Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
| Processo: | 00342/22.4BEAVR |
| Secção: | 2ª Secção - Contencioso Tributário |
| Data do Acordão: | 05/15/2025 |
| Tribunal: | TAF de Aveiro |
| Relator: | ROSÁRIO PAIS |
| Descritores: | EMBARGOS DE TERCEIRO; IMÓVEL; AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO; POSSE; |
| Sumário: | I – A usucapião tem sempre na sua génese uma situação possessória, que pode derivar de constituição ex novo ou de posse anterior. III – Posse delimitada como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – artigo 1251º C.Civ.. IV – A usucapião produz uma aquisição originária que opera com efeitos retroativos, reportados ao início da posse respetiva – artº 1288º do C.Civ. -, mas que, relativamente ao direito possuído, não pode verificar-se nos detentores ou possuidores precários, exceto achando-se invertido o título de posse, caso em que o prazo para usucapir só corre desde a inversão do título – artº 1290º C. Civ.. V – A inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio (não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base; necessário se torna que o detentor expresse diretamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de atuar como titular do direito).* * Sumário elaborado pela relatora (art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil) |
| Votação: | Unanimidade |
| Decisão: | Negar provimento ao recurso. |
| Aditamento: |
| Parecer Ministério Publico: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência os Juízes da Subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte: 1. RELATÓRIO 1.1. «AA» e «BB», casados entre si e com os demais sinais dos autos, vêm recorrer da sentença proferida em 04/01/2024 no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, pela qual foram julgados improcedentes os Embargos de Terceiro que deduziram no âmbito da execução fiscal nº ...04 e apensos, instaurada contra «CC», em que pediram fosse reconhecido que o imóvel em causa nos autos é de sua propriedade, declarando-se sem efeito a penhora que sobre ele incidiu. 1.2. Os Recorrentes terminaram as suas alegações formulando as seguintes conclusões: «a) Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao decidido, impõe-se reconhecer a titularidade da propriedade do prédio ajuizado aos Recorrentes, adquirida por usucapião. b) De toda a prova produzida nos autos, não restam dúvidas que os Recorrentes, pelo menos desde 1995, utilizam para seu exclusivo benefício pessoal o referido prédio penhorado nos presentes autos, suportando todas as despesas inerentes ao mesmo, fazendo-o de forma pública e pacífica, com o total conhecimento e concordância (expressa ou pelo menos tácita) da Executada. c) Resulta do conjunto dos factos provados que a posse dos Recorrentes sobre o imóvel em questão é de boa-fé desde sempre, pois os Recorrentes atuaram sempre na convicção de serem proprietários legítimos do imóvel acima identificado, sem alguma vez terem lesado os direitos de outrem. d) Sendo que, como é sabido, a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, que aqui interessa, depende da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, conceitos estes, constitutivos dos requisitos objectivos e subjectivos necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, a ser preenchidos por elementos de facto que, in casu, estão presentes, designadamente a prova do corpus e do animus da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei [posse pública, contínua e pacífica] - artºs. 1251º, 1258º, 1261º, 1262º, 1263º, al. a) e 1287º e seguintes todos do Código Civil. e) A posse é integrada por dois elementos - o corpus e o animus - o primeiro a constituir o domínio de facto sobre a coisa, o que resulta à saciedade da matéria de facto assente, e, o segundo, a significar a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente àquele domínio de facto, sendo que a prova deste último elemento, que mais não seja, sempre resultará de uma presunção, ou seja, a existência do corpus faz presumir a existência do animus - artºs. 1251º e 1252º do Código Civil, neste sentido, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14 de Maio de 1996. f) A presunção constante do consignado art.º 7º do Código de Registo Predial - de que o direito existe e pertence ao titular inscrito - é uma presunção iuris tantum, ilidível por prova em contrário nos termos do art.º 350º n.º 2 do Código Civil, não se deve olvidar que a usucapião vale por si, como forma de aquisição originária que é, não podendo a mesma ser prejudicada pelas eventuais inscrições registais, e daí que não impeça o reconhecimento da propriedade daquele que invoca esse direito com fundamento na usucapião, sobre o imóvel em litígio, a circunstância demonstrada do registo de propriedade, conforme decorre do art.º 5º nºs. 1 e 2 al. a), do Código de Registo Predial. g) Estão, pelo exposto, verificados e reunidos todos os pressupostos para a aquisição por usucapião, por terem decorridos mais de 20 (vinte) anos desde o início da posse de boa-fé considerando mesmo a própria data em que foi instaurada a execução dos autos principais. h) Ao decidir em sentido contrário a sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 1251º, 1252º, 1253º e 1296º do C. Civil. NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, Deve, assim, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue o procedente os embargos de terceiro deduzidos e, em consequência, determine o levantamento da penhora que incide sobre o imóvel.». 1.3. Não foram apresentadas contra-alegações. 1.4. O EPGA junto deste TCAN teve vista dos autos e emitiu parecer, acompanhando o parecer proferido pelo Ministério Público em 1ª instância. * Dispensados os vistos legais, nos termos do artigo 657º, nº 4, do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta. * 2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR Uma vez que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, cumpre apreciar e decidir se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de direito ao concluir que aqueles não demonstraram ser proprietários do imóvel penhorado na execução fiscal. 3. FUNDAMENTAÇÃO 3.1. DE FACTO 3.1.1. Factualidade assente em 1ª instância A decisão recorrida contém a seguinte fundamentação de facto: «FACTOS PROVADOS Com relevância para a boa decisão da causa, julgo provados os seguintes factos: 1) Contra a executada «CC» pende o processo de execução fiscal n.º ...04 e o apenso n.º ...00, para cobrança da dívida proveniente IVA respeitante aos períodos 1106T e 1012T, respectivamente, no montante de quantia exequenda de Eur. 17 299,79 (cfr. informação dos serviços, ref.ª SITAF 005041633); 2) No âmbito daqueles PEF, foi promovida a penhora do imóvel urbano n.º ...37 da união de freguesias ... e «...X...», concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...37, que proveio do artigo ...07 da extinta freguesia ..., a favor Fazenda Nacional, a qual foi registada pela Conservatória do Registo Civil, Predial e Automóvel ... pela Ap nº 22 de 04-02-2020 (cfr. documento n.º 1 junto com a informação dos Serviços de Finanças ...); 3) O imóvel tem o valor patrimonial tributário de Eur. 64.401,39 (cfr. documento n.º 1 junto com a p.i.); 4) Em 19-02-2020, foi a executada notificada da penhora, a que foi atribuído o valor de Eur. 25.716,23 (cfr. documento n.º 2 junto com a informação dos Serviços de Finanças ...); 5) Por despacho da Chefe do Serviço de Finanças ... foi ordenada a venda por leilão electrónico do imóvel penhorado para o dia 04-04-2022, às 10h00 (cfr. documento n.º 3 junto com a informação dos Serviços de Finanças ...); 6) Daquele despacho, foi a executada devidamente notificada na qualidade de executada bem como a de fiel depositária nomeada (cfr. documento n.º 4 junto com a informação dos Serviços de Finanças ...); 7) Os embargantes tomaram conhecimento que foi penhorado o prédio urbano sito no lugar da ..., ..., na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial da união de freguesias ... e «...X...» após contacto de um potencial interessado no imóvel, que se dirigiu ao imóvel penhorado com o objectivo de o visitar; 8) A aquisição do prédio em nome da executada foi registada pela Ap. ... em 25 de Setembro de 1986 na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis ... (cfr. certidão do registo predial, ref.ª SITAF 005168856); 9) O imóvel foi inscrito na matriz predial urbana, através da apresentação da declaração modelo 129, em nome da «CC», em 09-11-1995, representada pelo seu pai e aqui embargante «AA», por à data a executada ser menor de idade (cfr. documento n.º 5 junto com a informação dos Serviços de Finanças ...); 10) O prédio este adquirido quando a executada ainda era menor de idade, com 5 anos de idade à data; 11) Tendo a aquisição sido efectuada pelos embargantes e todo o negócio também pelos mesmos; 12) Desde então, os embargantes permaneceram naquele prédio de forma pública, pacífica e continuada; 13) Naquele prédio passaram a comer, beber e pernoitar, receber amigos, correspondência postal, no mesmo vivendo em economia de mesa, leito e habitação; 14) Pagando todas as despesas inerentes ao consumo de água, luz, gás; 15) Os embargantes assumem, ainda, o pagamento dos impostos que incidem sobre o imóvel, entregando o dinheiro à sua filha, ora executada; 16) No quintal do identificado prédio, os embargantes semearam e plantaram vários frutos e produtos hortícolas, tendo sido também quem procedeu à recolha dos mesmos; 17) Os embargantes e a executada viveram no prédio penhorado até 2001/2002, altura em que os embargantes decidiram ir viver para outra residência, que ficava em «...Y...», fazendo-se acompanhar da executada; 18) Em 2003, a ora executada casou e continuou a residir com os seus pais e, agora, seu marido em «...Y...»; 19) Por volta do ano de 2004 os ora embargantes decidiram ir viver novamente para a imóvel em «...X...» supra identificado; 20) Os embargantes sempre assumiram obrigação de cuidar da casa e de liquidar todos os valores de imposto e outros que a sua origem adviesse da propriedade em causa; 21) Nunca foi pela Executada/Embargada dada a casa/imóvel aos seus pais; 22) Quando adquiriu o terreno, o embargante registou o prédio em nome de sua filha, «CC», para evitar penhoras de credores da sociedade [SCom01...] Unipessoal, Lda. (por confissão – cfr. acta da diligência de tomada de declarações de parte e inquirição de testemunhas); 23) Este facto era do conhecimento de alguns familiares próximos. FACTOS NÃO PROVADOS Com relevância para a boa decisão da causa, não se provaram os seguintes factos: A) Os embargantes habitavam o imóvel objecto de penhora com autorização da ora executada; B) Todos os actos praticados pelo embargantes no imóvel foram autorizados pela ora executada. MOTIVAÇÃO A convicção do tribunal baseou-se nos documentos constantes do processo, conforme se indicou ao longo do rol de factos provados, e atendendo à posição assumida pelas partes nos seus articulados, tudo conforme as normas que regem a repartição do ónus de prova (artigos 362.º e ss. do Código Civil e artigos 24.º e 74.º da Lei Geral Tributária). O Tribunal valorou, ainda, as declarações de parte tomadas aos embargantes e à executada, ora embragada, e a prova testemunhal produzida pelos embargantes e executada ora embargada. O embargante «AA» prestou declarações à matéria constante dos artigos 4.º a 9.º e 11.º a 18.º da petição inicial, revelando conhecimento directo sobre a matéria a que depôs. No decurso do seu depoimento declarou que, quando adquiriu o terreno onde erigiu a moradia onde habita com a sua esposa, o registou em nome de sua filha, a executada ora embargada, para evitar penhoras de credores da sua sociedade, salvaguardando o património da família. Por se tratar de matéria que aproveita às partes contrárias, foi lavrada assentada da matéria confessória. A embargante «BB» prestou declarações à matéria constante dos artigos 4.º a 9.º e 11.º a 18.º da petição inicial, revelando conhecimento directo sobre a matéria a que depôs. A executada ora embargada «CC» prestou declarações à matéria constante dos artigos 2.º a 30.º e 40.º da sua oposição, revelando conhecimento directo sobre a matéria a que depôs. Foram inquiridas as seguintes testemunhas dos embargantes: «DD», primo da embargante «BB», que revelou conhecimento directo sobre a dinâmica familiar, mais revelando saber que era de conhecimento da família há largos anos que o prédio estava registado em nome da sobrinha, a executada ora embargada. A testemunha prestou um depoimento suficientemente detalhado e circunstanciado, merecendo credibilidade e contribuindo, assim, para a formação da convicção do Tribunal na decisão sobre a matéria de facto. «EE», cunhado do embargante e irmão da embargante, consequentemente tio da embargada, referindo não manter relações com a sobrinha porque esta deixou de lhe falar. Apesar de a testemunha denotar algum desconforto em relação à sobrinha, o seu depoimento foi consentâneo com o das demais testemunhas, pelo que o notório desconforto na relação com a sobrinha não abala a credibilidade do depoimento. Pelo exposto, o Tribunal valora o seu depoimento, contribuindo para a formação da convicção do Tribunal na decisão sobre a matéria de facto, mas apenas na medida daquilo que fora e viria a ser referido pelas demais testemunhas. «FF», vizinho dos embargantes há 2 anos, referindo ser proprietário de um terreno junto à moradia dos embargantes, há 20 anos, além de ter feito trabalhos de construção na casa dos embargantes, referindo, ainda, que só conhece a embargada de vista. Sem prejuízo de ter prestado um depoimento credível, revelou conhecimento limitado dos factos a que foi inquirido, pouco contribuindo para a formação da convicção do Tribunal sobre a decisão da matéria de facto. Por fim, foi inquirida a seguinte testemunha da executada ora embargada: «GG», companheiro da embargada, e com quem foi casado desde 2003 até 2018, ano em que se divorciaram. Revelou conhecimento directo sobre os factos a que depôs, prestando um depoimento circunstanciado, escorreito e credível, contribuindo para a formação da convicção do Tribunal na decisão sobre a matéria de facto. Quanto aos factos provados: O facto elencado em 7) resulta provado em virtude das declarações prestadas pelos embargantes, escorreitas e coerentes entre si. Os factos 10) a 20) resultaram provados em virtude das declarações prestadas quer pelos embargantes quer pela embargada, corroborados, ainda, pelos depoimentos das testemunhas familiares (onde se inclui o companheiro da executada ora embragada). O facto 21) resulta provado por conjugação das declarações prestadas pela executada ora embragada e pela testemunha «GG», conjugadas com a certidão predial oficiosamente junta aos autos, que denota que a propriedade do imóvel se mantém na esfera da ora embargada desde 1986. O facto 23), por seu turno, resultou provado em virtude do depoimento prestado pelas testemunhas «DD», primo da embargante, e «EE», irmão da embargante, que afirmaram saber, porque lhes fora dito há anos pelos embargados, que a casa estava registada em nome da [SCom01...], afirmando a segunda testemunha referida que era “por motivos de negócios” do ora embargante. Quanto aos factos não provados: Da conjugação das declarações de parte de todos os depoimentos prestados nos autos, não há qualquer evidência de que ao longo de 30 anos os embargantes não se tivessem sempre comportado como se o imóvel lhes pertencesse, sem pedirem autorização para o que quer que fosse. Aliás, note-se que quando o imóvel foi construído a embargada era uma criança, pelo que não só se afigura inverosímil que emitisse ordens ou autorização aos pais para o que quer que fosse, muito menos para habitar aquilo que era a casa de família. Assim, não se prováramos factos alegados pela embargada elencados em A) e B).». 3.2. DE DIREITO Não está em causa neste recurso o julgamento quanto à matéria de facto, que os Recorrentes aceitam e em função do qual concluem que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, por errada subsunção da factualidade apurada ao direito aplicável. Vejamos, antes do mais, a fundamentação jurídica que sustenta a sentença sob escrutínio: «(…) Nos presentes autos é peticionado o levantamento da penhora que incide sobre um prédio urbano constituído por uma moradia e terreno, sito em «...X...», concelho ..., melhor identificado na matéria de facto, à ordem do processo de execução fiscal n.º ...04 e apenso, em que é executada a embargada, filha dos embargantes e em nome de quem se mostra registada a propriedade do referido imóvel, com fundamento no argumento de que os proprietários do imóvel são os ora embargantes, quanto mais não seja por usucapião. Cumpre apreciar a decidir. Os embargos de terceiro são o meio processual adequado para a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos de quem, não sendo parte no processo executivo, for ofendido na sua posse ou em qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, por um acto de arresto, penhora ou qualquer outro acto de apreensão ou entrega de bens. (…) Resta aferir se os embargantes têm a propriedade ou outro direito incompatível com a realização da diligência, susceptível de ser atendida e reconhecida em juízo e se essa posse ou direito foi ofendida por diligência judicial/processual. No caso em apreço, e tal como os embargantes o delimitam, está em causa a penhora de um imóvel cuja propriedade não coincidirá com o registo predial, pelo que o que importa apurar é se os embargantes tinham a posse ou outro direito real (maior ou menor) incompatível com a realização da diligência da penhora. Não é controvertido, pelo contrário, é até admitido por todas as partes, que o imóvel se encontra registado na conservatória do registo predial a favor da ora executada, pelo que, formalmente, é a proprietária do imóvel. Também resulta da matéria de facto que aquele registo a favor da ora executada foi feito pelos embargantes, na qualidade de seus representantes legais por a executada ter 5 ou 6 anos à data da aquisição e registo do prédio. Assim, nos termos do disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, ou seja, o registo definitivo do imóvel, em 1986, a favor da executada ora embargada constitui presunção de que a executada é a proprietária de direito pleno daquele imóvel, pelo que, em consonância com as regras de distribuição do ónus da prova (artigo 74.º, n.º 1, da LGT) impende sobre os embargantes o ónus de alegar e demonstrar que, pese embora o registo de propriedade a favor da executada ora embragada, o imóvel penhorado lhes pertence (artigos 167.º, 237.º, 206.º e 108.º do CPPT). Ora, não se demonstrou nos autos que os embargantes tenham a seu favor qualquer título aquisitivo do imóvel em apreço. Resulta provado, aliás, que adquiriram o terreno e edificaram a moradia, cujo direito de propriedade foi declarado – pelos próprios, na pessoa do embargante – na esfera da sua filha. O facto de os embargantes tudo terem pago para adquirir o terreno e edificar a moradia não afasta a presunção de propriedade a favor de sua filha, uma vez que, como é notório, com 5 ou 6 anos esta não teria capacidade jurídica nem para adquirir o terreno nem para edificar a moradia ou custear essa edificação. Os pais adquiriram o terreno e edificaram uma moradia, não se sabe com base em que título aquisitivo, cuja propriedade foi registada, ou seja, declarada publicamente pelo próprios a favor da sua filha. É um negócio jurídico perfeitamente normal, não é incomum, e, por si só, não afasta a presunção de propriedade. Também resultou provado que no meio familiar era sabido que a propriedade fora constituída (“registada”) a favor da filha dos embargantes, embora quem pusesse e dispusesse do imóvel e do terreno, à vista de todos, eram os embargantes. Ao contrário, porém, daquilo que os embargantes pretendem, esse “pôr e dispor” do imóvel não constitui, por si só, qualquer indício de posse continuada, à vista de todos e sem oposição, que faça nascer na sua esfera o direito de propriedade mediante o instituto da usucapião. A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251.º do Código Civil). Como ensinavam Pires de Lima e Antunes Varela, “[a] actuação de facto correspondente ao exercício do direito, por parte do possuidor, constitui o corpus da posse” (in “Código Civil Anotado”, vol. III, pp. 1-7), não se bastando a posse objectiva, enquanto exercício de um poder de facto, mas uma posse com animus, por oposição àquilo que dispor o artigo 1253.º do Código Civil: são havidos como meros detentores ou possuidores precários a) os que exerçam o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, b) os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito, e c) os representantes ou mandatários do possuidor e todos os que possuem em nome de outrem. O animus da posse, por contraste com a mera detenção, não se verifica pelo mero comportamento de facto de os embargantes agirem como se fossem proprietários do prédio (o corpus), exige que eles tenham consciência que são os detentores do direito real exercido (no caso, do direito de propriedade), o que não é de todo em todo passível de ser afirmado no caso que nos ocupa, uma vez que os próprios embargantes declararam eles próprios esse direito a favor da sua filha. Os motivos subjacentes ao negócio – constituição do direito de propriedade a favor da filha, ora executada, menor à data da aquisição – são irrelevantes para fazer cessar a presunção. Pelo contrário, os confessados motivos são, justamente, a razão pela qual o Tribunal tem de afastar a existência de um animus de posse na detenção do imóvel, por os embargantes deliberada e conscientemente terem constituído o direito de propriedade a favor da sua filha. Por outro lado, a admitir-se a constituição do direito de propriedade na esfera dos embargantes, independentemente da manifestação de vontade vertida no negócio celebrado, seria admitir a constituição de um direito em manifesto abuso de direito, como defendido pelo Ministério Público junto deste Tribunal. Com efeito, o abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium tem como pressuposto a existência de uma situação objectiva de confiança, cuja relevância é aferida pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante, e de um elemento subjectivo, ou seja, a criação, na pessoa do confiante, de uma confiança legítima e justificada (cfr. acórdão do STJ de 07-03-2019 tirado no processo n.º 499/14.8T8EVR.E1.S1). Pressupostos que se verificam, uma vez que foram os embargantes que, independente do motivo, registaram publicamente a constituição do direito de propriedade a favor da ora executada, e vêm, agora, invocar que esse direito de propriedade não existe, ou que teria por si sido adquirido através da usucapião (o que é de afastar desde logo por falta do animus possidendi, conforme já referido). Além da situação objectiva vertida no registo público do prédio, cuja pretensão é, justamente, garantir a segurança e a confiança do comércio jurídico, são os próprios embargantes que vêm invocar o oposto daquilo que submeteram a registo, pelo que se se admitisse (em tese) a aquisição do direito de propriedade, seja em 1986 seja através da usucapião, seria admitir um exercício contraditório de direitos declarados pelos próprios embargantes. Esse exercício contraditório de direitos não merece protecção no nosso ordenamento jurídico, conforme dispõe o artigo 334.º do Código Civil. Do exposto resulta que, não tendo os embargantes demonstrado que por via da penhora tenha sido afectado qualquer direito de propriedade que detenham sobre o bem, não é ilegal a penhora realizada sobre o imóvel identificado no probatório, soçobrando a pretensão dos embargantes.». O assim decidido não nos merece qualquer reparo, porquanto, atento o disposto no artigo 342º do CPC, o terceiro afetado pela penhora terá ao seu dispor duas causas de pedir alternativas: tanto pode alegar e demonstrar o seu direito incompatível, como pode alegar e demonstrar a posse respetiva. Se invocar direito incompatível, deverá alegar e demonstrar os factos de aquisição da titularidade do direito (o “facto jurídico” de que deriva o direito real – art.º 581º, n.º 4 do CPC), enquanto que se invocar posse incompatível, deverá alegar e demonstrar os factos de aquisição da posse. E a posse incompatível com a realização da penhora é, desde logo, aquela que, sendo exercida em nome próprio, constitui presunção da titularidade dum direito incompatível: enquanto esta presunção não for ilidida, mediante a demonstração de que o direito de fundo radica no executado, o possuidor em nome próprio é admitido a embargar de terceiro (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 22.11.2022, no processo nº 31/19.7T8ACB-B.C1, disponível em www.dgsi.pt). No caso, tendo os Recorrentes inscrito o prédio penhorado pela AT em nome da executada, sua filha, e procedido ao correspondente registo na competente Conservatória, também em nome dela, obviamente, possuíam o imóvel em nome alheio. E esta posse em nome alheio não é apta a facultar-lhes a aquisição originária do atinente direito de propriedade. Só assim não seria se tivesse existido inversão do título da posse, a qual pode resultar de ato de oposição do próprio detentor contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (artigo 1265º do Código Civil). A inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. Seria, pois, necessário que os detentores/embargantes expressassem diretamente junto da pessoa em nome de quem possuíam a sua intenção de atuar como titulares do direito. Sucede que dos autos não consta qualquer facto evidenciador da inversão da posse precária dos embargantes numa posse em nome próprio, por se assumirem como efetivos proprietários do imóvel penhorado. Aliás, como resulta dos autos, manifestamente não quiseram assumir-se como proprietários para obviar a penhoras por banda da AT. A posse precária dos Recorrentes não permite, portanto, presumir o animus, conforme pretendem, nem considerar que eram detentores de qualquer direito ou interesse passível de ser ofendido pela penhora aqui em causa. Assim e sem necessidade de outros considerandos, impõe-se concluir pela improcedência deste recurso, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos. * Assim, preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões: I – A usucapião tem sempre na sua génese uma situação possessória, que pode derivar de constituição ex novo ou de posse anterior. III – Posse delimitada como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – artigo 1251º C.Civ.. IV – A usucapião produz uma aquisição originária que opera com efeitos retroativos, reportados ao início da posse respetiva – artº 1288º do C.Civ. -, mas que, relativamente ao direito possuído, não pode verificar-se nos detentores ou possuidores precários, exceto achando-se invertido o título de posse, caso em que o prazo para usucapir só corre desde a inversão do título – artº 1290º C. Civ.. V – A inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio (não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base; necessário se torna que o detentor expresse diretamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de atuar como titular do direito). 4. DECISÃO Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida. Custas a cargo dos Recorrentes, que aqui saem vencidos, nos termos do artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido. Porto, 15 de maio de 2025 Maria do Rosário Pais – Relatora Vítor Unas – 1º Adjunto Ana Patrocínio – 2ª Adjunta |