida motivação podemos percepcionar que o Juiz a quo privilegiou a confissão da Recorrente e ainda os factos percerpcionados em sede do procedimento inspectivo e vertidos no respectivo relatório em detrimento da prova testemunhal.
Isto porque, considerou que a prova testemunhal não foi suficientemente consistente para convencer o Tribunal, uma vez que aquela “foi produzida por pessoas com interesse directo ou indireto na causa por terem interesse nos mesmos factos («BB», «FF» e «PP») ou por trabalharem para esta empresa («HH», «QQ» e «RR»), não tendo nenhum deles apresentado qualquer explicação plausível para a constituição e existência da referida sociedade comercial irregular em virtude dos trabalhos prestados para o denominado projecto Angola.”, e, ainda que “(…) as testemunhas «DD» e «EE» declararam que prestaram serviços a pedido do Engenheiro «BB», mas não esclareceram de forma peremptória e assertiva que não trabalhavam para a [SCom01...]. Ao invés, a testemunha «DD» chegou a dizer que o serviço prestado era para a [SCom01...].”
Ora, atentas as alegações formuladas, não se trata neste recurso de saber se a convicção do Juiz a quo foi bem formada ou não, mas sim se tal convicção foi explicada, e, pelo que aqui demos conta, não restam dúvidas de que o foi através da expressa referência à razão do julgamento que fez da factualidade provada e não provada.
Nesta senda, sendo consabido que não é necessário que para cada facto se apresente uma motivação autónoma, mas sim que para todos eles exista na fundamentação a razão da decisão tomada, não merece censura alguma a decisão recorrida porque de forma exaustiva e clara esclareceu os elementos objetivos em que fundou a sua convicção relativamente aos factos.
Assim, procede o recurso de impugnação da matéria de facto relativamente à eliminação do ponto H) da matéria de facto assente, negando-se, no mais, provimento ao recurso, nomeadamente no que respeita ao aditamento pretendido e ainda à insuficiente apreciação da prova testemunhal produzida, por não se verificar omissão de análise crítica da prova ou motivação do julgamento da matéria de facto.

2.2.3 - Do erro de julgamento quanto ao método de avaliação tributável utilizado

A Recorrente vem invocar que a sentença recorrida deveria ter considerado inadequado o método de avaliação da matéria tributável que foi utilizado - correcções meramente aritméticas – em vez da utilização da avaliação indirecta.
Ora, a questão que cumpre apreciar e decidir foi decidida por este Tribunal no Acórdão já supra referenciado, proferido em 12.01.2023, no âmbito do processo n.º 496/08.2BEPNF e em que a alegação é do mesmo teor da produzida nos presentes autos. Acresce que, o segmento da decisão aqui recorrida é igual à fundamentação da decisão do processo de impugnação judicial que redundou no Acórdão supra citado.
Nesta medida, passa-se a reproduzir o aí decidido.
“Invocou a Impugnante nos autos a ocorrência de vício de violação de lei porquanto o rendimento omitido considerado pelos SIT não teve em conta os movimentos de saída da conta e ao não considerar os alegados custos com a obtenção desse proveito está a presumir rendimentos usando métodos indirectos de determinação de rendimento, coarctando a possibilidade de defesa da impugnante nos termos dos arts. 91.º a 94.º da LGT, (…). O tribunal a quo, conhecendo de tal fundamento, considerou que: « Quanto à não consideração dos alegados movimentos de saída da conta e dos custos com a obtenção do proveito distribuído, a impugnante não tem razão, porque conforme resulta do RIT e da motivação da matéria de facto, cujo teor aqui se dá por reproduzido, verificamos que os SIT tiveram em conta os movimentos de saída das referidas contas e que só relevaram os proventos com origem exterior à [SCom01...] e aos titulares da conta, que correspondem a pagamentos de serviços prestados por aquela sociedade e que constituem rendimento seu. Acresce que a impugnante está a invocar a existência dos referidos custos porque estar a pressupor que esses depósitos correspondem a pagamentos de serviços prestados pela referida sociedade irregular. Mas como vimos, não é esse o caso dos autos. No caso em apreço não existe qualquer sociedade irregular e os referidos depósitos correspondem a pagamentos de serviços prestados pela [SCom01...], cujos custos foram aí e contabilizados. Por outro lado, também não há qualquer determinação de rendimentos presumidos, nem determinação de matéria tributável por métodos indirectos e consequente violação das garantias de defesa da impugnante, nos termos dos arts. 91.º a 94.º da LGT e 18.º, n.º 2, da CRP. Os rendimentos fixados pelos SIT foram os rendimentos omitidos apurados pela inspecção tributária. Não há por isso qualquer presunção de rendimentos. Mesmo a imputação dos rendimentos apenas aos accionistas da [SCom01...] que eram titulares das contas, não constitui presunção de rendimento, na medida em que os rendimentos imputados correspondem aos rendimentos omitidos efectivamente auferidos. A distribuição dos rendimentos apesar de não respeitar a proporção das participações sociais da [SCom01...] não constitui presunção de rendimentos porquanto os rendimentos imputados correspondem aos rendimentos omitidos efectivamente auferidos por cada um dos titulares da conta, significando apenas que os accionistas que não faziam parte da conta não receberam qualquer parte desse rendimento porque não tiveram uma participação directa na omissão desses rendimentos. Logo, não existe qualquer determinação de matéria tributável por métodos indirectos, pelo que não há motivo para conferir-se à impugnante o direito ao pedido de revisão da matéria tributável previsto nos arts. 91.º e seguintes da LGT, nem qualquer violação dos princípios constitucionais garantidos pelo art. 18.º, n.º 2, da CRP. Nesta parte, a impugnação judicial também tem de improceder.» (fim de transcrição)
Antes de mais, cumpre ter presente o seguinte e breve enquadramento jurídico naturalmente implícito ao julgamento efectuado em 1ª instância e que, nesta sede, cumpre sindicar.
Determina o artigo 81.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária que: “A matéria tributável é avaliada ou calculada directamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indirecta nos casos e condições expressamente previstos na lei” - artigos 82.º e 83.º, n.º 1, da LGT. Quer dizer, a avaliação directa é o modo de avaliação que a lei elege, sendo a avaliação indirecta opção só nos casos previstos na lei e sempre de forma subsidiária da avaliação directa - artigo 85.º, n.º 1 da LGT.
Ora, como se sabe, as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, presumem-se verdadeiras e de boa-fé - artigo 75.º, n.º 1, da LGT.
Esta presunção cessará, contudo, quando, entre o mais, as declarações, contabilidade ou escrita apresentadas revelem omissões, erros, inexactidões ou existam indícios fundados de que não reflectem o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo - artigo 75.º, n.º 2, alínea a), da LGT.
Assim, afastada a presunção de veracidade declarativa, incumbirá à Administração indagar se em virtude dessa infidelidade ou da falta de fidedignidade dos seus elementos declarativos [enquanto obrigação acessória declarativa – artigo 31.º, n.º 2, da LGT], ainda assim, detém outros dados que lhe permitam comprovar e quantificar de forma directa e exacta a matéria colectável do sujeito passivo através da introdução das denominadas “correcções técnicas” - artigo 84.º, n.º 1 e 3, da LGT. Assim sendo, apenas e tão só no caso em que não seja possível proceder a essa quantificação directa e exacta, é que a Administração Tributária se encontrará legalmente vinculada a utilizar os métodos indirectos de determinação da matéria colectável - artigos 87.º, alínea b) e 88.º, ambos da LGT.
A este título, conforme referia Saldanha Sanches, indispensável é que daquela infidelidade declarativa “resulte a impossibilidade de cálculo que constitui a condição geral da sua aplicação. Esta previsão de uma situação de impossibilidade de determinação normal do lucro passa assim a desempenhar a função, não de legitimar em termos gerais a actuação da Administração quando recorre a métodos indiciários, mas sim a de criar um limite para a sua utilização: ela fornece uma bitola de gravidade
em relação a qualquer dos vícios contabilísticos detectados pela Administração. Tem de ser suficientemente grave para impossibilitar a determinação normal do lucro.” [in A Quantificação da Obrigação Tributária, Deveres de cooperação, auto-avaliação e avaliação administrativa, 2000, pp. 280 e 281]. Do que vai dito resulta que nem a Fazenda Pública, nem o sujeito passivo, podem, de seu livre arbítrio, optar pela tributação indiciária, ainda que aquela cuide assim arrecadar receita maior ou este acredite furtar-se a uma tributação mais pesada.
Em suma, o recurso aos métodos indiciários só é legalmente possível quando o apuramento da matéria colectável através de correcções técnicas se revele, de todo, impraticável, pois que a fixação da matéria tributável por tais métodos deve revestir a natureza de “ultima ratio fisci” e exigir uma cuidada fundamentação quanto à opção pela sua utilização [cf. Saldanha Sanches, in ob. cit., pág. 303; Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 02.02.2006, proferido no processo n.º 1011/05; de 12.10.2011, proferido no processo n.º 524/11 e de 02.04.2014, proferido no processo 1510/13, e ainda deste TCA-Norte, de 29.01.2009, proferido no processo n.º 59/03] A primeira observação a fazer, in casu, é que o apuramento do valor tributável por métodos indiretos consiste em inferir a partir de um facto conhecido (facto-índice) e com recurso a regras da experiência (comum, técnicas) um facto desconhecido (o rendimento tributável). Sendo que, no caso, o valor do rendimento tributável não é um facto desconhecido, «uma vez que nos documentos apreendidos consta taxativamente
quais os rendimentos que foram ocultados».
Ou seja, teria havido recurso a métodos indiretos nos termos dos artigos 87.º, n.º 1, alínea b) e 88.º, ambos da LGT se a administração tributária tivesse verificado que a Recorrente auferiu rendimentos que não declarou e que não fosse possível apurar diretamente, havendo que recorrer a factos-índice, não apenas para aferir a existência de rendimentos não declarados, mas também para aceder ao valor aproximado desses rendimentos, na impossibilidade do apuramento do seu valor exato. Só assim estaríamos perante a impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata da matéria tributável. Não foi o caso: a administração tributária não se deparou com a impossibilidade de aferir concretamente o valor das quantias pagas «por fora» porque os documentos apreendidos indicavam o seu valor exato. E não houve, por isso, que recorrer a fatores de quantificação como os que se referem no artigo 90.º da LGT.
É certo que, para aí chegar, a administração tributária depois de levar a cabo uma acção de inspecção externa sobre a sociedade [SCom01...], os serviços de inspecção tributária tiveram que deduzir que as contas bancárias com os n.ºs ..6/..............73 e nº...6/............66, embora fossem tituladas individualmente por 9 dos 11 sócios da [SCom01...], alegadamente associados sob a capa de uma “sociedade irregular” serviram, na realidade e além do mais, para ocultar rendimentos obtidos por serviços prestados [não facturados e omitidos] por esta e que, no ano de 2003, ascenderam assim ao montante de € 605.503,56.
Este montante, como se supra se concluiu, destinava-se a ser repartido pelos 9 accionistas e titulares das referidas contas bancárias, onde se inclui a impugnante, a título de adiantamentos por conta dos lucros da [SCom01...].
Aqui chegado, não foi difícil a Administração quantificar, de forma directa e exacta, a matéria colectável da Recorrente, deduzindo que os rendimentos omitidos e depositados naquela conta bancária provinham de lucros da [SCom01...], os serviços de inspecção tributária, depois de se socorrerem dos documentos bancários que lhe haviam sido facultados, chegou ao valor de € 605.503,56 [correspondente apenas ao valor das entradas com origem externa, ou seja, a valores que deveriam ter sido contabilizados pela [SCom01...] como contrapartida de proveitos] depois de dividido por cada um dos 9 sócios titulares, destinatários das identificadas transferências bancárias, de acordo com a respectiva quota-parte, viria a caber a impugnante a quantia de € 25.866,08, a título de rendimentos de capitais a imputar e a englobar em 50 %, ou seja, no montante de €12.933,04, nos termos do então artigo 40.º-A, n.º 1, do Código do IRS.
Sobre questão idêntica com contornos fácticos muito semelhantes, recaiu acórdão deste TCA Norte, de 27.09.2012, proferido no âmbito do processo n.º 885/07.0BEPRT,
cujo teor aqui chamamos a colação atenta a sua pertinência, nos seguintes termos que aqui revelam: “(...) no caso, o valor do rendimento tributável não é um facto desconhecido, «uma vez que nos documentos apreendidos consta taxativamente quais os rendimentos que lhe foram pagos».
Ou seja, teria havido recurso a métodos indiretos nos termos dos artigos 87.º, n.º 1, alínea b) e 88.º, ambos da Lei Geral Tributária se a administração tributária tivesse verificado que o Recorrente auferiu rendimentos que não declarou e que não fosse possível apurar diretamente, havendo que recorrer a factos-índice, não apenas para aferir a existência de rendimentos não declarados, mas também para aceder ao valor aproximado desses rendimentos, na impossibilidade do apuramento do seu valor exato. Só assim estaríamos perante a impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata da matéria tributável.
Não foi o caso: a administração tributária não se deparou com a impossibilidade de aferir concretamente o valor das quantias pagas «por fora» porque os documentos apreendidos indicavam o seu valor exato. E não houve, por isso, que recorrer a fatores
de quantificação como os que se referem no artigo 90.º do mesmo Código.
É certo que, para aí chegar (isto é, para concluir que foram pagos ao Recorrente os valores mencionados naquelas folhas), a administração tributária teve que deduzir que as ações narradas naqueles documentos tiveram lugar e que, por conseguinte, esses documentos titulam factos reais e não fictícios.
Mas não é isso que distingue a avaliação direta da avaliação indireta, porque qualquer
avaliação da matéria tributável pressupõe o recurso a métodos redutores da realidade.
A própria escrita não é mais do que uma representação da realidade, uma narrativa em números, contada em discurso indireto e destinada a permitir a verificação a posteriori do rendimento tributável por quem não a elaborou e não presenciou a realização do processo produtivo, e não tem outro remedio senão presumir que se consumou nos termos que ali são representados. Mais: num sistema em que o resultado fiscal é induzido pelo próprio contribuinte, com base no cumprimento dos seus deveres de colaboração, assenta também numa aparência, a de que o contribuinte está a falar verdade porque se mostra colaborante. Qualquer método de avaliação parte, assim, de uma presunção primordial. Em certo sentido, de resto, a avaliação com base nas declarações do contribuinte e dos elementos da sua escrita ou contabilidade é que é uma forma de avaliação indireta, porque a sua verdade fiscal não é diretamente apreendida pela administração tributária mas indiretamente relatada pelo próprio.
Não é, por isso, o recurso a presunções no processo lógico do apuramento da verdade
fiscal do contribuinte que define a avaliação indireta, mas a impossibilidade de aceder
ao valor exato da matéria tributável depois de se confirmar que o declarado não corresponde à verdade. E essa impossibilidade não se verificou, no caso dos autos. Não houve qualquer recurso a métodos indiretos. E não havia, assim, que observar as regras procedimentais privativas deste método de avaliação. Pelo que o ato impugnado não poderia padecer dos vícios que, nesta parte, lhe são imputados. E a decisão recorrida que assim o concluiu não pode deixar de ser confirmada.
Resta acrescentar que, ao contrário do que também pretende o Recorrente, o facto de a administração tributária entender que existia contabilidade paralela não a obrigava, por si só, a recorrer a métodos indiretos. Sendo verdade que a existência de diversas contabilidades é uma das situações que a lei prevê poder conduzir à impossibilidade da determinação direta e exata da matéria tributável, é óbvio que tal só sucederá quando o apuramento direto seja mesmo inviabilizado. O que decorria já da natureza subsidiária da avaliação indireta, mas é confirmado pela letra do próprio artigo 88.º da Lei Geral Tributária. No caso, tal só sucederia se a administração tributária não tivesse meio de saber qual dessas contabilidades é verdadeira. E não foi isso que sucedeu: o que a administração tributária verificou foi que aqueles elementos de contabilidade não declarada da sociedade se destinaram a documentar remunerações que o Recorrente efetivamente auferiu. E que, por conseguinte, refletiam a sua verdadeira situação tributária.” (fim de citação) Sufragando o entendimento vertido no arresto supracitado, tal como na sentença sob recurso, consideramos não ser o recurso a presunções no processo lógico do apuramento da verdade fiscal do contribuinte pela AT que, na realidade, define o procedimento de avaliação indirecta. E, sempre se diga, que não decorre dos autos, nem da matéria de facto provada quais os custos fiscalmente dedutíveis em que terá ocorrido a [SCom01...] na obtenção dos proveitos a que se alude, que possa colocar em causa a existência dos mesmos e os valores alcançados.”
Atento o decidido no Acórdão supra citado, assim como atendendo à semelhança da factualidade subjacente às decisões em questão, e, não se vislumbrando justificação para decidirmos em sentido contrário, impõe-se julgar não provido o recurso no que a esta questão contende.

2.2.4. - Do erro de julgamento quanto ao erro nos pressupostos de facto

Invoca a Recorrente que nenhum dos colaboradores do projecto Angola foi pago pela [SCom01...], nada tendo recebido daquele projecto, a título de remuneração ou a qualquer outro, designadamente a título de participação nos lucros auferidos pela [SCom01...], uma vez que essa actividade não foi realizada pela sociedade, devendo tal montante ser enquadrado como rendimentos da categoria B (rendimentos profissionais).
Vejamos.
A Recorrente veio recorrer da matéria de facto, tendo logrado obter provimento relativamente à eliminação do ponto H) da matéria de facto assente, por termos concluído que se tratava de um facto conclusivo.
No entanto, no que respeita ao invocado erro de julgamento de facto aqui já decidido, nada mais é imputado ao probatório para além do pretendido aditamento que foi indeferido pelas razões acima descritas, o que se impunha.
Isto porque, do acervo probatório assente decorre ainda do ponto I) que: “Em 2002, para além dos rendimentos declarados, a impugnante auferiu rendimentos da categoria E não inferiores a €10.815,29 que não declarou fiscalmente (…)”
Acresce que, o Juiz a quo também considerou que da instrução dos autos não resultou provado que: “1 - A impugnante fazia parte duma sociedade irregular que utilizava as contas bancárias n.°s ..6/..............73 e nº...6/............66” e ainda que “2 - O rendimento tributável da categoria E imputado à impugnante pelos SIT resultava da distribuição de lucros dessa sociedade.”
Nesta medida, e, não obstante, a eliminação do ponto H) da matéria de facto assente, impunha-se que a Recorrente tivesse recorrido da restante matéria de facto por forma a eliminar os factos que permitiram ao Juiz a quo decidir no sentido que decidiu.
Com efeito, atendendo aos factos provados e não provados, conclui-se que a Recorrente auferiu rendimentos da categoria E e não da categoria B, como defende, e que tais rendimentos não resultaram de sociedade irregular.
Assim, e na medida em que a restante decisão da matéria de facto se mantém estabilizada, não tendo sido alvo por parte da aqui Recorrente nas suas alegações de recurso, resta negar provimento ao recurso e manter na ordem jurídica a sentença recorrida.
Por fim, alega a Recorrente que a admitir-se que obteve em 2002 rendimentos de capitais calculados sobre uma nona parte de metade de €97.337,62, essa nona parte corresponderia a €5.407,64, e não a €17.568,36 como vem referido na sentença
Vejamos.
O Juiz a quo, no seu iter cognoscitivo procedeu à análise do relatório dos SIT, assim como às circunstâncias concretas da situação em análise e decidiu que “Com efeito, resulta do RIT que da imputação dos rendimentos omitidos à Impugnante, que a quantificação do rendimento omitido de €448.910,55 respeitou a proporção dos valores que concretamente foram entregues à impugnante no ano de 2002 através de cheques e transferências bancárias. Isto é, os SIT apuraram a percentagem que cada um dos accionistas da [SCom01...], que eram titulares da referida conta, recebeu efectivamente da conta bancária em causa nestes autos, e aplicou essa percentagem ao rendimento omitido de €448.910,55. Porém, entendemos que aqui os SIT não poderiam fazer esta imputação. Tendo os SIT apurado um rendimento omitido de €448.910,55, resultante de valores depositados na referida conta com origem externa à [SCom01...] e que seriam rendimentos desta, a sua distribuição não podendo seguir a proporção da participação social de cada um dos seus accionistas, porque nem todos faziam parte da referida conta e comprovadamente receberam valores dessa conta, também não deve seguir a proporção dos montantes recebidos por cada um dos titulares da conta. (…) No caso em apreço, a quantificação e a imputação do rendimento omitido tem de ser realizado de acordo com os valores objectivamente apurados que foram entregues a cada um dos titulares dessa conta determinados pelos SIT na quantificação dos rendimentos a imputar. Apesar do valor do rendimento omitido apurado pelos SIT de €448.910,55 ser superior ao valor apurado concretamente distribuído aos titulares das contas, no montante de €422.021,33 (soma dos valores da coluna “total” de fls. 58), se os SIT não lograram demonstrar que a diferença entre esses montantes, no valor de €26.889,22, foi efectivamente distribuído pelos titulares da conta, não pode presumir que esse valor foi distribuído por eles na proporção do montante efectivamente distribuído a cada um deles. Se os SIT não conseguem imputar aos titulares da conta o montante de rendimento omitido efectivamente distribuído a cada um deles, não pode estar a presumir esse valor. Neste caso, os SIT têm de respeitar o critério objectivo do rendimento distribuído efectivamente apurado, ficando por imputar a cada um dos titulares da conta a diferença entre o valor do montante efectivamente distribuído a cada um deles, no total de €422.021,33, e o montante total do rendimento omitido no valor de €448.910,55. Isto é, fica por imputar aos titulares da conta o rendimento omitido no valor de €26.889,22, por não se ter apurado a quem foi efectivamente distribuído e em que montante.”.
Com efeito, o entendimento vertido na decisão recorrida mostra-se coerente com o método utilizado na determinação da matéria colectável – correcções meramente aritméticas – que, como vimos supra foi o método utilizado pelos SIT face aos elementos que dispunham.
Ademais, considerou de igual forma o Juiz a quo que “No caso da impugnante, não pode ser-lhe imputado o rendimento de €2.238,75, correspondente à diferença entre o montante efetivamente distribuído de €35.136,72 e o montante que os SIT consideraram de €37.375,47, porquanto constitui um rendimento presumido. De acordo com o critério de imputação do rendimento efetivamente distribuído, que garante de forma objectiva os valores efetivamente recebidos por cada um dos titulares da conta, a distribuição do rendimento omitido garante de forma efectiva e objectiva não só a proporção efectivamente recebida por cada um deles e pela impugnante em particular. Neste caso, à impugnante só pode ser imputada a título de rendimento de capitais a quantia de €35.136,72, correspondente ao montante efectivamente recebido em 2002 da conta em causa nestes autos, o que equivale a um acréscimo do rendimento tributável de €17.568,36. Esta imputação respeita os arts. 17°, n.91, do CIRC, 5.°, n.° 2, alínea h), do CIRS e 103.°, n.° 2, da CRP, porquanto não só respeita a proporção na distribuição do rendimento omitido por cada um dos acionistas da [SCom01...] que é titular da conta e que participou na distribuição dos rendimento omitidos, como correspondente ao montante efectivamente recebido da conta em causa nestes autos, traduzindo-se o seu rendimento real e a sua capacidade contributiva efectiva.”
Com efeito, se os SIT lograram comprovar os valores concretos recebidos pela Recorrente, não poderiam, face à proporção que lhe caberia receber encontrar um valor presumido.
Consequentemente, foi considerado que à Recorrente somente seria de imputar a título de rendimento de capitais o montante efectivamente recebido na ordem dos €35.136,72, ficando por apurar o montante de €26.889,22, isto porque, não lograram os SIT apurar a quem foi efectivamente distribuído e qual o montante.
Nesta senda, o valor atribuído à Recorrente cingiu-se ao valor efectivamente recebido por ela atendendo aos elementos elos SIT percepcionados.
Por outro lado, a Recorrente, apesar de invocar que os cálculos efectuados estão errados, limitou-se a fundamentar a sua pretensão com a percentagem que lhe cabia da sua quota parte dos lucros da sociedade, como se os SIT tivessem recorrido a métodos indirectos, não tendo assim logrado demonstrar o invocado.
Nesta senda, consideramos não ser de apontar à decisão recorrida o alegado erro de contas, na medida em que, partindo do critério da determinação da matéria colectavel utilizado (correcções meramente aritméticas), foi considerado o montante concretamente apurado, baseado em factos concretos, nomeadamente os valores efectivamente recebidos pela recorrente na sua conta bancária, sendo de negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.


Em conclusão:

I. A falta de notificação do parecer do Magistrado do Ministério Público, quando aí não tenha sido suscitada questão nova ou questão sobre a qual as partes ainda não tenham tido oportunidade de se pronunciar, não viola o princípio do contraditório, estatuído no artigo 3.º do CPC.
II. Por forma a operar o alargamento do prazo de caducidade previsto no .º 1 do artigo 45.º da LGT, os factos averiguados em sede do procedimento inspectivo terão de ser iguais aos que dão origem à investigação criminal ou foram investigados.
III. A matéria de facto só deve integrar factos concretos e não formulações genéricas, de direito ou conclusivas, nomeadamente quando, por si só, traduzam uma afirmação ou uma valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões.
IV. A motivação do julgamento da matéria de facto tem como indicações normativas que o juiz analise criticamente as provas e indique os fundamentos decisivos da sua convicção à luz do que estabelecia à data o n.º 2 do artigo 653.º do CPC (actual n.º 4 do artigo 607.º).

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3 – Decisão

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal em negar provimento ao recurso, e, em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrida.
Porto, 11 de Abril de 2024


Virgínia Andrade
Graça Valga Martins
Carlos A. M. de Castro Fernandes