Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 00740/17.5BEBRG |
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Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
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Data do Acordão: | 02/16/2018 |
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Tribunal: | TAF de Braga |
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Relator: | Hélder Vieira |
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Descritores: | LEGITIMIDADE ACTIVA IMPUGNATÓRIA (Nº 2 DO ARTIGO 55º DO CPTA); ACÇÃO POPULAR CORRECTIVA; ACÇÃO POPULAR DESTINADA À DEFESA DE INTERESSES DIFUSOS |
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Sumário: | I - O nº 2 do mencionado artigo 55º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) dispõe: «A qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é permitido impugnar as decisões e deliberações adotadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontre recenseado, assim como das entidades instituídas por autarquias locais ou que destas dependam.». II - A legitimidade radica na qualidade de cidadão (acção popular correctiva) — e representa, por isso, a manifestação de um direito político —, e não na invocação de um interesse individual, ou de um interesse difuso (acção popular destinada à defesa de interesses difusos, tida como uma forma de legitimidade de carácter heterogéneo). III - Para aferir da legitimidade activa impugnatória a que alude o nº 2 do artigo 55º do CPTA, impõe-se averiguar (i) se estamos perante um processo impugnatório de acto administrativo, (ii) se esse acto consubstancia decisão ou deliberação (iii) adoptada por órgãos das autarquias locais, ou entidades instituídas por autarquias locais ou que destas dependam, (iv) sediadas na circunscrição onde o autor se encontra recenseado e (v) se este é um eleitor no gozo dos seus direitos civis e políticos. * *Sumário elaborado pelo relator |
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Recorrente: | LFRGFS |
Recorrido 1: | Município de Braga |
Votação: | Unanimidade |
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Meio Processual: | Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional |
Decisão: | Conceder provimento ao recurso Revogar a sentença recorrida Declarar improcedente a invocada excepção |
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Aditamento: | ![]() |
Parecer Ministério Publico: | Emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: I – RELATÓRIO Recorrente: LFRGFS Recorrido: Município de Braga Vem interposto recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou verificada a excepção da ilegitimidade da Requerente para o exercício do direito de acção popular no caso concreto, por, em síntese, não se lhe reconhecer legitimidade para agir em juízo em representação dos interesses difusos dos cidadãos da cidade de Braga. * O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva alegação, do seguinte teor:“A.1.1 Em face dos elementos dos autos, estão perfeitamente caracterizados como objeto do presente processo interesses difusos sobre os bens constitucionalmente protegidos da qualidade de vida, ambiente, património cultural, urbanismo e ordenamento do território. A.1.2. Ao contrário do que se diz na sentença recorrida, a requerente/Recorrente, não se limitou à «enunciação dos preceitos legais que considera terem sido violados» e a «afirmações genéricas quanto aos interesses difusos que alega pretender defender». A.1.3. Reconhece-o a própria sentença recorrida quando, conforme acima se referiu, sumaria e equaciona globalmente todos os fundamentos do requerimento inicial (quinto parágrafo da sétima página). A.1.4. Ali se põe em evidência que a requerente, no plano dos factos, alegou todos os factos relevantes atinentes à operação urbanística submetida a licenciamento e depois licenciada, especificando as suas características. A.1.5. E que, no plano do direito, indicou também o direito urbanístico aplicável especificando os parâmetros urbanísticos com os quais a referida operação urbanística se mostra desconforme. A.1.6. Tanto é o suficiente para caracterizar os bens e interesses em jogo na presente ação e entre eles identificar interesses difusos passíveis de tutela através de ação popular. A.1.7. Não se impunha, pois, à requerente, conforme se afirma na sentença recorrida, a alegação de quaisquer factos adicionais que explicitassem a projeção de tudo o que alegou no requerimento inicial no interesse da comunidade. A.1.8. O Tribunal recorrido incorreu, assim, considerando não estar suficientemente caracterizado na presente ação um interesse difuso passível de tutela através de ação popular, em erro de julgamento, errando na aplicação da norma das disposições conjugadas dos art.s 2.º/1 e 1.º/2 da Lei n.º 83/95, de 31/08 (LAP). A.1.9. E, bem assim, considerando que se impunha à requerente a alegação de factos adicionais que explicitassem a projeção de todo o alegado no interesse da comunidade, errou na interpretação daquelas disposições conjugadas dos art.s 2.º/1 e 1.º/2 da LAP, retirando daquela interpretação uma norma inconstitucional, por violadora do art. 53.º/2 da CRP. A.2.1. Independentemente de um tal reconhecimento de um interesse difuso objeto de tutela na presente ação, nunca tal questão seria causa de ilegitimidade ativa. A.2.2. A questão da legitimidade processual pressupõe a questão, autónoma, da qualificação do objeto processual. A.2.3. E é apenas na qualificação do objeto processual que releva a questão da caracterização de um interesse difuso como objeto da presente ação. A.2.4. Estando perfeitamente caracterizado o interesse difuso como objeto de tutela da presente ação, a legitimidade ativa resulta claramente do critério do art. 9.º/2 do CPTA. A.2.5. Mas mesmo quando, como fez a sentença recorrida, se entendesse não estar suficientemente caracterizado um interesse difuso, então não poderia, automaticamente, concluir-se pela ilegitimidade processual ativa e decidir-se a absolvição da instância. A.2.6. Haveria, isso sim, que requalificar o objeto da presente ação e em função dessa requalificação e com base nos critérios jurídico-processuais para que a mesma apontasse, então equacionar a questão da legitimidade. A.2.7. Em face da qualificação que o próprio tribunal recorrido faz do objeto da ação, teria, então, de afirmar a legitimidade processual ativa da requerente, pelo menos à luz do critério do art. 55.º/2 do CPTA. A.2.8. O Tribunal recorrido incorreu, assim, considerando verificada ilegitimidade processual ativa, em erro de julgamento, errando na aplicação da norma do art. 9.º/2 do CPTA e desaplicando o art. 55.º/2 do CPTA. A.3.1. À luz do princípio da cooperação e do dever de gestão processual consagrados nos arts. 7.º-A/2 e 8.º do CPTA, quando entendesse existir uma insuficiência de alegação da parte da requerente que pudesse dar causa a uma exceção dilatória e assim impedir o conhecimento de mérito, o Tribunal recorrido estava obrigado a convidar ao aperfeiçoamento da alegação em causa. A.3.2. Entendendo, já na sentença, que houve insuficiência de alegação e tendo preterido o convite ao aperfeiçoamento, o Tribunal recorrido omitiu um ato jurídico-processualmente devido, o que é configurável como nulidade de sentença por excesso de pronúncia. A.3.3. A sentença recorrida está, assim, tendo sido decidida a absolvição da instância por ilegitimidade ativa por insuficiência de alegação e com preterição do convite ao aperfeiçoamento, ferida de nulidade por excesso de pronúncia nos termos dos arts. 7.º-A/2 e 8.º do CPTA e 615.º/1-d) do CPC ex vi art. 1.º do CPTA. B.1. Entendendo, como entende a Recorrente, que existe legitimidade ativa, seja ao abrigo do art. 9.º/2 ou do art. 55.º/2 do CPTA, sempre tem de configurar-se o exercício pela requerente de um direito de ação popular. B.2. Mas, como também se enunciou, a Recorrente entende ser de impugnar a decisão de condenação em custas, mesmo independentemente da impugnação da primeira decisão. B.3. No caso dos autos, o Tribunal recorrido não proferiu decisão de manifesta improcedência. B.4. Mais, o Tribunal recorrido decidiu a absolvição da instância com fundamento na ilegitimidade ativa, de acordo com os critérios aplicáveis à legitimidade para a ação popular, citando o art. 9.º/2 do CPTA e os arts. 1.º, 2.º e 12.º da LAP. B.5. Deste modo, o Tribunal recorrido não colocou em causa a qualificação da presente ação como ação popular, mas apenas julgou parte ilegítima para ela a requerente, não tendo julgado a ação manifestamente improcedente. B.6. A sentença incorreu, assim, condenando a requerente/Recorrente em custas, em erro de julgamento, errando na aplicação da norma dos art. 4.º/1-b) e /5 do RCP. Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências, fazendo-se assim JUSTIÇA!”. * O Recorrido contra-alegou em termos que aqui se vertem:“1- Por uma questão de economia processual, dá-se por integralmente reproduzido o teor da Oposição oportunamente apresentada nos presentes autos, pelo que se reitera que a presente providência deve ser julgada totalmente improcedente, por não provada e, consequentemente, os Réus absolvidos dos pedidos, com todas as consequências legais daí decorrentes. 2- A autora considera que lhe bastaria apenas enunciar que vinha em defesa de um interesse difuso para tal lhe conferir legitimidade activa para propor a presente providência cautelar, porque, em termos fácticos «alegou todos os factos relevantes atinentes à operação urbanística submetida a licenciamento e depois licenciada, especificando as suas características» e, no plano jurídico, apontou o direito urbanístico aplicável e os vícios de que tal operação padeceria. Isso seria, na opinião da recorrente, suficiente para caracterizar os bens e interesses em jogo na presente acção e identificar os interesses difusos passíveis de tutela através de acção popular. E sobre isto a recorrente nada mais traz de novo do que o já havia invocado na sua resposta às excepções. 3- A sentença sub iudice fez uma análise cuidada e atenta das questões e sustentou-se na mais corrente e recente jurisprudência. Não vemos que possamos dizer mais ou melhor que que ali ficou explanado, pelo que com a devida vénia, para ali integralmente remetemos, reiterando que a recorrente não dispõe de legitimidade processual activa para propor este procedimento cautelar (nem a respectiva acção). 4- Apenas uma nota para se chamar à atenção que a única referência jurisprudencial a que a recorrente faz apelo (o acórdão do STA, de 13-Fev-2014, no processo 0989/11), vai precisamente no sentido de confirmar o entendimento da sentença recorrida e não o da recorrente! Ali se refere que os autores da acção visavam “proteger o ambiente urbano, o equilíbrio do território municipal e a qualidade de vida dos habitantes da cidade do Porto, em particular dos que residem na Foz do Douro, sendo que ao longo da petição, os recorrentes procuraram demonstrar a concreta afectação desses valores através da descrição de factos e da invocação de diversas ilegalidades no âmbito da gestão urbanística” (destaque nosso). Ou seja, os ali autores efectivamente invocaram factos no seu articulado que demonstrariam a concreta afectação dos valores invocados naquela específica comunidade. O que precisamente a aqui recorrente não fez! Deste modo, aquela decisão do nosso mais alto Tribunal administrativo impõe que a sentença em causa seja confirmada. Nestes termos, deve a sentença sub iudice ser integralmente confirmada, não se reconhecendo legitimidade activa à requerente, improcedendo totalmente o recurso, assim se fazendo a devida JUSTIÇA!”. * O Ministério Público foi notificado ao abrigo do disposto no artº 146º, nº 1, do CPTA e pronunciou-se em concordância com a fundamentação da sentença recorrida, concluindo que «… não basta a mera alegação da do interesse da legalidade urbanística, do património cultural, do ordenamento do território e ambiente, assente na violação do direito urbanístico legal e regulamentar vigente por violação das normas constantes do PDM quanto aos usos, funções, configuração, implantação do edifício e enquadramento morfotipológico.É preciso alegar e demonstrar a existência de um interesse difuso a tutelar através da acção popular, donde se possa concluir que a construção em causa, a ser ilegal, é contrária aos interesses da comunidade, ou seja, aos interesses da população da cidade de Braga. Interesses que tinha que concretizar, nomeadamente ao nível da lesão, assim, demonstrando que a alegada violação das normas urbanísticas prejudica os cidadãos, alegando, também, os danos sofridos pela comunidade em resultado da ilegalidade do acto suspendendo. Deste modo, não tendo conseguido demonstrar a defesa do interesse público, a requerente não se constitui como autora popular, em representação dos interesses difusos dos cidadãos da cidade de Braga, não possuindo legitimidade processual activa para a propositura da acção popular e, consequentemente, da respectiva providência cautelar. Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso.”. * De harmonia com as conclusões da alegação de recurso, que balizam o objecto do recurso (artigos 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi artigo 140º do CPTA), impõe-se determinar, se a tal nada obstar, se a decisão recorrida padece de erro de julgamento ao considerar verificada a ilegitimidade processual activa, errando na aplicação da norma do artigo 9º, nº 2, e desaplicando o artigo 55º, nº 2, ambos do CPTA.Cumpre decidir. * II – FUNDAMENTAÇÃOII.1 – OS FACTOS ASSENTES NA DECISÃO RECORRIDA Consta da sentença recorrida: «Com interesse para a decisão da presente excepção resulta apurada a seguinte factualidade: 1) A Requerente nasceu na freguesia de São Vicente, concelho de Braga, Portugal; 2) A Requerente reside na freguesia de Fraião, concelho de Braga, Portugal; 3) A Requerente é eleitora efectiva, inscrita no recenseamento eleitoral desde o dia 3 de Junho de 2013, com o nº de inscrição 3…7; 4) A Requerente, no requerimento inicial, pede a suspensão da eficácia do acto de licenciamento de edificação, proferido, em 2/2/2017, pela Câmara Municipal de Braga; 5) A Requerente pretende intentar acção administrativa de impugnação do acto de licenciamento referido em 4) e pedir a declaração de nulidade deste acto; 6) A Requerente imputa ao acto suspendendo o vício de violação do PDM, do RPDM, do RJEU e do CRMB; 7) A Requerente alega que “ (…) estão em causa os interesses da qualidade de vida, ambiente e património cultural, além, directamente, dos interesses do urbanismo e do ordenamento do território (…)”. * Factos não provados Com relevância para a excepção a conhecer inexistem.”. * II.2 – DO MÉRITO DO RECURSOA Requerente ora Recorrente veio a juízo pedir fosse decretada a medida cautelar de suspensão da eficácia do acto de licenciamento da identificada obra de edificação. Alegou que a Contra-interessada OSJ – Instituto Particular de Solidariedade deu entrada de um pedido de licenciamento de edificação no prédio que identifica e que «A operação urbanística foi aprovada por despacho camarário de 2/2/2017 (…), De acordo com o mesmo aviso, em 6/2/2017 foi emitido o alvará n.º EDI/80/2017. É este acto de licenciamento o objeto da presente providência cautelar de suspensão de eficácia de acto.». Inclui no requerimento inicial um capítulo relativo à arguição da sua legitimidade, artigos 6º a 11º, que culmina no seguinte: “Pelo que nos termos do n.º 3 do art. 52º da Constituição da República e nos termos do art. 9º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e ainda nos termos dos art.º 2º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, a A. goza de legitimidade processual ativa na acção popular administrativa e na presente providência cautelar.». As partes passivas deduziram, nas oposições que apresentaram, a excepção da ilegitimidade da Requerente para o processo cautelar “popular”. Em réplica, a Requerente defendeu a posição já alegada no requerimento inicial e acresceu o seguinte, designadamente: “22º - Essencialmente, alega-se sob o art. 8.º do requerimento inicial que a autora é cidadã no gozo dos seus direitos civis e políticos residente no município de Braga. 23º - A esta luz, mesmo à margem do regime da Lei n.º 83/95, de 31/12, cujo art. 2.º se invoca no requerimento inicial, logo estaria assegurada a legitimidade processual ativa ao abrigo do disposto no art. 55.º/2 do CPTA”. A sentença veio a concluir: «Conforme já referido, a Requerente limitou-se a alegar preceitos legais supostamente violados e a defesa da tutela da legalidade urbanística, nada mais alegou que permita caracterizar os interesses difusos que visa defender. Em momento nenhum do seu requerimento inicial ou outro, bem como não resultou da inquirição das testemunhas indicadas, uma defesa concreta, especificada em factos, dos interesses da comunidade, limitando-se a Requerente à caracterização geral do direito de acção popular. Desta forma, consideramos que a Requerente não procedeu à alegação de factos que permitam sustentar a qualidade que se arroga, a de ser Autora popular, nomeadamente concretizando de facto quais os interesses de toda a comunidade que pretende defender, em que medida as ilegalidades invocadas afectam os demais cidadãos da comunidade, de que modo, directa ou indirectamente, o acto suspendendo de licenciamento, prejudica a qualidade de vida dos cidadãos, o património histórico da cidade, ou o ordenamento do território, de forma a que se concluísse que a tutela solicitada iria salvaguardar os direitos de toda a comunidade. Analisado todo o requerimento inicial da Requerente não se vislumbra qualquer concretização de facto do ou dos interesses de toda a comunidade que diz pretender defender, designadamente em que medida a invocada violação da legalidade urbanística se projecta nos demais cidadãos da cidade de Braga ou em que medida são estes cidadãos afectados negativamente pelo acto de licenciamento da edificação em causa. De acordo com a jurisprudência, a mera alegação do interesse da defesa da legalidade urbanística, do património cultural, do ordenamento do território e ambiente, assente na violação do direito urbanístico legal e regulamentar vigente por violação das normas constantes do PDM quanto aos usos, funções, configuração, implantação do edifício e enquadramento morfotipológico e do regime imperativo quanto a cedências ao domínio público e compensações ao Município demandado desacompanhada de outra alegação não permite afirmar a existência de interesse difuso a tutelar através da acção popular. Razão pela qual era indispensável alegação da Requerente de onde se extraísse que a construção em causa, a ser ilegal, era contrária aos interesses da comunidade, ou seja, aos interesses da população da cidade de Braga. Interesses que tinha que concretizar, nomeadamente ao nível da lesão, assim, demonstrando que a alegada violação das normas em matéria urbanística prejudicava os cidadãos, alegando, também, os danos sofridos pela comunidade em resultado da ilegalidade do acto suspendendo. Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses da comunidade, o modo como a alegada ilegalidade do acto suspendendo se projecta na vida dos cidadãos bracarenses não se pode concluir ser a Requerente uma “autora popular” e, consequentemente, não se pode reconhecer à mesma legitimidade para agir em juízo em representação dos interesses difusos dos cidadãos da cidade de Braga, ou seja, mais concretamente, a Requerente não demonstrou ter legitimidade processual activa para propor acção popular, pelo que a invocada excepção de ilegitimidade activa tem que ser julgada procedente, nos termos das disposições conjugadas do art. 1º do ETAF e do art. 9º nº 2 do CPTA, conjugado com os art.s 1º nºs 1 e 2, 2º nº1 e 12º nº 1 da Lei nº 83/95, de 31,08 (cfr., neste sentido, entre outros, Ac. TCA Sul, datado de 21.01.2014, Ac. TCA Norte, datado de 20.05.2016, ambos in www.dgsi.pt). De acordo com o disposto no art. 89º do CPTA a procedência de excepção dilatória de ilegitimidade de alguma das partes obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, ou seja, impede o prosseguimento dos autos e dá lugar à absolvição da instância da Entidade Requerida.». Vejamos. O princípio geral de legitimidade activa vem estabelecido, por referência à titularidade da relação jurídica administrativa, no nº 1 do artigo 9º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), sendo o autor considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida; todavia, ressalva expressamente o disposto no número seguinte e no capítulo II do título II, ou seja, para além da acção popular — a que se refere o nº 2 —, o regime específico aplicável à impugnação de actos administrativos (artigo 55º do CPTA), à condenação à prática de acto devido (artigo 68º), à impugnação de normas e condenação à emissão de normas (artigos 73º e 77º) e às acções sobre validade e execução de contratos (artigo 77º-A). O nº 2 do artigo 9º do CPTA concretiza um critério autónomo de legitimação no exercício da acção popular destinada à defesa de interesses difusos, a que se reporta o artigo 52º, nº 3, da CRP. A CRP configurou a acção popular como uma forma de legitimidade processual activa dos cidadãos, que poderá ser exercitada perante qualquer tribunal – individualmente ou por intermédio de associações representativas -, independentemente do interesse pessoal ou da existência de uma relação específica com os bens ou interesses difusos que estivessem em causa, tal como sintetizam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4ª ed. pág. 95. A acção popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa. O objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, ou seja, tem incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses. A Constituição garante a acção popular para prevenir, fazer cessar ou perseguir as infracções exemplificativamente elencadas no nº 3 do referido artigo 52º, para além de servir para requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização — veja-se Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra, 3ª ed. ver., pág. 279 e sgts. A expressão «nos termos da lei», ínsita no nº 2 do artigo 52º da CRP, remete para o atinente regime legal, actualmente, a Lei nº 83/95, de 31 de Agosto, com a rectificação nº 4/95, de 12 de Outubro, e alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 02 de Outubro, lei que regula, em termos gerais, o direito de participação procedimental e de acção popular, sem prejuízo de outros diplomas que contêm previsão específica sobre a matéria, e, nesta, para os artigos 2º e 3º. Verte o artigo 2º: «1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda. 2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.». Para além da individualização feita no artigo 1º, nº 2, desta Lei nº 83/95, note-se que o nº 2 do artigo 9º do CPTA adita uma referência ao urbanismo e ao ordenamento do território, matéria específica da área de contencioso administrativo. Importa, por fim, referir que a acção popular administrativa aplica-se a todas as espécies processuais que integram o contencioso administrativo e pode ser utilizada para a obtenção de qualquer das providências judiciárias legalmente admissíveis, tal como melhor resulta do disposto no artigo 12º, nº 1, da Lei n 83/95: «A acção popular administrativa pode revestir qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos". E, tal como explica Mário Aroso de Almeida et al, op. cit., pag. 96, «a ação popular não é, pois, um meio processual, mas uma forma de legitimidade que permite desencadear os diversos tipos de ações ou providências cautelares que se tornem necessárias à defesa dos interesses difusos» (nosso sublinhado). Aquela norma configura o direito de acção popular destinado à defesa de interesses difusos que, em termos similares, prevêem também os artigos 68º, nº 1, alínea f), 72º, nº 1, 77º, nº 1, e 77º-A, nº 1, alínea h), e nº 2, alínea d). Ora, para além do princípio geral em matéria de legitimidade activa e, precisamente, contido na ressalva ínsita no nº 1 do artigo 9º do CPTA, prevê o artigo 55º do CPTA a legitimidade activa para impugnar um acto administrativo. De entre os titulares desta legitimidade activa impugnatória, importa referir, por um lado, a constante da alínea f) do nº 1 do referido artigo 55º do CPTA — que refere “tem legitimidade para impugnar um acto administrativo pessoas e entidades mencionadas no nº 2 do artigo 9º”. Para o que releva à economia do presente aresto, importa o nº 2 do mencionado artigo 55º do CPTA, que reza: «A qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é permitido impugnar as decisões e deliberações adotadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontre recenseado, assim como das entidades instituídas por autarquias locais ou que destas dependam.». Prevê-se, pois, a acção popular correctiva exercitável por qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, para a impugnação das decisões e deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontre recenseado. Lê-se, e aqui se acolhe totalmente, em Mário Aroso de Almeida et al, op. cit. pág. 387-388: «Trata-se de um meio de fiscalização cívica da gestão das autarquias, que visa unicamente as situações ilegais praticadas sob a forma de ato administrativo, em vista à reposição da legalidade objetiva, e que, por isso, surge enquadrada como uma modalidade de legitimidade ativa típica da ação impugnatória [(468) Assim se justifica, como antes se assinalou, que não tenha sido feita referência à acção popular corretiva na disposição geral do artigo 9.º, ao contrário do que sucede com a acção popular destinada à defesa de interesses difusos, tida como uma forma de legitimidade de caráter heterogéneo] (…). A legitimidade radica apenas na qualidade de cidadão — e representa, por isso, a manifestação de um direito político —, e não na invocação de um interesse individual ou de um interesse difuso, pelo que a posição do ator popular acaba por ser análoga à do Ministério Público, quando intervém no exercício da ação pública, no sentido de que nada mais se lhe exige do que invocar um juízo de ilegalidade relativamente ao ato impugnado. Neste fator reside o principal traço distintivo em relação à ação popular dirigida à defesa de interesses difusos, a que se o artigo 9.º, n.º 2. Neste último caso, não basta a invocação de um direito político, é necessário invocar a lesão do interesse difuso que se pretende proteger.» (nossos sublinhados). Finalmente, porque estamos perante um processo destinado, na origem, à adopção de uma providência cautelar, importa ter presente o disposto no n° 1 do artigo 112° do CPTA: "Quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adopção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo". Ora, no caso presente, em face do disposto no nº 2 do artigo 55º do CPTA, importa saber se (i) estamos perante um processo impugnatório de acto administrativo, (ii) se esse acto consubstancia decisão ou deliberação (iii) adoptada por órgãos de autarquia local, ou entidades instituída por autarquia local ou que desta dependa, (iv) sediadas na circunscrição onde o autor se encontra recenseado e se (v) este (o autor) é um eleitor no gozo dos seus direitos civis e políticos. Vejamos em concreto. Já acima enunciamos os contornos da questão. Se bem que no requerimento inicial se faça assentar a legitimidade activa “nos termos do n.º 3 do art. 52º da Constituição da República e nos termos do art. 9º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e ainda nos termos dos art.º 2º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto”, certo é que em sede réplica à matéria da excepção, a Requerente veio também invocar: “…alega-se sob o art. 8.º do requerimento inicial que a autora é cidadã no gozo dos seus direitos civis e políticos residente no município de Braga. 23º - A esta luz, mesmo à margem do regime da Lei n.º 83/95, de 31/12, cujo art. 2.º se invoca no requerimento inicial, logo estaria assegurada a legitimidade processual ativa ao abrigo do disposto no art. 55.º/2 do CPTA”. O que vem reiterado em sede de alegação do presente recurso. Por força do disposto no nº 1 do artigo 112º do CPTA, importa incidir a actividade dirimente sobre a legitimidade para a atinente acção a propor ou já proposta. Em face do pedido e causa de pedir, aliás, bem explicitado na sentença sob recurso (embora ali com desfecho diverso, como veremos de seguida), não se oferece quaisquer dúvidas de que a Requerente invoca um juízo de ilegalidade relativamente ao ato administrativo impugnado ou a impugnar na acção principal e aqui suspendendo, adoptado por órgão de autarquia local em matéria de urbanismo. Resta saber se a Requerente se encontra recenseada na respectiva circunscrição — Município de Braga —, ou seja, se é um eleitor no gozo dos seus direitos civis e políticos. O atinente facto foi alegado no artigo 8º do requerimento inicial. Não se vislumbra que a tal facto as partes passivas se hajam oposto, como tal, em face do disposto no nº 2 do artigo 118º do CPTA, na falta de oposição sempre seria de presumir como verdadeiros os factos invocados pelo requerente. Todavia, no presente caso, o Mmº Juiz da causa, pelo despacho de 13-04-2017, diligenciou, desde logo, pela sua prova, ordenando a notificação da Requerente para provar nos autos que se encontrava em pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, o que esta cumpriu, juntando aos autos certidão de inscrição no recenseamento eleitoral da União das Freguesias de Nogueira, Fraião e Lamaçães do concelho de Braga, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, da qual consta que na União das Freguesias de Nogueira, Fraião e Lamaçães do concelho de Braga, com o código 0…7, inscrição nº 3…7, na data de 01-06-2013, se encontra inscrita LFRGFS, residente em Fraião, Braga. É, pois, indubitável que, nos termos do disposto no artigo 55º, nº 2, do CPTA, a Requerente tem legitimidade activa para impugnar o acto administrativo em causa e, por força do disposto no nº 1 do artigo 112º do mesmo diploma legal, pode, outrossim, solicitar a adopção de atinentes providências cautelares. Como tal, por violação dos apontados normativos, deve revogar-se a decisão sob recurso e, em substituição, concluir pela improcedência da excepção da ilegitimidade da Requerente. *** III.DECISÃOTermos em que os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte acordam em conceder provimento ao recurso, revogam a decisão recorrida e declaram improcedente a invocada excepção da ilegitimidade da Requerente. Custas pelas partes passivas (artigo 527º do CPC). Notifique e D.N.. Porto, 16 de Fevereiro de 2018 Ass. Hélder Vieira Ass. Fernanda Brandão Ass. Joaquim Cruzeiro |