Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00295/14.5BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/30/2020
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL; RAN; AUDIÊNCIA DE INTERESSADOS; FUNDAMENTAÇÃO DO ACTO; PRINCÍPIO "NE BIS IN IDEM".
Recorrente:R.
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E DO MAR
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
R., casada, residente na Rua do (…), instaurou acção administrativa especial contra o MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E DO MAR, com sede na Praça (…).
Formulou os seguintes pedidos:
a) A declaração de nulidade ou anulação do despacho proferido, em 28 de outubro de 2013, pelo Director Regional Adjunto da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte no qual se deliberou conceder um prazo de 180 dias para remover o pré-fabricado existente bem como a camada compactada do solo, repondo o seu estado original;
b) A suspensão da eficácia do acto administrativo impugnado.

Por decisão proferida pelo TAF de Braga foi julgada improcedente a acção.
Desta vem interposto recurso.

Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:

A - Não está aqui em causa a apreciação concretizada pelo Tribunal a quo no que tange à matéria de facto dada como provada, situando-se a discordância da Recorrente apenas na subsunção dos factos à matéria de direito.
B - A aqui Recorrente é comproprietária do prédio onde se encontra implantado o pré-fabricado a que se reporta o despacho controvertido nos autos - Ponto 2. dos "Factos Provados",
C - A ordem de demolição/reposição aqui em apreço respeitante a obras realizadas naquele prédio, foi, unicamente, direcionada para a aqui Recorrente, a qual é mera comproprietária daquele, entendendo que a sua identificada irmã, deveria, igualmente, ser sujeito passivo do respetivo processo administrativo e, dessa forma, potencialmente, daquela ordem de reposição.
D - Afigura-se por isso inelutável que aquela não poderia deixar de ser interpelada no âmbito daquele procedimento para, querendo, oferecer o seu contraditório.
E - Porque tal não sucedeu, e porque a sentença recorrida ditou a desnecessidade da dita intervenção, ficaram feridos, num primeiro momento, os ditames constantes do n.º 1, do artigo 100.º, do CPA (actual artigo 121º), que concretiza o princípio constitucional consagrado no n.º 5, do artigo 267.º da Constituição da República Portuguesa, do qual decorre o direito dos interessados a intervir no procedimento e tudo o mais quanto a lei preceitua a esse propósito..
F - Para além disso, essa legitimidade deveria ter sido atribuída àquela comproprietária enquanto parte interessada na decisão, em virtude do disposto nos artigos 52.º, nº 1 do CPA (atual art. 68º).
G - Essa ideia sai ainda reforçada por força do conteúdo do artigo 55.º, nº1 (atual art. 110º) do mesmo CPA.
H - Também o artigo 66.º, nº 1, al. do mesmo CPA atual art. 114º), referente ao dever de notificar, obrigava a que fosse notificada a dita irmã acerca dos atos administrativos aqui em causa.
I - Ao não ouvir a outra comproprietária, o Recorrido violou, igualmente, por preterição da formalidade de audiência prévia, o direito de participação dos interessados nas decisões que lhes dizem respeito - artigo 8º do CPA (12º do atual Código), violação que vem a ser extensível à douta decisão recorrida ao não ter por verificada tal ilicitude.
J - Por sua vez, no contexto civilístico, temos que o artigo 535º do Código Civil nos ensina que quando a prestação é indivisível e são vários os devedores "[...] só de todos os devedores pode o credor exigir o cumprimento da prestação.", razão pela qual todos os comproprietários do prédio em questão deveriam ter sido sujeitos passivos no procedimento administrativo aqui em causa.
K - Essa formalidade "interventiva" é também garantida pela própria Constituição da República Portuguesa, que nos diz no seu artigo 32.º, nº 10., pelo que da inobservância por parte do recorrido dessa garantia determina a violação de um direito fundamental dos particulares, decorrente de não haver chamado a terreiro a mencionada comproprietária.
L - No mesmo sentido, ensina também a nossa Lei Fundamental, no seu artigo 268.º, nº 3, referente aos direitos dos administrados, que: “Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.
M - A notificação das partes interessadas constitui uma formalidade essencial do procedimento e um princípio basilar do direito, pelo que a dita preterição constituiu uma violação clara dos direitos que à ora Recorrente e sua - preterida - irmã assistem, consubstanciando uma nulidade insanável dos atos administrativos aqui em causa, sendo inequívoco que a sua qualidade de comproprietária lhe confere esse concreto "interesse" em intervir procedimentalmente.
N -Dado que em nenhum momento do procedimento a redita irmã da Recorrente foi auscultada ou notificada de qualquer processo administrativo ou contraordenacional, consubstanciam os actos administrativos decorrentes de tal omissão uma nulidade insanável, por preterição de formalidade essenciais violadoras de conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos do artigo 133º/1 e 2 do CPA.
O - Não podem, pois, tais atos produzir qualquer efeito jurídico por força da nulidade que comportam, nos termos do artigo 134.º do CPA (atual art. 162º).
P - Por tal facto, não se pode deixar de esgrimir que a alegação sob escrutínio deveria ter sido julgada como válida e pertinente pela Meritíssima Juíza a quo, aceitando-a como procedente, e dando por verificada a violação das normas atrás enunciadas e, dessa forma, declarar a nulidade do acto administrativo.
Q - Além disso, a questão da ausência de audição da irmã da Recorrente, comproprietária do terreno, e a circunstância de o ora Recorrido não se ter pronunciado acerca da pertinência de tal invocação, constitui uma situação igualmente violadora do disposto no artigo 9º, nº 1 e 107º do CPA (na sua anterior redação) - Princípio da Decisão.
R - Todavia, o aresto recorrido, debruçando-se sobre essa concreta questão (fls. 16), concluiu que a Administração está "[...] apenas vinculada a ponderar ou ter em consideração tais contributos [e que] ... nada permite afirmar que não foram ponderadas ou tidos em consideração [...] por parte da entidade Demandada, os argumentos levados ao procedimento pela Autora em sede de audiência prévia [...] os argumentos esgrimidos pela Autora [...] foram ponderados, mas não aceites, na decisão impugnada, como se retira do teor da mesma, onde tais fundamentos são mencionados e se conclui que não tiveram a virtualidade de alterarem a pretensão de reposição do solo."
S - Contudo, tal afirmação/conclusão não encontra qualquer lastro factual na decisão "recorrida" em que possa ser escorada.
T - Essa conclusão está em clara dissonância com a concreta resposta/decisão apresentada pela entidade recorrida acerca dos fundamentos esgrimidos em sede de audiência prévia, e no seio da qual em momento algum se deteta que se tenha aferido, ou sindicado, a pertinência da alegação da Autora.
V - Efetivamente, a propósito da presente alegação, o único trecho da Decisão administrativa em apreço que de alguma maneira versa, tacita e indiretamente, sobre a mesma diz-se (ponto 5. do ponto 14. - pag. 10): "Fazendo fé às provas obtidas no decorrer do processo de contra ordenação, e não tendo a arguida apresentado qualquer fundamento que alterasse a pretensão da reposição do solo, deverá a mesma ser executada." Nada mais na decisão administrativa aborda, direta ou indiretamente, aquela questão.
W - Ora, este trecho não pode ser tido por suficiente para se ter por cumprido o disposto nos artigos 9º, nº 1 e 107º do CPA, uma vez que ele deve ser considerado como vago e genérico, não operando algum tipo de análise crítica da alegação da então Interessada.
X - Como tal, conclui-se que o Recorrido nada disse àquele propósito, aparentando que tampouco se terá detido para analisar a pertinência dos argumentos, limitando-se, na prática, a ordenar a dita remoção do pré-fabricado e a reposição do solo ao seu estado original. Ou seja, o Recorrido não fez o "trabalho de casa".
Y - Por tal facto, a Recorrente não pode conformar-se com essa leitura judicial, não aceitando, sem mais, que o aresto recorrido tenha por suficiente aquela vacuidade apreciativa, sob pena de se conformar com o que tem por um erro de julgamento e uma violação objectiva dos ditos preceitos processuais.
Z - Assim, a decisão recorrida deveria ter dado por verificada a violação do Princípio da Decisão, tal como surge (ou surgia) consagrado nos artigos vindos de indicar, pelo que, ao não o ter feito, violou o disposto nos aludidos preceitos legais - artigos 9º, nº 1 e 107º do CPA (na sua anterior redação).
AA - Depois, a Constituição da República Portuguesa consagra o dever de fundamentação e o correspondente direito subjetivo do administrado a obtê-la por parte da Administração (art. 268º, nº 3).
AB - Todavia, constata-se que o acto administrativo em apreço, externado pelo documento nº 1 que acompanhou a petição inicial, careceu, em absoluto, de sustentação, porquanto não contém, expressa, ou ainda que implicitamente, os respectivos fundamentos de facto e de direito, tampouco fazendo qualquer referência, mesmo que genérica, por exemplo, ao Auto de Notícia que terá estado na sua génese, e não dando a conhecer sequer o concreto texto do despacho aqui controvertido.
AC - Aliás, sendo incontroverso que o acto administrativo ora recorrido possui, inequivocamente, efeitos ablativos, estaria o mesmo sujeito a um dever de fundamentação acrescido, tal como, aliás, postula o n.º 1, alínea a), do artigo 124.º do CPA (atual art. 152º)
AD - Por isso, afigura-se à Recorrente que o despacho do Director da DRAP Norte padece - também - de vício de falta de fundamentação, geradora, por isso, da nulidade do acto administrativo, nomeadamente nos termos e para os efeitos do artigo 133.º, n.º 2, alínea d), do CPA, face à natureza dos direitos aqui em causa (direitos fundamentais ou análogos a estes últimos).
AE - Mas, caso assim não se entenda, ele será - no mínimo - anulável, o que “ad cautelam”, e sem prescindir, se continua aqui a alegar.
AF - Ora, a decisão ora recorrida, tem também por não verificada essa alegada falta de fundamentação, ali se consagrando, em suma e nomeadamente, que o acto impugnado "materializa um despacho de concordância com uma informação anterior" (pagina 18).
AG - Porém, essa conclusão decorre, única e exclusivamente, de uma mera dedução, ainda que lógica, operada pela Meritíssima Juíza a quo, que todavia, e uma vez mais, não encontra qualquer lastro factual no texto que corporizou o acto administrativo aqui sob escrutínio.
AH - É que realizando uma análise exaustiva do - sucinto - texto que veiculou o redito Despacho (doc. nº 1 da p.i.), e por maior bondade que se lhe queira emprestar, não será possível ultrapassar a sua "pobre" e deficitária literalidade.
AI - Face a esse texto, reproduzido supra na íntegra, objectiva-se que as estatuições constantes do referido n.º 1, alínea a), do artigo 124.º do CPA, não foram tidas em conta pelo Recorrido, situação que coloca em crise, e de uma forma que se tem por insanável, para além desta norma, o já mencionado artigo 268º, nº 3, da CRP.
AJ - Dizer-se, como defende, implicitamente, o aresto recorrido, que ficou ali observado o disposto naquele artigo 125º do CPA, o que equivale a dizer-se que aquela notificação contém uma fundamentação expressa, e que carreia uma sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, equivale a um erro de julgamento e a uma violação do mencionados normativos.
AK - É que leitura daquela notificação, que alude à existência de um despacho decisor (e que tampouco o contém, ainda que meramente reproduzido), ao contrário do que menciona do douto aresto recorrido (fl. 18 do aresto), em trecho algum seu dá a "[...] conhecer ao seu destinatário o percurso cognitivo e valorativo do autor de tal acto.
AL - A dita notificação, ou o despacho que a mesma pretendeu veicular, tampouco enuncia (como acontece em inúmeras situações semelhantes), uma qualquer declaração de concordância com os fundamentos que pudessem constar de anteriores informações, pareceres ou propostas, e que, desse modo, fariam parte integrante do acto administrativo, pelo que corresponde a um erro de julgamento afirmar-se, como o faz a sentença, que " [...] o acto impugnado materializa um despacho de concordância com uma informação anterior" - pag 18.
AM - Não deverá também, com o devido respeito, ter-se por boa a inexcedível benevolência de se entender, como o faz o aresto, que a fundamentação (que nem lá está!) é "suficiente, clara e congruente, permitindo ao destinatário médio ou normal [...] compreender a motivação que subjaz ao raciocínio decisório." – fl. 18.
AN - Um declaratário normal jamais percecionaria na situação em análise as razões de facto e direito que subjazem ao despacho em questão, antes se tendo -apenas - conhecimento da notificação que alude à sua existência, sem que aquelas razões surjam explicitadas na mesma.
AO - A percepção do conjunto de factos e normas que subjazem à situação aqui controvertida no que tange à apreciação da dita notificação/decisão, não vem a ser o fruto de uma leitura realizada por um destinatário "normal", designadamente do aqui Recorrente, mas antes da perceção lograda pelo seu mandatário judicial, aqui signatário, o qual, munido da experiência própria do exercício da profissão, e dos seus humildes conhecimentos jurídicos, não podia deixar de percecionar a decisão final (despacho), muito embora a fundamentação de facto e de direito que lhe estiveram subjacentes apenas possam ter sido alcançada com o recurso à lógica e à dedução.
AP - Assim, e com o devido respeito, a Decisão recorrida brindou o controvertido acto administrativo com uma forte dose de generosidade analítica, que se revela desfasada - também - do disposto no artigo 236º do Código Civil - teoria da impressão do destinatário -, normativo este também colocado em crise no douto aresto de que se recorre.
AQ - Nesta parte, para além de tal preceito, também o disposto no art. 268º, nº 3 da CRP n.º 1, alínea a), e no artigo 124.º do CPA (atual art. 152º), foram colocados em crise na sentença recorrida, pelo que a Meritíssima Juíza do processo deveria ter julgado nulo, também por este motivo, o despacho "recorrido" - art. 133º do CPA.
AR - Numa última vertente, e perdoe-se que aqui (Conclusões) se desenrole a respetiva factualidade, temos que foi na sequência de uma acção inspetiva, levada a cabo pelos serviços da ora Ré, em 31/01/2013, que foi instaurado Processo de Contra Ordenação contra a ora Autora, mais concretamente o Proc. nº 55/2011 (doc. nº 3 que acompanhou a P.I.).
AS - De acordo com o Auto de Notícia então lavrado pelos técnicos da R., no qual se mencionavam os factos constitutivos da putativa infracção, estaria em causa a montagem de uma casa pré-fabricada e de um pequeno anexo, bem como a construção de um acesso para viaturas, num terreno que pertenceria à área de Reserva Agrícola Nacional (RAN).
AT - Segundo o mesmo Auto de Notícia, era imputada à aqui Recorrente a prática da contra ordenação contemplada no artigo 39.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, infracção que, tanto quanto informava aquele doc. nº 3, seria " [...] punível com coima graduada de € 1.000,00 a € 3.500,00, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 39.º do supracitado Decreto-Lei, bem como a reposição do solo prevista no artigo 44.º, do mesmo diploma legal" - sublinhado nosso.
AU - Concluído o referido processo de contra ordenação, foi proferida a decisão final da qual resultou -apenas - a condenação da ora Recorrente no pagamento de uma coima no montante de € 800,00, acrescida das respetivas custas processuais.
AV - Essa coima foi liquidada, tendo a aqui Recorrente ficado na convicção de que toda a situação estaria assim resolvida, tanto mais que - como se disse - a referida notificação contemplava a hipótese de o processo vir a terminar não apenas com a aplicação de uma multa, mas também com a dita reposição do solo prevista no artigo 44º do DL 73/2009.
AW - Posteriormente, foi a Recorrente surpreendida ao tomar conhecimento de que por Despacho do Director Regional de Agricultura do Norte, de 11/04/2013, tinha sido aberto um novo procedimento administrativo para cumprimento com o estipulado no n.º 1 do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, (doc. n.º 5 que acompanhou a petição inicial).
AX - Ou seja, o Recorrido determinou-se por iniciar um novo procedimento administrativo, ainda e uma vez mais tendo em perspetiva o cumprimento do estipulado no nº 1 do artigo 44º do DL 73/2009, de 31/03, dele tendo vindo a resultar a decisão colocada em crise através da presente acção, sem que, refira-se, tivesse havido lugar à audição prévia da A./recorrente no âmbito do mesmo.
AY - Face a tal factualidade, nas antípodas do que ficou decidido no aresto recorrido, continua a Autora/Recorrente a pugnar no sentido de se verificar a aludida situação de "Ne bis in idem", princípio plasmado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
AZ - É atualmente pacífico que tal princípio é aplicável a todos os procedimentos de natureza sancionatória, por isso defende a Recorrente o acto administrativo em apreço padece (também nesta vertente) de nulidade, por violação daquela garantia constitucional, contendendo com uma situação de caso julgado, ou seja, com o conteúdo da notificação para o exercício da audiência prévia, e da subsequente decisão proferida no âmbito do referido processo administrativo nº 55/2011 (o primeiro deles)
BA - Todavia, a este propósito a Meritíssima Juíza a quo conclui em sentido diverso (págs. 23 e 24 da sentença), não podendo a Recorrente, sem mais, conformar-se com tal juízo, ainda que douto, mormente na medida em que o primeiro dos dois processos instaurados pelo Recorrido, podia, tal como ficara preconizado na interpelação inicial apresentada no primeiro deles, ter desde logo aplicado a decisão que veio a surgir naquele segundo processo.
BB - Depois, neste contexto, discorda a Recorrente do entendimento plasmado em sede de sentença, não aceitando que não se tenha a ordem de reposição em apreço como uma verdadeira sanção, constituindo um "castigo", uma sanção, resultante do comportamento - supostamente - ilícito da Recorrente.
BC - Estaremos pois perante uma concreta situação configuradora de um "Ne bis in idem", e ao não haver entendido que a mesma se verificava no caso sob escrutínio, a douta sentença violou, precisamente, o referido artigo 29º, nº 5 da CRP.
BD - Isto porque os factos analisados em ambos os processos foram exatamente os mesmos, sendo o comportamento atribuído à Recorrente também o mesmo, e as penalizações que sobre ambos impendiam eram iguais, ou coincidentes, pelo menos no que concerne à ordenada reposição.
BE - Na verdade, parece seguro afirmar-se que a ratio do referido preceito constitucional proíbe que o mesmo facto seja valorado duas vezes da mesma forma dentro do mesmo sistema sancionatório, o que se verificou na presente situação.
BE - Ao não haver adotado tal entendimento, e ao não ter por verificada a existência de uma situação de "Ne bis in Idem", o aresto violou, nesta situação concreta, o disposto no artigo 29º, nº 5 da CRP.
TERMOS EM QUE, com o suprimento, deve ser revogada a sentença recorrida, julgando-se provada e procedente a ação, assim se fazendo
JUSTIÇA.

O Réu ofereceu contra-alegações e concluiu:

1 – A sentença sob recurso deverá ser mantida, já que fez uma correta apreciação dos factos e aplicação do direito, inexistindo qualquer erro de julgamento, contrariamente ao defendido pela Recorrente.
2 – A falta de audição da comproprietária do terreno não consubstancia qualquer violação do artº 100º do CPA, não só porque não estão em causa questões relativas ao direito de propriedade, mas também porque quem praticou a infração foi a recorrente tendo sido condenada no pagamento de uma coima, que acatou, tendo pago o respetivo valor.
3 – Não ocorreu qualquer violação do artº 107º do CPA não só porque a entidade decisora não está vinculada às pretensões das partes quando estas não se referem ao objeto do procedimento, mas sobretudo porque no presente caso não foi omitida pronuncia sobre matéria pertinente que fosse necessária à decisão.
4 – O ato impugnado foi proferido com a devida fundamentação sendo esta clara e congruente tendo permitido à Recorrente a compreensão da motivação que subjaz ao raciocínio decisório que ele contem sobretudo pela posição que ela assumiu nos articulados, mostrando ter interpretado e compreendido corretamente o teor do despacho em crise.
5 – A ordem à Recorrente para reposição do terreno no estado anterior às construções, não consubstancia qualquer violação do principio ne bis in idem, pois com a mesma não se visa a punição que já teve lugar em sede contra-ordenacional, mas tão só a reposição da legalidade, tanto mais que nos termos do artº 44º nº 1 do RJRAN o respetivo procedimento será adotado “independentemente da aplicação de coimas”.
6 – Inexiste qualquer violação dos principios da necessidade e da proporcionalidade com a ordem de reposição do solo no estado original, já que a situação não era legalizável, sendo que neste aspeto se está perante uma atividade vinculada da Administração onde o principio da legalidade absorve na prática o conteúdo util daqueles principios.
7 - O Tribunal a quo não podia ter tomado outra decisão senão a absolvição do pedido.
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso e mantida a sentença recorrida, como é de justiça.

O MP, notificado ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na sentença foi fixada a seguinte factualidade:
1. No prédio rústico, denominado “Campo de cultivo da Seara”, situado no Lugar de (…), a confrontar de Norte com o Rio Vade, de Nascente com L., de sul com caminho da Portela à Lameira e de Poente com A. e outros, com área de 0,310000 (ha), descrito na matriz sob o art. XXXX, não descrito na Conservatória na Conservatória do Registo Predial, encontra-se implantada uma plataforma construída com inertes diversos, numa área estimada de 100 m2, sobre a qual foi montada uma casa pré fabricada, sustentada por perfis metálicos, e ainda anexo à habitação, tendo sido construído um acesso para viaturas numa área de 40 m2 – cfr. fls. 11 a 23 e 113 a 271 do Processo Administrativo (incorporado no SITAF) e docs. a fls. 21 a 50 dos
autos.
2. No âmbito do processo de inventário n.º 508/09.2TBVVD, que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde, em virtude do óbito de C. e A., o prédio rústico referido no ponto anterior foi adjudicado à Autora R. e à sua irmã M., na proporção de ½ para cada uma – cfr. fls. 113 a 271 do PA e docs. a fls. 21 a 50 dos autos.
3. Por informação prestada em 06 de Agosto de 2010, o Gabinete de Fiscalização e Vistorias da Câmara Municipal de Vila Verde participou da existência da edificação referida no ponto 1. – cfr. fls. 11 a 15 do PA.
4. Por despacho do Vereador do Ordenamento do Território e Urbanismo da Câmara Municipal de Vila Verde, datado de 13 de Setembro de 2010, foi determinada a comunicação das obras executadas à Comissão de Reserva Agrícola Nacional – cfr. fls. 11 a 15 do PA.
5. No dia 31 de Janeiro de 2011, em virtude da implementação da edificação, a Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte levantou à Autora Auto de Notícia por Contra-ordenação, imputando-lhe “a prática de contra-ordenação contemplada no art.º 39.º – n.º 1 – alínea a) do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, punível com coima graduada de € 1.000 a € 3.500, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 39.º do supracitado Decreto-Lei, bem como a eventual sanção de reposição do solo prevista no art.º 44.º do mesmo diploma legal” – cfr. fls. 17 a 23 do PA e docs. a fls. 51 a 54 dos autos.
6. Foi emitida decisão final do processo contra-ordenacional, autuado sob o n.º 55/2011, no dia 20 de Janeiro de 2012, na qual foi deliberado:
“a aplicação da coima de € 800,00 (oitocentos euros), pela violação do art. 23.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, a que acrescem as custas do processo no valor de € 105 (cento e cinco euros), nos termos do art.º 92.º do D.L. n.º 433/82, de 27 de Outubro [...]
Devidamente ponderada a natureza da infracção, os prejuízos resultantes da prática do ilícito em causa, bem como a finalidade do uso não agrícola que corporiza a violação do regime da Reserva Agrícola Nacional objecto desta decisão, mais se delibera que devem ser desencadeados os procedimentos administrativos necessários para eventual aplicação do preceituado no art.º 44.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março – reposição da situação anterior à prática do ilícito” – cfr. fls. 41 a 44 do PA.
7. A Autora pagou a coima e as custas do processo – cfr. fls. 65 a 85 do PA.
8. Foi prestada informação pelo Gabinete da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, com o Assunto: “Reserva Agrícola Nacional, Art.º 44.º do DL 73/2009, de 31/03 – Reposição da situação anterior à infracção”, possuindo o seguinte teor:
1. O n.º 1 do art.º 44.º do DL 73/2009, de 31/03, atribui ao Sr. Director Regional de Agricultura e Pescas, competência para determinar a reposição do solo à situação anterior à infracção, após audição dos interessados.
2. Da mesma forma, vem a Informação da SGMAMAOT n.º 746/2012, com despacho de 27/06/2012, do Secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural, reforçar a natureza de competência imperativa e vinculada, da noma ínsita no art.º 44.º.
Face ao exposto, junto se anexa a lista de processos que reúnem as condições para a aplicação dos pontos 1 e 2 da presente informação, pelo que se propõe a abertura do respectivo procedimento administrativo.

PROCESSOS DE REPOSIÇÃO DE SOLO
N.º C.O.NOMELOCALIDADEINFRACÇÃO/DELIBERAÇÃO
55/2011R.Aboim da Nóbrega – Vila VerdeCasa pré-fabricada, acessos e anexo habitação

– cfr. fls. 87 a 91 do PA.
9. No dia 11 de Abril de 2013, foi proferido despacho de concordância com a informação referida no ponto anterior pelo Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte – cfr. fls. 87 a 91 do PA.
10. Por ofício n.º 200102, do processo n.º 10/2013, registado no dia 24 de Abril de 2013, foi a Autora notificada do referido despacho e de que poderia exercer o seu direito de audiência prévia no prazo de 10 (dez) dias úteis – cfr. fls. 103 a 105 do PA e doc. a fls. 61 dos autos.
11. Em 17 de Maio de 2013, a Autora solicitou à Câmara Municipal de Vila Verde a alteração da tipologia do terreno referido em 1., tendo em vista a sua desafectação da Reserva Agrícola Nacional – cfr. fls. 173 do PA e doc. a fls. 55 a 60 dos autos.
12. No dia 20 de maio de 2013, a Autora exerceu o seu direito de audição, sustentando, para além do mais, que:
“1.º - Primeiramente, haverá que esclarecer que a arguida é, meramente, comproprietária do terreno onde se encontra implantada a casa pré-fabricada a que se reporta o presente processo.
[...]
3.º - Esse prédio foi propriedade de seus pais [...] e alvo de partilhas no âmbito do processo judicial n.º 508/09.2TBVVD [...].
4.º - [...] a propriedade do prédio aqui em causa [...] ficou atribuída na proporção de ½ para a ora arguida e para a sua irmã, M. [...].
5.º - Face a tal situação de compropriedade, afigura-se inelutável que a sua identificada irmã não poderá deixar de ser auscultada no âmbito deste procedimento para, querendo, deduzir algum tipo de contraditório.
6.º - Relevante, é também a circunstância de, entretanto, no contexto do processo de revisão do PDM em curso [...], a ora arguida haver solicitado ao município de Vila Verde – em sede de reclamação deduzida no período de Discussão Pública que está, actualmente, a decorrer – a alteração da tipologia daquele, tendo em vista a respectiva desafectação da RAN [...].
7.º - Porque assim é, aqui se suscita a respectiva Questão Prejudicial, tal como preconiza no artigo 31.º do CPA [...].
8.º - Porque assim é, deverá ter lugar, nos termos do citado normativo, a suspensão do presente procedimento administrativo, por forma a aguardar-se a decisão que venha recair sobre o mencionado requerimento, uma vez que se revela inequívoco que tal suspensão não resultam graves prejuízos para o interesse público.
[...]” – cfr. fls. 107 a 111 do PA e docs. a fls. 62 a 66 dos autos.
13. Por ofício n.º 10970/45358/2013, datado de 11 de Outubro de 2013, a Autora foi notificada pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, nos seguintes termos:
“Para conhecimento de V. Ex.ª, e relativo ao assunto em epígrafe, informamos que, após consulta da proposta do novo PDM de Vila Verde, onde foi levado à discussão pública e que neste momento encontra-se na CCDR para parecer da mesma, confirmou-se que a parcela de terreno em infracção se mantém em solo protegido pela RAN.
Face ao exposto, e de forma a concluir o procedimento administrativo, poderá V. Ex.ª, querendo, enviar por escrito até ao dia 22 de Outubro, impreterivelmente, o que lhe convier, findo o qual o processo será analisado com os elementos constantes no mesmo, e posterior deliberação final [...]” – cfr. fls. 175 do PA.
14. No dia 25 de Outubro de 2013 foi prestada pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte informação n.º 499/2013, com a referência 48133/2013, possuindo o assunto: “Reposição de solo – art.º 44.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31/03, R. – Processo de Reposição n.º 03/2013”, com o seguinte teor:
“1. Na sequência do despacho do Director Regional de Agricultura do Norte de 11/04/2013, foi aberto Procedimento Administrativo para eventual aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 44 .º do DL 73/2009, de 31/03.
2. Notificada a interessada para se pronunciar sobre o assunto, veio por escrito alegar que, o terreno era pertença dos pais, entretanto falecidos, e na partilha ficou atribuída na proporção de ½ para a arguida e para a sua irmã.
3. Requereu ainda que um prazo, porque estando o processo de revisão do PDM em curso solicitou ao município de Vila Verde, em sede de reclamação deduzida no período de Discussão Pública, a desafectação daquela parcela da RAN.
4. No terreno, foi implantada uma casa pré-fabricada, e acessos para viaturas. No decorrer do processo de contra ordenação, a referida arguida não se veio defender, aceitando a coima aplicada sem impugnar.
5. Fazendo fé às provas obtidas no decorrer do processo de contra ordenação, e não tendo a arguida apresentado qualquer fundamento que alterasse a pretensão da reposição do solo, deverá a mesma ser executada.
6. Face ao exposto, e somos de entendimento, salvo melhor opinião, que seja concedido um prazo de 180 dias, para a arguida remover o pré-fabricado, retirar a camada compactada do solo, voltando ao seu estado original.
À consideração superior” – cfr. fls. 177 a 178 do PA.
15. Sobre a supra-referida informação, recaiu despacho de concordância do Director Regional Adjunto da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, no dia 28 de Outubro de 2013 – cfr. fls. 177 a 178 do PA.
16. Por ofício n.º 13819/48977/2013, de 01 de Novembro de 2013, foi a Autora notificada do aludido despacho – cfr. fls. 179 a 181 do PA e doc. a fls. 20 dos autos.

DE DIREITO
Está posta em causa a sentença que ostenta este discurso fundamentador:

Nos presentes autos, a Autora R. insurge-se contra o despacho proferido pelo Director Regional Adjunto da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, datado de 28 de Outubro de 2013, no qual decidiu conceder um prazo de 180 dias para a mesma remover o pré-fabricado existente no terreno abrangido pela área da Reserva Agrícola Nacional (RAN), assim como a camada compactada do solo, repondo o estado original do solo.
Importa, assim, saber se tal despacho incorreu nos vícios que lhe são assacados, nomeadamente, preterição da formalidade essencial da audiência dos interessados da outra comproprietária do terreno; ausência de pronúncia quanto às “questões novas” suscitadas em sede de audiência prévia; vício de falta de fundamentação; violação dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade; e violação do princípio “ne bis in idem”.
*
Da preterição da audiência de interessados
Alega a Autora que é comproprietária, conjuntamente com a sua irmã, do prédio onde está erigido o pré-fabricado e a camada compactada do solo a que se refere o despacho impugnado, pelo que se afigurava inelutável que a sua irmã tinha de ser auscultada no âmbito destes procedimentos para, querendo, deduzir algum tipo de contraditório, o que não sucedeu, já que a mesma nunca foi notificada para efeitos de
audiência prévia.
Vejamos se lhe assiste razão.
O art. 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP) dispõe que “o processamento da atividade administrativa será objeto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhe disserem respeito”.
O transcrito preceito constitucional prevê de forma expressa que a participação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas, dito de outro modo, no procedimento administrativo, o que constitui um princípio que o legislador deve assegurar (vide neste sentido Acórdão do Tribunal Constitucional de 10.12.2008, processo n.º 594/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, para consagração desta directiva constitucional, o legislador ordinário instituiu os artigos 100.º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, em vigor à data dos factos (CPA de 1991),
configurando os mesmos uma dimensão qualificada do princípio da participação a que se refere o art. 8.º do mesmo diploma.
Desta forma, constitui uma manifestação fundamental do princípio do contraditório, possibilitando o confronto de posições entre a Administração e os administrados a fim de alcançar plataformas de entendimento, mas também a faculdade que é concedida a estes de indicarem fundamentos de facto ou de direito que invalidem a actuação da Administração, levando a outro sentido decisório (vide neste sentido Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 31 de Janeiro de 2008, processo n.º 00195/02, disponível em www.dgsi.pt).
O art. 100.º do CPA de 1991, sob a epigrafe “Audiência dos Interessados”, consagra no seu n.º 1 que “concluída a instrução, e salvo o disposto no art. 103.º, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta”.
Este preceito, ao consagrar a audiência dos interessados antes da decisão final que tenha a virtualidade de os afectar, incorpora um princípio estruturante do procedimento administrativo, que consiste na efectiva possibilidade que será conferida ao interessado no procedimento em causa de ter uma participação útil no âmbito daquele procedimento, não devendo configurar-se num mero acto de rotina, o que constitui sobre a Administração uma verdadeira obrigação de meios de modo a criar as condições indispensáveis para que aquela possibilidade seja assegurada.
No caso em concreto, como decorre do probatório, foi imputada à Autora, e só a ela, a prática de uma contra-ordenação prevista no art. 39.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, que aprovou o regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional (RJRAN), pela violação do art. 23.º daquele diploma legal, o que culminou com a sua condenação ao pagamento de uma coima de € 800,00 (oitocentos euros), a que acresceram as custas do processo no valor de € 105 (cento e cinco euros), que ela acatou, pagando o respectivo valor.
Mais se apurou que foi na sequência da aplicação da referida contra-ordenação que foi determinado a abertura de um procedimento administrativo, visando a Autora, para a reposição do solo à situação anterior à infracção, nos termos do n.º 1 do art. 44.º do RJRAN, procedimento esse que culminou com a decisão impugnada.
Assim sendo, a decisão de reposição do solo conforme o original não tem a virtualidade de afectar a comproprietária do terreno (a irmã da Autora), uma vez que esta apenas visou a Autora, que foi condenada nos termos da lei por ter utlizado o terreno em causa (área integrada na RAN), ao implementar um pré-fabricado e uma camada compactada do solo, sem o necessário parecer prévio (art. 23.º, n.º 1 do RJRAN), ou seja, o procedimento em causa tinha como escopo o uso que foi dado ao terreno englobado na área RAN e não a sua propriedade.
Pelo que, não era exigida a audição prévia da comproprietária do terreno (irmã da Autora) por não ser ela visada com o procedimento em causa nos autos, improcedendo a alegação da Autora.
*
Da ausência de pronúncia
Sustenta a Autora que, em sede de audiência prévia, suscitou novas questões às quais, no entanto, o Réu nunca respondeu, nomeadamente quanto à ausência de auscultação da sua irmã, comproprietária do terreno em causa, e no que diz respeito ao requerimento de alteração da tipologia do terreno, no âmbito do respectivo procedimento de revisão do PDM do Município de Vila Verde, o que configura uma questão prejudicial, tal como preconiza o art. 31.º do CPA, já que que o seu eventual deferimento poderá vir a determinar a desafectação daquele prédio da área RAN.
Vejamos, pois.
Um dos princípios basilares previsto no CPA de 1991 é o princípio da decisão, tal como se encontra consignado no seu art. 9.º, sendo também o mesmo uma decorrência dos princípios de procedimento administrativo (art. 1.º) e da legalidade (art. 3.º).
De facto, o procedimento administrativo, enquanto sucessão concatenada e ordenada de actos, visa uma decisão e o princípio da legalidade implica a sujeição dos órgãos e agentes da Administração Pública à lei e ao direito, como se extrai do estatuído no art. 266.º, n.º 2 da CRP.
O princípio da decisão, que assenta nos aludidos princípios, exige o dever de pronúncia dos órgãos administrativos sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados pelos particulares e sobre quaisquer petições, representações, reclamações ou queixas formuladas em defesa da Constituição, das leis e do interesse geral (cfr. n.º 1 do art. 9.º do CPA de 1991).
Por sua vez, o art. 107.º do CPA de 1991 prescreve que: “na decisão final expressa, o órgão competente deve resolver todas as questões suscitadas durante o procedimento e que não hajam sido decididas em momento anterior.”
Porém, a Administração, para fundamentar a decisão final, não está obrigada a rebater todas as razões e argumentos aduzidos pelo particular, em sede de audiência dos interessados, contra o projecto de decisão, estando apenas vinculada a ponderar ou ter em consideração tais contributos (neste sentido acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de abril de 2000, processo n.º 041540, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, “in casu”, nada permite afirmar que não foram ponderadas ou tidos em consideração (o que não significa “aceites”), por parte da Entidade Demandada, os argumentos levados ao procedimento pela Autora em sede de audiência prévia.
Conforme se constata da concatenação da matéria de facto dada como provada, a Autora, em sede de audiência prévia, referiu que era meramente comproprietária do terreno onde se encontra implantada a casa pré-fabricada em causa, já que a propriedade do prédio foi-lhe atribuída na proporção de ½ e o outro ficou para a sua irmã, M., pelo que esta última devia ser auscultada no âmbito deste procedimento para, querendo, deduzir algum tipo de contraditório; tendo, de igual modo, sustentado que, no contexto do processo de revisão do PDM, solicitou ao Município de Vila Verde, a alteração da tipologia do terreno, tendo em vista a sua desafectação da RAN, o que materializa uma questão prejudicial que impunha a suspensão do procedimento administrativo até à decisão daquele requerimento.
Porém, contrariamente ao alegado pela Autora, a Entidade Demandada pronunciou-se sobre a questão da alteração da tipologia do terreno, tendo-a informado que havia consultado a proposta do novo PDM de Vila Verde e que a parcela de terreno visado se mantinha protegido pela RAN.
De igual forma, os argumentos esgrimidos pela Autora e que a mesma classifica como questões novas, assim como a materialidade que lhes está subjacente, foram ponderados, mas não aceites, na decisão impugnada, como se retira do teor da mesma, onde tais fundamentos são mencionados e se conclui que não tiveram a virtualidade de alterem a pretensão de reposição do solo.
Atento o exposto, improcede também a pretensão da Autora nesta parte.
*
Da falta de fundamentação
Alega a Autora que o acto impugnado carece, em absoluto, de sustentação, porquanto não contém, expressa, ou implicitamente, os respectivos fundamentos de facto e de direito, nem, tão-pouco, faz referência, ainda que genérica, ao auto de notícia que terá estado na sua génese, pelo que padece de vício de falta de fundamentação.
Vejamos se lhe assiste razão.
A garantia da fundamentação dos actos administrativos confere a faculdade a todos os que sejam afectados por eles de serem inteirados das razões ou motivos que os explicitam. Deste modo, a fundamentação implica “a obrigação de enunciar expressamente os motivos de facto e de direito que determinaram o seu agente” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 266/87 de 08.07.1987, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
É o que decorre do texto constitucional, nomeadamente do art. 268.º n.º 3 CRP, ao prescrever que os actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos devem ser expressamente fundamentados.
Concretizando a imposição constitucional, o art. 125.º do CPA de 1991 determina que a fundamentação deve ser expressa, através da sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir na mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, os quais ficarão a fazer, neste caso, parte integrante do respectivo acto.
A teleologia imanente ao dever de fundamentação do acto administrativo consubstancia-se em dar a conhecer ao seu destinatário o percurso cognitivo e valorativo do autor de tal acto, de forma a permitir uma defesa adequada e consciente dos direitos e interesses legalmente protegidos do administrado. Para esse efeito, a fundamentação tem de ser suficiente, clara e congruente, permitindo ao destinatário médio ou normal, colocado na posição do destinatário do acto, compreender a motivação que subjaz ao raciocínio decisório (vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 08 de maio de 2014,
processo n.º 08298/11, disponível em www.dgsi.pt).
Nos presentes autos, o acto impugnado materializa um despacho de concordância com uma informação anterior.
O art. 125.º, n.º 1 do CPA de 1991 prevê expressamente a fundamentação por remissão para os termos de uma informação, parecer ou proposta que contenha, ela mesma, a motivação do acto, de tal modo que essa remissão deve ser entendida no sentido de que o acto administrativo absorveu e se apropriou da respectiva motivação ou fundamentação, que, dessa forma, ficará a fazer parte integrante.
Assim, no presente caso a motivação do despacho impugnado é a que resulta da informação que o antecede, que consubstancia, assim, uma só decisão com o despacho de concordância.
Assim, em tal acto é mencionado o percurso valorativo que conduziu à decisão de concessão de um prazo de 180 dias para a Autora remover o pré-fabricado, retirar a camada compactada do solo e, assim, repor o estado original do solo, explicitando-se que o procedimento foi aberto em virtude do despacho do Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte de 11 de Abril de 2013, para aplicação do disposto no art. 44.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, e que a Autora, na sua audição, não apresentou qualquer fundamento que alterasse a pretensão de reposição do solo vertida naquele normativo, pelo que deveria a mesma ser executada.
Assim sendo, e atento o escopo da norma contida no n.º 1 do referido art. 44.º, que institui um procedimento de reposição da legalidade “após a audição dos interessados e independentemente da aplicação de coimas”, era de todo indiferente qualquer referência ao auto de notícia que culminou com a instauração do processo contra-ordenacional n.º 55/2011.
Desta forma, da decisão impugnada resultam os fundamentos que levaram a Administração a agir naquele sentido e não em qualquer outro, sendo certo que um destinatário normal, em face de tal fundamentação, consegue aperceber-se dos motivos que levaram a Entidade Demandada a decidir daquele modo, tendo a Autora interpretado e compreendido correctamente o teor da decisão impugnada, conforme se constata da posição que assumiu nos articulados.
Pelo exposto, improcede também o alegado vício de falta de fundamentação da decisão impugnada.
*
Da violação dos princípios da necessidade, adequação e da proporcionalidade Sustenta a Autora que foi também omitida a análise da arguição de que, tal como é consabido e jurisprudencialmente pacífico, a reposição ou demolição das obras relativas à situação aqui em análise só deve ser ordenada como última e indeclinável medida sancionatória da eventual ilegalidade cometida, por força dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, constituindo, por isso mesmo, a última “ratio” para a Administração.
Vejamos.
Primeiramente, cumpre salientar que, contrariamente ao que pretende fazer valer a Autora, a Entidade Demandada pronunciou-se sobre a viabilidade de legalização do pré-fabricado (e da camada compactada do solo), tendo informado a Autora a esse respeito, nomeadamente que, após consulta da proposta do novo PDM de Vila Verde, confirmou que a parcela de terreno em infracção se mantém em solo protegido pela RAN, conforme foi já referido.
Por outro lado, a decisão colocada em crise cingiu-se à aplicação da lei.
Efectivamente, nos termos do n.º 1 do art. 20.º do RJRAN “as áreas da RAN devem ser afetas à atividade agrícola e são áreas non aedificandi, numa ótica de uso sustentado e de gestão eficaz do espaço rural.”
Pelo que “são interditas todas as ações que diminuam ou destruam as potencialidades para o exercício da atividade agrícola das terras e solos da RAN, tais como: operações de loteamento e obras de urbanização, construção ou ampliação, com exceção das utilizações previstas no artigo seguinte” (art. 21.º, n.º 1, alínea a) do RJRAN).
Sendo que “as utilizações não agrícolas de áreas integradas na RAN para as quais seja necessária concessão, aprovação, licença, autorização administrativa ou comunicação prévia estão sujeitas a parecer prévio vinculativo das respetivas entidades regionais da RAN, a emitir no prazo de 20 dias” (n.º 1 do art. 23.º do RJRAN).
Assim sendo, não tendo previsto o novo PDM de Vila Verde qualquer alteração na classificação da área onde se localiza o terreno em causa (conforme se pode constatar das áreas abrangidas pela RAN no Município de Vila Verde, disponíveis em https://www.arcgis.com/home/webmap/viewer.html?webmap=d53166cb5ede4cd7ad2c2 24add6a9a54), a afectação do solo provocada pela implementação da estrutura pré-fabricada e a compactação do solo efectuada para o efeito não se mostra susceptível de legalização.
Deste modo, a actuação da Administração encontrava-se estritamente vinculada pela lei, não saindo, por isso, beliscados os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
Pelo exposto, improcede, de igual modo, a pretensão da Autora nesta parte.
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Da Violação do Princípio “Ne Bis in Idem”
Alega a Autora que foi arguida no processo n.º 55/2011, no âmbito do qual foi condenada com uma multa de € 950,00, e que naquele no contexto já estava preconizado que pudesse ser também ali cominada com a sanção de reposição do solo, pelo que, ao ser iniciado um novo procedimento administrativo de natureza sancionatória, foi violado o denominado princípio “ne bis in idem.”
Vejamos se lhe assiste razão.
O princípio “ne bis in idem”, com assento no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, que dispõe que “ninguém pode ser julgado mais do que de uma vez pela prática do mesmo crime”, é aplicável a todos os procedimentos de natureza sancionatória.
Trata-se de uma disposição que preenche o núcleo fundamental de um direito: o de que ninguém pode ser duplamente incriminado e punido pelos mesmos factos sob o “imperium” do mesmo ordenamento jurídico.
Efectivamente, o transcrito art. 29.º, n.º 5 da CRP proíbe que, na actividade sancionatória, se proceda a uma dupla valoração do mesmo substrato material, sendo que as principais razões dessa proibição residem, por um lado na paz jurídica que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo e, por outro lado, no interesse em evitar pronúncias díspares sobre factos unitários (neste sentido vide Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 978).
À Autora foi levantado auto de contra-ordenação pela utilização não agrícola de área integrada na RAN (com a implementação de pré-fabricado e de uma camada compactada do solo) sem competente parecer prévio; tendo a mesma sido condenada numa coima de € 800,00 (oitocentos euros), acrescida de custas do processo no valor de € 105 (cento e cinco), quantias que já liquidou.
Mais se apurou que, em função da verificação da existência da estrutura pré-fabricada e da camada compactada do solo em área RAN, fora das condições previstas na lei, foi desencadeado o procedimento administrativo previsto no art. 44.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, para reposição da situação anterior à prática do ilícito, que culminou com a decisão impugnada de conceder um prazo de 180 dias, para a Autora remover o pré-fabricado existente, bem como a camada compactada do solo, repondo o solo no seu estado original.
Aqui chegados cumpre esclarecer que, como é sabido, os vários ramos do direito têm funções próprias e objectivos distintos, que visam a protecção de valores autónomos.
Do que resulta a possibilidade de valoração dos mesmos factos em sedes distintas, sem que tal signifique a violação do princípio “ne bis in idem”, o qual não proíbe que os mesmos factos determinem essa dupla valoração.
Pois bem, no procedimento previsto no n.º 1 do art. 44.º do RJRAN, o qual estabelece que “após audição dos interessados e independentemente de aplicação das coimas, compete ao diretor regional de agricultura e pescas territorialmente competente determinar que os responsáveis pelas ações violadoras do regime da RAN procedam à respetiva conformação com a legislação aplicável, fixando o prazo e os termos que devem ser observados”, não está em causa a aplicação de qualquer medida sancionatória.
Com efeito, com o mesmo, não se visa a punição do agente (alcançada em sede contra-ordenacional), mas tão só, a reposição da legalidade, daí o sentido da previsão constante naquele normativo de que o procedimento será adoptado “independentemente de aplicação das coimas.”
Pelo que, encontrando-se em causa no presente caso valores distintos a prosseguir, apreciados à luz de normativos diferentes e a partir de enfoques distintos, não sai beliscado o princípio “ne bis in idem”, improcedendo a alegação da Autora.
*
A Autora pediu ainda a suspensão de eficácia do acto impugnado, nos termos do art. 115º do RJUE, pois que a demolição ordenada caberá ao município de Vila Verde.
A este respeito, defendeu a Entidade Demandada que a presente acção não tem efeito suspensivo, sendo o art. 115º do RJUE aqui inaplicável.
Nos termos do art. 115º do RJUE, a acção administrativa de impugnação da ordem de demolição – do presidente da câmara municipal, nos termos do art. 106º do RJUE - goza de efeito suspensivo automático da eficácia do acto impugnado.
Importa assinalar, que aos autos, como resulta da factualidade, não foi trazida qualquer informação sobre eventual concretização da demolição, seja pela Entidade Demandada seja pela Autora (vide art. 68º da p.i.).
Pondo de lado a eventual questão, não suscitada pelas partes, de saber se esta pretensão da Autora configura ou não um verdadeiro pedido - pois que a suspensão resulta de determinação legal expressa, que a Administração deverá respeitar sempre e quando seja visada -, diremos que é nosso entendimento que o art. 115º do RJUE, com remissão para o art. 106º, se refere a decisões proferidas pela administração municipal. Neste sentido, aponta ou parece apontar o acórdão do TCAN de 24.04.2015 (proc. nº 841/14.4BEAVR), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Assim sendo, a instauração da presente acção não assume o efeito suspensivo pretendido pela Autora, por não estar em causa nos autos uma qualquer ordem de demolição da administração municipal.
X
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim, vejamos.
O presente recurso vem interposto da sentença que absolveu o Réu, ora Recorrido, dos pedidos formulados.
Antes de mais, importa referir que a Recorrente, vem pôr em crise a sentença, aceitando a matéria de facto dada como provada - nº 1 do recurso - discordando apenas do direito aplicado, para o que invoca os mesmos argumentos da p.i., dando a impressão que está a impugnar o acto administrativo e não a reagir contra a sentença em sede de recurso jurisdicional, argumentos que se reconduzem ao seguinte:
-a sentença em crise incorreu em erro de julgamento pois não declarou a nulidade ou anulação do despacho proferido, em 28 de outubro de 2013, pelo Diretor Regional Adjunto da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte no qual se deliberou conceder um prazo de 180 dias para remover o pré-fabricado existente bem como a camada compactada do solo, repondo o seu estado original e
-não decretou a suspensão da eficácia do acto administrativo impugnado.
Para o efeito adianta:
-é comproprietária, conjuntamente com a sua irmã, do prédio onde está erigido o pré-fabricado a que se reporta o despacho impugnado, sendo que esta não foi ouvida nem notificada para efeitos de audiência prévia em sede procedimental, o que acarreta a preterição de uma formalidade essencial, com violação do artigo 100º do CPA;
-por outro lado, quando apresentou a sua pronúncia, a Autora, aqui Recorrente, suscitou novas questões às quais, no entanto, a Entidade Demandada nunca respondeu, designadamente no que se refere à comproprietária do terreno, o que viola o disposto nos artigos 9º/1 e 107º do CPA;
-o acto administrativo em apreço carece de sustentação, porquanto não contém, expressa, ou implicitamente, os respetivos fundamentos de facto e de direito, em desrespeito do artigo 125º e segs. do CPA, pelo que padece de um vício de forma por falta de fundamentação;
-a demolição das obras aqui em análise só deve ser ordenada como última e indeclinável medida sancionatória da eventual ilegalidade cometida, por força dos princípios da necessidade, adequação e princípio da proporcionalidade, constituindo, por isso mesmo, a última ratio para a Administração;
-os factos em causa deram origem a dois processos administrativos distintos, já que a Recorrente foi arguida num processo de contraordenação, no âmbito do qual foi condenada em multa no valor de € 950,00, e depois foi-lhe instaurado novo procedimento administrativo de onde resultou o despacho impugnado, situação proibida pelo princípio ne bis in idem;
-a presente acção suspende a eficácia do acto impugnado, nos termos do artigo 115º do RJUE, já que a demolição ordenada caberá ao município de Vila Verde.
Cremos que carece de razão.
Como resulta da transcrição que fizemos, a sentença fez um correcto enquadramento dos factos e uma escorreita aplicação do direito.
Assim:
No que tange à falta de audiência prévia da irmã da Recorrente, na sua qualidade de proprietária de parte do terreno, é indiscutível que a mesma não foi notificada para efeitos de audiência prévia do projecto de decisão.
Determina o n.º 1 do artº 100º do CPA, que concluída a instrução, e salvo o disposto no artº 103º do CPA, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente sobre o sentido provável desta, o que quer significa que este direito de audição, salvo em situações excepcionais, não pode deixar de ser assegurado, tanto mais que ao mesmo subjaz o princípio do contraditório e, portanto se destina a possibilitar ao interessado a sua participação na formação da vontade da Administração de forma a que a decisão final constitua uma decisão ponderada e atenta a todos os elementos que podem ser determinantes dessa formação de vontade.
Porém, há casos em que tal formalidade - audição prévia -, pode degradar-se em formalidade não essencial e, portanto, ser omitida sem que tal redunde em ilegalidade determinante da invalidade do acto.
O que quer dizer que, em certos casos, o cumprimento do disposto no art° 100º do CPA pode ser dispensado sem que ocorra a mencionada consequência. Tal sucederá nos casos previstos no artigo 103º do mesmo Código, isto é, nos casos em que a decisão a tomar seja urgente ou em que seja razoável prever que pode comprometer a execução ou a utilidade da decisão ou nos casos em que, devido ao elevado número de interessados, essa formalidade se torne impraticável e ainda nas situações em que o interessado, depois de concluída a instrução, teve acesso aos elementos compilados no procedimento e se pronunciou sobre as questões a decidir, bem assim como nos casos em que o acto concretamente praticado se orientou no único sentido possível em função dos pressupostos factuais e legais existentes, caso em que ocorre a possibilidade de degradar a omissão de determinada formalidade exigida por lei em mera irregularidade sem eficácia invalidante, sob a égide do “princípio do aproveitamento do acto administrativo”.
É, pois, a própria lei - artigo 100º do CPA - a exigir a existência de audiência prévia, e a prever, de modo taxativo, as suas excepções - artigo 103º -.
In casu, como sentenciado, a decisão de reposição do solo conforme o original não tem a virtualidade de afectar a comproprietária do terreno (a irmã da Autora), uma vez que esta apenas visou a Autora, que foi condenada nos termos da lei por ter utilizado o terreno em causa (área integrada na RAN), ao implementar um pré-fabricado e uma camada compactada do solo, sem o necessário parecer prévio (artº 23.º, n.º 1 do RJRAN), ou seja, o procedimento em causa tinha como escopo o uso que foi dado ao terreno englobado na área RAN e não a sua propriedade. Pelo que, não era exigida a audição prévia da comproprietária do terreno (irmã da Autora) por não ser ela visada com o procedimento em causa, improcedendo a alegação neste domínio.
De resto, a falta de audição da comproprietária do terreno não consubstancia qualquer violação do artigo 100º do CPA, não só porque não estão em causa questões relativas ao direito de propriedade, mas também porque quem praticou a infração foi a Recorrente que foi condenada no pagamento de uma coima, que acatou, tendo pago o respectivo valor.
Depois convém salientar que o que está em jogo nos dois procedimentos - o da contraordenação e o relativo à reposição do terreno no estado anterior às construções - não são questões relativas à propriedade do terreno mas sim, por um lado a prática de uma contraordenação imputada à Recorrente e só a ela, como decorre do probatório, que não contestou, antes aceitou, tendo pago a respectiva coima e por outro a demolição das construções, que ela exclusivamente edificou, imposta pelo artigo 44º do DL 73/2009 de 31 de março - Regime da RAN.
Daí que não tivesse que ser ouvida no procedimento a comproprietária do terreno, estranha à referida infração, não havendo, por isso, qualquer violação do artigo 100º do CPA.
Ademais, contrariamente ao expendido pela Recorrente ao invocar a violação do artigo 107° do CPA pelo facto de, em seu entender não terem sido decididas de forma expressa questões novas, que aduziu em sede de audiência prévia mais uma vez o Tribunal a quo decidiu com acerto.
Na verdade, o princípio da globalidade da decisão, que se manifesta naquele preceito legal, está intimamente ligado ao princípio do inquisitório que vigora no procedimento administrativo, do qual decorre a obrigação de decidir todas as questões pertinentes, ainda que não suscitadas pelas partes. Mas donde resulta, também, que a entidade decisora não está vinculada às pretensões das partes, como referem Santos Botelho e outros no CPA anotado, por referência ao artigo 107°.
Daqui decorre que não constitui violação de lei o facto de não ocorrer pronúncia sobre questões suscitadas pela parte, deste que as mesmas não sejam pertinentes, ou seja, não se insiram directamente no objecto do procedimento como é o caso.
Ora, no acto em crise não vemos que tenha sido omitida decisão sobre matéria relevante, isto é, que fosse necessária à decisão, ou que a pudesse influenciar como pretende fazer crer a Recorrente ao defender a audição da irmã comproprietária do terreno.
Nenhuma das questões novas invocadas tinham a audácia que a Recorrente lhes pretende atribuir. Nem a questão relacionada com a propriedade do terreno onde se encontra implantado o pré-fabricado tinha alguma influência no sentido da decisão.
Tal equivale a dizer que os argumentos esgrimidos pela Autora e que a mesma classifica como questões novas, assim como a materialidade que lhes está subjacente, foram ponderados, embora não aceites, na decisão impugnada, como se retira do teor da mesma, onde tais fundamentos são mencionados e se conclui que não tiveram a virtualidade de alterem a pretensão de reposição do solo.
Da falta de fundamentação -
Como é sabido, a fundamentação constitui um dever genérico da Administração, na sua actuação com os administrados.
Com efeito, o artigo 124º do anterior Código do Procedimento Administrativo, na esteira do nº 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, consagra um dever geral de fundamentação dos actos administrativos, dever que é concretizado no artigo 125º do mencionado Código do Procedimento Administrativo.
Preceitua este artigo 125º - sob a epígrafe “Requisitos da fundamentação” - nos nºs 1 e 2, o seguinte:
“1.A fundamentação deve ser expressa, através da sucinta exposição dos fundamentos de facto e direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso parte integrante do respetivo ato.
2.Equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.”.
Assim, a fundamentação de um concreto acto, para que possa desempenhar em pleno a principal função subjacente à previsão da respectiva exigência, tem que ser expressa, através duma exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito da decisão; clara, permitindo que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide; suficiente, possibilitando ao administrado, um conhecimento concreto da motivação do acto, ou seja, as razões de facto e de direito que determinaram o órgão ou agente a actuar como actuou e, ademais, congruente, de modo que a decisão constitua conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como justificação, envolvendo entre eles um juízo de adequação, não podendo existir contradição entre os fundamentos e a decisão.
Tal como tem sido jurisprudência uniforme do STA, a fundamentação do acto administrativo é um conceito relativo, devendo concluir-se pela sua existência quando um destinatário normal, na posição do interessado em concreto, não tenha dúvidas acerca das razões que motivaram a decisão - cfr., por todos, o Acórdão do Pleno de 14/05/97, segundo o qual, a fundamentação, “(...) varia consoante o tipo legal de acto administrativo em concreto, havendo que entender a exigência legal em termos hábeis, dados a funcionalidade do instituto e os objectivos essenciais que prossegue: habilitar o destinatário a reagir eficazmente pelas vias legais contra a respectiva lesividade (objectivo endo-processual) a assegurar a transparência, a serenidade, a imparcialidade e a reflexão decisórias (objetivos exa ou extra-processuais)”.
A fundamentação, ainda que sucinta, deve ser suficiente para convencer o particular e permitir-lhe o controlo do acto.
O que significa que o administrado deve ficar na posse de todos os elementos de facto e de direito que conduziram à decisão, o que traduz a exigência de que a administração deve dar-lhe, ainda que de forma sucinta, nota do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido para a tomada de decisão.
Na verdade, só assim o particular pode analisar a decisão e ponderar se lhe dá ou não o seu acordo; também só por essa via, ele fica munido dos elementos essenciais para poder impugnar a decisão.
É que, só sabendo quais os factos concretos considerados pela Administração, ele pode argumentar se eles se verificam ou não; só conhecendo os critérios valorativos da Administração sobre esses factos, ele pode discuti-los, apresentar outros ou até valorá-los doutra forma; finalmente, só em face das normas legais invocadas, ele pode discernir se são essas ou outras as aplicáveis ao caso.
Com a fundamentação visa-se, pois, que o destinatário fique ciente do modo e das razões por que a administração decidiu num e não noutro sentido.
Sobre esta problemática da fundamentação, no âmbito específico dos actos administrativos proferidos no âmbito da actividade discricionária da Administração, pronunciou-se o Acórdão do STA, de 12/04/2007, no proc. 0941/05, onde sumariou: “ (…) IV - No domínio do exercício dos poderes discricionários a Administração tem de agir tendo sempre em vista a satisfação do interesse público e tal passa não só pela adopção do comportamento mais racional e mais ajustado aos fins que se visa prosseguir, como também pelo respeito dos princípios da legalidade, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça e da boa-fé. V - Quanto mais alargados forem os poderes discricionários maior é a obrigação do acto ser acompanhado de uma fundamentação clara, precisa e suficientemente desenvolvida pois que só assim se dá as necessárias garantias de defesa do administrado.”.
No mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal:
A fundamentação - como resulta do que se disse - visa responder às necessidades de esclarecimento do Administrado destinando-se a informá-lo do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto e a permitir-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática e porque motivo se decidiu num sentido e não noutro. E, sendo assim, pode dizer-se que não só a insuficiência, a obscuridade e a contradição da fundamentação equivalem a falta de fundamentação, uma vez que as mesmas impedem o devido esclarecimento, como também que um acto está devidamente fundamentado quando o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal - o bonus pater familias do artº 487º, nº 2 do CC - fica a saber das razões que o motivaram cfr. nº 3 do artº 268º da CRP, e artº 124º do CPA - entre muitos outros, os seguintes Acórdãos do STA de 19/3/81, proc. 13.031, de 27/10/82 in AD 256/528, de 25/7/84 in AD 288/1386, de 4/3/87 in AD 319/849, de 15/12/87 in AD 318/813 e na doutrina Marcello Caetano em “Manual”, pág. 477 e Esteves de Oliveira em “Direito Administrativo”, pág. 470.
Voltando ao caso dos autos, também sobre a falta de fundamentação a Recorrente carece de razão.
Com efeito a intencionalidade que subjaz ao dever de fundamentação do ato administrativo consubstancia-se em dar a conhecer ao seu destinatário o percurso cognitivo e valorativo do autor de tal acto, de forma a permitir uma defesa adequada e consciente dos direitos e interesses legalmente protegidos do administrado.
Ora, como bem refere a sentença, o acto impugnado cuja anulação se requer “materializa um despacho de concordância com uma informação anterior” de que a Recorrente teve conhecimento, situação que o artigo 125º/1 do CPA prevê como válida para a fundamentação dos actos administrativos.
Não podemos esquecer como, já se referiu supra, que o acto administrativo em que se traduz o despacho impugnado acontece na sequência da decisão do procedimento por contraordenação e que culminou com a condenação da Recorrente no pagamento de coima, que ela acatou, pagando o valor respetivo.
Ora, foi na sequência dessa condenação que a Recorrente foi notificada para a reposição do terreno no estado original, nos termos do artigo 44°/1 do DL 73/2009, isto é, a ordem de destruição do edificado não visa a punição do agente (que já foi efetuada no processo de contraordenação), mas tão só a reposição da legalidade que será efetuada independentemente da aplicação de qualquer coima, como determina aquele normativo.
Pelas razões acabadas de descrever não existe violação do princípio ne bis in idem, pois se trata de procedimentos de natureza diferente embora complementares um do outro, sendo certo que, em infrações como as que afetam o meio ambiente, a criação de restrições à ação humana constitui um dos principais meios de defesa, como é o caso da RAN, onde a medida mais eficaz é sem dúvida a obrigação de reposição do solo no estado original, pois que o pagamento da multa seria uma pena que compensaria pagar face à utilidade retirada da infração.
Porém, não é esse o sentido da lei que determina, não só a punição a título de contraordenação como a imposição da medida de reposição do terreno no seu estado original.
Não existe, pois, violação do princípio ne bis in idem.
Como salientou a Senhora Juíza, os vários ramos do direito têm funções próprias e objetivos distintos, que visam a proteção de valores autónomos.
Do que resulta a possibilidade de valoração dos mesmos factos em sedes distintas, sem que tal signifique a violação do princípio “ne bis in idem”, o qual não proíbe que os mesmos factos determinem essa dupla valoração.
Daqui decorre também o respeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade a que a Recorrente faz alusão, já que o ato visado adotou a medida preconizada por lei e que mais se ajustava à situação de ilegalidade criada, sendo certo que essa mesma situação não era legalizável, mesmo com o novo PDM que não previu qualquer alteração na classificação da área onde se localiza o terreno em causa.
Como sentenciado, a Entidade Demandada pronunciou-se sobre a viabilidade de legalização do pré-fabricado (e da camada compactada do solo), tendo informado a Autora a esse respeito, nomeadamente que, após consulta da proposta do novo PDM de Vila Verde, confirmou que a parcela de terreno em infração se mantém em solo protegido pela RAN.
Por outro lado, a decisão colocada em crise cingiu-se à aplicação da lei.
Efetivamente, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do RJRAN “as áreas da RAN devem ser afetas à atividade agrícola e são áreas non aedificandi, numa ótica de uso sustentado e de gestão eficaz do espaço rural.”
Pelo que “são interditas todas as ações que diminuam ou destruam as potencialidades para o exercício da atividade agrícola das terras e solos da RAN, tais como: operações de loteamento e obras de urbanização, construção ou ampliação, com exceção das utilizações previstas no artigo seguinte” (artº 21.º, n.º 1, alínea a) do RJRAN). Sendo que “as utilizações não agrícolas de áreas integradas na RAN para as quais seja necessária concessão, aprovação, licença, autorização administrativa ou comunicação prévia estão sujeitas a parecer prévio vinculativo das respetivas entidades regionais da RAN, a emitir no prazo de 20 dias” (n.º 1 do artº 23.º do RJRAN).
Assim sendo, não tendo previsto o novo PDM de Vila Verde qualquer alteração na classificação da área onde se localiza o terreno em causa (conforme se pode constatar das áreas abrangidas pela RAN no Município de Vila Verde, a afetação do solo provocada pela implementação da estrutura pré-fabricada e a compactação do solo efetuada para o efeito não se mostra suscetível de legalização.
De facto, importa realçar que estamos no domínio da actividade vinculada da Administração, onde o princípio da legalidade absorve, na prática, o conteúdo útil daqueles princípios, convindo esclarecer, a propósito do argumento da Recorrente que a demolição ordenada caberá, nos termos dos artigos 106º e 115º do RJUE, ao Município de Vila Verde, que não estamos aqui perante uma ordem de demolição do Município (rectius do Presidente da Câmara) a que aqueles normativos se aplicam.
Atento o exposto não se divisa que a sentença sofra do vício - erro de julgamento - que lhe é apontado.
Improcedem, assim, as conclusões da alegação.

DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso
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Custas pela Recorrente.
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Notifique e DN.
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Porto, 30/10/2020



Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Helena Canelas