Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01182/16.5BEPNF
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/11/2024
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:VIRGÍNIA ANDRADE
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
ERRO NA FORMA DE PROCESSO – PEDIDO
CERTIDÃO DE DÍVIDAS
Sumário:
I. O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido.

II. O pedido de suspensão dos actos praticados em sede de processo criminal tributário não é pedido consentâneo com a forma processual de impugnação judicial.

III. A emissão de certidão de dívidas por parte de um Serviço de Finanças não consubstancia um acto tributário em sentido restrito e/ou em sentido amplo, mas sim um acto procedimental.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte

1 – RELATÓRIO
[SCom01...], SA, vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada contra a certidão de dívidas emitida pelo Serviço de Finanças ... em nome da Recorrente, no montante de €441.415,75.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
1.A Recorrente, por se encontrar em Processo Especial de Revitalização (Proc. n.º...98/16.2T8VNG, na 2.... Secção de Comércio - ... - da Instância Central de V.N.G.), requereu, na interposição do presente recurso, a isenção de custas, ex vi art. 4.9, n.° 1, al. u) do RCP.
2. No despacho de admissão do recurso, indeferiu o tribunal a quo a requerida isenção, sendo que, tal decisão foi pela Recorrente impugnada - requerendo-se efeito suspensivo - nos termos dos artigos 285.°, n.°1 e 2 e 286.° do CPPT, mas ainda não foi proferida qualquer decisão, pelo que deve o presente recurso ser admitido sem qualquer pagamento prévio de taxa de justiça.
3.Reportam-se os presentes autos a ato administrativo através do qual a Recorrida imputa dívida fiscal no valor de €441.415,75 à Recorrente.
4.Esclarece a Recorrente que os valores referentes a IRS dos meses de Julho 4 Novembro de 2015 encontram-se pagos na integra, incluindo os respetivos juros e coimas, pelo que se requer seja tal factualidade relevada e considerada nestes autos, com as demais consequências legais. Sem prescindir,
5.Entendeu o douto tribunal indeferir liminarmente a petição inicial apresentada pela Recorrente, porquanto entende que não há nenhuma notificação de divida ou liquidação e que, tratando-se de uma certidão, não se poderá alegar falta de fundamentação, conclusões estas com as quais não pode a Recorrente concordar.
6. É fundamento de impugnação judicial a ilegalidade, nomeadamente, a ausência ou vício da fundamentação legalmente exigido do acto tributário (vide art. 99.º do CPPT), o que a Recorrente alegou em sede de impugnação.
7.A certidão impugnada pela Recorrente dá conhecimento ao contribuinte da sua situação contributiva, motivo pelo qual se terá que aplicar os normativos legais referentes às notificações e citações.
8.O acto impugnado reporta-se a um acto próprio da Recorrida e por si emitido, pelo que o seu destinatário - o contribuinte, in casu a Recorrente - tem o direito constitucional e legal de o impugnar (vide art. 99.º, n.º2 da LGT).
9.Face ao exposto, mal andou o tribunal ao concluir que a certidão notificada à Recorrente não é susceptível de impugnação.
10. A certidão de que foi notificada a Recorrente revela-se manifestamente ininteligível, impercetível e inaceitável, porquanto não alcança a Impugnante a factualidade que originou os valores peticionados e, bem assim, os cálculos e métodos utilizados para o apuramento dos mesmos.
11. Atento o disposto nos artigos 268.º, n.º3 da CRP, 125.° e 214.° do CPA, as notificações têm que conter fundamentação expressa e acessível, sendo, desse modo, fundamentados os atos administrativos.
12.Esclarece ainda o art. 77.º da LGT que toda a fundamentação deve conter a decisão do procedimento, nomeadamente, qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria coléctável e de tributo.
13. A notificação impugnada nos presentes autos carece manifestamente de fundamentação nos termos supra, pelo que impede a Recorrente de conhecer e compreender os tributos peticionados, motivo pelo qual não pode conformar-se com a liquidação efetuada pela Recorrida nestes autos.
14.Face ao exposto, resulta claro que foram vários os normativos legais violados pela Recorrida, v.g, os artigos 120.° e 113.º do CPA, resultando, de igual modo, a manifesta inexistência da fundamentação da notificação emitida pela Recorrida, o que consubstancia um vício intrínseco passível de gerar a anulabilidade do mesmo, sendo certo que, a fundamentação é um requisito intrínseco do acto administrativo e, enquanto elemento essencial do mesmo, a consequência da insuficiência ou falta daquele, só pode ser a anulabilidade deste.
15. Entendeu ainda o douto tribunal que a alegada existência de créditos da Recorrente sobre a Recorrida não contende a ilegalidade da liquidação das dívidas, mais entendendo que tal facto não fundamenta a ilegalidade da liquidação.
16. Não concorda a Recorrente com o entendimento preconizado pelo tribunal a quo, porquanto, não estando tais créditos apurados e contabilizados pela Recorrida, e podendo ser estes compensados na alegada divida, só podemos concluir que os valores peticionados pela Recorrida não se coadunam com a realidade dos factos, o que implica, assim, a ilegalidade da referida liquidação.
17. Atento tudo quanto foi exposto, mal andou o tribunal a quo ao indeferir liminarmente a impugnação judicial, motivo pelo qual deve tal decisão ser revogada e substituída por outra que defira a petição inicial apresentada pela Recorrente, julgando-se, a final, a procedência da mesma.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO APLICÁVEIS IMPÕE-SE A REVOGAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA E A SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE DETERMINE O DEFERIMENTO DA IMPUGNAÇÃO JUDICIAL APRESENTADA PELA RECORRENTE, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA”

Não houve contra-alegações.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos ao abrigo do disposto no artigo 657.º n.º 4 do Código de Processo Civil, submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.

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Objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta do artigo 608.º n.º 2, artigo 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir do erro de julgamento do Tribunal a quo ao decidir pelo indeferimento liminar, assim como da manifesta inexistência de fundamentação da notificação emitida pela Recorrida.

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2 - Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
Considerando que vem recorrida a decisão judicial de indeferimento liminar, o Juiz do Tribunal a quo não fixou qualquer matéria de facto, não se afigurando necessário elencar nesta sede quaisquer factos.
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2.2 – O direito
Constitui objecto do presente recurso a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada contra a certidão de dívidas emitida pelo Serviço de Finanças ... em nome da aqui Recorrente.

2.2.1. O erro de julgamento quanto ao indeferimento liminar

O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel indeferiu liminarmente a petição inicial por ter considerado que a petição inicial não invoca qualquer facto ou causa de pedir que integre qualquer ilegalidade das dívidas tributárias constantes da certidão de dívidas, nem o pedido formulado é próprio do processo de impugnação judicial, decidindo a final pela sua manifesta improcedência.
A Recorrente, discorda do assim decidido, sustentando, no essencial, que é fundamento de impugnação judicial a ilegalidade, nomeadamente, a ausência ou vício da fundamentação legalmente exigida do acto tributário.
Ademais, sustenta que a certidão impugnada dá conhecimento ao contribuinte da sua situação contributiva, motivo pelo qual se terá que aplicar os normativos legais referentes às notificações e citações, tendo o direito constitucional e legal de o impugnar.
Por último, também sustenta que a alegada existência de créditos da Recorrente sobre a Recorrida implica com a ilegalidade da liquidação.
Vejamos.
Tendo os interessados o direito de impugnarem ou reclamarem, de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente tutelados, estes encontram-se, porém, dependentes da utilização das formas de processo previstas na lei.
Com efeito, sendo certo que a todo o direito de impugnar corresponde o meio processual mais adequado de o fazer valer em juízo, nos termos dos artigos 95.º e 97.º n.º 2º da Lei Geral Tributária, recai sobre os interessados o ónus de delimitar o meio processual de que pretendam lançar mão com vista à tutela judicial à sua pretensão, de acordo com a factualidade em que a faça assentar.
O erro na forma de processo, previsto no artigo 193.º do CPC, traduz-se no uso, por parte do autor, de forma processual inadequada para fazer valer a pretensão apresentada a juízo, constituindo nulidade, de conhecimento oficioso nos termos do disposto no artigo 196.º do CPC.
Afere-se o acerto ou o erro na forma de processo através do pedido formulado, procurando-se no articulado inicial os elementos que permitam avaliar da adequação do meio processual utilizado ao efeito pretendido, consagrando-se assim o princípio da adequação formal (cfr. artigo 547.º do CPC) - cfr. Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra Editora, 3.ª edição – reimpressão, págs. 288/289 e no mesmo sentido, Rodrigues Bastos (in Notas ao Código de Processo Civil, volume I, 3.ª edição, 1999, pág. 262).
Nesta medida, tem sido entendimento doutrinal e jurisprudencial que a ocorrência de tal erro deve aferir-se pelo pedido formulado na acção. Neste sentido vide Acórdão do STA de 18.01.2017, proc. n.º 01223/16.
Com efeito, e face a essa correspondência entre direito e a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, haverá apenas um determinado meio processual que, em cada caso, pode ser utilizado para obter a tutela judicial.
Na verdade, o direito à tutela jurisdicional efectiva, garantido como direito fundamental nos artigos 20.º e 268.º nºs 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa não só garante um meio que permite o acesso à justiça administrativa como também pressupõe uma “pretensão regularmente deduzida em juízo”, ou seja, que a lei discipline a forma pela qual se processa esse acesso.
Nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 97.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o processo judicial tributário compreende “A impugnação dos actos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação”, decorrendo do artigo 99.º do CPPT os fundamentos que subjazem à impugnação judicial, designadamente a errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários, incompetência, ausência ou vício da fundamentação legalmente exigida e a preterição de outras formalidades legais.
A impugnação judicial revela-se assim o meio próprio para obter a anulação de actos praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, ou a declaração da sua nulidade ou inexistência, quando esteja em causa uma liquidação. Neste sentido vide Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª Edição, 2011, Anotado e Comentado, Áreas Editora, pag. 107).
No caso dos autos e na sequência de certidão de dívidas emitida pelo Serviço de Finanças ... a Recorrente intentou impugnação judicial invocando a falta de fundamentação da notificação e ainda a existência de créditos sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira em sede de IVA.
A final, a Recorrente peticionou a suspensão de todos os actos, nomeadamente no âmbito dos processos criminais tributários.
Ora, como bem decidiu o Juiz a quo, nem estamos perante causa de pedir que seja fundamento de impugnação judicial nem perante pedido do meio processual apresentado.
Isto porque, a certidão de dívidas impugnada não constitui um acto tributário, a existência de créditos sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira não contende com a legalidade de uma qualquer liquidação, nem o pedido é consentâneo com o meio processual utilizado.
Senão vejamos.
“O acto tributário nasce para interligar conceptualmente a obrigação tributária abstracta e a obrigação tributária subjacente à situação jurídica concreta. Ou seja, à verificação do facto tributável - momento em que assistimos ao nascimento da obrigação de imposto - segue-se um procedimento ou sequência de actos que, pela aplicação das normas tributárias substantivas, conduzem a obrigação de imposto da abstracção à situação concreta de prestação devida. Que termina, então, com a emissão de um acto tributário — o acto de liquidação do imposto.” Assim, seguindo o enquadramento proposto por CASALTA NABAIS, podemos encontrar no acto tributário um sentido amplo e um sentido restrito ():
— os actos tributários em sentido estrito: actos de liquidação dos tributos;
— os actos em matéria tributária, que se subdividem nos actos em matéria tributária em sentido estrito (actos preparatórios) e os actos administrativos relativos a questões tributárias, aproveitando a estes diferentes tipos consequências distintas em termos de contencioso tributário, e integrando os últimos o conceito de acto administrativo plasmado no art. 120.° do Código do Procedimento Administrativo (CPA).”. (…) A importância do acto de liquidação no domínio do Direito tributário é tal que o legislador, a doutrina e a jurisprudência lhe reservam uma especial denominação: acto tributário, embora agora num sentido técnico e mais preciso. Por conseguinte, o acto tributário em sentido restrito é o acto de determinação concreta da dívida tributária. (ii) Todos os outros actos, que se integram na noção ampla de acto tributário acima dada mas não são actos de liquidação são os actos administrativos em matéria tributária (ou, para utilizar, por exemplo, a linguagem do ETAF (21), o acto administrativo “respeitante a questões fiscais”), e abrangerão nomeadamente os actos de prestação de informações vinculativas (22), de avaliação prévia (23), de reconhecimento de benefícios fiscais (24), de indeferimento do pedido de pagamento da dívida tributária em prestações (25), de inspecção tributária (26), etc”. (Joaquim Freitas da Rocha, in Lições de Procedimento e Processo Tributário, 3ª edição, Coimbra Editora, 2009, pag. 25-27).” – cfr. Acórdão do STA de 3.07.2013, proc. n.º 0120/11.
Nesta medida, a emissão de certidão de dívidas por parte de um Serviço de Finanças não consubstancia um acto tributário em sentido restrito e/ou em sentido amplo, mas sim um acto procedimental sujeito às regras previstas nos artigos 20.º e seguintes do CPPT e como tal não enquadrável nos fundamentos da impugnação judicial que decorrem do disposto no artigo 99.º do CPPT.
No que respeita à existência de créditos da Recorrente sobre a Recorrida, estes não contendem com a legalidade de uma qualquer liquidação, por se situarem a jusante da mesma, mas sim com a cobrança dos créditos tributários, podendo influenciar a execução fiscal por via da compensação por iniciativa da Autoridade Tributária e Aduaneira ou por iniciativa do contribuinte ao abrigo do disposto nos artigos 89.º e 90.º, ambos do CPPT, não sendo assim também fundamento de impugnação judicial.
Acresce que, apesar da Recorrente alegar estar a reagir contra a notificação da certidão de dívidas, pede a suspensão de todos os actos praticados em sede dos processos criminais tributários e não a anulação de qualquer acto de liquidação passível de impugnação nos termos supra referidos.
Por conseguinte, e mesmo que fosse de considerar que a causa de pedir é fundamento de impugnação judicial, o que não se concede, tal como decidido na sentença recorrida, o pedido não é consentâneo com o meio processual utilizado, pois não encerra em si qualquer pedido de anulação de liquidação, mas a suspensão de processo criminal tributário.
Nesta senda, impõe-se concluir que a sentença recorrida não enferma do erro de julgamento que lhe vem assacado, concluindo-se que bem decidiu o Juiz a quo ao indeferir liminarmente a petição inicial, sendo assim de negar provimento ao recurso.
Quanto à falta de fundamentação da notificação impugnada, não tendo a mesma sido apreciada em sede da sentença recorrida e mantendo-se o indeferimento liminar recorrido, não será a mesma nesta sede apreciada por se quedar prejudicada.
Em conclusão:

I. O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido.
II. O pedido de suspensão dos actos praticados em sede de processo criminal tributário não é pedido consentâneo com a forma processual de impugnação judicial.
III. A emissão de certidão de dívidas por parte de um Serviço de Finanças não consubstancia um acto tributário em sentido restrito e/ou em sentido amplo, mas sim um acto procedimental.

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3 – Decisão

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.


Custas pela Recorrida.
Porto, 11 de Abril de 2024


Virgínia Andrade
Maria Celeste Oliveira
Rui Esteves