Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01655/14.4BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/11/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:PAULO MOURA
Descritores:FUNDAMENTAÇÃO DO ATO TRIBUTÁRIO;
Sumário:
O ato tributário encontra-se fundamentado, se o seu destinatário colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto ato, fica em condições de conhecer o itinerário funcional cognoscitivo e valorativo do autor do ato.
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

«[SCom01...], SA», interpõe recurso da sentença que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IVA do período de 12/01 no montante de € 3.073,39 e liquidação de juros de mora no valor de € 103,84.

Formula nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem:
I – Como resulta da matéria de facto dada como provada, a recorrente quando procedeu à entrega da Declaração Periódica do IVA, em 09/03/2012, desconhecia em absoluto, quais as correcções e seus montantes, a efectuar pela A.T. considerando que o relatório do Procedimento Inspectivo, a que foi sujeita, foi elaborado, relevantemente, em 27/06/2012.
II – Compete à A.T. o dever de fundamentar de forma expressa, clara, suficiente e congruente as decisões que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos, in casu, as razões da liquidação adicional de IVA do período de 12.01, o que manifestamente não sucedeu.
III – Quer da Demonstração de acerto de contas, quer da demonstração da liquidação de IVA do referido período, não resulta qualquer fundamentação para a alteração efectuada aos valores indicados pela recorrente, na declaração periódica em 09/03/2012.
IV – Isto posto, a falta de fundamentação por parte da A.T., não permite esclarecer um destinatário, segundo a avaliação do padrão de um homem médio, sobre os motivos que estão na origem da exclusão do valor de 13.211,98€ do campo 61 da referida Declaração, designadamente que tinha deixado de existir, por ter sido utilizado para compensação dos valores corrigidos no procedimento inspectivo efectuado nos períodos de 2009, 2010 e 2011, o que não aconteceu.
V- Resulta pois, inequivocamente, que a inobservância de tais exigências de fundamentação por parte da A.T., em violação do disposto no artigo 268º nº 3 da CRP, impõe a anulação da liquidação adicional de IVA e respectivos juros.

Termos em que, nos melhores de Direito e sempre com o douto suprimento de V. Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a douta sentença recorrida, declarando-se a anulação da liquidação adicional de IVA e respectivos juros, como acto da mais elementar JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

Foram dispensados os vistos legais, nos termos do n.º 4 do artigo 657.º do Código de Processo Civil, com a concordância das Exmos. Desembargadores Adjuntos, atenta a disponibilidade do processo na plataforma SITAF (Sistema de Informação dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

**
Delimitação do Objeto do Recurso – Questões a Decidir.

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respetivas conclusões [vide artigos 635.º, n.º 4 e 639.º CPC, ex vi alínea e) do artigo 2.º, e artigo 281.º do CPPT] são as de saber se se a liquidação adicional de IVA se encontra fundamentada.

**

Relativamente à matéria de facto, o tribunal, deu por assente o seguinte:
IV – Matéria de facto
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, consideram-se provados os seguintes factos:
1) No cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2011....18, os Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças ... desencadearam procedimento inspectivo à sociedade [SCom01...], SA de âmbito geral ao ano de 2009 e de âmbito parcial aos anos de 2010 e 2011 em sede de IVA - cfr. fls. 48 a 75 do processo de reclamação graciosa (RG) junto aos autos.
2) No âmbito do procedimento inspectivo descrito em 1., foi apurado imposto em falta em sede de IVA ao ano de 2009 no montante de €31.656,39, no ano de 2010 no montante de €78.352,63 e no ano de 2011 no montante de e €445.265,12 – cfr. fls. 49 do processo de RG junto aos autos.
3) Em 27.06.2012 foi elaborado pelos Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças ... relatório do procedimento inspectivo a que se alude em 1) - cfr. fls. 48 a 75 do processo de RG junto aos autos.
4) Em 9.03.2012 foi remetido – via Internet – a declaração periódica de IVA do período de 1201 da sociedade [SCom01...], SA, tendo sido declarado no campo 61 (excesso a reportar do período anterior) o montante de €13.211,98 – cfr. fls. 13 do processo de RG junto aos autos.
5) Na decorrência do procedimento inspectivo a que se alude em 1) foi emitida a liquidação de IVA n.º 2012 ........083 do período de 1112T no montante de €81.025,55 – cfr. fls. 118 e 119 do SITAF.
6) Em 4.09.2012 foi emitida a demonstração de acerto de contas n.º 2012 .........426, respeitante ao acerto da liquidação n.º 2012 ...........468, que resultou no montante a pagar de €3.073,39 e liquidação de juros de mora n.º 2012 ...........696 no montante de €103,84 - cfr. fls. 11 e 12 do processo de RG junto aos autos.
7) Das liquidações a que se alude em 6) foi deduzida reclamação graciosa – cfr. fls. 24 a 27 do processo de RG junto aos presentes autos.
8) Do indeferimento da reclamação graciosa foi deduzido recurso hierárquico – cfr. fls. 4 a 12 do processo de recurso hierárquico (RH) junto aos autos.
9) Por despacho de 31.01.2014 foi indeferido o recurso hierárquico a que se alude em 8) – cfr. fls. 45 do processo de RH junto aos autos.
10) Da liquidação a que se alude em 6), a sociedade [SCom01...], SA deduziu impugnação judicial que correu termos no TAF do Porto sob o n.º 3000/14.0BEPRT – cfr. fls. 118 e 119 do SITAF.
11) Em 23.12.2009 foi proferida no processo de impugnação judicial a que se alude em 10) decisão de improcedência total, transitada em julgado em 3.02.2020 – cfr. fls. 118 e 119 do SITAF.

**
Factos não provados
Não se mostram provados outros factos, além dos supra referidos.
**
Motivação da decisão de facto
O Tribunal considerou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, do PA junto, que não foram impugnados, assim como, na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados [cfr. artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT)], também são corroborados pelos documentos juntos, conforme predispõe o artigo 76º n.º 1 da LGT e artigo 362º e seguintes do Código Civil, conforme decorre da enunciação de cada um dos pontos da factualidade assente.

**
Apreciação jurídica do recurso.

O único fundamento do recurso é a alegada falta de fundamentação do ato de liquidação adicional de IVA em apreço, referindo a Recorrente que, quer da Demonstração de acerto de contas, quer da demonstração da liquidação de IVA do referido período, não resulta qualquer fundamentação para a alteração efetuada aos valores indicados pela Impugnante, na declaração periódica em 09/03/2012.
A sentença recorrida julgou improcedente a alegada falta de fundamentação, com os seguintes argumentos.
«Ora, como resulta coligido no acervo probatório, ponto 1), os Serviços da Inspecção Tributária (SIT) efectuaram procedimento inspectivo à Impugnante de âmbito geral ao ano de 2009 e de âmbito parcial aos anos de 2010 e 2011 em sede de IVA, aí tendo sido apurado imposto em falta em sede de IVA ao ano de 2009 no montante de €31.656,39, no ano de 2010 no montante de €78.352,63 e no ano de 2011 no montante de e €445.265,12 – cfr. pontos 1) a 3) da factualidade assente.
Em 9.03.2012 foi remetido pela Impugnante, via Internet, a declaração periódica de IVA do período de 1201, tendo sido declarado no campo 61 (excesso a reportar do período anterior) o montante de €13.211,98 – cfr. ponto 4) da factualidade assente.
Ora, é consabido que o apuramento de imposto em falta de IVA influenciará os períodos subsequentes, sendo de anular os montantes que tenham sido reportados por excesso aos períodos seguintes.
Nesta senda, a Impugnante não pode afirmar que desconhecia as razões de facto e de direito que redundaram na liquidação ora impugnada.
No sentido do considerado, veio a Impugnante sustentar a existência de questão prejudicial dos presentes autos relativamente à decisão que viria a recair sobre reclamação graciosa intentada contra a liquidação do período de 1112T.
Com efeito, da reclamação graciosa intentada contra aquela liquidação foi deduzida impugnação judicial que correu termos no TAF do Porto sob o n.º 3000/14.0BEPRT, sob que recaiu decisão de improcedência total em 23.12.2009, transitada em julgado em 3.02.2020 (cfr. pontos 10) e 11) da factualidade assente)
Nessa senda, os presentes autos foram suspensos até que fosse proferida decisão naquela impugnação judicial.
Assim, não poderá considerar-se que a Impugnante desconhece qual a motivação factual e de direito da liquidação impugnada, sendo claro que os fundamentos que lhe serviram de base decorrem do imposto apurado em falta no procedimento inspectivo aos períodos de 2010 e 2011, como já supra fizemos referência.
Nessa medida, também não procede o vício formal de falta de fundamentação alegado.».
Apreciando.
Sobre a fundamentação dos atos, tem sido entendimento constante da jurisprudência e da doutrina que determinado ato (no caso ato administrativo-tributário) se encontra devidamente fundamentado sempre que é possível, através do mesmo, descobrir qual o percurso cognitivo utilizado pelo seu autor para chegar à decisão final (cfr. ac. S.T.J. 26/4/95, C.J.-S.T.J., 1995, II, pág.57 e seg.; A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª. edição, 1985, pág.687 e seg.; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1984, V, pág.139 e seg.). Quer dizer. Utilizando a linguagem de diversos acórdãos do S.T.A. (cfr. por todos, ac. S.T.A-1ª.Secção, 6/2/90, A.D., nº.351, pág.339 e seg.) o ato administrativo só está fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto ato (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do ato.
Conforme se pode ver pelo teor das conclusões de recurso acima transcritas, a Recorrente não logra sindicar devidamente a sentença no segmento em que esta considerou que o ato impugnado se encontrava fundamentado.
Ou seja, a sentença apresentou a sua justificação para a elaboração da liquidação adicional de IVA impugnada, não rebatendo a Recorrente essa justificação dada na sentença, conforme devia, uma vez que os recursos servem para alterar a decisão recorrida e não para reafirmar o alegado na petição inicial ou na contestação.
Isto porque, O recurso visa a reponderação do que ficou decidido na sentença, pelo que compete ao recorrente explicar em que segmento da sentença é necessária essa reponderação, devendo apresentar a sua motivação contra o que ficou fundamentado na sentença e não limitar-se a repetir a validade do ato impugnado
Acerca da necessidade de o recurso ter de necessariamente indicar quais os vícios da Sentença, cita-se o Conselheiro António Abrantes Geraldes, que no seu livro, Recursos em Processo Civil (6.ª ed. julho de 2020, Almedina), a págs. 184/185, escreve o seguinte:
«A lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial.
Rigorosamente, as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais se possam confundir com os argumentos de ordem jurisprudencial ou doutrinário que não devem ultrapassar o sector da motivação.
As conclusões exercem ainda a importante função de
delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 635.º, n.º 3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende do tribunal superior, em contraposição com o que foi decidido pelo tribunal a quo. Incluindo, na parte final, o resultado procurado, as conclusões devem respeitar, na sua essência, cada alínea do n.º 2, integrando-se as respostas a tais premissas essenciais no encadeamento lógico da decisão pretendida. Se para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspetiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir um resultado diverso.».

No mesmo sentido,
Código de Processo Civil anotado, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2020, de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, anotação ao artigo 639.º, pág. 794.

Veja-se, ainda, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 14/01/2015, no processo n.º 0973/13 (em www.dgsi.pt), cujo sumário se transcreve:
I – O recurso jurisdicional tem como objecto a sentença recorrida e destina-se a anulá-la ou alterá-la com fundamento em vício de forma (nulidade) ou de fundo (erro de julgamento) que o recorrente entenda afectá-la.
II – Se a sentença julgou improcedente a pretensão do impugnante com mais do que um fundamento, o recurso só terá utilidade (virtualidade de se repercutir na decisão recorrida) se atacar todos esses fundamentos, sendo que se o não fizer relativamente a um deles, sempre a decisão se manterá incólume com base neste (relativamente ao qual se verificou o trânsito em julgado).
III – Nesta circunstância, em que o efeito jurídico pretendido com o recurso não é juridicamente possível, o tribunal ad quem não deve tomar conhecimento do recurso, porque aos tribunais está vedada a prática de actos inúteis (cfr. art. 130.º do CPC).
Em todo o caso, com alguma boa vontade, sempre se poderá entender que, a Recorrente ao reafirmar que o ato não se encontra fundamentado, ainda poderá estar a sindicar a sentença que o considerou fundamentado, na medida em que no ponto 6 da alegação, refere que não se conforma com a decisão recorrida, sendo que, sempre termina as suas conclusões pedindo a revogação da sentença e a única questão a apreciar é a invocada falta de fundamentação do ato tributário impugnado.
Desta forma, sempre se diga, que a Recorrente tem a obrigação de saber que as declarações periódicas de IVA são entregas da sua responsabilidade e que o reporte do imposto tem a ligação aos períodos anteriores.
A alegação de que no momento da entrega da declaração de IVA (09/03/2012) ainda não havia Relatório de Inspeção (que foi elaborado em 27/06/2012), não é válida para efeitos de fundamentação do ato, na medida em que o ato impugnado é de 04/09/2012. Portanto, nesta última data, já a Recorrente sabia que não tinha crédito de imposto do período anterior, pelo que não o podia reportar para o período seguinte. Por isso, também tinha de saber que a liquidação adicional respeitante a janeiro de 2012, tinha correspondência com o período imediatamente anterior, segundo o qual a Recorrente tinha imposto em falta de elevado montante (€ 445.265,12). Por isso, não podia ter crédito de IVA no período imediatamente seguinte; ou melhor, não podia ter excesso a reportar do período anterior, na medida em que efetivamente não tinha nenhum excesso de IVA, mas antes imposto em falta. Daí a emissão da liquidação em apreço.
Tendo em conta a concreta situação do ato impugnado, a Impugnante não podia deixar de saber os fundamentos com que o mesmo foi praticado.
Em face do exposto, conclui-se que o recurso não merece provimento.
*
No concerne a custas, atenta a improcedência total do recurso, é a Recorrente a responsável pelas custas do recurso – vide artigo 527.º, nos. 1 e 2 do e 529.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
**
Nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário:
O ato tributário encontra-se fundamentado, se o seu destinatário colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto ato, fica em condições de conhecer o itinerário funcional cognoscitivo e valorativo do autor do ato.
*
*
Decisão
Termos em que, acordam em conferência, os juízes da Subsecção Tributária Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
*
*
Custas a cargo da Recorrente.
*
*
Porto, 11 de abril de 2024.

Paulo Moura
Serafim José da Silva Fernandes Carneiro
Carlos de Castro Fernandes