Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02027/12.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/30/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:HOSPITAL PÚBLICO; RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL; REALIZAÇÃO DE TAC; ATIVIDADE PERIGOSA
Sumário:I-A sindicância, em bloco, da matéria julgada provada e não provada pelo tribunal a quo, com a menção, em bloco, dos meios de prova em relação a toda a matéria impugnada, não cumpre o ónus impugnatório previsto na al. b) do n.º 1 do art. 640º do CPC, consubstanciando uma impugnação genérica do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância.

II- Os hospitais públicos, sejam os que estão enquadrados no setor público administrativo, como os que apenas fazem parte do setor empresarial do Estado e as Parcerias Público-Privadas, atuam no exercício de prerrogativas de poder público e/ou exercem atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, pelo que os atos médicos neles praticados correspondem ao exercício da função administrativa.

III- A responsabilidade civil decorrente da prática de atos médicos em estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde, tem natureza extracontratual ou aquiliana.
IV-A atividade médico-cirúrgica não pode ser tida como uma atividade excecionalmente perigosa, sequer perigosa, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados e, por isso, não se encontra abrangida, em princípio, pela previsão do art.º 493.º, n.º 2 do Cód. Civil, nem pelo art.º 11.º da Lei 67/2007.

IV- Nas ações que corram termos nos tribunais administrativos destinadas a obter a condenação dos estabelecimentos hospitalares que integrem o SNS com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, de acordo com o regime-regra, é sobre o utente do SNS que impende o ónus de alegar e demonstrar a ilicitude da atuação, provando a infração de regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e a culpa dos profissionais de saúde, aferida pelo critério da diligência e aptidão razoavelmente exigíveis a um funcionário ou agente zeloso e cumpridor, bem como o nexo de causalidade adequada entre os atos médicos praticados ou omitidos e os danos sofridos.
V-A realização de uma TAC em hospital do SNS, da qual resultou o extravasamento do líquido de contraste no membro superior esquerdo da paciente, causando-lhe lesões graves, não constitui o hospital no dever de ressarcir a paciente pelos danos sofridos, antes a prova de que o extravasamento do contraste é um risco inerente ao processo de realização da TAC, que ocorre com alguma frequência, e independentemente de qualquer fator humano e que os profissionais de saúde da Ré usaram de toda a diligência devida na execução da TAC com contraste, cumprindo todos os tramites e procedimentos impostos pelas leges artis
Recorrente:UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DE (...), E.P.E,
Recorrido 1:I.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I.RELATÓRIO

1. I., residente no Bairro (…), intentou a presente ação administrativa comum, com processo na forma ordinária contra a UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DE (...), E.P.E, pedindo a condenação da Ré no pagamento de “uma indemnização pelos prejuízos e danos físicos e morais .... de montante global não inferior a 100.0000,00€ (cem mil euros), acrescido das custas e procuradoria condigna a seu cargo”, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual decorrente de erro médico.
Para tanto, alegou, em síntese, que tem oitenta anos e que no passado dia 03 de março de 2011, na sequência de dores de barriga e mal-estar intestinal, que lhe provocou inchaço abdominal e diarreia, dirigiu-se às urgências do Hospital (...), entre as 13h00 e as 14h00, tendo sido enviada, pelas 20h00 para a parte de imagiologia para ser submetida a tomografia axial computorizada (TAC);
Mal a enfermeira estava a introduzir o contraste, sentiu dor aguda mas aquela não cessou a punção nem a profusão do líquido no seu braço esquerdo, tendo de imediato a sua mão começado a inchar, o que logo foi dito à enfermeira, mas desvalorizado pela mesma;
A zona de introdução do cateter foi ligada com ligadura médica cobrindo todo o pulso e parte da mão esquerda, tendo recolhido à enfermaria, sentindo um enorme formigueiro, calor, inchaço e dor por todo o braço esquerdo o que referiu constantemente aos enfermeiros;
No início da madrugada do dia 04, chamou de urgência um enfermeiro e retiradas as ligaduras, verificou-se que estava a sofrer uma grave queimadura química devido ao extravasamento do contraste;
Foi enviada para o Hospital de (...), onde desabafaram que tinha a mão de um monstro, tendo-a reencaminhado para o HPH com indicações precisas e concretas do tipo de cirurgia a realizar;
No HPH foi sujeita a sete cirurgias, com o propósito de lhe salvar o braço esquerdo da amputação;
Ficou sem força no braço, tem dores permanentes e perdeu quase toda a autonomia que tinha;
As lesões sofridas decorreram da atuação dos profissionais de saúde ao serviço do Hospital Réu, decorrente do derramamento do líquido de contraste na mão esquerda que lhe causou queimaduras graves, bem como da atuação subsequente do pessoal médico e de enfermagem que desvalorizaram as dores e mal-estar de que estava a padecer, e que levaram a que tivesse que ser submetida a diversas cirurgias.
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1.2. Citado, o Réu contestou, defendendo-se por impugnação, invocando, em suma, que todos os procedimentos e regras de arte foram integralmente cumpridos — não foram violadas as leges artis;
Na verdade, a A. foi devidamente informada dos riscos inerentes à realização do exame, nomeadamente do risco de extravasamento do produto, risco esse que ocorre com alguma frequência e que a mesma prestou “consentimento informado” para a realização do exame;
Os profissionais de saúde assistiram a Autora de imediato, tendo esta sido internada para cuidados no braço esquerdo e estudo etiológico do quadro clínico, incluindo os resultados da TAC;
Os danos reclamados pela Autora não foram provocados por qualquer ato ou omissão dos profissionais de saúde da R., os quais atuaram em conformidade com as leges artis aplicáveis ao caso em apreço;
Assim, não é responsável pelo pagamento de qualquer indemnização à Autora.
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1.3. Proferiu-se despacho saneador, no qual se fixou os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.

1.4. Realizou-se a audiência de julgamento com observância do legal formalismo, após o que se respondeu à matéria de facto controvertida, nos termos que constam de fls. 289 e ss. ( processo físico).
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1.5. Cumprido o disposto no art.º 657º do CPC, não foram apresentadas alegações de direito.
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1.6. Em 05 de dezembro de 2013, o TAF do Porto proferiu sentença, constando da mesma o seguinte segmento dispositivo:
«Em face do exposto julgo a presente ação parcialmente procedente e, consequentemente, condeno o Hospital Réu, a pagar à A. Indemnização por danos não patrimoniais no montante de €15.000,00, acrescido de juros desde a notificação desta sentença.
Custas pelo Hospital Réu, na proporção do decaimento, dado que a A. beneficia de apoio judiciário.»
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1.7. Inconformado com a sentença proferida pelo TAF que julgou a ação parcialmente procedente, o Réu interpôs recurso jurisdicional, formulando as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso da douta sentença de fls..., que julgou a presente acção parcialmente procedente, por provada, condenando em consequência a Ré, ora Recorrente a pagar à Autora um indemnização por danos não patrimoniais, no montante de 15.000 €, acrescido de juros contados desde a notificação da sentença. Salvo o devido respeito, discordamos em absoluto da decisão proferida.
2. Em termos sumários, as questões que se colocavam nos presentes autos eram, resumidamente, três:
a) Saber se foi prestado consentimento informado, livre e esclarecido, para a execução da TAC;
b) Saber se a TAC foi executada em conformidade com as leges artis;
c) Saber se a Autora sofreu danos, patrimoniais ou não patrimoniais, na sequência dos factos ocorridos
3. O domínio em apreço é, assim, o da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos. Deste modo, incumbia à Autora alegar e provar os requisitos do instituto da responsabilidade civil extracontratual: facto ilícito e culposo imputável aos profissionais da Ré e a existência de danos ocorridos como consequência directa e necessária daquela actuação ilícita
4. Realizada a audiência de julgamento, produzida e analisada a prova nos autos, o Tribunal Recorrido deu como provados os factos constantes do ponto III da sentença ora em apreço, considerando como não provados os factos descritos nesse mesmo ponto III.
5. E produzida prova documental e testemunhal, entendeu o Tribunal considerar a presente acção parcialmente procedente - não podemos concordar com tal decisão, a qual - aliás - viola a Lei.
6. No que respeita à apreciação da conduta dos profissionais de saúde da Ré na execução da TAC e procedimentos levados a cabo após a constatação da ocorrência de extravasamento de contraste, face à prova produzida, bem como, aos factos que o Tribunal considerou como provados, não se vislumbra em lado algum que os ditos profissionais tenham actuado de forma ilícita, nem culposa (seja com dolo ou negligência).
7. Sobre esta matéria, não ficou provado, pois, que quer na execução da TAC, quer nos posteriores cuidados de saúde prestados à Autora, os médicos, técnicos ou os enfermeiros da Ré tenham violado as leis da arte: o exame foi bem executado e o extravasamento do contraste não ocorreu por qualquer falha, omissão ou falta de cuidado dos ditos profissionais, os quais, uma vez verificado o evento, fizeram tudo o que estava ao seu alcance e que lhes era imposto, para tentar debelar a lesão e minorar os efeitos danosos daquele episódio.
8. Tal como resultou dos factos provados e da prova produzida em sede de audiência de julgamento, o extravasamento do contraste na execução da TAC constitui um risco inerente ao próprio exame, e que pode ocorrer, mesmo quando os profissionais que o executam e que acompanham a paciente, tenham observado todas as regras da boa execução do mesmo.
9. Mais resulta dos ditos factos tido como provados e da prova efectivamente produzida em sede de audiência de julgamento, que após terem constatado o extravasamento do líquido, os profissionais de saúde da Ré executaram todas as acções que, segundo as leges artis, são as indicadas para situações de extravasamento de contraste e lesões provocadas por um evento deste género - fizeram tudo o que estava ao seu alcance e de acordo com as melhores práticas médicas para tentar debelar o problema e as lesões resultantes.
10. Não consta dos factos tido como provados, que nesta matéria os profissionais da ré tenham violado - por acção ou por omissão - as regras da arte, quer na execução da TAC, quer na prestação de cuidados de saúde à Autora, antes e após o extravasamento do contraste.
11. Se atentarmos, neste âmbito, aos factos tido como provados nas alíneas 6 a 36, 39 a 51, 54 a 58 e 104 e 105, verificamos com evidência, que a actuação dos profissionais da ré não é merecedora de qualquer censura: actuaram em conformidade com as leges artis.
12. Ora, como bem constatou o Tribunal Recorrido - no que, sublinhe-se, está em conformidade com o que vem sendo defendido pela generalidade da Jurisprudência e Doutrina - a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades colectivas públicas, incluindo a Ré (entidade pública empresarial) por actos ilícitos e culposos, pressupõe a existência de um facto ilícito, imputável a um órgão ou agente e a existência de danos que tenham resultado como consequência directa e necessária daquele. (cfr. Acórdão do STA, de 24/05/2012, in www.dgsi.pt),
13. Não estão provados todos os requisitos e pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - sobretudo, não está provado nos autos que os profissionais da Ré tenham actuado de forma ilícita, ou seja, que tenham violado a Lei e as Leges Artis: quer na execução do exame, quer nos cuidados prestados posteriormente, foram observados todos os procedimentos tido como adequados pela boa prática médica, de modo que não poderia ser exigido àqueles profissionais outro comportamento.
14. Não obstante os factos tido como provados, o Tribunal Recorrido fez deles uma apreciação e concretização jurídica totalmente ilegal e ilegítima: considerou que os danos reclamados pela Autora foram causados pelo extravasamento do líquido de contraste, mas como não se apurou a verdadeira causa desse extravasamento o Tribunal Recorrido aplicou a regra constante do art 493º n.º 2 do CC, entendendo assim que competia à Ré alegar e provar que aplicou a aptidão e diligência possível, mas que., por razões que não podia prever ou controlar verificou-se o facto danoso.
15. Dito de outra forma, entendeu o Tribunal Recorrido que a administração de contraste numa TAC constituí uma actividade perigosa, nos termos do disposto no art. 493º do CC e que, assim, no caso concreto teriam aplicação as regras da responsabilidade civil objectiva ou pelo risco, competindo à Ré a prova de que os seus profissionais empregaram todas as diligências exigidas para prevenir o dano. E, ainda no entendimento do Tribunal Recorrido, a ré não logrou provar esse circunstancialismo.
16. Discordamos desta visão e interpretação. Desde logo, porque ao caso em apreço não é aplicável o regime instituído pelo art. 493º do CC - a realização de TAC com contraste não é uma actividade perigosa.
17. Tal como o STA assim o definiu, em Acórdão datado de 14/12/2005 (in www.dgsi.pt), Uma actividade é excepcionalmente perigosa quando for razoável esperar que dela possam, objectivamente, resultar graves danos, isto é, danos que superem os que eventualmente possam decorrer da normalidade das outras actividades e que os prejuízos são anormais ou especiais quando oneram pesada e especialmente algum ou alguns cidadãos e, consequentemente, ultrapassam os pequenos transtornos e prejuízos que são inerentes à actividade administrativa e sobrecarregam de forma mais ou menos igualitária todos eles".
18. Não é o caso dos autos: como várias testemunhas assim o relataram nos autos, a TAC com administração de contraste apresenta riscos, sendo o risco de extravasamento um desses mesmos riscos.
19. Porém, casos idênticos aquele descrito nos autos e com as lesões que a Autora veio a apresentar, são raríssimos - na esmagadora maioria das vezes, não sucedem extravasamentos e os que ocorrem, são facilmente debelados.
20. A TAC é um exame de diagnóstico muito utilizado pelos serviços de saúde, que comporta riscos como qualquer exame comporta até a toma de um simples comprimido para dores de cabeça comporta riscos - mas que não pode ser descrito como uma actividade perigosa, conforme ao diante melhor se verá, quando apreciarmos a prova testemunhal efectivamente produzida nos autos.
21. Não obstante, resulta dos factos provados e da prova produzida, que mesmo assim deveria o Tribunal Recorrido ter concluído que os profissionais de saúde da Ré usaram de toda a diligência devida na execução da TAC com contraste, cumprindo todos os tramites e procedimentos impostos pelas leges artis; mesmo aplicando o regime do art. 493º, n.º 2, nunca o Tribunal Recorrido poderia ter concluído como concluiu.
22. Mas ainda neste particular, não obstante os factos tido como provados, bem como, a prova efectivamente produzida em sede de audiência de julgamento, o Tribunal Recorrido também considerou que "ocorreu violação das leges artis na medida em que a injeção do líquido de contraste não decorreu conforme devia ter decorrido e que não foi dada à A. o tratamento urgente que a situação exigia, limitando-se, no imediato, o Hospital R., através da técnica de radiologia, a colocar um penso anti-séptico na mão da A. e, após colocação de novo cateter, a realizar a TAC, encaminhando a A. para o serviço de urgência, supostamente para ser observada com mais urgência, o que não sucedeu".
23. Esta conclusão está em completo desacordo com os factos tido como provados, em especial, aqueles constantes das alíneas 21 a 27, mas sobretudo os factos descritos nos art.º s 6, 30 a 36, 39 a 51 e 54 a 58.
24. De acordo com tais factos, após a constatação do extravasamento, foram conferidos à Autora todos os cuidados e acompanhamento que a mesma necessitava e que as leges artis impunham.
25. Após o extravasamento - o qual se deu, não obstante o cumprimento de todas as regras de cuidado por parte dos profissionais da Ré - a lesão estava efectuada, não havendo qualquer possibilidade de a reverter. O que os profissionais de saúde deveriam fazer - e fizeram - era manter a Autora em vigilância e observação permanente, para verificar a evolução do seu estado de saúde, o qual poderia regredir ou evoluir.
26. Alguns procedimentos eram, porém, exigidos de imediato - drenagem do líquido, chamamento de enfermeira e encaminhamento para observação médica.
27. E tudo isso foi feito' a técnica que executou a TAC, efectuou manobras para tentar drenar algum do contraste, chamou uma enfermeira que rapidamente chegou à sala de exames e, depois de terminar a TAC, a Autora foi encaminhada para o serviço de urgência, onde foi mediatamente observada por um médico (cfr. a este propósito, veja-se os registos clínicos constantes do processo clínico da Autora, junto a fls.. dos autos, em especial, aqueles que vêm descritos na alíneas 6, 13 a 27, 30 a 36 dos factos tidos como provados na sentença ora em recurso.), tendo-se mantido em observação constante e contínua.
28. Porém, uma vez que a sua situação evoluiu negativamente, os profissionais da Ré efectuaram os procedimentos adequados, tendo solicitado um parecer de cirurgia plástica ao Hospital de (...) - uma vez que a Ré não dispõe de cirurgiões plásticos no seu serviço de urgência - e, face ao teor do dito parecer, executado a competente cirurgia que se impunha, para debelar a lesão verificada, o que foi conseguido.
29. Neste sentido, e uma vez que não foram violadas as leges anis, considerando a prova produzida e os factos tido como provados, nunca o Tribunal Recorrido poderia ter condenado a Ré - muito menos, aplicando o instituto da responsabilidade objectiva ou pelo risco - antes se impunha a sua absolvição.
30. Não o tendo feito, devem V. Ex.as proceder à alteração da decisão proferida, e assim sendo - como efectivamente deve ser - a Ré tem de ser absolvida do pedido.
31. Mas ainda a propósito da questão da violação das leges artis, e também com importância para a apreciação dos factos em discussão nos autos, da prova produzida em sede de audiência, nunca o Tribunal Recorrido poderia ter considerado como provados os factos descritos nas alíneas 65º a 76º da sentença ora em apreço.
32. Deste modo, devem ainda V. Ex.as proceder à alteração da decisão proferida, dado que o Tribunal Central Administrativo do Norte - uma vez que a prova testemunhal foi gravada e encontram-se nos autos todos os demais elementos de prova que ao caso dizem respeito - tem poderes para o efeito.
33. Por isso deve ser revogada a douta sentença recorrida e devem ser alteradas as respostas às citadas alíneas 65º a 76º cujos factos aí descritos devem ser considerados como não provados.
34. A segunda questão que se impunha apreciar nos presentes autos, era aquela referente ao consentimento informado, livre e esclarecido.
35. Como resulta dos articulados, a Autora alega não ter dado o seu consentimento para a execução da TAC e, bem assim, não ter sido devidamente informada para os riscos que tal exame abrangia, nomeadamente aquele de extravasamento de contraste.
36. A Ré contestou tal alegação, afirmando que a Autora foi prévia e devidamente informada da índole, natureza, necessidade, riscos, efeitos secundários e outras características da TAC com contraste, quer por médicos, quer pela técnica que o executou.
37. E a Ré demonstrou essa alegação com a prova produzida em sede de audiência de julgamento, pelo que, nunca o Tribunal Recorrido deveria ter considerado como não provados os quesitos 58º, 59º, 60º, 61º e 64º - face à prova efectivamente produzida em sede de audiência de julgamento, o Tribunal Recorrido teria forçosamente de considerar os factos constantes desses quesitos como efectiva e integralmente provados. E, na sequência dessa análise, deveria ter considerado que os profissionais da Ré cumpririam as regras legais no que concerne à obtenção de consentimento informado, absolvendo a Ré do pedido.
38. Não o tendo feito, devem a gora V. Ex.as proceder à alteração da decisão proferida, dado que o Tribunal Central Administrativo do Norte - uma vez que a prova testemunhal foi gravada e encontram-se nos autos todos os demais elementos de prova que ao caso dizem respeito — tem poderes para o efeito.
39. Por isso deve ser revogada a douta sentença recorrida e devem ser alteradas as respostas aos quesitos 58º, 59º, 60º, 61º e 64º, que devem ser considerados como provados.
40. E assim sendo como efectivamente deve ser a Ré tem de ser absolvida do pedido.
41. Absolvida a Ré, a Autora não tem direito a qualquer indemnização. Porém, caso não se aceite o acima alegado, cumpre ainda afirmar que os valores que a Autora peticionava nos autos eram absolutamente exagerados, como exagerado é o valor que o Tribunal definiu como indemnização para compensar danos não patrimoniais
42. Efectivamente, 15.000 € é uma quantia exorbitante face aos factos que, a este propósito, foram dados como provados. Assim, ainda que assistisse razão à Autora — o que não se concebe — certo é que o valor de 15.000 € é manifestamente exagerado e desproporcionado, face aos factos em causa.
43. Assim, e também por este motivo, caso se e entenda que a Ré violou a Lei e, com isso, provocou danos na esfera jurídica da Autora — o que, repete-se, não se concebe — a indemnização em causa deverá ser substancialmente reduzida.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. suprirão, deve o presente recurso de apelação ser considerado procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada nos termos e pelos motivos expostos, como é de LEI e de JUSTIÇA!»
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1.8. A Autora não contra-alegou.
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1.9. O Ministério Público, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º1 do CPTA, não emitiu parecer.
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1.10. Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem são as de saber se a sentença recorrida enferma de julgamento sobre a matéria de facto e de erro de julgamento em matéria de direito por ter considerado que o Réu agiu ilícita e culposamente, aplicando à situação a presunção de culpa do n.º2 do artigo 493.º do Cód. Civil.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A- DE FACTO
3.1. Sem prejuízo da alteração da matéria de facto que venha a resultar da análise do erro de julgamento sobre a matéria de facto, a 1ª Instância julgou provada a seguinte factualidade:
«1) A Autora nasceu no dia XX/XX/1930.
2) Em 03/03/2011, a Autora dirigiu-se às urgências do Hospital (...) (em diante HPH), onde foi admitida às 13:54:17 horas.
3) A Autora alegava indisposição e queixas na zona abdominal, “tipo cólica”, com distensão abdominal e diarreia.
4) Na urgência hospitalar foi-lhe atribuída a cor verde, de acordo com a triagem de Manchester, correspondente a uma situação pouco urgente.
5) Em 03/03/2011 foi transportada para o serviço de imagiologia do HPH para ser submetida a uma tomografia axial computorizada/ TAC abdomino-pélvica com aplicação de contraste.
6) Da “Ficha de urgência – Serviço Urgência Geral” consta o seguinte: “(...)(BENEDETTADISARO) 03/03/2011 20.-41.-31 – Avaliação Clínica – Clinica Geral O caso já foi discutido com dr G. Já contactei colega do tac mas aparentemente tem muitos doentes ainda para ver..sic. (GONZALO RUIBAL) 03/03/2011 21:02:55 – Anamnese – Cirurgia Geral Doente de 80 anos (...)Aguarda TAC abd (GONZALO RUIBAL) 03/03/2011 23:13:30 – Anamnese – Cirurgia Geral A TAC mostra dilatação significativa da VBP(18 mm) sem focos litiásicos... Dada a elevação das transaminases e a persistência da dor epigástrica, fica na ST2 para reavaliação amanha.”
7) O líquido contrastante foi administrado em cateter colocado para o efeito no braço/mão esquerda da Autora.
8) A zona da introdução do cateter foi ligada com ligadura médica cobrindo todo o pulso e parte da mão esquerda da Autora.
9) Aquando da introdução do líquido contrastante este extravasou a veia, espalhando-se pelos tecidos do membro superior esquerdo da Autora.
10) O extravasamento do líquido criou um edema pronunciado na mão esquerda, ruborização e dor.
11) O contraste é injectado na veia por intermédio de uma bomba perfusora de pressão elevada.
12) ... o que, por vezes, e independentemente de qualquer factor humano, faz com que o produto extravase a veia onde é inserido.
13) Ao chegar ao serviço de imagiologia, a Autora já trazia uma veia cateterizada previamente nas urgências, para lhe ser administrado o contraste.
14) Antes de iniciar o exame, a técnica de diagnóstico de serviço, I., confirmou a permeabilidade do acesso venoso.
15) ...e colocou a Autora na sala reservada à realização da TAC.
16) ...e não detectou qualquer anomalia na veia ou no cateter.
17) O exame iniciou-se, sem qualquer intercorrência.
18) Porém, quando a técnica se encontrava em frente à consola de execução do exame - que fica fora da sala reservada, onde se encontrava a Autora - apercebeu-se que, apesar de já ter accionado a máquina perfusora do produto de contraste, este não aparecia nas imagens do exame.
19) De imediato, dirigiu-se à sala reservada e constatou que o produto havia extravasado a veia cateterizada.
20) Inquirida sobre se tinha alguma queixa, a Autora respondeu que tinha sentido dor no braço, mas que julgava que era normal, pelo que, não valorizou tal facto.
21) A técnica retirou de imediato o cateter da veia.
22) ... e tentou remover a maior quantidade possível do produto de contraste extravasado.
23) ...após o que aplicou penso antisséptico.
24) Foi solicitada a intervenção de uma enfermeira para efectuar cateterização de uma outra veia, com o propósito de prosseguir o exame.
25) O que foi efectuado, tendo a TAC sido realizada sem quaisquer outras intercorrências.
26) O extravasamento do produto é um risco inerente ao processo.
27) ...e ocorre com alguma frequência.
28) Após a realização do exame, a Autora regressou ao serviço de urgência.
29) ... onde se constatou que o extravasamento do produto havia criado um edema pronunciado na mão esquerda, ruborização e dor.
30) A Autora foi internada para cuidados no braço esquerdo e estudo etiológico do quadro clínico, incluindo os resultados da TAC
31) Do “Relatório de Enfermagemº consta o seguinte: “Anotações de Enfermagem (S.) 04/03/2011 0 1:53:35- Comentário de Evolução de Enfermagem (...)...Apresenta mão esquerda, com os 4 sinais inflamatórios presentes, mais flictenas dispersas, em consequência da injecção de contraste para TAC. Retirada ligadura que envolvia toda a mão, ficando de momento ao ar livre em drenagem postural. Por indicação do Dr. Luís Veiga, fez 1 amp hidroxizina + 1 amp de hidrocortizona às 5:15h (...)” (...) (M.) 04/03/2011 11:29:06 - Comentário de Evolução de Enfermagem ...Mão esquerda com edema + flictenas por provável reacção a produto de contraste (para TAC)...colocadas compressas de protecção apenas. ...pedida colaboração de Plástica... Refere dor abdominal e na mão esquerda mas tolerável (4) Foi observada por cirurgia plástica a pedido de cirurgia que deu indicação para tratamento cirúrgico da mão...vai ao HSJ.(...)”
32) Da “Ficha de urgência – Serviço Urgência Geralº consta o seguinte: “(...) (H.) 04/03/2011 09:32:33 – Avaliação Clínica – Cirurgia Geral (...) Apresenta reacção inflamatória intensa na mão esquerda aparentemente consequência do produto de contraste da TAC. (...) (H.) 04/03/2011 10:22:07 – Avaliação Clínica – Cirurgia Geral Pede-se observação por Cir. Plástica devido às lesões da mão esquerda (H.) 04/03/2011 11:51:13 – Avaliação Clínica – Cirurgia Geral Face à opinião do colega de Cirurgia Plástica que é de parecer de que necessita tratamento cirúrgico e dado que não dispomos daquela especialidade no nosso SU transfere-se para o Hospital de (...) após contacto prévio com colega de Cirurgia Plástica aí de SU.”
33) Em 04/03/2011, a Autora foi transferida para o Hospital de (...).
34) Do “Relatório completo de episódio de urgência” do Hospital de (...) consta: “Data de admissão: 13:01hr 04-03-2011 Queixa inicial: Cx Plástica Lesões?? No braço esq, Reacção ao produto de contraste apos realização de TAC “sic” (...) História da doença: Doente, sexo feminino, 80 anos, transferida do Hospital (...) após contacto telefónico, com diagnóstico de queimadura de 2º e 3º grau da mão (informação telefónica do colega que contactou o HSJ e diagnóstico na folha de transferência), apresenta edema pronunciado da mão esquerda devido a reacção a produto de contraste de TAC realizado naquela instituição. EO: Edema pronunciado da mão esquerda. A iniciar síndrome do compartimento. Foi contactado Dr. (...) (chefe de Equipe de Urgência do Hospital (...)) para esclarecimento da situação que aceita que a doente seja transferida para o Hospital (...) para descompressão de Síndrome de Compartimento ...”
35) Da “Ficha de urgência – Serviço Urgência Geralº do HPH, consta o seguinte: “Data de Admissão: 04/03/2011 15:15:35 Dados da Alta Alta Clínica às: 15:34:16 de 04/03/2011 Destino: Serviço de Internamento Serviço: INT – Cirurgia Diagnóstico: 9442 – Bolhas, perda epidérmica [queimadura do 2.º grau] de punho(s) e mão(s) Médico: H. Motivo: foi ao hsj para cir,. Plástica – regressa – entrou-se em contacto com dr S., que aceita a doente Encaminhamento: Cirurgia Geral (...)”
36) Em 04/03/2011, a Autora regressou ao HPH, e às 16:06 horas, foi internada no Serviço de Cirurgia do HPH.
37) Da “Folha da Enfermagem” consta a seguinte nota datada de 04/03/2011: “Dte vinda da S.U. à consulta de cirurgia plástica, por queimadura química após administração de produto de contraste na mão esq.da. Apresenta flictenas extensas por toda a extensão da mão esq.da com edema e dor intensa. Foi observada pelo Dr. A. e foi enviada pelo mesmo ao S.U. de plástica. Foi efectuada lavagem com soro fisiológico, aplicado gaze gorda.”
38) Em 04/03/2011, após regressar do Hospital de (...), a Autora iniciou no HPH Síndrome do compartimento, com descompressão cirúrgica e realização de fasciotomia.
39) A Autora foi sujeita a sete intervenções cirúrgicas no HPH, nas seguintes datas: 04/03/2011, 06/03/2011, 09/03/2011, 11/03/2011, 14/03/2011, 16/03/2011 e 19/03/2011.
40) Em 04/03/2011 e em 06/03/2011 a Autora foi submetida a uma cirurgia de desbridamento e fasciotomias da face palmar com abertura da fascia palmar e fasciotomias dorsais da mão esquerda.
41) A Autora foi submetida a cirurgias de desbridamento de tecidos desvitalizados, com encerramento total em 18/03/2011.
42) Do “Serviço Urgência Geral – Consentimento informado” datado de 04/03/2011, no qual se encontra aposta a impressão digital da Autora, consta o seguinte: “Data de Admissão: 04/03/2011 15:15:35 (...) Eu I., como doente, declaro autorizar a realização de Fasciotomia da mão e punho esquerdos, cuja natureza, finalidade, probabilidade de êxito e riscos me foram explicados nesta data. Em relação à situação acima descrita, também autorizo a realização de quaisquer outros actos de diagnóstico ou de terapêutica que se verifique serem necessários, tais como(a) queimadura química post injecção de produto de contraste acerca dos quais fui devidamente informado(a), assim como a utilização de anestesia local, geral ou qualquer outra.”
43) Do “Consentimento informado” datado de 06/03/2011, no qual se encontra aposta a impressão digital da Autora, consta o seguinte: “Eu I., como doente, declaro autorizar a realização de limpeza e mudança de penso de queimadura química da mão esquerda, cuja natureza, finalidade, probabilidade de êxito e riscos me foram explicados nesta data. Em relação à situação acima descrita, também autorizo a realização de quaisquer outros actos de diagnóstico ou de terapêutica que se verifique serem necessários, acerca dos quais fui devidamente informado, assim como a utilização de anestesia local, geral ou qualquer outra.”
44) Em 26/03/2011, a Autora teve alta médica do Serviço de Cirurgia, tendo o “Relatório Alta Cirurgia” o seguinte teor: “Relatório Médico a utente acima referida foi internada em cirurgia por queimadura química do membro superior esquerdo, devido a extravasamento de produto de contraste de tc e.v. foi submetida a cirurgia de desbridamento cirúrgico e fasciotomias da face palmar com abertura da fascia palmar e fasciotomias dorsais da mão esquerda em 04-03-2011. Necessitou de várias intervenções cirúrgicas no bloco operatório para desbridamento de tecidos desvitalizados e mudanças de penso em dias alternados. à data de alta as feridas estão praticamente encerradas com feridas ainda por granular na região palmar e na face dorsal deve manter penso em dias alternados com hidrotul e betadine pomada. o penso deve ser efectuado no domicílio. a reavaliar dia 31-03-2011 na consulta de pensos de cirurgia.”
45) Do “Relatório Médico” datado de 26/03/2011, consta o seguinte: “MI: Doente de 80 anos, com antecedentes de neoplasia do cólon e colecistectomizada,... Analiticamente efectuou TAC abdomino-pélvico que revelou, ectasia do colédoco de 18 mm e das vias biliares intrahepáticas, sem evidência de litiase residual e um nódulo de densidade de partes moles na base pulmonar esquerda 15mm. (...) AP: - Neoplasia cólon, operada HSJ há 10 anos. Sem QTX ou RTX - Colecistectomia há cerca de 13 anos. - Apendicectomia há » 20 anos - Infecções urinárias de repetição - DMTipoII insulino-dependente – Deslipidémia – HTA - Hepatite medicamentosa há 7 anos após toma de Bactrim (sic). Medicação habitual: Norvasc5mg, Mixtard 30 penfill, Crestor 5mg, Lexotan 3mg, Losartan+Hidroclorotiazida 50mg+12.5, Omeprazol. (...) Exames efectuados:(...) - Ecografia abdominal (04/03/2011): Fígado de dimensões aumentadas (16,5 cm), contornos regulares e ecoestrutura hiperecogénea e homogénea, sugestiva de traduzir esteatose hepática difusa....Ectasia da VBP com cerca de 18,9mm...Quisto renal a direita com cerca de 26mm... Diagnósticos: -Dilatação VBP (18 mm) - Nódulo solitário do pulmão - Síndrome compartimental da mão esquerda iaterogénico -ITU.(...)”.
46) Do “Pedido de Consulta Externa de Anest Dor Cronica”, datado de 16/06/2011, consta que a Autora “Mantém dores a nível de antebraço, punho e mão esquerdos.”
47) Nas “Notas clínicas”, consta a seguinte referência “Dor crónica”, em notas datadas de 07/09/2011, 30/11/2011 e 29/02/2012.
48) Do “Relatório MFR (geral)” criado em 21/09/2012 consta: “(...) Observada em consultas de revisão durante o período de tratamento teve alta em 30/07/2012 por apresentar situação clínica e funcional estacionaria. Na data da alta apresentava: - Dores espontâneas a nível de membro superior esquerdo (foi orientada para consulta da Dor Crónica que mantém actualmente). - Défice das amplitudes articulares a nível cotovelo, punho e mão do membro superior esquerdo com limitação funcional.”
49) Do “Relatório Anestesia” criado em 08/08/2012 consta: “(...) Refere dor a nível antebraço, punho e mão esquerdos. Actualmente sem alodinia ou disestesias na região cicatricial. Dificuldade na mobilização dos dedos.”
50) Dos relatórios das “Consultas” constam as seguintes notas:
(Imagens no original da sentença)

51) A Autora foi observada por profissionais de “Medicina Física e de Reabilitação” e de “Anestesia Dor Crónica” do HPH.
52) A Autora ficou com cicatrizes na parte dorsal e palmar do braço esquerdo.
53) A Autora ficou a padecer de dores crónicas.
54) O Conselho de Administração da ULSM instaurou o processo de inquérito n.º 05/2011 que foi objecto de arquivamento.
55) Do ponto 13 do relatório final do processo de inquérito consta o seguinte “A Técnica I., antes de realizar o procedimento, interrogou a utente sobre os dados que constam da lista do modelo de consentimento informado em vigor no seu Serviço para a realização da Tomografia Axial Computorizada.”
56) O modelo de “Consentimento Informado” previsto para o exame TAC (Tomografia Axial Computorizada) tem o seguinte teor:

(Imagem no original da sentença)

57) Do ponto 10 do relatório final do processo de inquérito consta o seguinte “Não foi feito qualquer relato do sucedido nem ao médico que se encontrava de serviço nesse dia, Dr. A., nem posteriormente ao Técnico responsável, J. ou ao Director do Serviço de ImaÉoloÉa Dr. J.”
58) A técnica de diagnóstico e terapêutica M. prestou, no âmbito do processo de inquérito, as seguintes declarações: “Declarou que no dia 3 de Março do corrente ano, estando de serviço no Departamento de Imagiologia deste Hospital, atendeu a utente I. que vinha enviada do Serviço de Urgência, para fazer uma TAC abdominal. A utente já vinha cateterizada numa veia periférica e trazia um soro em perfusão. Seguindo os procedimentos usuais no seu Serviço, confirmou a permeabilidade do acesso venoso, confirmou que a doente não tinha antecedentes de reacções alérgicas e iniciou a perfusão do produto de contraste intra-venoso, através de uma bomba perfusora com calibração pré-definida. Depois destes procedimentos a declarante deixou a doente na sala de TAC e dirigiu-se para a consola de monitorização, para dar início ao exame. De imediato constatou, através do monitor do exame que as imagens não apresentavam o produto de contraste. Não teve conhecimento de qualquer alarme sonoro ou queixa da utente. De imediato suspendeu a execução do exame e dirigiu-se à utente, para constatar o que estava a suceder. Verificou então que tinha havido extravasamento do produto de contraste e interrogou a utente sobre a existência de qualquer queixa clínica, ao que a mesma respondeu que de início teria doído um pouco, mas que achou que era normal. A declarante desconectou de imediato o injector e pediu a colaboração de um enfermeiro do Serviço de Urgência para cateterizar a utente de novo. Durante o período até o enfermeiro destacado chegar a declarante retirou o cateter da veia, massajou a região onde o mesmo esteve implantado para tentar remover algum do contraste que se tinha extravasado, tendo constatado que saiu alguma quantidade deste, e fez uma ligadura com compressas com álcool. Entretanto chegou o enfermeiro do Serviço de Urgência, que teve conhecimento da situação, voltou a cateterizar uma veia noutra localização e regressou de imediato ao Serviço de Urgência, tendo a declarante testado a permeabilidade deste novo acesso e procedido, com êxito, à realização da T AC. A declarante afirma que é usual, no período nocturno naquele dia da semana não haver enfermeiro destacado para o seu Serviço. A declarante também afirma que não é usual os utentes assinarem o consentimento informado para a realização destes exames com contraste...”
59) Em todos os momentos do seu internamento a Autora esteve sempre acompanhada de um familiar seu.
60) ...nunca estando só.
61) Enquanto permaneceu no serviço de imagiologia, a Autora não esteve acompanhada de nenhum familiar.
62) A entrada de terceiros no serviço de imagiologia não é permitida.
63) O líquido do contraste extravasou o que provocou à A. queimaduras.
64) O líquido do contraste provocou lesões na A.
65) A A. sentiu desde logo enorme formigueiro, calor, inchaço e dor por todo o braço esquerdo.
66) A Autora sofreu dores constantes, desde o momento em que lhe realizaram a punção de uma veia para introdução do contraste, dores que se prolongaram pelas quatro a cinco horas seguintes.
67) ...que referiu constantemente a enfermeiros do serviço.
68) Durante todo aquele tempo queixou-se aos profissionais da HPH do seu padecimento, referiu constantemente as dores que tinha, a sensação de calor e queimadura que tinha.
69) Limitando-se os profissionais a dizer, “não é nada”, “Já vai passar”, sem que, sequer, tenham examinado o seu braço/mão.
70) Pela meia-noite/início da madrugada de 04/03/2011, a Autora chamou de urgência um enfermeiro.
71) ...porque não aguentava mais as dores no braço tirou a ligadura e pulseira de urgência que se encontravam naquele membro atento o inchaço que já tinha.
72) ...com a ajuda de uma filha.
73) ... e chamou enfermeiros e médicos para verem como se encontrava.
74) Uma vez retiradas as ligaduras, a Autora estava a sofrer uma grave queimadura química no seu membro superior esquerdo.
75) O inchaço era descomunal com bolhas enormes que cobriam toda a pele incluindo dedos.
76) A Autora, rodeada de enfermeiros e na presença de um médico, este, espontaneamente, exclamou “não sei o que fazer”.
77) A Autora não tem força no seu membro superior esquerdo, tem escassa ou nula sensibilidade nos dedos, na zona palmar e dorsal.
78) A sua mão fica deformada com inchaços constantes.
79) De uma ajuda para a casa passou a ter de ser ajudada.
80) Não consegue cortar carne ou preparar o peixe que come sozinha.
81) Não consegue pegar num garfo com a sua mão esquerda com a força ou cuidado bastantes para tais tarefas.
82) Deixou de poder lavar a louça ou a roupa em casa.
83) Mal consegue arrumar as coisas em sua casa.
84) Mal se consegue lavar diariamente.
85) ...sendo ajudada por uma sua filha sempre que toma banho.
86) ...não se consegue apoiar com um braço e lavar-se com o outro dado não ter força no braço esquerdo nem para se apoiar nem para segurar no sabonete/sabão/gel.
87) Deixou de poder ir regularmente a feiras.
88) ... pois não consegue pegar em sacos.
89) ...nem montar a “barraca”.
90) Tem dores e mal-estar constantes.
91) Não consegue pegar numa cadeira ou saco de compras.
92) Perdeu força no braço esquerdo.
93) ...toda a sensibilidade.
94) ...toda a capacidade de utilizar o seu braço nas vulgares tarefas da sua vida.
95) Tal situação provocou-lhe enorme sofrimento moral e psicológico.
96) O seu sofrimento é constante, diário, quotidiano, pois todos os dias se sente incapaz.
97) ...sem possibilidades de alguma vez vir a recuperar o seu braço.
98) Vive em tristeza permanente, em desolação, em desgosto constante.
99) Deixou de rir, de sorrir de ter alegria só lhe apetecendo chorar e considerando-se um peso e estorvo para a família.
100) Deixou de ter apetite e alegria.
101) Passou a dormir mal devido às dores.
102) Está sempre sob medicação.
103) O sofrimento e dores prolongaram-se por meses, desde as intervenções cirúrgicas que teve de se sujeitar, até aos pensos que teve de mudar.
104) Durante o internamento no HPH, verificou-se melhoria das queixas álgicas.
105) A Autora tem vindo a recuperar das lesões sofridas, quer no que respeita à mobilidade, quer no que respeita à sensibilidade.
*
Não resultaram provados os factos seguintes:
- Mal a enfermeira responsável estava a introduzir o contraste, a Autora sentiu dor aguda e exclamou “a Sra. Enfa. já me magoou” ao que esta diz “eu sei que a magoei”.
-...e a enfermeira não cessou a punção nem a profusão do fluido no
braço esquerdo da Autora.
- De imediato a sua mão esquerda começou a inchar.
- ... o que foi logo dito à enfermeira que a acompanhava.
- A enfermeira disse “é normal, não é nada, não se preocupe”.
- Ao executar a punção a enfermeira rebentou a veia da Autora.
- Quando a Autora estava a ser sujeita à profusão alertou de imediato a enfermeira para as dores que estava a sofrer.
- ... e que revelavam que a veia havia sido mal “picada”.
- A enfermeira continuou a efectuar a punção e a profusão.
- Após, recolheu então a Autora à enfermaria.
- A equipa médica do Hospital de (...) afirmou que a Autora tinha a mão de um monstro.
- O médico que a examinou no Hospital de (...) disse que se tardasse um par de horas mais o membro superior esquerdo da Autora não teria solução.
- A Autora entrou para o bloco operatório do HPH com o objectivo de salvar-lhe o braço esquerdo da amputação.
- A situação arrastou a A., desde então, para uma depressão crónica.
- A Autora foi informada dos benefícios da TAC abdomino-pélvica, com aplicação de contraste.
- A Autora foi informada dos riscos inerentes à realização desse exame, em especial dos riscos que poderiam advir da utilização de contraste.
- Foi explicado à Autora que um dos riscos inerentes à realização de uma TAC com utilização de contraste consiste, entre outros, no extravasamento do produto.
- A informação sobre os riscos foi prestada pelo médico do serviço de urgência que prescreveu a TAC e pela técnica que a executou, I..
- A Autora conferiu o seu consentimento informado para a realização da TAC.
- Quando a Autora foi transportada para o serviço de imagiologia do HPH apenas estava acompanhada por uma auxiliar médica.
- O produto de contraste extravasou a veia cateterizada devido à pressão exercida pela bomba perfusora.»
**
III. B. DE DIREITO
b.1. Da impugnação do julgamento da matéria de facto- ónus impugnatório
3.2. O Apelante impugna o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância que considera enfermar de erro, na medida em que, contrariamente ao que foi decidido, a matéria vertida nos pontos 65 a 76 dos factos assentes na sentença devia ter sido dada como não provada ao invés de ter sido considerada assente e, bem assim, a matéria dos quesitos 58,59,60,61 e 64 devia ter sido levada aos factos assentes e não tida como não provada, como sucedeu.
A matéria que vem dada como provada nos pontos 65 a 76 dos factos assentes na sentença é a seguinte:
«65) A A. sentiu desde logo enorme formigueiro, calor, inchaço e dor por todo o braço esquerdo.
66) A Autora sofreu dores constantes, desde o momento em que lhe realizaram a punção de uma veia para introdução do contraste, dores que se prolongaram pelas quatro a cinco horas seguintes.
67) ...que referiu constantemente a enfermeiros do serviço.
68) Durante todo aquele tempo queixou-se aos profissionais da HPH do seu padecimento, referiu constantemente as dores que tinha, a sensação de calor e queimadura que tinha.
69) Limitando-se os profissionais a dizer, “não é nada”, “Já vai passar”, sem que, sequer, tenham examinado o seu braço/mão.
70) Pela meia-noite/início da madrugada de 04/03/2011, a Autora chamou de urgência um enfermeiro.
71) ...porque não aguentava mais as dores no braço tirou a ligadura e pulseira de urgência que se encontravam naquele membro atento o inchaço que já tinha.
72) ...com a ajuda de uma filha.
73) ... e chamou enfermeiros e médicos para verem como se encontrava.
74) Uma vez retiradas as ligaduras, a Autora estava a sofrer uma grave queimadura química no seu membro superior esquerdo.
75) O inchaço era descomunal com bolhas enormes que cobriam toda a pele incluindo dedos.
76) A Autora, rodeada de enfermeiros e na presença de um médico, este, espontaneamente, exclamou “não sei o que fazer”».
Por seu turno, a matéria que se perguntava nos quesitos 58, 59, 60, 61 e 64 e que foi dada como não provada é a seguinte:
«58- A Autora foi informada dos benefícios da TAC ab
domino-pélvica, com aplicação de contraste?
59- A autora foi informada dos riscos inerentes à realização desse exame, em especial dos riscos que poderiam advir da utilização de contraste?
60- Foi explicado à Autora que um dos riscos inerentes à realização de uma TAC com utilização de contraste consiste, entre outros, no extravasamento do produto?
61-A informação sobre os riscos foi prestada pelo médico do serviço de urgência que prescreveu a TAC e pela técnica que a executou, I.?
64- …a Autora conferiu o seu consentimento informado para a realização da TAC?
Perscrutadas as conclusões de recurso e a respetiva motivação, constata-se que o apelante procede a uma impugnação genérica ou em bloco dessa matéria, não indicando em relação a cada ponto da matéria impugnada quais os meios de prova que considera conduzir a resultado diverso do que foi decidido, ou seja, quais os depoimentos testemunhais dos que transcreve que fundamentam em relação a cada ponto da matéria de facto impugnada a resposta diversa que reclama que devia ter sido dada pelo Tribunal a quo, para além de não efetuar uma análise critica desses meios de prova de modo a revelar a este Tribunal de recurso as razões pelas quais entende que da análise critica dos mesmos se impunha decisão diversa, pelo que apesar da apelada não suscitar essa questão, porque a mesma é do conhecimento oficioso do tribunal ad quem, urge verificar se o apelado cumpriu com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto que se encontram prescritos no art.º 640º, n.ºs 1 e 2, al. b) do CPC aplicável ex vi art.º 1.º do CPTA, até porque, em caso de incumprimento desse ónus, o mesmo impede que este Tribunal ad quem possa reapreciar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância.
A respeito da impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, dir-se-á que na sequência das alterações legislativas introduzidas ao CPC pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, o legislador introduziu o registo da audiência final, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes o duplo grau de jurisdição em sede de julgamento da matéria de facto, de modo que a alteração da matéria de facto, que no anterior regime processual era excecional, passou a ser uma função normal da 2.ª Instância.
Nessa operação foi propósito do legislador que o tribunal de 2ª instância realize um novo julgamento em relação à matéria de facto impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo isto que resulta expressamente do estabelecido no art.º 662º, n.º 1 do CPC, na redação introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, que é a versão aplicável aos presentes autos (e a que se referem todas as disposições do CPC infra identificadas), quando estabelece que a “Relação” deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI..
Deste modo é que perante as regras positivas vigentes na atual lei processual civil, tendo o recurso por objeto a impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, o Tribunal de 2.ª Instância deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada pelo recorrente, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1.ª Instância, embora, nessa tarefa, esteja naturalmente limitada pelos princípios da imediação e da oralidade.
Nesse novo julgamento, como verdadeiro tribunal de substituição, a 2.ª Instância aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art.º 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).
Nessa sua livre apreciação, a 2.ª Instância não está condicionada pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido, uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª, e não a apreciação que esta fez dessa mesma prova, podendo, na formação dessa sua convicção autónoma recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI..
No entanto incumbe precisar que apesar da 2.ª Instância dever efetuar um novo julgamento em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª instância, não foi propósito do legislador que o julgamento a realizar por aquela se transformasse na repetição do realizado na 1ª Instância, uma vez que conforme se escreve no Preâmbulo do D.L. n.º 329-A/95, de 12/12, a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas apenas “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento”, e daí que tenha rodeado o recurso da impugnação do julgamento da matéria de facto à imposição ao recorrente de determinados ónus que enuncia no art.º 640º do CPC, com vista a obstar que o julgamento a realizar se transforme na repetição do antes efetuado em 1ª Instância e a evitar recursos genéricos.
É assim que com vista a atingir esses desideratos, o legislador optou “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de factos controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, pelo que se mantém o entendimento que, como tribunal de 2ª Instância que é, este deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 153., estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.
Depois, tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo do princípio da auto- responsabilidade e dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a matéria de facto que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, reclama que tivesse sido proferida, os concretos meios de prova que ancoram essa solução diversa, com a respetiva análise crítica, isto é, com a indicação do porquê dessa prova impor decisão diversa daquela que foi julgada pelo tribunal a quo.
Na verdade, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivoAntónio Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 228., e como decorrência desse princípio, mas também do contraditório, terá o recorrente de indicar qual a concreta decisão fáctica que se impõe extrair da prova produzida em relação à matéria de facto que impugna, as concretas provas que alicerçam esse julgamento diverso que propugna e as concretas razões pelas quais essa prova em que funda o recurso afasta os fundamentos probatórios invocados pelo tribunal a quo para motivar o julgamento de facto que realizou, e antes impõe o propugnado pelo recorrente.
Deste modo é que o art.º 640º, n.º 1 do CPC, estabelece que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnada.
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 662º).
Precise-se que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial de delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem, é entendimento jurisprudencial pacífico que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que impugna e a concreta resposta que, na sua perspetiva, deve ser dada a essa matéria impugnada.
Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do objeto do recurso, mas se destinam a fundamentar o último, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.
Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 155., sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d)…; e) o recorrente deixará expressa, na motivação (segundo o STJ, nas conclusões), a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recurso de pendor genérico ou inconsequente.
O cumprimento dos referidos ónus, conforme adverte Abrantes Geraldes, tem a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da 2.ª Instância, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações, uma vez que só na medida em que se conhece especificamente o que se encontra impugnado e qual a lógica de raciocínio expandido pelo recorrente na valoração e conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita o recorrido de todos os elementos que lhe permitam contrariar essa impugnação em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de auto responsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo” Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 159.
Ac. RC, de 11.07.2012, Proc. n.º 781/09, in base de dados da DGSI, onde se lê que este “especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor”, constituindo “simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso”.

No mesmo sentido vide Acs. S.T.J. de 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, todos in base de dados da DGSI..

Como consequência, impõe-se a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando ocorra: “a) falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto (art. 635º, n.º 4 e 6411º, n.º 2, al. b) do CPC); b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a) do CPC); c) falta de especificação na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e e) falta de posição expressa, na motivação (segundo o STJ, nas conclusões), sobre o resultado pretendido a cada segmento da impugnação” Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 158 e 159..
Esta posição tem sido a que tem sido seguida, de forma praticamente uniforme, pela jurisprudência do STJ, que, como referido, tem sustentado que a decisão que, na perspetiva do apelante, deve ser proferida quanto à concreta matéria de facto que impugna, deve, também, constar das conclusões Acs. do STJ de 26/09/2018, Proc. 141/17.5T8PTM.E1-S1; 05/09/2018, Proc. 15787/15.8T8PRT.P1-S2; 01/03/2018, Proc. 85/14.2TTMAI.P1.S1; de 06/06/2018, Proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1; 06/06/2018, Proc. 1474/16.38CLD.C1.S1; 06/06/2018, Proc. 552/13.5TTVIS.C1.S1; e de 16/05/2018, Proc. 2833/16.7T8VFX.L1.S1, todos in base de dados da DGSI..
Acresce precisar que essa instância superior tem operado uma distinção entre: a) ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso em sede de impugnação da matéria de facto, onde os requisitos impostos à parte se encontram ligados com o mérito ou demérito do recurso; e b) ónus secundários, que se prendem com os requisitos formais.
Quanto aos requisitos primários ou fundamentais de delimitação do objeto do recurso, onde se inclui a obrigação do recorrente de formular conclusões e nestas especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas e, bem assim, a falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados que, na sua perspetiva, sustentam esse julgamento diverso da matéria de facto que impugna, requisitos esses sobre que versa o n.º 1 do art. 640º do CPC, a jurisprudência, sem prejuízo do que infra se dirá, tem considerado que aquele critério de rigor se aplica de forma estrita, não admitindo quaisquer entorses, pelo que sempre que se verifique o incumprimento de qualquer um desses ónus, se impõe rejeitar o recurso da matéria de facto na parte em que se verifica a omissão.
Já no que respeita aos ónus da impugnação secundários, que são os enunciados no n.º 2 daquele art. 640º, em que se consagra a obrigação do recorrente, quando os meios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenha sido gravada, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, considera-se que embora a observância desse ónus deva ser apreciado à luz do enunciado critério de rigor, não convém exponenciar esse rigor ao ponto de ser violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador” Abrantes Geraldes, in ob. cit., págs. 160 e segs..
Argumenta-se que se está perante meros requisitos de forma, destinados a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência, pelo que o cumprimento desse ónus tem de ser “interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não se justificando a imediata e liminar rejeição do recurso quando, apesar da indicação do recorrente não for totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento” Acs. STJ. 29/10/2015, Proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1; de 15/02/2018, Proc. 134116/13.2YIPRT.E1.S1; de 21/03/2019, Proc. 3683/16.6T8CBR.C1.S2, in base de dados da DGSI..
No entanto, impõe-se precisar que mesmo em relação aos ónus de impugnação primários tem-se assistido ultimamente, ao nível do STJ, a um aliviar do enunciado critério de rigor, admitindo-se a apreciação do recurso ainda que as conclusões sejam omissas quanto à referência expressa dos concretos pontos da matéria de facto que o apelante impugna, desde que os factos impugnados resultem claramente identificados nas antecedentes alegações Neste sentido, Acs. do STJ de 08/02/2018, Processo nº 765/13.0TBESP.L1.S1; de 08/02/2018, Processo nº 8440/14.1T8PRT.P1.S1; de 06/06/2018, Processo nº 552/13.5TTVIS.C1.S1, e de 13/11/2018, Processo nº 3396/14, este último ainda inédito e os restantes in base de dados da DGSI..
Tendo presente os enunciados critérios orientadores que se impõem ao apelante em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, analisadas as alegações de recurso apresentadas, é indiscutível que o recurso apresentado em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto é genérico, não tendo aquele cumprido com o ónus impugnatório primário prescrito na al. b), n.º1 do art.º 640º, n.º 1 do CPC, impossibilitando que este tribunal possa reapreciar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância.

Esse ónus impõe ao apelante a obrigação de indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem a decisão diversa que postulam sobre cada um dos pontos da matéria de facto que impugnam.
Na verdade, nas alegações de recurso, o apelante não indica os concretos meios probatórios que impõem a decisão diversa que sufraga em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que impugna, sequer faz uma análise crítica dessa prova com a que é indicada pelo tribunal a quo na motivação/fundamentação da matéria de facto quanto a cada um desses concretos pontos para justificar o julgamento fáctico que efetuou, demonstrando o porquê desses meios de prova que indica afastarem os fundamentos probatórios invocados por aquele tribunal, e antes imporem a decisão de facto que postula, mas antes o que fez é algo bem diferente.
Conforme decorre das alegações de recurso, nelas o apelante, quanto à matéria de facto não provada constante dos quesitos 58.º, 59.º, 60.º, 61.º e 64.º, limita-se a invocar que “demonstrou essa alegação com a prova produzida em sede de audiência de julgamento”, pelo que “o Tribunal Recorrido teria forçosamente de considerar os factos constantes desses quesitos como efetiva e integralmente provados. E que não o tendo feito, deve este Tribunal ad quem “proceder á alteração da decisão proferida (…) uma vez que a prova testemunhal foi gravada e encontram-se nos autos todos os demais elementos de prova que ao caso dizem respeito…” E após proceder à transcrição dos depoimentos das testemunhas , (i) R., médico, (ii) A. ( médico), (iii) I. ( médica), e (iv) J. ( médico), refere que considerando esses depoimentos e bem assim os factos provados nas alíneas 6 a 36, 39 a 51, 54 a 58 e 104 e 105 da matéria tida como provada constante da sentença, esses factos deviam ter sido considerados assentes, e na sequência dessa análise, deveria o Tribunal a quo ter considerado que os profissionais da Ré cumpriram as regras legais no que concerne à obtenção de consentimento informado, absolvendo a Ré do pedido, sem que tenha realizado a análise critica da prova, como se impunha, de modo a revelar porque razão entende que a sua versão quanto à matéria de facto é a que se impunha tivesse sido considerada pelo Tribunal a quo.
E quanto à matéria dada como provada nos pontos 65.º a 76.º da sentença, sustenta apenas que “devem ser alteradas as respostas às citadas alíneas…, cujos factos aí descritos devem ser considerados como não provados”, uma vez que a prova testemunhal foi gravada e encontram-se nos autos todos os demais elementos de prova que ao caso dizem respeito…”.
É patente que para além de não ter efetuado uma análise critica dos meios de prova, o apelante fez uma sindicância em bloco da matéria de facto impugnada.
Acontece que conforme é entendimento pacífico na jurisprudência, semelhante sindicância, em bloco, da matéria julgada provada e não provada pelo tribunal a quo, com a menção, em bloco, dos meios de prova em relação a toda aquela matéria que o apelante impugna, não cumpre o ónus impugnatório previsto na al. b) do n.º 1 do art. 640º do CPC, por consubstanciar clara impugnação genérica do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância.
Neste sentido encontramos inúmeros arestos do STJ, todos publicados na base de dados da DGSI, cujos sumários são os seguintes:
- acórdão de 06/11/2019, Proc. 1092/08.0TTBRG.G1.S1:
I. As coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à interpretação do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil, referente ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido.
II. A verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteada pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
III. Não cumprem o ónus imposto pelo art.º 640.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil os recorrentes que não concretizaram, por referência a cada um dos mencionados factos que impugnaram, quais os meios probatórios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1.ª Instância, não indicando também a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre a matéria de facto, relativamente a determinados factos impugnados;
- acórdão de 08/10/2019, Proc. 3138/10.2TJVNF.G1.S2:
“I- Os recorrentes que pedem na apelação a reapreciação da matéria de facto e não indicam os meios de prova e as passagens das gravações dos depoimentos que, no seu entender, impõem decisão diversa da proferida, não cumprem os ónus de alegação previstos no art. 640º, n.º 1 do CPC”, e onde se concretiza este juízo nos seguintes termos: “Segundo o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, a impugnação da decisão de facto não tem por fim uma reapreciação global, pelo Tribunal da Relação, da prova valorada no Tribunal de 1.ª Instância. Incumbe, por isso, ao Recorrente um especial ónus de alegação no que toca à delimitação do objeto do recurso e à sua fundamentação. Não observa, por conseguinte, esse ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a elencar documentos, omitindo a referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”;
- acórdão de 05/09/2018, Proc. 15787/15.8T8PRT.P1.S1:
I- A alínea b), do n.º 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.
II- Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna;
- acórdão de 16/05/2018, Proc. 2833/16.7T8VFX.L1.S1:
I - Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração.
II - Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso.
III - Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art. 640º, nº 1, als. a) e c) do CPC, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte;
- acórdão de 20/12/2017, Proc. 299/13.2TTVRL.G1.S2:
I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.
II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.
No mesmo sentido aponta-se ainda, entre outros, os arestos do STJ de 20/02/2019, Proc. 1338/15.8T8PNF.P1.S1; de 18/10/2018, Proc. 668/15.3FAR.E1.S2; RG. de 28/06/2018, Proc. 123/11.0TBCBT.G1; de 21/03/2019, Proc. 61/17.3T8VRL.G1 e RP. de 10/12/2019, Proc. 11709/18.2T8PRT.P1, na mesma base de dados, cujos sumários nos abstemos de transcrever.

Destarte, porque o apelante não cumpriu com o ónus impugnatório da al. b), do n.º 1, do art. 640º do CPC, que exigia que identificasse, em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que impugna, os concretos meios de prova que postulam a decisão diversa que sufraga, limitando-se a enunciar os meios de prova em relação à totalidade da matéria de facto provada e não provada que impugna, e que em relação a cada um dos factos que impugna fizesse uma análise critica da prova de modo a revelar as razões concretas porque entende que o julgamento efetuado pelo tribunal a quo e os fundamentos probatórios em que o mesmo se apoiou para formar a sua convicção devem ser considerados errados em função dos fundamentos probatórios que entende decorrerem dos meios de prova que indicou, impõe-se rejeitar a impugnação do julgamento da matéria de facto operada pelo apelante.

Nestes termos, com os fundamentos acabados de enunciar, rejeita-se o recurso quanto à impugnação do julgamento da matéria de facto operado pelo apelante, por incumprimento do ónus impugnatório da al. b) do n.º 1 do art. 640º do CPC.


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b.2. Do erro de julgamento sobre o mérito da decisão
3.3. A apelada intentou a presente ação de administrativa comum contra o apelante pretendendo ser indemnizada pelos danos sofridos em consequência das lesões decorrentes do extravasamento do líquido de contraste que afetou o seu membro esquerdo. Alegou, para o efeito que na sequência de uma deslocação que efetuou às urgências do demandado em virtude das dores de barriga e queixas na zona abdominal, de que padecia há já alguns dias, foi sujeita a uma TAC e que, na realização desse exame não foram observadas as leges artis que se impunham, tendo o mesmo sido mal executado e que, após o extravasamento do líquido de contraste que lhe foi injetado, que era necessário para a realização do exame, não lhe foram asseguradas os cuidados médicos que se impunham para debelar as consequências resultantes desse facto, razão pela qual sofreu lesões graves, que lhe demandaram dores e incapacidade, prejuízos pelos quais entende assistir-lhe o direito a ser ressarcida pelo apelado. O Tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente, condenando o apelante a pagar à autora uma indemnização de 15.000,00€, acrescida de juros contados desde a notificação da sentença, e fê-lo por considerar que se verificavam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública prevista e regulada na Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, tendo considerado que a realização da TAC constitui uma atividade perigosa a que se aplica o regime do art.º 493.º, n.º2 do Cód. Civil.
A 1.ª Instância, depois de elencar os pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos regulada na Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, e de enunciar, em face do referido diploma, o que se entende pelos pressupostos do facto, da ilicitude, da culpa, do nexo de causalidade e do dano, e de frisar que entre estes assumem particular relevância os pressupostos da ilicitude e da culpa, coincidindo a ilicitude quanto aos atos jurídicos com a ilegalidade do ato, sendo que em relação aos atos materiais haverá ilicitude quando houver violação de normas legais e regulamentares ou dos princípios gerais aplicáveis, ou ainda quando houver violação das regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração, assinalou que nos casos de responsabilidade por ato médico, o conceito de ilicitude traduz a violação de regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clinico, na concreta situação em que tal abordagem ocorre, ou seja, a violação da leges artis ou de qualquer norma regulamentar ou estatutária que regule as relações entre o médico e o utente. E quanto à culpa nos casos de responsabilidade por ato médico, considerou que a mesma traduz um juízo dirigido ao médico, censurando-o pela sua conduta, em virtude de nela se ter manifestado um defeito de vontade ou de competência, sublinhando que os comportamentos do médico, geradores de responsabilidade, em regra, são-lhe imputáveis a título de negligência e não de dolo. Em relação ao Hospital realçou que a culpa não se esgota na imputação de uma culpa psicológica aos agentes que atuaram em seu nome, sendo possível ainda falar-se de uma culpa do serviço.
Quanto à subsunção jurídica dos factos ao direito, o Tribunal a quo começou por salientar que estava em causa na ação saber « se perante a manobra que deu início à realização do exame, com o acionamento da máquina perfusora do produto de contraste da qual resultou o extravasamento do produto da veia que havia sido cateterizada para esse efeito, bem assim como a atuação posterior dos serviços da R., face ao desfecho final, isto é, as inegáveis sequelas de que ficou a padecer a A. em consequência do derramamento do líquido de contraste, houve ou não inobservância de deveres de cuidado que torne culposa a sua atuação em termos de ter existido inexecução de um dever geral de diligência a que era exigível dar cumprimento no momento do acionamento da máquina que injeta o produto de contraste e na atuação posterior face a lesões que logo após o derramamento se puderam constatar na mão esquerda da A. ou se foram utilizadas técnicas incorretas de introdução do dito líquido dentro dos padrões científicos atuais na chamada leges artis.»
Depois de concluir não existir dúvida alguma em como o líquido do contraste que foi injetado na veia por meio de uma bomba perfusora de pressão elevada extravasou, afirma não se ter provado que o produto de contraste extravasou a veia cateterizada devido à pressão exercida pela bomba perfusora como defendeu a Ré, e considerou que se ficou sem saber “ se o extravasamento se ficou a dever a uma impreparação técnica de quem realizou o exame, a uma deficiente avaliação da colocação do cateter e das condições da própria máquina perfusora do líquido de contraste ou até da existência de contra-indicações à realização do exame, matéria que competia à R. provar ».(sublinhado nosso)
Pode ler-se na sentença recorrida a seguinte fundamentação, que consideramos útil aqui reproduzir: « O que se sabe é que em consequência do extravasamento do líquido de contraste adveio um quadro clínico de dor e de limitações físicas para a A. no seu dia-a-dia, limitações essas que acresceram àquelas que a sua idade (80 anos à data dos factos), naturalmente, já comportava; que após o extravasamento do líquido a lesão está feita e, portanto, que a lesão da A. não se ficou a dever a uma qualquer outra circunstância alheia ao próprio exame.
Em face deste desfecho e atento o ónus probatório, por virtude do disposto no nº2 do artigo 493º do Código Civil, era ao Hospital R. que tinha de alegar e provar que aplicou a aptidão e diligência possível, mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, verificou-se a infeliz ocorrência, ou seja, a prova de que os seus funcionários usaram de toda a diligência e rigor técnicos e que o evento danoso só ocorreu por caso fortuito ou de força maior, imprevisíveis e inultrapassáveis, o que o R. não fez.
Diga-se que a ocorrência desta situação não pode ser vista como normal, sendo seguro que, se o extravasamento pode ocorrer e é, portanto, um risco associado à realização do exame, o mesmo não se diga quanto à gravidade das lesões provocadas na mão da A. que não constituem uma lesão típica e normal da TAC com contraste que só acontece quando algo corre mal. Isto é, só em resultado da violação de uma regra de prudência (legis artis) na execução do exame pode ter originado tal resultado, podendo (e devendo) a mesma ter sido evitada pelos serviços da R. e, portanto, tal violação é, neste sentido, culposa, na justa medida em que a culpa consiste na capacidade e possibilidade de evitar o facto ilícito gerador do dano.
Importa, ainda referir que, conforme resulta do probatório, a R. não logrou provar que a A. foi esclarecida pelos profissionais de saúde ao seu serviço dos riscos inerentes à realização do exame – TAC com contraste -, nomeadamente, da possibilidade de ocorrer o extravasamento do líquido de contraste, nem tão pouco que a A. tenha dado o seu consentimento informado para a realização do exame, consentimento esse que, em situação normal, é prestado através do preenchimento e assinatura de um modelo-tipo que, no caso em apreço, não consta do processo administrativo.
Embora a R. tenha por diversas vezes referido que a A. prestou tal consentimento, o que é facto é que do registo das informações clínicas não consta esse consentimento, sendo irrefutável que os profissionais de saúde, quer estejam numa relação contratual de direito privado quer a actuarem no âmbito da prestação de cuidados de saúde no quadro de serviços públicos, têm a obrigação de prestar ao doente os esclarecimentos imprescindíveis para que ele possa fazer uma avaliação sobre o seu estado de saúde bem assim como sobre as vantagens e inconvenientes da realização, nomeadamente, de determinado exame complementar de diagnóstico como é a TAC, com contraste e, com base nas informações recolhidas, poder decidir se deseja ou não consentir na intervenção que lhe é proposta e, assim, optar pelo assentimento ou não na sua execução, pelo que, neste ponto é, efectivamente, censurável a conduta da R. que, cabendo-lhe a si o onus probandi - artº 342º, nº2 do CC -, não prova que tenha prestado à A. ou à família que sempre a acompanhou enquanto esteve no HPH (com excepção do momento em que entrou para a sala em que realizou a TAC, no serviço de imagiologia do Hospital Réu) os esclarecimentos acerca dos riscos da realização do exame, nomeadamente, o de extravasamento do líquido de contraste que, como resulta do probatório, constitui um risco inerente à realização do exame e, portanto, pode dizer-se, constitui um risco normal e previsível, atenta a frequência com que o mesmo ocorre, como ficou provado nos autos.
Salienta-se, ainda, a circunstância de, após o derramamento do líquido de contraste, na sequência da realização de TCA com contrate no dia 3/3/2011 (entre aproximadamente as 21horas e as 23horas, como consta do processo de inquérito interno), a técnica de radiologia ter tentado remover a maior quantidade possível do produto de contraste extravasado e, após, ter colocado penso anti-séptico e solicitado a intervenção de uma enfermeira para efectuar cateterização de uma outra veia, com o propósito de prosseguir o exame sem, contudo, alertar qualquer médico para o sucedido bem assim como a circunstância da Autora ter referido, durante as horas seguintes, aos profissionais da HPH do seu padecimento, as dores que tinha, a sensação de calor e queimadura, limitando-se os profissionais a dizer, “não é nada”, “Já vai passar”, sem que, sequer, tenham examinado o seu braço/mão, tendo pela meia-noite/início da madrugada do dia seguinte ao exame - 04/03/2011- chamado de urgência um enfermeiro e porque não aguentava mais as dores no braço tirado a ligadura e pulseira de urgência que se encontravam no braço esquerdo atento o inchaço que já tinha com a ajuda de uma filha que nessa altura a acompanhava e ter chamado os enfermeiros e médicos para verem como se encontrava vindo a constatar-se que, uma vez retiradas as ligaduras, a Autora estava a sofrer uma grave queimadura química no seu membro superior esquerdo e o inchaço era descomunal com bolhas enormes que cobriam toda a pele incluindo os dedos.
Chegados a este ponto, podemos concluir que ocorreu violação da leges artis na medida em que a injecção do líquido de contraste não decorreu conforme devia ter decorrido e que não foi dado à A. o tratamento urgente que a situação exigia, limitando-se, no imediato, o Hospital R., através da técnica de radiologia, a colocar um penso anti-séptico na mão da A. e, após colocação de novo cateter, a realizar a TAC, encaminhando a A. para o serviço de urgência, supostamente para ser observada com mais urgência, o que não sucedeu.
Em face do exposto, julgam-se verificados os pressupostos relativos à ilicitude e à culpa. Também não oferece dúvidas que sobre a R. impende a obrigação de indemnizar a A. pelos prejuízos que tenham advindo do comportamento ilícito e culposo dos agentes da R.»
O apelante dissente do assim decidido, afirmando que o Tribunal a quo fez dos factos provados uma interpretação ilegal e ilegítima, pugnando pela revogação a decisão e pela sua absolvição total do pedido.
Nas suas contra-alegações começa por frisar que eram essencialmente três as questões que se colocavam na ação, e que passavam por saber (i) se foi prestado consentimento informado, livre e esclarecido, para a execução da TAC; se ( ) a TAC foi executada em conformidade com as leges artis e se ( iii) a Autora sofreu danos, patrimoniais e não patrimoniais, na sequência dos factos ocorridos.
Quanto à atuação dos seus profissionais, sustenta não se ter provado que os mesmos tenham atuado de forma ilícita, ou seja, que tenham violado a Lei e as Leges Artis, quer na execução do exame, quer nos cuidados prestados posteriormente.
Afirma que o Tribunal a quo considerou que os danos reclamados pela autora foram causados pelo extravasamento do líquido de contraste, mas como não se apurou a verdadeira causa desse extravasamento do líquido de contraste, aplicou a regra constante do art.º 493.º, n.º2 do CC, entendendo assim que competia à Ré alegar e provar que aplicou a aptidão e diligência possível, mas que, por razões que não podia prever ou controlar, verificou-se o facto danoso, ou seja, considerou que a administração de contraste numa TAC constitui uma atividade perigosa nos termos e para efeitos do disposto no art.º 493.º, n.º2 do CC, pelo que teriam aplicação as regras da responsabilidade objetiva ou pelo risco, competindo à Ré a prova de que os seus profissionais empregaram todas as diligências exigidas para prevenir o dano.
O Apelante discorda da aplicação do art.º 493.º, n.º2 do CC ao caso em apreço, desde logo por a realização de uma TAC com contraste não ser uma atividade perigosa, sendo a possibilidade de extravasamento de contraste um dos riscos desse exame e pese embora as lesões que a autora veio a sofrer constituam uma situação raríssima, a realização da TAC não pode ainda assim ser descrita como uma atividade perigosa, pelo que não podia aplicar aquele normativo ao caso.
Para além deste erro de julgamento, entende ainda o apelante que perante os factos provados nunca o Tribunal a quo, mesmo aplicando o regime do art.º 493.º, n.º2 do CC, poderia ter concluído que «ocorreu uma violação das leges artis na medida em que a injeção do líquido de contraste não decorre conforme devia ter decorrido e que não foi dada à A. o tratamento urgente que a situação exigia, limitando-se, no imediato, o Hospital R., através da técnica de radiologia, a colocar um penso anti-séptico na mão da A. e, após colocação de novo cateter, a realizar a TAC, encaminhando a A. para o serviço de urgência, supostamente para ser observada com mais urgência, o que não sucedeu» , por tal conclusão estar em completo desacordo com os factos tidos como provados, em especial, os constantes das alíneas 21 a 27, e nos artigos 6, 30 a 36, 39 a 51 e 54 a 58.
É que, após o extravasamento, a lesão estava efetuada, não havendo qualquer possibilidade de a reverter, apenas devendo manter-se a autora em observação e vigilância, para verificar a evolução do seu estado de saúde, e os procedimentos imediatos a adotar, foram executados, como seja a drenagem do líquido, chamamento de enfermeira e encaminhamento para observação médica, e tendo a sua situação evoluído negativamente, foi solicitado um parecer para cirurgia plástica.
Em conclusão, não tendo sido violadas as regras das leges artis, considerando a prova produzida e os factos tidos como provados, a Ré não poderia ter sido condenada, e muito menos aplicando-se o instituto da responsabilidade objetiva ou pelo risco.
Ademais, sustenta ainda o apelante que a quantia de 15.000,00€ atribuída à apelada a título indemnizatório é exorbitante.
O que dizer?
A responsabilidade médica, na falta de um regime especial, tem sido enquadrada pela doutrina e pela jurisprudência, quer no âmbito da responsabilidade contratual, quando estejam em causa atos médicos ocorridos no seio do exercício da medicina privada, quer no domínio da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública, quando estejam em causa atos médicos praticados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
É firme e pacifica a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo no sentido da responsabilidade civil decorrente da prática de atos médicos em estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde, ser de natureza extracontratual ou aquiliana. Nesse sentido, veja-se o Acórdão do STA de 09.06.2011, proferido no processo n.º 0762/09 no qual se enuncia que «A responsabilidade por actos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos tem natureza extracontratual, incumbindo ao lesado o ónus de alegar e provar os factos integradores dos pressupostos dessa responsabilidade, regulada, fundamentalmente, no Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967».
Em igual sentido tome-se também em consideração o Ac. STA, de 16.01.2014, Processo nº 0445/13 no qual igualmente se adverte que «A responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos imputados a um Hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde não tem natureza contratual, sendo-lhe aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos».

Esta jurisprudência é também sustentada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que em vários arestos tem veiculado o entendimento de que nas relações entre o utente e o SNS se aplica o regime da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, e isso porque, os cuidados de saúde que são prestados aos pacientes por estabelecimentos ou profissionais SNS emergem da obrigação constitucional e legal do Estado de assegurar a todos os cidadãos que careçam de cuidados médico-cirúrgicos essa prestação de serviço público, não estando na disponibilidade dos profissionais/estabelecimentos hospitalares que integrem a rede do SNS a possibilidade de recusarem a prestação dos cuidados de saúde a quem deles necessite e se socorra desses serviços.
Nesse sentido, cita-se o Ac. do STJ de 25/02/2015, processo nº 804/03.2TAALM.L.S1, no qual aquela alta instância, acompanhando a jurisprudência já expressa em vários outros arestos anteriores, reiterou uma vez mais tal entendimento, ao expender que «O acto médico praticado em hospital público integrado no SNS representa um acto técnico no exercício de uma dada profissão de acordo com certas prescrições, naturalmente que da ciência médica, constituindo uma função pública, integrada na denominada “função técnica do Estado”, qualquer que seja a natureza de que se revista o hospital, com ou sem autonomia patrimonial, empresarial ou sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, segundo a classificação adoptada na Lei de Gestão Hospitalar n.º 27/2002, de 08-11.
- O Hospital demandado, onde a arguida e demandada, médica especialista da área de medicina interna, prestava serviço, à data dos factos - 2003 - assume a natureza de sociedade anónima, entidade englobada num fenómeno visando a “criação de uma Administração indirecta privada“, uma “privatização formal da Administração e uma utilização instrumental da personalidade jurídica privada “, para o desempenho de tarefas de interesse público correspondentes ao exercício da função.
- Dominantemente se recusa a natureza contratualista à prestação de serviços médicos na rede nacional de hospitais públicos, em contrário do que sucede nos hospitais privados, ditos particulares ou em consultórios de idêntica categoria, havendo que fundá-la, antes, na responsabilidade civil extracontratual, seja ela por facto negligente ou voluntário e, também, ilícito.
- A responsabilidade contratual, nos hospitais públicos, derivaria de o facto de o doente em
tratamento não ser um estranho e lhe assistir um genérico direito a não ver lesada a sua integridade física ou moral; é alguém que, positivamente, tem direito a certo número de cuidados prestados com a diligência exigível.
- É, pois maioritária a posição - excluindo-se, ainda a concepção da natureza atípica - que perfilha o entendimento de que a prestação de serviços médicos nos hospitais públicos se não enquadra no contrato de prestação de serviços previsto no CC, no art. 1154.º e ss., antes assumindo uma simples prestação de serviço público, em que como regra, o médico é desconhecedor da pessoa do doente e este da pessoa do médico, surgido acidentalmente, ignorando as suas qualidades técnicas, de quem espera o melhor desempenho na aplicação dos melhores e mais oportunos conhecimentos da sua ciência e que não recebe do beneficiário ordens ou instruções, gozando de uma quase total ou, melhor dizendo, total independência.» Cfr. Acs. do STJ, de 24/5/2011, Processo nº 1347/04.2TBPNF.P1.S1; de 29/10/2015,Processo nº 2198/05.2TBFIG.C1.S1;

Em suma, podemos afirmar que os hospitais públicos, em sentido amplo - sejam os que estão enquadrados no sector público administrativo, como os que apenas fazem parte do sector empresarial do Estado e as Parcerias Público-Privadas, todos eles, atuam no exercício de prerrogativas de poder público e/ou exercem atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, pelo que os atos médicos (sejam eles ações ou omissões) neles praticados correspondem, inequivocamente, ao exercício da função administrativa.

Foi também este o entendimento subscrito pela 1.ª Instância, que no caso considerou que a efetivação da responsabilidade por ato médico realizado em estabelecimento do SNS é de natureza extracontratual ou aquiliana.
Assim, no caso em juízo, o apelante só poderá ser responsabilizado pelos danos que a apelada alega ter sofrido em consequência da realização da TAC se forem provados em juízo, os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil extracontratual, previstos nos artigos 7.º e seguintes da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro. Ter-se-á, pois, de provar que o médico/ profissionais de saúde do Réu praticaram um facto, positivo ou negativo, ilícito, culposo e causador de danos à autora para que esta possa ser ressarcida, a não ser que se aplique alguma presunção de culpa, designadamente, a do art.º 493.º, n.º2 do Cód. Civil.
Conforme se sabe, é jurisprudência firme e reiterada do STA que os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública decorrente de atos ilícitos praticados pelos seus agentes são idênticos aos do regime da responsabilidade civil extracontratual prevista e regulada no Código Civil.
Nesse sentido, veja-se exemplificativamente a jurisprudência promanada no Ac. do STA, de 3/07/2007, processo nº 0443/07, no qual se enuncia que «A responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas colectivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, que são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa), o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade entre este e o facto». Cfr. Em igual sentido, Ac. do STA, de 2/12/2009, processo nº 0763/09;
Note-se que, como bem se refere na sentença recorrida a culpa do ente coletivo, como um Hospital, não se esgota na imputação de uma culpa psicológica aos agentes que atuaram em seu nome, porque o facto ilícito que causar certos danos pode resultar de um conjunto, ainda que mal definido, de fatores, próprios da desorganização ou falta de controlo, ou da falta de colocação de certos elementos em determinadas funções, ou de outras falhas que se reportam ao serviço como um todo.

Importa assinalar se que o regime instituído pela Lei 67/2007, de 31 de dezembro consagra uma responsabilidade exclusiva das entidades públicas (regulada no art.º 7º), em caso de comportamento ilícito cometido apenas com culpa leve dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, e uma responsabilidade pessoal e direta do titular do órgão, funcionário ou agente (prevista no art.º 8º), solidariamente com o ente público, relativamente às ações ou omissões cometidas com dolo ou com negligência grosseira.

Feito este enquadramento, passemos à análise dos pressupostos da ilicitude e da culpa.
Ao pressuposto da ilicitude refere-se o at.º 9.º da Lei nº 67/2007, prevendo-se no n.º1 duas modalidades de ilicitude: a ilicitude decorrente da ilegalidade e a ilicitude por inobservância de deveres objetivos de cuidado. No n.º 2 deste normativo, contempla-se ainda a ilicitude decorrente das situações de funcionamento anormal do serviço, tal como previstas nos nºs 3 e 4 do artigo 7º.

Não é despiciendo frisar que no campo da responsabilidade civil por atos ou omissões ocorridos em estabelecimento do SNS, está sobretudo em causa a ilicitude consubstanciada na infração de regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e não tanto a violação de normas e princípios jurídicos, porque os danos potencialmente indemnizáveis resultam quase sempre de atividades materiais ou técnicas.
Como bem observa VERA LÚCIA RAPOSO Cfr. In “Do ato médico ao problema jurídico. Breves Notas sobre o Acolhimento da Responsabilidade Médica Civil e Criminal na Jurisprudência Nacional”, Coimbra, 2015, p. 17. «a ilicitude da actividade médica não resulta necessariamente de violação da lei, do contrato, e nem mesmo do interesse de outrem, mas sim da violação das regras próprias da prática médica, consagradas nos mais diversos locais».
Note-se que no domínio da responsabilidade civil médica, «só existe falta médica quando o médico viola, cumulativamente, uma lei da arte e o dever de cuidado que lhe cabe, e assim se afasta daquilo que dele é esperado naquele caso (o que, no mundo anglo-saxónico, é conhecido como common practises”)».
«Noutros casos a falta médica não radica no ato praticado – aquele resultado nefasto pode até ser considerado um dos riscos possíveis e inevitáveis do ato médico, ou uma consequência que no caso concreto não se ficou a dever a uma falta do agente – mas sim na ausência do subsequente ato que corrigiria o resultado lesivo».

Quanto ao requisito da culpa, estabelece o n.º1 do art.º 10.º da Lei 67/2007, que «A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor».
Note-se que o pressuposto da culpa, fora dos casos em que se esteja perante a verificação de «danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos”, prevista no art.º 11 da Lei 67/2007 e das situações de indemnização por sacrifício, previstas no art.º16º, é pressuposto necessário para que se possa responsabilizar a Administração pela ocorrência de danos, tendo de haver um facto ilícito e censurável para que possa reclamar-se da Administração a responsabilidade pelos danos que se verifiquem em consequência da atuação de um seu agente.
Sublinhe-se ainda que este art.º 10.º da citada Lei, estabelece um critério próprio de aferição da culpa, no domínio da responsabilidade da Administração, prevendo como padrão aferidor da culpa, o agente zeloso e cumpridor, pelo que se pode concluir que o legislador assumiu ser imperativo que a Administração atue, através dos seus agentes, com a diligência a que uma pessoa competente está vinculada, sob pena de violação dos deveres de zelo e de boa administração.
Um aspeto inovador do novo regime legal que convém também realçar, traduz-se na previsão de uma presunção de culpa leve para a prática de atos jurídicos ilícitos (artigo 10º, n.º 2) e para o incumprimento de deveres de vigilância (artigo 10º, n.º 3).
A respeito da presunção de culpa leve prevista neste n.º3 do art.º 10.º, CARLOS CADILHA Cfr. In “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado” cit., pp. 168-169., defende que com tal previsão, o que se pretendeu foi consagrar a orientação jurisprudencial já firmada no domínio do Decreto-Lei n.º 48051 quanto à culpa in vigilando, remetendo para um regime similar ao dos artigos 491º e 493º, n.º 1, do Código Civil.
Porém, e com interesse para situação em análise, sustenta também aquele autor que «Ficam excluídas, deste modo, a presunção de culpa em relação a danos resultantes do exercício de atividades perigosas, a que se reporta o n.º 2 do artigo 493º do Código Civil, e relativamente aos quais se encontra prevista uma forma de responsabilidade objectiva, nos termos descritos no artigo 11º desta Lei, bem como todas as demais situações de presunção de culpa consignadas no Código Civil, e especialmente nos artigos 491º e 492».
Na mesma linha de entendimento, pronunciou-se também o STA, no seu Acórdão de 16/01/2014, processo n.º 0445/13, afirmando que «o art. 493º, 2, do Código Civil não é aplicável à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos».
Para tal entendimento, considerou-se nesse aresto que «No âmbito da gestão privada a actividade perigosa é, em geral, exercida em proveito do agente e, portanto, justificativa de um regime de responsabilidade civil próximo da responsabilidade pelo risco (art. 493º, 2 do C. Civil). Quem beneficia da actividade perigosa, também tem o encargo de evitar o perigo que eventualmente possa causar e daí a especial onerosidade quanto ao ónus da prova. A justificação do regime de inversão do ónus da prova no art. 493º, 2 do CC aproxima-se da justificação da responsabilidade pelo risco e daí a semelhança entre ambos os regimes (quem beneficia da actividade perigosa suporta os danos por ela causados se não provar que não teve culpa).
Tal não acontece com os serviços e actividades perigosas prestadas pelo Estado aos seus cidadãos, onde o benefício desse exercício redunda a favor de quem os procura – como é exemplar o caso da prestação de cuidados médicos. Deste modo, havendo no Dec. Lei 48.051, um regime geral de responsabilidade civil para as actividades perigosas deve entender-se que o Estado, pelo exercício de tais actividades, responde objectivamente, mas apenas nos termos e condições previstas no art. 8º, isto é, quando o perigo seja especial e quando os danos sejam também especiais e anormais.
Este regime não invalida, bem entendido, a responsabilidade do Estado e demais entes públicos, nos termos gerais, isto é, sempre que se prove a culpa, mas sem recurso à presunção do art. 493º, 2 do C. Civil – permitindo-se também quanto à culpa o recurso a presunções naturais.»
O n.º2 do artigo 493º do Código Civil dispõe que “quem causar danos a outrem no exercício e uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”, consagrando uma responsabilidade fundada numa culpa presumida.
Como observa o Prof. Luís Meneses Leitão Cfr. In “Direito das Obrigações”, I, 308; a responsabilização prevista no art.º 493.º, n.º2 do Cód. Civil “parece ser estabelecida a um nível mais objectivo do que o que resulta das disposições anteriores, uma vez que, além de não se prever a ilisão da res­ponsabilidade com a demonstração da relevância negativa da causa virtual, parece exigir-se ainda a demonstração de um grau de diligência superior à das disposições anteriores, uma vez que, em lugar da simples prova da ausência de culpa (apreciada nos termos do art.º 487º, nº 2), o legislador exige a demonstração de que o agente “empregou todas as providências exigidas pelas circunstân­cias com o fim de prevenir” os danos, o que parece apontar para um critério mais rigo­roso de apreciação da culpa, ou seja, para um critério da culpa levíssima”.
Assim sendo, parece poder afirmar-se que nas situações enquadráveis nesta norma a presunção de culpa do agente é ili­dida pela demonstração de que atuou, não apenas como teria atuado o bom pai de família pressuposto no art.º 487º, nº 1 – uma pessoa medianamente cautelosa, atenta, informada e sagaz – mas, mais do que isso, empregando todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de evitar os danos. Por isso se diz que o caso previsto neste art.º 493º, nº 2, representa uma respon­sabilidade subjetiva agravada ou objetiva atenuada – uma solução intermédia entre uma e outra – de modo tal que o lesante, só ficará exonerado quando tenha adotado todos os procedimen­tos idóneos, segundo o estado da ciência e da técnica ao tempo em que atua, para evitar a eclosão dos danos.

No âmbito da Lei n.º 67/2007, de 31/12, que prevê o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, o legislador nacional estabeleceu no artigo 11, n.º1 que “O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos (…)”, tratando-se aqui da fixação de uma responsabilidade pelo risco ( objetiva).
Neste normativo, prevê-se assim, a possibilidade do Estado e demais entidades públicas serem responsabilizadas a título de risco, pelos danos que decorram de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos ( n.º1 ) e não meramente perigosos, como se alude no art.º 493.º, n.º2 do Cód. Civil.
A este respeito, RUI MEDEIROS Cfr. In “Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas”, pág. 286 e segts. sustenta que «efectivamente, ao contrário do que sucede nas demais situações, o artigo 11º [da Lei nº 67/2007] (…) prevê expressamente, numa solução que alarga o âmbito do disposto no artigo 8º do Decreto-Lei nº 48051, que “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de actividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos […]”». «Ou seja, enquanto o nº 2 do artigo 493º do Código Civil dispõe que “quem causar danos a outrem no exercício e uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”, consagrando uma responsabilidade fundada numa culpa presumida, os danos decorrentes de actividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos são enquadrados, no novo diploma [Lei nº 67/2007], no âmbito a responsabilidade (objectiva) pelo risco». Portanto, para aquele autor «significa isto que, à partida, tendo o legislador optado por enquadrar a tutela ressarcitória de “danos decorrentes de actividades excepcionalmente perigosas”, na formulação do artigo 8º do Decreto-Lei nº 48051, ou especialmente perigosas, no artigo 11º da nova lei, no âmbito da responsabilidade pelo risco, instituindo assim para a Administração um regime de responsabilidade mais amplo do que o previsto no Código Civil, não há espaço para convocar a presunção de culpa a que alude o nº 2 do artigo 493º, pois não há uma lacuna no sistema de responsabilidade civil dos poderes públicos».

De todo o modo, RUI MEDEIROS acaba por defender que «não está em absoluto excluído que possa haver situações não cobertas pela cláusula da responsabilidade pelo risco e passíveis de ser abrangidas pela presunção civilística de culpa para as actividades perigosas». «É certo que a situação era mais clara em face da legislação anterior [DL. Nº 48 051], uma vez que [na sua vigência] se podiam equacionar situações em que a actividade fosse perigosa [“tout court”], mas não, como exigia o artigo 8º do decreto-Lei nº 48051107 para operar a responsabilidade pelo risco, excecionalmente perigosas».
Segundo este autor «Ainda assim e caso se entenda que as actividades perigosas a que se refere o nº 2 do artigo 493º [do CC] podem não se subsumir no conceito de atividades especialmente perigosas adotado no artigo 11º do novo regime – e a conclusão está por demonstrar (…) -, justifica-se aplicar a referida presunção de culpa às situações cobertas pelo nº 2 do artigo 493º do Código Civil e não abrangidas na cláusula geral de responsabilidade pelo risco (actividades que, não sendo especialmente perigosas, são perigosas por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados)». Isto porque «a solução é coerente com a abertura geral consagrada no nº 3 do artigo 10º, não é infirmada pelo disposto no artigo 11º, que não abrange estas hipóteses, e é consentânea com o sentido global amigo dos lesados que subjaz à nova regulamentação da responsabilidade civil da Administração por factos ilícitos»110.
A solução preconizada por RUI MEDEIROS é igualmente defendida por CARLA AMADO GOMES Cfr. In “Presunção e diligência, cada um toma a que deve”, publicado in Cadernos da Justiça Administrativa, nº 112,Julho/Agosto de 2015, pp. 37-40..

Porém, o entendimento da jurisprudência administrativa, como vimos, é sólido no sentido da não aplicabilidade do art.º 493º, nº 2, do Cód. Civil no domínio da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos, pese embora as críticas por parte de alguma doutrina.

No que tange especificamente à responsabilidade civil extracontratual decorrente do exercício da atividade médico-cirúrgica, importa, antes de mais, frisar que a atividade médico- cirúrgica não pode ser tida como uma atividade excecionalmente perigosa, sequer perigosa, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados e , por isso, não se encontrará abrangida, em principio, pela previsão do art.º 493.º, n.º 2 do Cód. Civil, nem pelo art.º 11.º da Lei 67/2007.
É pacífico que nas ações que corram termos nos Tribunais Administrativos destinadas a obter a condenação dos estabelecimentos hospitalares que integrem o SNS com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, de acordo com o regime-regra, será sobre o utente/paciente do SNS que impenderá o ónus de alegar e demonstrar todos os requisitos de que depende a existência dessa responsabilidade, designadamente a ilicitude, provando a infração de regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado, a culpa dos profissionais de saúde, aferida pelo critério da diligência e aptidão razoavelmente exigíveis a um funcionário ou agente zeloso e cumpridor e o nexo de causalidade adequada entre os atos médicos praticados ou omitidos e os danos sofridos pelo utente.
Tal não significa, como tivemos já ensejo de enunciar, que não possam funcionar a favor do utente do SNS presunções legais de culpa a cargo do estabelecimento de saúde em causa, nomeadamente as previstas nos arts. 491º e 493º, nº 1.
A questão que para os autos assume relevância e sobre a qual temos de tomar posição está em saber se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual decorrente de atos médicos praticados em estabelecimentos de saúde que integrem o SNS são de admitir situações que não sendo abrangidas pelo art.º 11.º da Lei 67/2007, ou seja, que não podendo qualificar-se como atividades especialmente perigosas, possam contudo enquadrar-se no âmbito do n.º2 do art.º 493.º do C. Civil por serem objetivamente atividades perigosas, estabelecendo-se, quanto à pratica dessas atividades médicas, uma presunção de culpa a cargo do Hospital Público.
E quanto a esta questão, secundamos o entendimento expresso no Acórdão do STA, de 16.01.2014, que tivemos ensejo de transcrever, desde já se antecipando que entendemos não ser aplicável ao caso em juízo o n.º2 do art.º 493.º do Cód. Civil e isso, independentemente da possibilidade de enquadramento da realização de uma TAC no conceito de atividade perigosa a que se alude naquele preceito legal, exatamente porque se trata de responsabilizar uma entidade que prestou cuidados e realizou esse exame no âmbito duma relação que não tem natureza contratual.
Não é despiciendo notar que mesmo ao nível da jurisprudência do STJ, como se verifica no seu Acórdão de 25/02/2015 , proferido no processo n.º 804/03.2TAALM.L.S1, se afirma, em tese geral, que «A actividade de prestação de serviços médicos não se enquadra na previsão do art. 493.º, n.º 2, do CC, prevendo a responsabilidade pelo risco, por tal actividade não ser, na sua essência, genericamente, perigosa, nem por si nem nas suas consequências, devendo, por isso, o que retira proveito daquela sofrer as consequências da sua prática e prová-las, sendo excessiva a presunção de culpa no caso da actividade médica». Isto porque «A responsabilidade médica só em situações muito excepcionais se deve considerar excepcionalmente perigosa, o que teria a desvantagem, se fosse de assumir como regra, de conduzir a medicina com efeitos defensivos, trazendo o efeito de retardar o progresso em certas especialidades em prejuízo para o próprio doente, além de conduzir a inqualificáveis repercussões na dignidade pessoal e profissional do médico; de nada se lucrando alargar, sem reflexão, as hipóteses de responsabilidade objectiva, sendo salutar que a compensação pelos danos acidentais do acto médico, pelas suas “ faults “, se processe por meio de um seguro ou fundo de garantia, com vantagem para o paciente que não tem que arrostar o cansaço do processo e as dificuldades patrimoniais do médico em suportar o montante dos danos».
E conforme refere André Gonçalo Dias Pereira “ não podem subscrever-se afirmações genéricas de que «toda a actividade médica seja perigosa, ou mesmo que toda a actividade cirúrgica se subsuma a esta norma, nem mesmo que todas as operações cirúrgicas que envolvam a abertura do abdómen sejam perigosas» Cfr. in “Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica” cit., p.


Não desconhecemos que no âmbito da medicina privada, é de certo modo consensual o entendimento segundo o qual a realização de tratamentos médicos com raios x e ondas curtas, a realização de operações ousadas, tais como operações de enxerto e de transplantação de órgãos (embora aqui exista um regime de responsabilidade objetiva), a utilização de aparelhos de ressonância magnética, de hemodiálise e de incubadoras, são subsumíveis à previsão do art.º 493º, nº 2 do Cód. Civil.
A esse respeito, veja-se o exemplo paradigmático apresentado por ANTUNES VARELA Cfr. “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10.ª Edição, Coimbra, 2006, pág. 595;, que é o do emprego dum bisturi elétrico que envolve, em virtude da sua alimentação com energia elétrica, uma série de perigos.
Sabemos que na doutrina, predomina largamente, o entendimento segundo o qual a regra do art. 493º-2 funciona quando há utilização, pelo médico, de aparelhos ou máquinas que exigem um manuseamento cuidado e atento: só nestes casos é que incumbe ao médico provar que os danos provocados por um desses aparelhos ou máquinas não são devidos a uma utilização negligente, mas a fatores independentes dessa circunstância, como, por exemplo, a um defeito de fabrico.
Subscrevemos o entendimento dominante na doutrina de que, embora a medicina não seja, em geral, considerada uma “actividade perigosa”, para efeitos do art.º 493º, n.º2, todavia, a utilização de instrumentos ou aparelhos médicos, enquanto “coisas móveis”, as infecções nosocomiais ou as quedas ocorridas no edifício hospitalar, enquanto decorrentes de “coisas imóveis”, preenchem as presunções de culpa previstas no art.º 493º, n.º2 do Cód. Civil, mas com uma particularidade: quando tal ocorra no domínio de uma relação contratual utente/médico.
A natureza objetivamente perigosa de algumas atividades médicas, como é o caso da realização de uma TAC, como se pode considerar à luz da doutrina e da jurisprudência do STJ, não consente que no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos decorrentes de atos médicos praticados em hospital público se possa recorrer ao regime do art.º 493.º, n.º2, atenta a natureza da relação estabelecida entre o paciente e o Hospital Público que lhe prestou assistência médica.
Assim, numa situação como a que temos em juízo, provado que em consequência da realização de uma TAC resultou o extravasamento do líquido de contraste no membro superior esquerdo da paciente/autora, que lhe provocou lesões graves, não se pode admitir que deixe de impender sobre aquela o ónus de demonstrar a culpa na atuação dos profissionais do SNS que realizaram o exame mal sucedido, e antes passe a presumir-se o Hospital como culpado, de tal modo que seja sobre este que passe a impende a ónus de provar que os seus profissionais atuaram de forma zelosa e cumpridora, e isso pelas razões já enunciadas, que constituem firme jurisprudência do STA.
A respeito de uma situação de responsabilidade por ato médico, considerou-se no já citado aresto do STA, de 16.01.2014, processo n.º 0445/13 que «a aplicação do regime do art.º 493.º, 2 do C. Civil à responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos é bastante problemático.
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, por exemplo, consideram que não ser aplicáveis as presunções de culpa na responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, pelo menos nos casos em que não existem “normas que determinem a aplicação de tais presunções” – cfr. Responsabilidade Civil Administrativa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, 2008, pág. 28.

A actual Lei 67/2007, de 31/12, o art.º 6.º, n.º 3, consagra uma presunção de culpa leve sempre que tenha havido incumprimento dos deveres de vigilância, ou seja, consagra uma presunção de culpa “in vigilandum”, tal como a jurisprudência do STA vinha admitindo, mas nada diz sobre a extensão dessa presunção aos casos previstos no art.º 493.º, 2 do C. Civil.
FERNANDES CADILHA … também admite apenas as presunções de culpa “por omissão do dever de vigilância”. “Fora dos casos de presunção de culpa por omissão do dever de vigilância (…) e que envolve a inversão do ónus da prova, a existência da culpa exige a demonstração inequívoca de um juízo de reprovação subjectiva… (…) – Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina, 2008.

Também no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 22/6/2014, proferido no processo 01810, é expressamente afastada essa aplicação:
“(…)Aceitando que a guarda de presos em estabelecimentos prisionais fechados configure uma actividade perigosa, consideramos que se não verifica, no caso sub judice, qualquer responsabilidade do Estado. É que, contrariamente ao que acontece nos actos de gestão privada, em que existe responsabilidade objectiva no âmbito da simples actividade perigosa (cfr. art.º 493.º, n.º 2 do CC), nos actos de gestão pública essa responsabilidade só se verifica no âmbito das actividades excepcionalmente perigosas (cfr. art.º 8.º do DL n.º 48051). A diferença de tratamento radica na consagração de que é razoável exigir aos particulares o risco próprio da vida em colectividade e da sua organização, ou seja da actividade administrativa, até limites aceitáveis de perigosidade, só havendo responsabilidade quando esses limites orem ultrapassados, o que só se deve considerar em casos excepcionais, isto é, de muita elevada perigosidade.
(…).
Foram razões semelhantes às do acórdão deste Supremo Tribunal acima referido que levaram ao entendimento, segundo o qual o art.º 493.º, n.º 2 do C. Civil não era aplicável à responsabilidade civil emergente dos acidentes de viação, dado que, relativamente a tal actividade, se encontrar especificamente regulada, tanto na área da responsabilidade civil fundada na culpa (art.º 483.º, 1) como na zona negra da responsabilidade pelo risco – ANTUNES VARELA, Das obrigações em Geral, I, 10.ª edição, pág. 596. Doutrina esta que, de resto, viria a ter consagração no Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/11/79 (DR de 29/1/80), segundo o qual “O disposto no art.º 493.º, n.º 2 do C. Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”.
Concordamos com o entendimento do aludido acórdão do STA e acima parcialmente transcrito, sublinhando que no âmbito da gestão privada a actividade perigosa é, em geral, exercida em proveito do agente e, portanto, justificativa de um regime de responsabilidade civil próximo da responsabilidade pelo risco (art.º 493.º, 2 do C. Civil). Quem beneficia da actividade perigosa, também tem o encargo de evitar o perigo que eventualmente possa causar e daí a especial onerosidade quanto ao ónus da prova. A justificação do regime de inversão do ónus da prova no art.º 493.º, 2 do CC aproxima-se da justificação da responsabilidade pelo risco e daí a semelhança entre ambos os regimes (quem beneficia da actividade perigosa suporta os danos por ela causados se não provar que não teve culpa).
Tal não acontece com os serviços e actividades perigosas prestadas pelo Estado aos seus cidadãos, onde o benefício desse exercício redunda a favor de quem os procura – como é exemplar o caso da prestação de cuidados médicos. Deste modo, havendo no DL 48051, um regime geral de responsabilidade civil para as actividades perigosas deve entender-se que o Estado, pelo exercício de tais actividades, responde objectivamente, mas apenas nos termos e condições previstas no art.º 8.º, isto é, quando o perigo seja especial e quando os danos sejam também especiais e anormais.
Este regime não invalida, bem entendido, a responsabilidade do Estado e demais entes públicos, nos termos gerais, isto é, sempre que se prove a culpa, mas sem recurso à presunção do art.º 493.º, 2 do C. Civil – permitindo-se também quanto à culpa o recurso a presunções naturais»”.
Também no Ac. do STA, de 05.07.2018, processo 0482/17 se sumariou que «I - O Art.º 493.º, n.º 2, do Código Civil, não é aplicável à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos», dizendo-se claramente nesse aresto «esta presunção não funciona no domínio da responsabilidade civil extracontratual do Estado, pelas razões constantes do Ac. deste STA de 16/1/2014 – Proc. n.º 0445/13 (cf., no mesmo sentido, os Acs. de 22/6/2004 – Proc. n.º 01810/03 e de 15/5/2014 – Proc. n.º 01504/13)»

Assim sendo, não podemos subscrever a sentença recorrida quando considera que é aplicável ao caso a disposição do n.º2 do at.º 493.º do Cód. Civil, tendo a Senhora Juiz a quo, salvo o devido respeito, errado quando assim decidiu..

Aqui chegados, e para que o Hospital apelante responda pelos danos sofridos pela apelada, importa aferir se a autora conseguiu demonstrar em juízo todos os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos de cuja verificação dependerá o sucesso da sua pretensão indemnizatória.
Conforme se afirma no Ac. do STA de 6/06/2007, processo nº 021/07 porque «é sempre tarefa delicada e difícil decidir se a realização de determinado acto médico foi a mais correcta e a mais adequada às circunstâncias do caso concreto ou se, pelo contrário, a mesma violou as regras de ordem técnica e de prudência comum que lhe deviam presidir, pois que não se tratando de uma operação matemática e, portanto, de uma operação em que o diagnóstico e tratamento só pudesse ser um único, os resultados desse acto dependem muitas vezes de variáveis nem sempre antecipadamente conhecidas ou controláveis», «exige-se que numa acção deste tipo se articule e, depois, se prove por que razão se considera que a assistência médica ministrada não foi a mais adequada e porque é que foi a mesma a provocar os danos peticionados, e isto porque o facto de um determinado tratamento clínico não produzir os resultados desejados não significa, por si só, que tenha havido erro médico e que tenha sido este o causador das mazelas de que o Autor se queixa.»
Dir-se-á que para se afirmar que a atuação médica é ilícita, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a autora terá de provar que houve vícios, irregularidades ou defeitos na prestação efetuada, demonstrando que os profissionais do Réu/apelante não conformaram a sua conduta com as regras de atuação aptas, em abstrato, a proporcionarem a produção do resultado desejado. Ademais, terá ainda de provar que os funcionários do apelante (médicos e demais prestadores de serviços de saúde) se desviaram do padrão de comportamento diligente e competente, a que, como profissionais da área, deviam obedecer, provando que houve da parte desse pessoal um comportamento que se desviou da regra genérica de prudência ou que adotaram uma conduta que desrespeitou as regras da ciência médica a que os mesmos deviam obediência.
Facilmente se intui a afinidade entre o juízo de ilicitude e o juízo que deve ser formulado para aferir da culpa do agente, havendo uma espécie de assimilação entre o incumprimento e a atuação culposa, pese embora na apreciação da ilicitude se trate de aferir se um dado comportamento, despido dos elementos relacionados com o seu autor, merece censura à luz do nosso ordenamento jurídico, ao passo que na culpa esteja está em causa a análise do comportamento, como atuação daquele concreto agente, de modo a determinar se o mesmo deve ser considerado censurável ou não.
Por outras palavras, o juízo de ilicitude é um juízo de desvalor objetivo ( a conduta, na sua objetividade), de modo que para apreciar a ilicitude do ato haverá que objetiva-lo, despojando-o das particularidades que influíram na atuação do agente, enquanto que a culpa consubstancia um juízo de desvalor jurídico ( a atuação daquele concreto agente), pelo que haverá que subjetivar o critério, de modo a saber se era exigível ao agente outro comportamento atendendo ao circunstancionalismo em que atuou.
Esse desvio pode manifestar-se de três formas: ( i) o da negligência, entendida como omissão dos cuidados devidos; (ii) o da imprudência que se caracteriza pela adoção imponderada de condutas arriscadas ou inadequadas e o (iii) da imperícia que se caracteriza pela ausência dos saberes teóricos, da capacidade técnica e da destreza prática adequada ao ofício que profissionalmente exerce.
O padrão a adotar para essa aferição será o funcionário zeloso e cumpridor, conhecedor dos seus deveres e portador do saber, no caso, do bom profissional médico a atuar no quadro em que o agente concreto atuou, tratando-se de um padrão flexível, uma vez que o conjunto de conhecimentos e de aptidões exigíveis « variam de acordo com os conhecimentos ou a preparação especiais dos indivíduos: o médico especialista deve ter cuidados especiais, cuja omissão é desculpável ao médico de clinica geral, no tratamento de doenças do foro da especialidade daquele»- cfr. Antunes Varela, I, p. 581.
Dir-se-á que a dificuldade na apreciação do desvalor da atuação médica será tanto menor quanto mais o ato médico estiver regulado do ponto de vista da leges artis, situação em que será mais fácil controlar o seu desenrolar.
Conforme se afirmou no Acórdão do STA, de 06 de junho de 2007, a falta do resultado pretendido com determinado tratamento médico não é significativa de verificação de erro médico.
Cabia, pois, à autora, o ónus de alegar os factos em que funda a sua pretensão indemnizatória, e de carrear para o processo todos os elementos de prova que demonstrassem a verificação dos factos constitutivos da responsabilidade que assaca ao hospital/ apelante. Em matéria de ónus da prova rege o art.º 342.º do CC, em cujo n.º1 se estabelece que recai sobre o autor o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que invoca e pretende seja reconhecido judicialmente, enquanto que cabe ao réu o encargo da demonstração dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito e do seu correlativo dever. Não se olvida que o encargo probatório que recai sobre o paciente é gigantesco e que são grandes, em regra, as dificuldades probatórias, que ditam, a maior parte das vezes, o insucesso destas ações.
Em função destes considerandos e aplicando ao caso concreto as diretrizes daí resultantes será que em função dos factos provados na ação se podem considerar como verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos assacada ao ora apelante?
Vejamos.
Conforme resulta do probatório, no dia 03.11.2011, a apelada dirigiu-se às urgências do apelante, alegando indisposição e queixas na zona abdominal, “tipo cólica”, com distensão abdominal e diarreia, tendo-lhe sido atribuída a cor verde, de acordo com a triagem de Manchester, correspondente a uma situação pouco urgente, e determinada a sua sujeição a tomografia axial computorizada (TAC) abdomino-pélvica com aplicação de contraste ( ver factos 1 a 5 da sentença).
Sucede que aquando da introdução do líquido de contraste, que foi administrado em cateter colocado para o efeito no braço/mão esquerda daquela, este extravasou a veia, espalhando-se pelos tecidos do membro esquerdo da autora, criando um edema pronunciado na mão esquerda, ruborização e dor (vide factos 7 a 10 da sentença).
Mais se provou que o contraste é injetado na veia por intermédio de uma bomba perfusora de pressão elevada o que, por vezes, e independentemente de qualquer fator humano, faz com que o produto extravase a veia onde é inserido (vide factos 11 e 12 da sentença), constituindo o extravasamento do produto um risco inerente ao processo, que ocorre com alguma frequência ( vide factos provados sob os pontos 26 e 27 da sentença).
Sendo assim, importa agora aferir se no caso concreto, o extravasamento do líquido de contraste se ficou a dever a alguma falha no procedimento de realização da TAC, isto é, se de acordo com a leges artis foi cometida alguma irregularidade no procedimento a observar na realização desse tipo de exame, ou seja, se foi violada alguma regra que devia ter sido observada pelos profissionais do apelante e, na positiva, se essa violação traduz uma atuação negligente dos profissionais envolvidos na realização da TAC a que a autora foi submetida.
Ora, coligida a matéria de facto dada como provada na sentença, não resulta demonstrada a causa do extravasamento do líquido de contraste, donde não resultar provado que esse extravasamento se tivesse ficado a dever a qualquer irregularidade na execução da TAC. Note-se que pese embora a autora tenha alegado, não demonstrou em juízo que ao executar a punção a enfermeira rebentou a veia, que quando estava a ser sujeita à profusão tivesse alertado de imediato a enfermeira para as dores que estava a sofrer e que aquela tivesse continuado a efetuar a punção e a profusão, como não provou que a veia tivesse sido mal “picada “ ( vide factos não provados)
Antes provou-se que, ao chegar ao serviço de imagiologia a autora já trazia uma veia cateterizada nas urgências, para lhe ser administrado o contraste, que antes de iniciar o exame, a técnica de diagnóstico se serviço, I., confirmou a permeabilidade do acesso venoso, após o que colocou a autora na sala reservada à realização da TAC, não tendo detetado qualquer anomalia na veia ou no cateter, tendo o exame iniciado sem qualquer intercorrência, sendo que, quando a mesma se encontrava em frente à consola de execução do exame, que fica de fora da sala, onde se encontrava a autora, apercebeu-se que, apesar de já ter acionado a máquina perfusora do produto de contraste, este não aparecia nas imagens do exame, pelo que de imediato dirigiu-se à sala reservada, onde constatou que o produto havia extravasado a veia cateterizada.
Perante a prova produzida no processo, afigura-se-nos que contrariamente ao alegado pela autora, os profissionais de saúde da Ré usaram de toda a diligência devida na execução da TAC com contraste, cumprindo todos os tramites e procedimentos impostos pelas leges artis, constituindo o extravasamento do contraste um risco inerente ao processo de realização da TAC, que ocorre com alguma frequência, e independentemente de qualquer fator humano.
Em face do exposto, forçoso é concluir que a pretensão indemnizatória da autora com fundamento na violação da leges artis na realização da TAC tem de ser julgada improcedente, razão pela qual discordamos da decisão proferida pela 1.ª Instância quando nela se afirma que «ocorreu violação das leges artis na medida em que a injeção do líquido de contraste não decorreu conforme devia ter decorrido» (mero juízo conclusivo, não consubstanciado em factos, factos esses que conforme se referiu antes apontam para conclusão contrária), a qual se impõe que seja revogada.
A autora alega ainda como fundamento da sua pretensão indemnizatória o facto de não lhe terem sido assegurados os cuidados e tratamentos devidos que se impunham de acordo com a leges artis, perante o extravasamento do contraste de que foi vítima aquando da realização da TAC.
A esse respeito, recorde-se, o Tribunal a quo considerou que «não foi dada à A. o tratamento urgente que a situação exigia, limitando-se, no imediato, o Hospital R., através da técnica de radiologia, a colocar um penso anti-séptico na mão da A. e, após colocação de novo cateter, a realizar a TAC, encaminhando a A. para o serviço de urgência, supostamente para ser observada com mais urgência, o que não sucedeu".
Será assim?
Cremos que não.
Considerando os factos provados, resulta demonstrado em juízo que, logo que a técnica de diagnóstico I., que estava ao serviço, constatou, após ter acionado a máquina perfusora do produto de contraste, que este não aparecia nas imagens do exame, a mesma dirigiu-se de imediato à sala reservada à realização da TAC, onde, perante a verificação de que o produto de contraste tinha extravasado a veia cateterizada, perguntou à autora se tinha alguma queixa, tendo-lhe aquela respondido afirmativamente que tinha sentido dor no braço mas que julgava ser normal pelo que não valorizara esse facto, cuidou de retirar de imediato o cateter da veia e de remover a maior quantidade possível do produto de contraste extravasado, após o que lhe aplicou penso antisséptico, e solicitou a intervenção de uma enfermeira para efetuar a cateterização de uma outra veia, com o propósito de prosseguir o exame, tendo sido realizada uma TAC sem qualquer intercorrência ( vide factos provados nos pontos 18 a 25 da sentença).
De seguida, terminada a realização do exame, a autora foi novamente encaminhada para o serviço de urgência, onde se verificou que o extravasamento do contraste lhe tinha provocado um edema pronunciado na mão esquerda, ruborização e dor, razão pela qual a mesma foi internada para cuidados no braço esquerdo e estudo etiológico do quadro clínico, incluindo os resultados da TAC ( vide factos provados nos pontos 28, 29 e 30).
Ora, até ao momento, não vemos que cuidados médicos ou assistenciais que fossem devidos á autora tivessem sido omitidos.
Aliás, perante o sucedido, não só a técnica de diagnóstico cuidou prontamente de parar a realização do exame e de remover o que era possível remover do líquido de contraste que extravasou a veia da autora, aplicando depois um penso antisséptico, como uma vez encaminhada a autora para o serviço de urgência, perante a verificação de que a mesma apresentava um edema pronunciado na mão esquerda, ruborização e dor, a mesma foi internada para cuidados no braço esquerdo, ou seja, para acompanhamento da evolução das lesões causadas pelo extravasamento do contraste e assistência médico-cirúrgica.
E nesse conspecto, provou-se igualmente que o Réu cuidou de assegurar o devido acompanhamento e apoio médico-cirúrgico à autora, conforme resulta, desde logo, da consideração dos registos clínicos cujo teor vem dado como assente nos pontos 31 a 36 dos factos assentes.
Resulta dos registos clínicos, concretamente do “Relatório de Enfermagem”, que à 1:53:35 do dia 04.03.2011, foi observado que a autora apresentava a “mão esquerda, com os 4 sinais inflamatórios presentes, mais flictenas dispersas, em consequência da injeção de contraste para TAC. Retirada ligadura que envolvia toda a mão, ficando de momento ao ar livre em drenagem postural…”. Mais resulta da “Ficha de urgência…”, que a “ 04/03/2011 09:32:33– Avaliação Clínica- Cirurgia Geral (…) Apresenta reação inflamatória intensa na mão esquerda aparentemente consequência do produto de contraste da TAC….04/03/2011 10:22:07…Pede-se observação por Cir. Plástica devido às lesões da mão esquerda….04/03/2011 11:51:13-….Face à opinião do colega de Cirurgia Plástica que é de parecer de que necessita de tratamento cirúrgico e dado que não dispomos daquela especialidade no nosso SU transfere-se para o Hospital de (…) após contacto prévio com colega da Cirurgia Plástica aí de SU».
Da consideração destes registos clínicos, extrai-se que a autora foi acompanhada continuamente por profissionais de saúde durante o seu internamento após ter sofrido o extravasamento do contraste na realização da TAC e que esse acompanhamento foi contínuo, tendo mesmo sido contactado o SU do Hospital de (...), face à evolução das lesões verificadas na mão da autora, para que aquela ali fosse sujeita a uma intervenção cirúrgica.
Mais se apurou que, uma vez transferida a autora para o SU do Hospital de (...), o que aconteceu logo no dia 04/03/2011, naquele serviço foi confirmada a lesão sofrida pela autora e verificado que a mesma se encontrava “ A iniciar síndrome de compartimento. Foi contactado Dr. (...) ( chefe de Equipe de Urgência do Hospital (...)) para esclarecimento da situação que aceita que a doente seja transferida para o Hospital (...) para descompressão de Síndrome de Compartimento…”, tendo a autora regressado a este hospital às 16: 06H, do dia 04/03/2011, onde foi internada no Serviço de Cirurgia, tendo logo nesse dia e em 06/03/2011 sido submetida a uma cirurgia de desbridamento e fasciotomias da face palmar com abertura da fáscia palmar e fasciotomias da mão esquerda, para o que prestou consentimento informado ( vide factos provados nos pontos 33 a 43 da sentença).
Mais se apurou que após ter tido alta médica, a 26/03/2011, do serviço de cirurgia, no qual foi sujeita a várias cirurgias, devido ao extravasamento do contraste que lhe provocou queimadura química do membro superior esquerdo, a mesma continuou a ser acompanhada pelos profissionais do apelante em consulta externa.
Apurou-se igualmente que o apelante cuidou de abrir um processo de inquérito destinado a averiguar se fora praticada alguma irregularidade pelos seus profissionais nos cuidados que prestaram à autora, tendo o mesmo sido arquivado, constando desse relatório que as declarações prestadas pela técnica de diagnóstico I., onde afirma, que «não é usual os utentes assinarem o consentimento informado para a realização destes exames com contraste…».
Perante esta factualidade, não podemos deixar de concluir que depois da constatação do extravasamento do contraste, foram assegurados à Autora todos os cuidados e acompanhamento que a mesma necessitava e que as leges artis impunham.
Na verdade, não foi alegada nenhuma regra da leges artis que tivesse sido violada, sequer foi alegado, e portanto provado, que verificado o extravasamento, era possível evitar a lesão ou reverte-la, sequer que a sujeição da autora a intervenção cirúrgica mais rápida tivesse evitado as lesões que sofreu e as dores que padeceu ou a sua sujeição a todas as cirurgias que teve de realizar. Mas provou-se, que os profissionais de saúde do apelante mantiveram a Autora em vigilância e observação permanente, para verificar a evolução do seu estado de saúde, designadamente, para verificar se haveria uma evolução, uma estabilização ou uma regressão.
E nada foi alegado que pudesse ter sido feito imediatamente após o extravasamento do contraste, que não tivesse sido feito, desconhecendo-se que tenha sido violada alguma regra que devesse ter sido cumprida, mas apurou-se que logo após essa ocorrência, foi efetuada a drenagem de algum do líquido de contraste, e que realizada a TAC, a autora foi encaminhada para observação médica no serviço de urgência, onde foi observada por um médico ( vide registos clínicos constantes do processo clínico da Autora, descritos nos pontos 6, 13 a 27, 30 a 36 dos factos tidos como provados na sentença), tendo-se a mesma mantido em observação constante e contínua.
E, perante a evolução negativa verificada, os profissionais da Ré efetuaram os procedimentos adequados, tendo solicitado um parecer de cirurgia plástica ao Hospital de (...) e perante o conteúdo desse parecer, a autora foi submetida à cirurgia que se impunha, para debelar a lesão verificada, o que foi conseguido.
A autora não alegou que procedimento diferente deveria ter sido seguido, que tivesse havido alguma omissão imputável aos profissionais de saúde que tivesse sido causal da evolução do seu estado de saúde, que intervenção se impunha tivesse sido realizada após o extravasamento do contraste que lhe foi negada.
Deste modo, pese embora se tenha provado na sentença que a autora sofreu dores constantes, desde o momento em que lhe realizaram a punção de uma veia para introdução do contraste, dores que se prolongaram pelas quatro a cinco horas seguintes, as quais referiu constantemente aos enfermeiros, limitando-se aqueles a dizer-lhe que “ não é nada”, “ já vai passar”, sem que tenham examinado o seu braço/mão, tendo por volta da meia noite de 04/03/2011 chamado um enfermeiro de urgência, porque não aguentava mais as dores no braço, e que por isso retirou as ligaduras com a ajuda da filha do braço, tendo então verificado que estava a sofrer uma grave queimadura química no seu membro superior e que perante o verificado, quando estava rodeada de enfermeiros e na presença de um médico este exclamou “ não sei o que fazer”, não constitui matéria da qual se possa extrair ter sido violado algum procedimento que se impusesse tivesse sido observado e que uma vez observado teria impedido a evolução que estava em curso das lesões provocadas pelo extravasamento do líquido de contraste.
Assim, perante o exposto, impõe-se revogar a sentença recorrida, julgando a presente apelação procedente.
**
IV- DECISÃO

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo do Norte, acordam em conceder provimento á presente apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, e em sua substituição, julgam a ação intentada pela autora improcedente, por não provada, absolvendo do Réu dos pedidos.
*
Custas pela apelada em ambas as instâncias (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.

*

Porto, 30 de outubro de 2020.

Helena Ribeiro
Helena Canelas, em substituição
Alexandra Alendouro