Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
| Processo: | 00769/16.0BEBRG |
| Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
| Data do Acordão: | 04/21/2023 |
| Tribunal: | TAF de Braga |
| Relator: | Helena Ribeiro |
| Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR ATO MÉDICO NO SNS; JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO- HISTERECTOMIA; VIOLAÇAO DA LEGES ARTIS; |
| Sumário: | 1.Mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso, pela 2.ª Instância, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. 2. No âmbito de qualquer processo judicial, não sendo possível alcançar a verdade absoluta, resta ao Tribunal obter uma verdade provável, isto é, uma verdade que se caracterize por um grau de probabilidade tal que permita a resolução do litígio de uma forma mais justa possível. 3.Em ação de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais assente em responsabilidade médica, por atos clínicos e/ou cirúrgicos praticados ou omitidos em estabelecimento do SNS, incumbe ao demandante/autor alegar e provar factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, ou seja: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano. 3. Nessas ações a ilicitude decorre de o corpo clínico demandado ter, nos atos médicos prestados ou omitidos, infringido a leges artis próprias da sua atividade, atento o desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico da arte médica, no concreto momento em que foram prestados ou omitidos os atos médicos ao doente, independentemente do resultado alcançado. 4.O preenchimento do requisito da ilicitude exige que o demandante/autor alegue e prove factos, com poder persuasivo bastante, para que num juízo corrente de probabilidade, se firme o convencimento de que o restado danoso verificado na pessoa do doente (lesado) foi antecedido de atos clínicos cirúrgicos, praticados ou omitidos, com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou científica próprias da atividade médica. 5. Para além de o facto gerador de responsabilidade civil ser ilícito, tem o médico de o praticar com culpa. Para tal, incumbia à autora alegar e provar a existência de uma relação de desconformidade entre o comportamento observado e a conduta devida “ no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes”. 6. O erro médico só existe quando o médico viola, cumulativamente, a leges artis e o dever de cuidado que lhe cabe e pode ser cometido por:(i)imperícia ( impreparação: fazer mal o que deveria ser feito de acordo com a leges artis);(ii)imprudência (fazer o que não consta da leges artis; (iii)negligência ( deixar de fazer o que a leges artis impunha que se fizesse). (Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil |
| Votação: | Unanimidade |
| Meio Processual: | Acção Administrativa Comum |
| Decisão: | Negar provimento ao recurso. |
| Aditamento: |
| Parecer Ministério Publico: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo: I. RELATÓRIO 1.1.«AA», residente na Rua ..., ... ..., ..., titular do NIF ..., instaurou a presente ação administrativa, contra o Hospital da ..., E. P. E., pessoa coletiva número ..., com sede na Rua ..., ... ... [inicialmente, Centro Hospitalar..., E.P.E.], e «BB», com domicílio profissional indicado na sede da primeira ré, formulando o seguinte pedido: “Nestes termos, deve a presente ação ser considerada procedente por provada e, em consequência: - Serem os réus condenados a pagar à autora uma compensação de valor nunca inferior 50.000,00€ (cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, sofridos até ao presente, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até ao integral pagamento; - Serem os réus condenados a pagar à autora a título de danos patrimoniais, despesas e dano património futuro, a quantia nunca inferior a 17.660,00€ (dezassete mil e seiscentos e sessenta euro). - Tudo isto acrescido dos respetivos juros, à taxa legal em vigor, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; - Condenados os réus nas custas e demais encargos legais.” Para tanto, alega, em síntese, que no dia 26/04/2013 foi submetida a uma histerectomia abdominal total por macroscópica sob anestesia geral, por decisão dos serviços médicos do Réu, e que dessa cirurgia, resultou lesão iatrogénica do reto. Como consequência da alegada lesão, a Autora foi sujeita a novo reinternamento de urgência no dia 30/04/2013, por evidenciar peritonite fecaloide, tendo sido necessária nova intervenção para realizar colostomia. Acontece que, o Réu não lhe prestou a assistência médica devida, tendo a colostomia sido retirada muito tempo depois. Mais alegou que a situação vivida lhe causou danos não patrimoniais e patrimoniais, dos quais devem ser responsabilizados os réus. 1.2. Citados, os réus contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção, os Réus invocaram a ilegitimidade passiva do segundo Réu (Dr. «BB»). Por impugnação, sustentaram não ter ocorrido qualquer erro médico, considerando que a Autora foi corretamente assistida nos serviços hospitalares do Réu, não se vislumbrando, por isso, qualquer atuação à margem das leges artis. Como tal, consideraram não se encontrarem preenchidos os pressupostos cumulativos subjacentes à responsabilidade civil extracontratual, pugnando pela total improcedência da ação. 1.3. A Autora deduziu réplica, na qual pugnou pela improcedência da exceção de ilegitimidade do segundo Réu, pedindo a condenação do primeiro Réu, como litigante de má fé. 1.4. O Réu pronunciou-se refutando a condenação a esse título. 1.5. Realizou-se audiência prévia, em que foi proferido despacho saneador, julgando-se procedente a invocada exceção de ilegitimidade passiva do segundo réu, com a consequente absolvição da instância, e procedeu-se à identificação do objeto do litígio, bem como à enunciação dos temas da prova. Determinou-se a realização de prova pericial. 1.6. Realizada audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, constando da mesma a seguinte parte decisória: «Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação administrativa totalmente improcedente e, em consequência, absolvo o réu dos pedidos. Mais julgo improcedente o pedido de condenação do réu como litigante de má-fé. ** Condeno a Autora no pagamento das custas processuais, por ter ficado integralmente vencida – cf. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, e artigos 6.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, e tabela I-A do RCP. ** Registe e notifique.» 1.7. Inconformada com a sentença proferida que julgou a ação improcedente, a Autora interpôs o presente recurso de apelação que terminou com a apresentação das seguintes CONCLUSÕES: «A. Pretende a recorrente ver analisadas no âmbito deste recurso, as seguintes questões: existência de Erro de julgamento da matéria de facto e de Erro na aplicação do direito; B. Entende a recorrente que existe erro na valoração e apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente, na valoração da prova testemunhal que se encontra gravada conjugada com a análise dos documentos juntos aos autos; C. Entende a recorrente que as respostas negativas constantes das alíneas B), D), E), F), H), M), O), dos factos não provados) não se enquadram nas respostas dadas pela testemunha, «CC» e nas declarações de parte que ao contrário do que entendeu o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo, foram totalmente isentas e credíveis; D. Não se compreendendo porque razão o Tribunal desconsiderou o depoimento de parte da autora e o depoimento da testemunha marido, na aferição do estado de saúde da autora aquando da alta médica, bastando-se com a comparação ou o confronto entre os documentos juntos aos autos, quando para dar como provada a factualidade dos pontos 16, 17 e, 19, 20, 21, 22 e 23, o tribunal considerou os mesmos depoimentos; E. O certo é que, em momento algum é feita uma apreciação das questões levantadas nas alíneas E) e F), ou seja, quanto ao contacto e conversas que o marido da autora teria tido com o médico Dr. «BB»; F. Das declarações da testemunha «CC» reproduzidas no corpo das alegações e resultantes do depoimento prestado no dia 24 de Maio de 2021, gravado no sistema de gravação Sitaf, de 04:03:50 (h.m.s) a 04:26:36 (h.m.s.), designadamente ao minuto 3:08, conclui-se que as mesmas foram totalmente conviventes e espontâneas bastando para tal ouvir o depoimento prestado; G. Não podia assim o tribunal a quo desconsiderar o depoimento prestado e devia como se impunha ter dado como provada a factualidade constante das alíneas E e F dos factos não provados; H. Do depoimento do Dr. «DD» resulta que este acompanhou a autora e só passado um ano é que deixou de a acompanhar, tudo como melhor resulta do depoimento prestado ao minuto 1:47, depoimento prestado no dia 24 de Maio de 2021, e gravado no sistema de gravação Sitaf, de 01:25:54 (h.m.s) a 01:59:58 (h.m.s), designadamente ao minuto 01:47:18, e cuja transcrição melhor consta das alegações para onde expressamente se remete; I. Assim, não podia o tribunal a quo servir-se da negação do Dr. «DD» para desacreditar o depoimento do marido da autora, pois, o depoimento coincide, nesta parte, com o depoimento da testemunha; J. Do depoimento prestado pela testemunha «CC», prestado no dia 24 de Maio de 2021, depoimento gravado no sistema de gravação Sitaf, de 04:03:50 (h.m.s) a 04:26:36 (h.m.s.), ao minuto 3:31:16, quando questionado pelo mandatário da autora respondeu: “levei o exame e fui à terceira consulta. Já me tinha dito que dava para ser operada, vamos lá marcar uma consulta para daqui a uma ano. Falei com a pessoa que tirou o exame e ele disse-me para falar com um médico do ....” K. Assim, não podia o tribunal a quo deixar de considerar como provada a factualidade da al. H, dos factos não provados, pelo menos em parte; L. A factualidade constante da al.s H) e M) dos factos não provados terão de ser consideradas provadas, pelo menos, em parte. Ou seja: O Réu Centro Hospitalar jamais marcou a cirurgia de reconstituição do trânsito intestinal. - A autora recorreu a um outro hospital para realizar uma operação de reconstituição do trânsito intestinal; M. Considerando a fundamentação do tribunal a quo quando considerou que as declarações do marido ganharam crédito quanto à afectação da sua vida íntima, e que a situação da autora, pelo menos condiciona o acto sexual, deve o tribunal retirar dos factos não provados a matéria da alínea O), tanto mais que está em oposição a parte da factualidade dada como provada no ponto 80 dos factos provados; N. Conhecendo-se a causa da peritonite, como sendo consequência directa da cirurgia, o tribunal deste facto conhecido podia e devia ter presumido a causa concreta da perfuração, e daí que devesse ter dado como provada a factualidade da alínea B) dos factos não provados. O. Pois, embora não se tenha provado como é que aconteceu a perfuração não há duvidas que pelas razões apontadas, a causa só poderia ter sido ou pelo encosto do bisturi no cólon e ou por uma queimadura no próprio cólon que não tenha cicatrizado e que, por isso, veio a figurar e a criar uma ruptura do cólon. P. Não restam dúvidas que a perfuração do cólon da autora decorrente da histeroctomia realizada no dia 26/4/2013 que foi causada pelo médico que a realizou tendo no decorrer daquela cirurgia sido violadas as regras das leges artis; Q. Não é previsível e muito expectável que da realização de uma cirurgia de histeroctomia abdominal total laporoscópica seja afectada um outro órgão, neste caso o cólon; R. Assim, ao contrário do que considerou o tribunal a quo, o mesmo devia ter considerado que: A cirurgia a que a autora foi sujeita no hospital do Réu não tem como riscos próprios, comuns e normais a perfuração intestinal e peritonite generalizada; A cirurgia a que a autora foi sujeita não tinha qualquer relação com o cólon; E, por isso, a cirurgia não foi realizada de acordo com as boas regras da prática da medicina. S. A este propósito veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 20/04/2004, e publicado no site do ITIJ, em que numa situação em tudo semelhante à dos presentes autos, considerou que “Estando provado, no caso concreto, que o resultado espúrio - perfuração intestinal – foi originado, em termos causalmente adequados, pela intervenção cirúrgica efectuada – laqueação tubar por laparoscopia – e, gorado o intento da Ré de demonstrar que a perfuração intestinal estava incluída no universo dos riscos próprios, normais e comuns da cirurgia em causa, está justificada a convicção do tribunal a quo, que considerou provada a violação das leges artis”; T. Assim, salvo o devido respeito que é muito, entendemos que o tribunal “a quo” errou na apreciação da prova quanto às respostas dadas à matéria das alíneas B, D, E, F, H, M e O, pelo que deve a matéria de facto ser reapreciada, alterando-se as respostas das alíneas B, D, E, F, H, M no sentido de se considerarem como provados e, consequentemente, a matéria aí constante passar para a disposição dos factos provados; U. Existe erro de julgamento da matéria de facto, sendo a sentença em crise nula por violação do artigo 607.º, n.º 4.º do Código de Processo Civil; V. Ora, havendo erro de julgamento da matéria de facto, deve o tribunal “ad quem” proceder à modificação da decisão da 1ª instância, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que tem enquanto tribunal de instância que garante um efectivo segundo grau de jurisdição; W. Nos termos do artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, deve a matéria de facto ser reapreciada, alterando-se a resposta da matéria das alíneas B, D, E, F, H, M, e eliminando-se a resposta da alínea O; X. Resultou provada toda a factualidade dos pontos 16 a 67 e 69 a 86 dos factos provados e ainda a matéria das alíneas, B) E), F), H) e M); Y. Mais resultou que as médicas que realizaram a cirurgia do dia 26 de Abril de 2013 estavam ao serviço e actuaram no âmbito e interesse do Centro Hospitalar..., E.P.E, primeiro réu, ou seja, no interesse do Estado, enquanto ente público, que assume a satisfação de bens públicos – no caso presente, a saúde dos cidadãos que a eles recorre; Z. Foram as omissões e erros com violação da legis artes por parte das médicas ao terem perfurado o cólon, que conduziram à situação descrita nos autos; AA. O comportamento das médicas consubstanciou uma violação ilícita de um direito de personalidade da autora, o direito à sua integridade física. BB. As médicas não realizaram a cirurgia do dia 26 de Abril de 2013, Histerecotomia abdominal total por laparoscopia, com total respeito pelas legis artis e dever geral de cuidado, cumprindo todas as exigências técnicas e todos os deveres de cuidado que conheciam e que podiam observar, caso contrário, não teria havido lesão; CC. “È ilícita e culposa, por violadora das leges artis, que lhes impunha o cuidado de não lesar o intestino da autora, pelo que, o comportamento dos médicos ficou abaixo do standard técnico/científico que era exigível a um ginecologista cirurgião médio e que, por consequência a sua conduta é passível de um juízo de reprovação por parte do direito, à luz do critério previsto no n.º 2 do artigo 487.º do CC; DD. Havendo uma relação de comitente e comissário entre os réus, pelos danos que os médicos, segundo e terceira ré, causaram à autora recai a obrigação de indemnizar, sendo que a mesma deverá ser assumida pela Unidade Hospitalar – Centro Hospitalar..., E.P.E., nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 500.º do C. Civi; EE. Atendendo aos factos elencados, é evidente a existência do nexo de causalidade entre a intervenção realizada Réu e a perfuração do intestino junto ao cólon; FF. Encontram-se, por isso, preenchidos todos os pressupostos para o Réu ser responsável civilmente por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela autora; GG. Como se decidiu no Ac. do STA, supra referido de 20/04/200: assente que está, que “a intervenção cirúrgica efectuada à autora, nas instalações do Ré, causou-lhe perfuração intestinal e peritonite generalizada”, é forçoso concluir que este nexo naturalístico é causalmente adequado à produção dos danos alegados, de acordo com a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, consagrada no art. 563º do C. Civil”; HH. Na verdade, nos termos daquela, a condição (procedimento médico/cirúrgico) só deixaria de ser causa do dano se, segundo a sua natureza geral, fosse de todo indiferente para a produção do dano e só se tivesse tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias (cf. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 10ª ed., p. 891,. II. A conduta dos serviços do réu, não é pela sua natureza, em abstracto, indiferente à produção do dano. Em geral tem aptidão para originar o dano e, em concreto, foi condição directa e imediata dele; JJ. Sendo a incapacidade parcial permanente ela própria um dano patrimonial presente, porque se traduz num agravamento da penosidade para a execução, com normalidade e regularidade, das tarefas diárias, acarretando à autora um esforço suplementar, pelo que à autora, recorrente, deverá ser atribuída, a título de dano biológico, ou patrimonial uma quantia nunca inferior a €5.000,00; KK. Quantia esta que deverá ser acrescida de uma indemnização para compensar as despesas melhor descritos nos pontos 82 a 86 dos factos provados, no valor de € 1.080,00€ a título de danos patrimoniais; LL. Tendo em conta as lesões de que a autora padeceu, as dores que sofreu, o grau 5 numa escala de 7 do dano estético, tudo bem evidenciado nos factos dados como provados para os quais se remete, e a incapacidade parcial permanente, deve ser fixada à Autora, a título de danos não patrimoniais uma indemnização em quantia nunca inferior a €30.000,00 (trinta mil euros); MM. Recorrendo à equidade na fixação da indemnização que permita a colocação do lesado, a ora recorrente, na situação em que estaria se não tivesse ocorrido a lesão (artigos 496º, 562º, 563º e 566º, nº 3, do Código Civil), a indemnização a atribuir à recorrente, a esse título, porque justa e equitativa, deve ser fixada no valor de €36.080,00; NN. Pelo que, o tribunal “a quo”, ao ter absolvido o réu, violou a melhor interpretação e aplicação dos preceitos contidos nos artigos 483.1, 496.1, 562.1, 563.1 e 566.1, todos do Código Civil; OO. Assim, revogando-se a douta sentença proferida pelo tribunal “a quo” deve o réu ser condenado a pagar à autora, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a indemnização no valor nunca inferior a € 36.080,00 (trinta e seis mil e oitenta euros). Nestes termos, e nos demais de direito que por Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, serão supridos, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, por via disso, a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” ser revogada, por ilegal e injusta, julgando-se procedente a acção intentada pela autora, na parte objecto do presente recurso. Assim se fazendo inteira JUSTIÇA.» 1.7. O Réu contra-alegou mas não formulou conclusões. 1.8. O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º1 do CPTA, não se pronunciou sobre o mérito do recurso. 1.9. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento. * II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO. 2.1.Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT. Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”. 2.2. Assentes nas mencionadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se a saber: b.1. se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria de facto por ter dado como não provados os factos insertos nas alíneas B), D), E), F), H), M) e O) quando essa matéria deveria ter sido levada ao elenco dos factos provados. b.2. se a sentença recorrida, na procedência do invocado erro sobre o julgamento da matéria de facto, enferma de erro de julgamento sobre a matéria de direito, por ter julgado como cumprida a legis artis, e assim, ter absolvido o réu, com o que violou a melhor interpretação e aplicação dos preceitos contidos nos artigos 483.1, 496.1, 562.1, 563.1 e 566.1, todos do Código Civil. * III. FUNDAMENTAÇÃO A.DE FACTO 3.1. A 1.ª Instância julgou provados os seguintes factos: 1. A Autora nasceu em .../.../1957, e é utente do serviço nacional de saúde número ...91 – cf. facto não controvertido; 2. O primeiro réu é uma instituição acreditada pela Joint Commission Internacional desde o ano de 2008, maior órgão acreditador de instituições de saúde do mundo, cumprindo os requisitos organizacionais e clínicos necessários para que a acreditação seja efetivamente possível; 3. O então designado Centro Hospitalar..., E. P. E., estava, em 2013, integrado no serviço nacional de saúde – facto não controvertido; 4. Naquele mesmo ano de 2013, «BB» encontrava-se ao serviço daquele Centro Hospitalar, como médico interno da especialidade de ginecologia/obstetrícia – facto não controvertido; 5. Desde o ano de 2011, a Autora vinha a ser seguida clinicamente em consulta de ginecologia nas instalações do referido Centro Hospitalar, por espessamento endometrial, sendo seguida pela Dr.ª «EE» – facto não controvertido; 6. Por decisão dos serviços clínicos do Centro Hospitalar, em 25/04/2013 a Autora foi internada nas instalações do Centro Hospitalar, situadas na cidade ... (Hospital ...) – facto não controvertido; 7. No dia 26/04/2013, também por decisão dos serviços clínicos do Centro Hospitalar, a Autora foi submetida a histerectomia abdominal total laparoscópica sob anestesia geral – facto não controvertido; 8. A intervenção laparoscópica tem, para o paciente, vantagens: a nível cosmético; menos perdas hemáticas durante a cirurgia, e menos dor no pós-operatório, permitindo ao doente recuperar e voltar à vida ativa o mais rapidamente possível; probabilidade de ocorrência de menos complicações; redução dos dias de baixa médica de que o doente precisa, com redução dos medicamentos analgésicos que terá de fazer no domicílio; 9. O procedimento em causa (laparoscopia) é minimamente invasivo, associado a baixa taxa de complicações intra e pós-operatórias, mesmo em mulheres com elevado IMC e antecedentes de cirurgia abdomino-pélvica; 10. A intervenção cirúrgica decorreu sem intercorrências; 11. Todos os procedimentos cirúrgicos foram cumpridos, designadamente ao nível da contagem de material, verificação do campo cirúrgico e cumprimento dos respetivos protocolos, nada fazendo antecipar qualquer evolução negativa na situação da Autora; 12. Por ter sido operada com anestesia geral e tendo estado medicada, não sentiu quaisquer dores – facto não controvertido; 13. Do relato cirúrgico dessa intervenção resulta como achados operatórios útero aumentado de volume com cerca de 12cm, com mioma intramural deformando a parede lateral direita, Anexo esquerdo normal, Anexo direito com ovário encastoado numa ansa intestinal que se encontrava aderente a parede posterior do útero e região anexial direita – cf. documento de fls. 130 (verso) do suporte físico dos autos; 14. O exame histológico confirmou a existência de leiomiomas uterinos intersticiais, e pólipo endometrial, os quais são causa de dor, sangramento, inchaço e necessidade de urinar frequente – cf. documento de fls. 102 (verso) do suporte físico dos autos; 15. Devido à realização dessa cirurgia de 26/04/2013, a Autora sofreu perfuração do intestino junto do colon, que não sentiu; 16. No dia 27/04/2013, a Autora apresentou vómitos, passando a noite com dores; 17. No dia seguinte, 28/04/2013, a Autora sentiu dores abdominais e vómitos; 18. A 29/04/2013, o médico «BB», indicado como segundo réu, deu alta clínica à Autora; 19. Nesse dia, à tarde, a Autora foi para casa, e, quando aí chegou, foi para a cama; 20. No mesmo dia, à noite, a Autora sentiu dores abdominais, teve vómitos e diarreia, o que a impossibilitou de dormir, sendo levada pelo marido para a casa de banho; 21. No dia seguinte, 30/04/2013, a Autora continuou com dores, e não conseguia ingerir alimentos; 22. À tarde, nesse dia, a Autora sentiu dores abdominais constantes e mais fortes, assim como vómitos; 23. O seu estado piorou, o que assustou o marido que a transportou aos serviços de urgência do Hospital ..., de ...; 24. Chegada ao Hospital, a Autora apresentava queixas de dores abdominais e vómitos – cf. documento de fls. 195 do suporte físico dos autos; 25. Os serviços da urgência enviaram a Autora para o serviço de ginecologia e obstetrícia, no qual tinha sido operada – cf. documento de fls. 195 e ss. do suporte físico dos autos; 26. Foi observada pelo segundo réu «BB» – cf. documento de fls. 195 e ss. do suporte físico dos autos; 27. Neste serviço, além da observação médica, a Autora também realizou TAC abdomino-pélvica, e ficando em observação por, pelo menos, cinco horas – cf. documento de fls. 195 e ss. do suporte físico dos autos; 28. Após a análise do resultado dos exames, concluíram os serviços do réu Centro Hospitalar ter havido lesão iatrogénica do reto, por quadro de peritonite fecaloide – cf. documento de fls.198 do suporte físico dos autos; 29. Que podia levar à morte da Autora; 30. Assim, o médico cirurgião «DD» dirigiu-se ao marido da Autora e transmitiu-lhe que a mesma necessitava de ser operada com urgência – cf. documento de fls. 195 (verso) do suporte físico dos autos; 31. A Autora foi operada na madrugada de 01/05/2013, de urgência, pelo médico cirurgião «DD», tendo sido submetida a laparotomia exploradora com rafia de laceração do colon sigmoide/reto e colostomia terminal por pneumoperitoneu pós-histerectomia laparoscópica – cf. documento de fls. 200 do suporte físico dos autos; 32. Durante a cirurgia, a Autora esteve inconsciente, tendo-lhe sido dada anestesia geral – cf. documento de fls. 200 do suporte físico dos autos; 33. No pós-operatório, a Autora sentiu dores e esteve inconsciente pelo menos 24 horas; 34. E, após a operação, esteve sempre acamada; 35. Foi-lhe colocado, naquela operação de 01/05/2013, um saco para retenção das fezes e líquidos (colostomia) – cf. documento de fls. 200 do suporte físico dos autos; 36. Os pontos dessa cirurgia não cicatrizaram, o que provocou dores à autora; 37. A ferida operatória veio a infecionar – cf. documento de fls. 202 do suporte físico dos autos; 38. Razão pela qual, no dia 07/05/2013, a autora foi submetida a nova cirurgia para reconstrução da colostomia – cf. documento de fls. 202 do suporte físico dos autos; 39. Nesta nova operação à Autora, foi feita a limpeza, e novo corte do intestino grosso – cf. documento de fls. 202 do suporte físico dos autos; 40. Após esta cirurgia, a Autora esteve isolada num quarto durante quatro semanas, recebendo poucas visitas; 41. Nesse período, a Autora esteve medicada, mas sentia dores – cf. documento de fls. 112 (verso) e seguintes do suporte físico dos autos; 42. Continuou sempre acamada; 43. Temeu pela vida; 44. A limpeza e a higiene pessoais eram feitas na cama; 45. Chegou a usar fraldas; 46. Para ir à casa-de-banho, tinha de ser com o apoio das auxiliares ou do marido; 47. Tinha, e ainda tem, que usar uma cinta de contenção abdominal e esteve algaliada – cf. documento de fls. 112 (verso) e seguintes do suporte físico dos autos; 48. Teve alta clínica em 18/06/2013 – cf. documento de fls. 94 do suporte físico dos autos; 49. Após o que foi para casa, à qual regressou com colostomia, permanecendo os primeiros 15 dias na cama; 50. Após a alta hospitalar, a Autora teve necessidade de ir ao posto médico de dois em dois dias, fazer curativos, nos primeiros quinze dias, e depois uma vez por semana, o que durou, pelo menos, dois meses; 51. O que implicou, pelo menos, 20 deslocações; 52. Após a alta clínica, a Autora teve ainda de se deslocar ao Hospital ... pelo menos dez vezes – cf. documento de fls. 93 (verso) e 96 (verso)/97 do suporte físico dos autos; 53. Continuou a utilizar cinta de contenção; 54. A autora tinha vergonha e não se adaptava a usar o saco para retenção de líquidos e fezes; 55. Foi o marido da autora quem sempre esteve ao lado dela e tudo fez para que a mesma fosse aceitando a sua situação clínica; 56. No período em que usou o saco higiénico, era o marido da Autora quem lho mudava, pois aquela não conseguia fazê-lo; 57. Depois da alta, a Autora não conseguia fazer a sua higiene pessoal, dependendo de terceiros para o efeito, o marido e a nora; 58. Durante duas a três semanas, teve de tomar banho e fazer a higiene pessoal na cama; 59. No dia 08/04/2015, a Autora realizou no Hospital ..., no ..., cirurgia de reconstituição do trânsito intestinal com anostomose colo-retal, tendo tido alta dessa cirurgia no dia 15 do mesmo mês – cf. documentos de fls. 206/229 do suporte físico dos autos 60. Tendo retirado, então, o saco higiénico; 61. Para realização da operação de reconstituição no Hospital ..., a Autora teve pelo menos 4 deslocações para consultas e execução da cirurgia – cf. documentos de fls. 230/237 do suporte físico dos autos; 62. Mantendo acompanhamento clínico junto daquela unidade hospitalar – cf. documento de fls. 238/240 do suporte físico dos autos; 63. Fruto das preocupações e dos medicamentos, a Autora teve depressão, que lhe provocou a queda do cabelo, com necessidade de realizar tratamento; 64. Ficou a aguardar marcação de cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal; 65. Mantendo, porém, a cinta de contenção, que ainda usa; 66. Fruto das cirurgias a que foi sujeita, a Autora ficou com uma cicatriz no abdómen de pelo menos 35cm de comprimento, por um centímetro de largura, sendo visível, que a desfeiam, levando-a a ocultar sempre a região afetada, ao que corresponde o grau cinco numa escala de gravidade crescente até 7; 67. Após ter sido operada, e pelo menos durante o período de um ano, a Autora não conseguiu ter quaisquer relações sexuais; 68. À data de 26/04/2013, a Autora estava reformada, mas realizava, em casa, as tarefas domésticas; 69. Durante o internamento, e depois até 06/11/2017, a Autora não conseguiu realizar as tarefas que anteriormente realizava, e mesmo hoje as mais básicas fá-lo com esforços suplementares, tais como limpeza, cozinhar, fazer uma cama, lavar a louça ou a roupa, graduando o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica em 10 pontos; 70. Devido à situação clínica, à necessidade de usar saco higiénico e cinta, a Autora sentiu-se e sente-se incomodada como mulher; 71. Sentiu-se muito dependente dos outros; 72. Sentiu-se invadida na sua intimidade como ser humano e mulher; 73. Chegou a ter pesadelos e distúrbios com a situação vivenciada, e teve de tomar medicação para dormir; 74. Houve dias em que, mesmo com a medicação, não conseguia descansar, o que fazia com que temesse pela sua vida e saúde mental; 75. Não aceitou, nem aceita, o que lhe aconteceu; 76. Sofreu, e ainda sofre, a angústia da sua desvalorização funcional como ser humano e mulher; 77. Atualmente, é uma mulher triste, e jamais esquecerá o sofrimento, dor e tormentos por que passou; 78. As sequelas com que ficou são motivo de desgosto, angústia, desespero e revolta; 79. Continuará a necessitar de consultas periódicas e de ser acompanhada clinicamente; 80. Ficou impossibilitada de ter uma vida afetiva normal, e viu-se diminuída como mulher psicológica e sexualmente; 81. Jamais esquecerá todo o sofrimento, dor e tormentos por que passou; 82. Despendeu € 80,00 na aquisição da cinta de contenção; 83. No período compreendido entre 30/04/2013 e 18/06/2013, o marido da Autora deslocou-se ao hospital diariamente, para estar com aquela, percorrendo, em média, 60km por dia; 84. Da residência da Autora ao posto médico em que realizava os curativos distam cerca de 15 km; 85. Da residência da Autora ao Hospital ..., no ..., distam pelo menos 90 km; 86. Em portagens, para a deslocação ao ..., a despesa da Autora nunca foi inferior a € 6,00 por cada viagem; 87. O marido da autora, apesar de reformado, dedicava-se à agricultura doméstica, cultivando couves, alfaces, batatas, cebolas e outros produtos hortícolas, bem como à criação de pequenos animais, como galináceos, ovelhas e porcos. * II – Factos Não Provados Com relevo para a decisão a proferir, não ficou provado que: A) Foi o Dr. «BB» quem realizou a primeira cirurgia à Autora [26/04/2013]; B) A perfuração do colon da Autora decorrente da histerectomia realizada em 26/04/2013 foi causada pelo médico que a realizou; C) E da qual o referido médico não se apercebeu, tendo ocultado, no relatório da alta clínica, consciente ou inconscientemente, as lesões verificadas na Autora; D) No mesmo dia 26/04/2013, o Dr. «BB», em conversa com o marido da Autora, comunicou-lhe que a operação tinha corrido muito bem, ficando aquele descansado; E) Perante as dores que a Autora apresentava em 27/04/2013, o marido questionou o médico «BB» que lhe disse que as dores e vómitos eram normais e que passavam; F) Perante a informação de que a Autora tinha alta, em 29/04/2013, o marido deslocou-se ao Hospital e falou com o médico, comunicando-lhe que aquela não estava bem, pois sentia muitas dores e tinha febre alta, pelo que não podia ir para casa; ao que o médico respondeu que tinha alta e, por isso, podia ir para casa; G) No internamento após a cirurgia de 01/05/2013, a Autora teve períodos de inconsciência; H) O réu Centro Hospitalar jamais marcou a cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, o que levou a autora a procurar outro hospital; I) O referido em 54 dos factos provados foi transmitido aos serviços clínicos do Centro Hospitalar; J) Mas, mesmo assim, este jamais disponibilizou à autora ou ao seu marido qualquer apoio psicológico, e muito menos aconselhou; K) Tendo, inclusive, os respetivos serviços clínicos comunicado à Autora que o mais provável era a mesma ter que usar o saco de retenção para o resto da vida; L) O que causou à Autora muito sofrimento; M) Só recorrendo a outro hospital é que a Autora conseguiu realizar uma operação de reconstrução do trânsito intestinal; N) A autora, por vezes, tem incontinências urinárias; O) A Autora ficou impossibilitada de ter uma vida afetiva normal, e ficou impossibilitada de se relacionar sexualmente, o que lhe desperta sentimentos de angústia e revolta pessoal; P) Devido ao problema de saúde da Autora, o casal teve de vender os animais, causando-lhe um prejuízo na ordem dos € 1.000,00; Q) O casal ficou impossibilitado de ter novos animais; R) E deixou de poder cultivar os produtos hortícolas e de se poder alimentar dos animais que criava, sofrendo um prejuízo mensal de € 100,00.» * 3.2. O Senhor juiz a quo adiantou a seguinte motivação para justificar o julgamento da matéria de facto: «Exposto o julgamento de facto, com separação dos factos provados e não provados, como manda o n.º 3 do art.º 94.º do CPTA, cumpre justifica-lo; neste sentido, atentar-se-á que, segundo o n.º 4 do mesmo artigo, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, ressalvados os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial e aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. Ora, começando pelos factos provados por acordo das partes, encontram-se nessa situação, tendo por base o art.º 4.º da contestação, os factos provados nos pontos 1, 3 a 7, e 12. Tratando-se de prova plena, somente se impõe constatar essa circunstância, dado que ficam alheios à livre convicção do Tribunal. Em relação aos restantes factos, provados e não provados, e em obediência ao citado comando normativo, o Tribunal tomou em consideração, então, os vários meios de prova colocados à sua disposição, valorando-os de modo crítico. Desde logo, assume-se como muito relevante a prova documental, em especial quanto aos atos médicos a que a Autora foi sujeita, e aos respetivos períodos de internamento. Saliente-se, a este respeito, que o réu Centro Hospitalar juntou aos autos o respetivo processo clínico da Autora, incluindo dos vários serviços por que passou, e essa documentação não foi objeto de impugnação ou reparo por parte desta (apenas impugnou o documento junto com a contestação). Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que, da análise crítica a esses documentos, não resulta qualquer evidência que nos permita colocar em causa a sua genuinidade (portanto, e em especial, a sua autoria) ou a fidedignidade do seu conteúdo (portanto, o que deles consta), e por esse motivo são merecedores de crédito para efeitos probatórios (sem prejuízo do referido quanto a serem pacíficos, também, entre as partes). Da mesma forma, foram juntos ao processo documentos por parte do Centro Hospitalar Universitário de ..., E.P.E., conforme ofício registado nos autos sob a ref.ª ...67, também referentes à situação clínica da Autora, em particular quanto à cirurgia de reposição do trânsito intestinal. Tal como sucedeu com os demais documentos relativos a informação clínica, também neste caso não foi deduzida, pelas partes, qualquer espécie de impugnação a esta documentação. Sendo certo que, tal como sucede com o já referido processo clínico remetido pelo réu Centro Hospitalar, também neste caso, fazendo a análise crítica dos documentos, não sobram razões para duvidar da sua genuinidade ou da fidedignidade do seu conteúdo, e, por isso, mereceram crédito para efeitos de prova. Devendo acrescentar-se, a este respeito, que os documentos foram elaborados por uma entidade que nenhum interesse direto tem na decisão a proferir. Relativamente a cada um dos factos elencados, e sempre que foi o caso, o Tribunal indicou o documento, ou o conjunto de documentos, que contribui para a formação da sua convicção. Além disso, e como é natural, sempre que se proporcionou, o Tribunal não deixou de conjugar estes documentos com os restantes meios de prova; sendo que, se determinado facto provado tem referência a prova documental e, depois, é mencionado em outro meio de prova, isso significa que o Tribunal os conjugou, considerando-os coerentes e congruentes entre si. Daqui em diante, importa introduzir a restante prova produzida, em concreto, as declarações de parte e o depoimento das testemunhas. Começando pelas declarações de parte. Como decorre do art.º 466.º, n.º 3, do CPC, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão. Quanto a esta parte final da norma, como resulta da leitura da ata da primeira sessão de discussão e julgamento, não ocorreu qualquer confissão. Em relação às declarações propriamente ditas, mesmo tendo por base a liberdade do Tribunal na sua apreciação, impõe-se a sua análise cuidadosa, porque não deixam de ser prestadas por alguém que tem interesse na causa. Como recentemente se escreveu no acórdão do TCA Norte de 13/05/2022, proferido no processo n.º 01480/10.3BEPRT “As declarações de parte (...) permitidas pelo artigo 466º do Código de Processo Civil, devem ser apreciadas com cautela, pois são declarações interessadas e por isso não isentas. E designadamente deve ser rigoroso o juízo quanto à sua coerência e devem ser complementadas, em casos de dúvida, com outros meios de prova.” No caso concreto, as declarações de parte – além da conjugação com outros meios de prova – devem ser analisadas em paralelo com o depoimento da testemunha «CC», marido da Autora. Pois bem, neste sentido, diremos que as declarações da Autora não nos mereceram credibilidade em toda a sua extensão. Aliás, como adiante se verá, as testemunhas arroladas pela Autora a respeito de determinada factualidade apresentam, todas, causas objetivas de falta de isenção, já que se tratam de familiares (além do marido, filhos e nora) ou, então, pessoas amigas. E, como se verá, em vários pontos, esses depoimentos, e as declarações da própria Autora, apresentam, entre si, contradições que não podem ser qualificadas de irrelevantes. Sumariando logo ao início, existem três pontos em que a prova (partindo das declarações de parte) não logrou convencer o Tribunal: quanto ao estado da Autora, no momento em que lhe foi dada alta; quanto à questão da recusa ou falta de colaboração na marcação da cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal; e ainda quanto à suposta incapacidade da Autora para realizar tarefas domésticas básicas. Vejamos. Desde logo, no que, em concreto, diz respeito ao estado da Autora quando lhe foi dada alta – no dia 29/04/2013, à tarde – o relato apresentado não coincide com os registos clínicos. Com efeito, a fls. 132 (verso) do suporte físico dos autos encontra-se o diário médico do período de internamento posterior à histerectomia, e ali consta registado: “Consciente. Desconforto abdominal ligeiro, sem outras queixas. Micções e trânsito intestinal regularizados (mesmo hoje de manhã). Sem vómitos. T – 36,2 ºC (...) Penso limpo e seco. Abd – depressível, indolor, sem sinais de infeção.” Cumpre aqui salientar/recordar que a Autora não impugnou estes documentos integradores do processo clínico. Além do mais, sempre se diga que (sem prejuízo dessa não impugnação, por si só relevante), não encontramos no documento quaisquer sinais de adulteração do respetivo conteúdo, nomeadamente rasuras ou alterações de caligrafia. De resto, a nota está trancada (porque termina com alta da paciente) com a assinatura e o carimbo do respetivo médico, e aqui indicado como segundo réu. As declarações da Autora não coincidem com estes registos. De todo. Além disso, nesta parte, o depoimento mostra-se abstrato, referindo apenas que se queixou que “estava mal”; mas nunca assistiu, segundo diz, às conversas entre o médico – indicado como segundo réu – e o marido, nesse momento. As próprias declarações, em si, não são congruentes; na verdade, segundo a Autora, “passou a noite muito mal”, mas quando já estava em casa, e não no hospital. Na verdade, não é muito credível que se a Autora estivesse no estado que relatou estar em casa, lhe fosse dada alta, porque saía do padrão normal da própria cirurgia. Soma-se, a este respeito, o depoimento da testemunha «CC», marido da Autora. Veio corroborar a tese da petição inicial, mas também sem nos merecer crédito; aliás, neste ponto do estado da Autora/esposa aquando da alta, bem como nos outros pontos acima referidos, foi notório não apenas que a testemunha não falava espontaneamente, apresentando um discurso marcado pelo ressentimento para com o primeiro réu, mas também pela situação causada à esposa. Também não se pode deixar de notar a incongruência destas declarações e depoimento com o relatório do episódio de urgência que consta a fls. 195 do suporte físico dos autos. A admissão, na triagem, anota como queixas da Autora vómitos persistentes e mau estar generalizado, sem referência a diarreia ou a febre; aliás, já no respetivo serviço, é anotado que “nega febre, alterações urinárias ou outros sintomas”. Tendo em consideração que, como já dito mais de uma vez, estes documentos não foram impugnados (em geral ou em concreto, dado que apenas a Autora apenas versou sobre o relato cirúrgico junto com a contestação), vemos que, além de as declarações/depoimento se nos terem apresentado subjetivos e parciais, marcadamente sustentados no propósito de justificar um erro aquando da alta, não coincidem, sequer, com o quadro que a Autora apresentava na chegada ao serviço de urgência – desde logo, à triagem. Nesse ponto, é preciso também referir o depoimento da testemunha «DD». Com efeito, e com suporte nos registos clínicos, a testemunha confirmou que foi o médico que realizou a colostomia de urgência à Autora, já na madrugada de 01/05/2013. Este depoimento foi prestado num registo sempre objetivo, circunstanciado e, além disso, sustentado pelos conhecimentos técnicos da testemunha. Ora, um dos pontos mais relevantes deste depoimento disse respeito, precisamente, à questão de saber se a peritonite poderia demorar alguns dias a manifestar-se; de modo absolutamente claro e esclarecedor, a esclarecimento do mandatário do réu Hospital, elucidou que o tempo que passou até à real manifestação da peritonite é normal; deu, até, o exemplo de uma criança que pode bater com o abdómen na bicicleta, podendo a perfuração surgir apenas 4 ou 5 dias depois, porque se vai instalando. Tratando-se de uma testemunha arrolada pela Autora, em primeira linha, o depoimento prestado não só não confirma a tese da Autora, no sentido de a peritonite ter de se revelar ainda no Hospital, como ainda a infirma – e também aqui tirando sustento à já de si débil restante prova apresentada a esse respeito. Mais do que isso, afasta de forma clara a tese de que uma eventual perfuração era detetável de imediato, ou seja, ainda no decorrer da cirurgia – pelo contrário, segundo afirmou a testemunha. Nessa medida, pela falta de prova credível sobre os factos em causa (e sem prejuízo do que ainda se dirá sobre outros depoimentos), foram considerados não provados os que constam das alíneas D), E) e F). Porém, e porque os documentos e a situação subsequente assim o confirmam, já temos por certo que no dia 30/04/2013, com início pelo menos de madrugada, a Autora começou a apresentar um quadro de sintomas mais relevantes. Aliás, impõe-se aqui dizer que, para o Tribunal, foi quase palpável a diferença de registo nas declarações de parte e no depoimento da testemunha marido. Sem prejuízo de se dizer que mal se percebe como a Autora afirma que só foi ao Hospital porque o marido, a bem dizer, assim o impôs, apesar dos sintomas que apresentava (se bem que, mesmo aqui, não existe coincidência com o que consta do episódio de urgência). Enfim, em todo o caso, sobretudo pela conjugação com os documentos constantes do processo clínico, foram considerados provados, a partir das declarações de parte e do depoimento da testemunha marido da Autora, os factos que constam dos pontos 16 a 27. Voltando à análise dos aspetos em que não conseguimos dar crédito às declarações de parte, conjugadas com o depoimento da testemunha marido da Autora (ele próprio, a bem dizer, “autor”, porque muitos dos danos patrimoniais também o afetam, revelando o seu interesse direto na decisão a proferir), também não nos convenceu, de todo, a suposta falta de assistência do Hospital réu. Desde logo, constatamos a manifesta hesitação da testemunha marido, quando confrontado com a circunstância de a Autora ter faltado a consultas – primeiro, garantiu que não, depois corrigiu, de seguida justificou que não foi porque já tinha a cirurgia agendada no ...; já depois, garantiu que o próprio Dr. «DD», também testemunha, lhe disse que não era possível fazer a operação (quando o próprio «DD» disse que não acompanhou a Autora, devido a alterações no funcionamento do serviço; e em relatório médico de 13/06/2014, junto a fls. 94 do suporte físico dos autos, fez constar, precisamente, que a Autora já estava a aguardar aquela cirurgia), e ainda afirmou que o médico da clínica privada lhe disse “daqui de ... fuja”. Assim, declarações e depoimento subjetivos, sem respaldo nos outros meios de prova, e até por eles contrariados. Os registos clínicos também contradizem frontalmente esta versão. A fls. 96 (verso) e 97 (frente) do suporte físico dos autos constam as consultas de acompanhamento que foram proporcionadas à Autora, e a anotação da última consulta consiste, precisamente, na ponderação da cirurgia de reconstrução do trânsito, com data de 26/04/2014, dependendo da vontade da doente, naturalmente. Por outro lado, e ainda a este respeito, resultou da prova produzida que a Autora e o marido se serviram de “conhecimentos” para obter vaga no CHU de .... Isso mesmo foi confirmado pela testemunha «FF» (depoimento a que se voltará), que declarou ao Tribunal que assistiu a Autora porque um colega lhe pediu, deduzindo que esse colega a conhecia pessoalmente. A cronologia dos eventos confirma a falta de sustento da tese da Autora; com efeito, sendo mencionada na consulta de 26/04/2014, no Hospital réu, a proposta de cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, e perante o abandono das consultas (como, embora relutantemente, a testemunha marido acabou por admitir), não surpreende que a consulta com a testemunha «FF», no CHU de ..., ocorra a 30/06/2014 [fls. 230 do suporte físico dos autos], a partir daí constando o acompanhamento naquele centro hospitalar. Esta sequência cronológica revela a falta de sustento da tese da Autora, e a clara tentativa de sustentar uma falta de apoio ou seguimento que nunca existiu – foi a Autora, ou a sua família, quem decidiu procurar assistência de outra unidade hospitalar, nem sequer por meios formais, mas antes com recurso a conhecimentos pessoais ou contactos junto daquela outra unidade hospitalar. Daí que o Tribunal, pela análise dos meios de prova à disposição, e já tendo constatado em sede de audiência a apresentação de discursos nitidamente subjetivos, parciais e comprometidos, além da clara ideia de terem sido previamente pensados para sustentar determinada tese, bem como que, objetivamente, as provas são prestadas por quem tem interesse na decisão, não podemos considerar credível a prova produzida a esse respeito. E daí que ficaram não provados os factos das alíneas H), I), J), K), L) e M). Por último, a este respeito, outro aspeto em que as declarações de parte não nos convenceram reside no estado físico da Autora, descrito na petição inicial como altamente incapacitada. Refira-se que, em primeiro lugar, a presença da Autora já nos fez questionar a alegação, dado que não se vislumbra, pelo menos em termos empíricos, tamanha dificuldade física. E assim o confirmou a perícia realizada nestes autos, que atribuiu à Autora uma incapacidade de apenas 10 pontos, e concluindo ser capaz de exercer as respetivas atividades, mas com esforços suplementares (incapacidade, claro, decorrente do evento, porque dada a situação de aposentação precoce a Autora já não seria totalmente capaz). A este respeito, tanto as declarações de parte da Autora como o depoimento da testemunha marido (e de outras, todas com razões objetivas e subjetivas para questionar a sua isenção, como adiante se verá) se afiguraram, desde logo, hiperbolizadas, passando a ideia de a Autora ser uma pessoa absolutamente inválida. Sobre a ajuda concreta que dava ao marido na agricultura ou na pecuária, apenas concretizou que “levava o lanche”, e diz a testemunha marido que a vida dele era “um regalo” nessa altura. Se fosse de seguir a tese apresentada, teríamos de constatar que a Autora era uma pessoa com incapacidade quase total, a exigir em permanência a presença de um terceiro. Todavia, como a perícia revelou, longe disso: as sequelas geram uma situação de incapacidade de apenas dez pontos, e permitem à Autora fazer o que fazia, apenas impondo esforços suplementares. E como se diz no mesmo relatório, o auxílio de terceira pessoa poderá verificar-se pontualmente. Nem compreendemos a que propósito a Autora e o marido tiveram, por causa do sucedido, de deixar de cultivar ou criar gado. Só seria assim se a Autora necessitasse de acompanhamento em permanência absoluta, o que, segundo a perícia, está longe de ser verdade. Mesmo no período em que a Autora esteve internada, a partir de 01/05/2013, disse a testemunha marido que ia ao hospital visitar a esposa, nem que fossem cinco ou dez minutos; ao que legitimamente se questiona se, no resto do dia, não se podia ocupar dos seus afazeres. Ressalva-se, porém, que não se levantam dúvidas de que a testemunha marido se dedicava (ao que parece, em menor escala, ainda se dedica) à agricultura doméstica – pelo que se deu como provado o facto do ponto 87. De todo o modo, e mais importante, o certo é que a perícia realizada infirma a supostamente calamitosa situação de incapacidade da Autora – longe disso. Tem autonomia e é capaz de desenvolver as tarefas que desenvolvia, embora com esforços suplementares, com graduação da incapacidade em 10 pontos. Por isso mesmo, pela falta de valia intrínseca, e igualmente porque existem outros meios de prova que contradizem as declarações de parte e o depoimento em causa, resultaram não provados os factos das alíneas P), Q) e R) – sem embargo de se voltar ao tema na análise de outros depoimentos testemunhais. Não obstante o referido sobre os pontos de pouca credibilidade acima enunciados, existem, ainda, dois outros aspetos a ressalvar a este respeito. O primeiro, diz respeito à afetação da vida sexual da Autora; na verdade, neste caso, não questionamos propriamente a veracidade das declarações de parte ou do depoimento da testemunha marido (os únicos meios de prova sobre o assunto, em termos de declarações presenciais), mas antes se notou a circunstância de não existir grande à-vontade para falar sobre esse aspeto. Com efeito, a questão ganhou acuidade pela circunstância de, em sede de prova pericial, ser afirmado que não existia impossibilidade de relações sexuais. Essa posição foi mantida em esclarecimentos prestados pela Sr.ª Perita em sede de audiência final, e, pela segurança demonstrada, não só da leitura do caso concreto mas pelos conhecimentos técnicos inerentes ao assunto, é possível dizer que as relações sexuais não são impossíveis – daí que tenha ficado não provado o que consta da alínea N). Mas, e por outro lado, julgamos que as declarações de parte e o depoimento da testemunha marido merecem crédito quanto à afetação da sua vida íntima. Note-se, no período em que a Autora foi portadora de colostomia, é natural que não se sentisse confortável para ter relações sexuais; menos ainda quando estava em convalescença. Até porque, tendo a Autora uma hérnia bastante volumosa, e como também reconhecido pela Sr.ª Perita, essa circunstância não impede as relações, mas a certo ponto condiciona o ato sexual. Daí que o Tribunal, conjugando esses aspetos, considerou provada a matéria dos pontos 67, 70 e 80. O outro ponto pouco clarividente diz respeito à incontinência da Autora; com efeito, o relatório pericial, neste caso, refere que a examinanda não apresenta lesões ou sequelas; a resposta que a Autora deu sobre o assunto não foi minimamente esclarecedora, dizendo apenas genericamente que acha que a incontinência se deve à hérnia; porém, nem mesmo em sede pericial se apurou essa sequela. Nem a queixa surge em qualquer registo clínico junto aos autos, máxime do processo clínico remetido ao CHU .... Nessa medida, não podemos considerar que haja prova suficientemente sólida sobre o assunto, pelo que foi dado como não provado o facto constante da alínea O). Sem prejuízo dos pontos atrás referidos, em que também nos mereceram crédito, bem como das partes em que esse crédito não lhe foi atribuído, diremos que as declarações de parte foram espontâneas e verdadeiras quanto ao sofrimento por que a Autora passou; veja-se: não se pode questionar que a experiência pela qual a Autora passou foi altamente negativa, e que, na realidade, ser portadora de colostomia não é fácil (ao menos, pelo elevado constrangimento social); também o sofrimento físico e psicológico adveniente ficou bem espelhado nas declarações de parte (aliás, como dito, a diferença para este registo foi quase palpável, tratando-se de partes em que a descrição é inquestionavelmente mais presente, vivida e impressiva, levando mesmo a Autora a expressar as suas emoções sobre o assunto). De resto, no que ao período de internamento após 30/04/2013 e até 18/06/2013 diz respeito, os registos clínicos vão atestando esse sofrimento. Nesse aspeto, as declarações da testemunha marido também se mostraram bem mais espontâneas (com uma diferença também perfeitamente percetível ao relatar a situação vivida); e diremos que a experiência comum nos diz que este sofrimento, tendo em conta os tratamentos e intervenções que a Autora sofreu, são perfeitamente plausíveis, o mesmo sucedendo com todo o constrangimento pessoal e social. Por estas razões, a partir das declarações de parte e depoimento da testemunha marido, associados a outros meios de prova – quando possível – foram dados como provados os factos elencados nos pontos 30, 31, 33 a 38, 40 a 46, 48 a 52, 54 a 58, 61 a 64, 71 a 78, e 81 a 83. Importa introduzir, ainda, a prova pericial (também aqui ressalvando o já referido – em especial a propósito da vida sexual e da incapacidade da Autora – e que se mantém naquela outra sede). Esta prova mereceu-nos credibilidade, considerando que o relatório se encontra sustentado na análise dos elementos clínicos, e é tecnicamente subscrito por quem, para o efeito, dispõe de conhecimentos técnicos. De resto, a assertividade da autora do relatório pericial ficou patente em sede de audiência final. A partir deste relatório considerou-se provado o que consta dos pontos 47, 53 e 65 (por atestar a necessidade do uso da cinta de contenção), conjugado com as declarações de parte e o depoimento da testemunha marido; também se considerou como provado, a partir deste relatório, o que consta provado em 66 e 69. É preciso esclarecer que este ponto 69 não se confunde com o facto não provado sobre a incapacidade permanente, dado que naquele caso o que está em causa é apenas um determinado período, i. e., até à consolidação das lesões, e neste a permanência dessa incapacidade, que só se verificou em grau fixável em apenas 10 pontos; como não se questiona que a Autora tratava da lide da casa, antes das cirurgias (facto provado 68). Por outro lado, a prova pericial também atesta a necessidade de seguimento, como havia sido declarado, e consta, igualmente, dos registos clínicos que o CHU de ... remeteu aos autos – tudo o que, em conjunto, permitiu dar por provado o facto do ponto 79. Avançando. Um dos pontos essenciais da alegação da Autora (e para a decisão) diz respeito à causa da perfuração verificada no intestino. Diga-se, a este respeito, que não restaram dúvidas, da prova documental e do depoimento da testemunha «DD» (com o registo credível que lhe atribuímos), que a Autora apresentava o quadro de peritonite, decorrente de uma perfuração no intestino. Também não nos restaram dúvidas, por aqueles elementos de prova, que a perfuração encontrada decorre da intervenção cirúrgica de histerectomia, realizada em 26/04/2013. Daí que tenha sido considerada provada a factualidade dos pontos 15, 28 a 32 e 35; bem como a necessidade de uma nova cirurgia a 07/05/2013 – factos provados 36 a 39. Aquilo de que já não temos prova é a concreta causa dessa perfuração, nomeadamente se a mesma se ficou a dever a imperícia da cirurgiã que a realizou. Começando por aí – ou seja, por quem realizou a cirurgia – veja-se que a Autora alegava que teria sido o indicado segundo réu, «BB», quando tal não sucedeu – bastando atentar, para esse efeito, no respetivo relato cirúrgico. É certo que a Autora veio impugnar esse documento (que, além de constar do processo clínico, também foi junto com a contestação). Todavia, foi ouvida como testemunha «GG», que assumiu ter sido a cirurgiã que realizou a parte laparoscópica da cirurgia (segundo disse, parte da cirurgia foi por via vaginal, mas aí sob a execução da colega «EE»). De modo esclarecido, e aliás sem demonstrar qualquer constrangimento, relatou que foi uma cirurgia que decorreu dentro da normalidade, e, no final, como procede de forma habitual, foi confirmada a inexistência de hemorragias, incluindo pela injeção de dióxido de carbono na zona em causa, com a confirmação da ausência de hemorragias. É de ressalvar que a Autora não impugnou o relato cirúrgico que consta do processo clínico, e que é o original, datado de 26/04/2013, devidamente assinado. Na realidade, era a Autora quem tinha de fazer prova que a perfuração foi ocasionada pela médica cirurgiã; é bem diferente dizer-se que a perfuração decorre da cirurgia (como decorre), de dizer-se que foi causada pelo cirurgião. E não o fez. Esta testemunha, como visto, não o disse (e, na realidade, é a única prova direta sobre essa factualidade); aliás, referiu mesmo que não é mulher de levar dúvidas para casa e que a única explicação que encontra terá sido a criação de uma zona de fragilidade. Sendo certo que, repita-se, de toda a prova (em particular, testemunhal), foi a única pessoa ouvida e que esteve na realização da cirurgia de 26/04/2013. Além disso, a sua posição não é afastada por outras provas. A testemunha «DD», apesar de, como o próprio assumiu, não ser especialista em ginecologia/obstetrícia, também afiançou que qualquer intervenção laparoscópica tem o risco de perfurar o intestino; mas sobre a concreta causa, apenas referiu que existia elevada probabilidade de o intestino ter sido ofendido na anterior operação; só que a testemunha, além de não negar outras causas possíveis para o desenvolvimento da perfuração (pelo contrário), não pôde afirmar a concreta causa da mesma, porque não participou na intervenção. Mas, sobretudo, a testemunha explicou que, mesmo na hipótese de poder ter sido com o bisturi elétrico, é uma complicação descrita e possível, mesmo nas situações de cumprimento rigoroso da técnica cirúrgica. Este relato corresponde ao que foi apresentado pela testemunha «HH», médico especialista em ginecologia e obstetrícia, com as funções de diretor do respetivo serviço no Hospital réu desde 2007; sobre esta matéria, em registo credível e sustentado, também alinhou pelo referido pela testemunha antes referida, considerando várias hipóteses para a ofensa do intestino, entre elas ter sido causada pelo bisturi elétrico. Só que, como também reconhecido por estas testemunhas, também existem outras causas possíveis, nomeadamente a criação de uma zona de sensibilidade pelo descolamento/remoção do próprio útero; de todo o modo, as testemunhas concordam quanto à circunstância de a perfuração não ser detetada, ou nem sequer se manifestar, durante a operação (ou, como explicado acima, pode até levar dias a manifestar-se). Isso atesta e reforça as declarações da testemunha cirurgiã que realizou a operação. Como tal, pela análise deste conjunto de prova, não se pôde considerar provada a factualidade que consta das alíneas A), B) e C). In extremis, ainda cogitámos retirar aqui uma presunção judicial, a partir do facto conhecido (i. e., que a perfuração se devia à cirurgia) retirando o desconhecido (a causa concreta da perfuração); só que, em face da prova produzida, não está reunido o grau de certeza exigível, em particular em matéria tão técnica, que permitisse esse passo, em especial porque as testemunhas são unânimes em reconhecer múltiplas causas possíveis; e o facto de a peritonite ter demorado dias a revelar-se também indicia no sentido oposto. E, havendo ao menos séria dúvida sobre esses factos, sempre valerá a regra do ónus da prova. Nessa medida, os depoimentos referidos mereceram crédito. Assim, o depoimento da testemunha «HH», conjugado com o depoimento das duas outras testemunhas mencionadas, permitiu considerar provados os factos elencados nos pontos 2, 8 e 9. No caso do depoimento da testemunha «GG», por si ou conjugado com prova documental, foi tido em conta para considerar provados os factos dos pontos 10, 11, 13 e 14. Voltando à prova produzida sobre a restante factualidade, ou ainda relacionada com a já visada. O depoimento da testemunha «II» afigurou-se ao Tribunal altamente subjetivo, parcial e contraditório, até, com as declarações da própria Autora. Disse a testemunha que é vizinha da Autora há cerca de 40 anos, e é daí que a conhece. Sem qualquer espécie de questão pendente, começou desde logo a descrever o que entendia por conveniente, no que se notou um discurso pouco espontâneo e previamente preparado. A sua razão de ciência é, também ela, muito fraca. Por partes. No que diz respeito ao estado da Autora quando foi para casa após a alta da histerectomia, garantiu ao Tribunal que foi vê-la a casa e que estava “muito mal, muito mal...”; sucede, porém, que a Autora referiu o contrário, ou seja, que quando foi para casa depois da operação de 26/04/2013 nem quis ver ninguém, incluindo a neta ou a nora. E quando confrontada com essa contradição, apresentou uma resposta abstrata e evasiva. Falou ao Tribunal que a Autora foi operada duas vezes, mas sobre isso não tem qualquer razão de ciência, dado que, segundo a própria, quem lhe contava era o marido da Autora, também ele testemunha. Outro detalhe particularmente estranho, quando referiu o estado da Autora após a colostomia, diz que notou a cicatriz e um talo muito grande; porém, só falou do saco da colostomia quando a questão lhe foi induzida – sendo certo que, pelo alegado, o mais incomodativo era mesmo o saco em que as fezes eram depositadas. Não concretizou em que medida o marido da Autora ficou impedido de cultivar os terrenos, referindo apenas que tem de estar com a Autora (aqui valendo o que acima se disse a este respeito). Destarte, pela forma subjetiva, parcial e comprometida com que depôs, o Tribunal não considera credível este depoimento. Também se notou o mesmo problema no que respeita à testemunha «JJ», que é filho da Autora; também este começou a prestar depoimento sem qualquer espécie de questão pendente, notando-se que trazia o discurso previamente pensado e preparado, no sentido de não comprometer a versão da mãe. É de salientar, além disso, que a testemunha vivia longe da Autora (já à data dos factos), mais concretamente em ...; sem apresentar qualquer espécie de razão de ciência minimamente sólida, afirmou que foi ter com o pai aquando do internamento de urgência da Autora [portanto, em 30/04/2013], e aí o “o diretor interino de cirurgia” veio depois falar com ele, “foi porreiro”, e ter-lhe-á passado a impressão de que tinha havido “laxismo” aquando da alta. Versão que não nos convenceu pelo modo subjetivo do discurso, e, sobretudo, porque nunca a testemunha marido da Autora referiu o envolvimento desta testemunha nas conversas com médicos; aliás, nem sequer referiu a presença de qualquer dos filhos naqueles momentos. E não há qualquer registo clínico que permita aferir dessa presença. Claro que, quando perguntado, e de modo conveniente, não se recordava do nome daquele primeiro médico; mas já recordava o nome do cirurgião, e testemunha, «DD» – mesmo aqui, o depoimento não soou espontâneo, esforçando-se por parecer esquecido; de resto, a testemunha «DD» disse não se recordar, sequer, de falar com o marido da Autora, e nem sequer lhe foi perguntado se havia conversado com qualquer outro familiar da paciente, aqui Autora. Aliás, por volta das 23 horas do dia 30/04/2013, a testemunha «DD» anota que “após período de reflexão e conversa com o marido, a doente pretende ser operada.”; portanto, nunca se refere alguém para além do marido da Autora (nem sequer genericamente, por exemplo referindo “familiares”). Ficou, para o Tribunal, a clara ideia de um discurso forçado e esforçado, sem respaldo em qualquer outro meio de prova, visando colocar a testemunha em certos momentos – mas em relação aos quais não se acredita que lá estivesse, nomeadamente quanto às convenientes conversas com o diretor interino de cirurgia (não identificado) e o cirurgião que realizou a segunda intervenção. Outra contradição desta testemunha diz respeito ao período de isolamento da mãe/Autora; disse a testemunha que, nesse período, visitava-a praticamente todos os dias, e entravam de bata e com máscara; ao contrário, a testemunha marido disse que ao início só ele podia visitar a esposa, e que só mais tarde viria a ser permitida a visita dos filhos. A própria Autora desdiz também aquela declaração, pois afirmou que só o marido a ia visitar, vestia fato e luvas, e os filhos muito de vez em quando, longe a longe, porque não podiam. Também afirmou que a operação no ... se deveu à mãe não ter feedback do Hospital réu quanto à retirada do saco, mas, por outro lado, nada sabia das consultas pós-operatórias. Aliás, sobre a questão da retirada do saco, veio a dizer que via a mãe – Autora – desanimada porque andava no “dilema não queria o saco, e também não queria outra operação”, o que já demonstra que, afinal, sempre era a Autora quem estava relutante em fazer a nova operação (ao menos, nas instalações do Hospital réu); é que não é congruente dizer-se que foi o Hospital réu quem não providenciou pela cirurgia, e, noutro plano, dizer-se que era afinal a mãe/Autora quem, apesar de desconfortável, estava relutante em realizar nova operação para retirar o saco higiénico. Portanto, além do depoimento da testemunha se apresentar particularmente subjetivo, em especial em determinados momentos da cronologia dos factos, também assenta em razão de ciência muito dúbia, tanto mais que não está, nem esteve, próximo dos pais, vivendo distante. Não lhe podemos, por isso, dar crédito. No que diz respeito ao depoimento da testemunha «KK», trata-se de outra familiar da Autora, em concreto uma nora. A testemunha refere que foi visitar a sogra ao final do dia 29/04/2013, referindo que já aí apresentava alguns sintomas. Mas no dia 30/04/2013 não esteve com ela, porque foi trabalhar. Todavia, aquele relato não é muito congruente com as declarações de parte, porque a Autora disse que no dia 29/04/2013 passou a noite muito mal (e na madrugada de 30/04, portanto). De facto, é um depoimento muito baseado naquilo que o sogro, e testemunha, também lhe disse, dado que não visitou a sogra, sequer, no segundo período de internamento, isto é, após 30/04/2013. De todo o modo, já nos convenceu o relato que fez sobre os tempos imediatos ao regresso a casa (ou seja, após 18/06/2013), porque o discurso apresentou-se mais espontâneo e, em especial, com conhecimento direto (só limitado porque a testemunha também trabalhava). Nesse sentido, contribuiu para considerar provados os factos elencados nos pontos 49, 50, 51, 54 a 58 e 69. Também se nos afigurou como espontâneo e objetivo o relato que fez sobre os constrangimentos da Autora, decorrentes da utilização do saco higiénico, pelo que, a esse respeito, contribuiu para dar como provados os factos elencados nos pontos 70 a 72, 75 e 77. Também confirmou a utilização da cinta, matéria sobre a qual já havia sido produzida prova. Todavia, e aliás na decorrência do acima referido, já não nos convenceu o relato sobre a incapacidade da Autora ou a impossibilidade de o marido da Autora cultivar os terrenos. Neste aspeto, como aliás no seu início, o depoimento voltou a demonstrar-se pouco concretizado e evasivo; isso foi particularmente notório na parte das supostas perdas por não cultivo dos terrenos; de salientar que os valores supostamente perdidos foram ditos de forma nada convicta, demonstrando prévia consideração sobre o assunto. Até porque, repete-se, o estado da Autora (o derivado das lesões, que é aquele que nos interessa) não é tão grave como se pretende fazer crer, atendendo ao relatório pericial. Sem esquecer que tanto a Autora como a testemunha marido são, a esta data, pessoas já de mais idade, dificilmente dispondo de força física para tratar sozinhos dos terrenos (ao menos a testemunha marido, porque, na versão da Autora, o seu contributo decisivo no equilíbrio familiar era levar o lanche). Por isso, nesses aspetos, não podemos atribuir crédito ao depoimento. Depôs ainda como testemunha «LL», este também familiar da Autora (filho). Também neste caso, quanto ao estado da mãe a 29/04/2013 (quando regressou do hospital após a histerectomia), o depoimento não foi concretizador, referindo apenas que “estava na cama, mal”, sem adiantar em que termos. Ainda de acordo com a sua versão, disse que só foi ao Hospital no dia seguinte ao da operação, ainda a mãe estava em isolamento (também nunca mencionou a presença do irmão/testemunha, anote-se; disse que esteve com o pai). Segundo disse, só visitou a mãe 3 ou 4 vezes, e queixava-se das dores um bocadinho. Em nenhum desses pontos o depoimento se apresentou concreto, antes assentando em respostas bastante abstratas e pouco esclarecidas. De facto, a única parte em que apresentou alguma concretização foi no relato do período imediato após o regresso da mãe/Autora do Hospital (ou seja, após 18/06/2013); nesse aspeto, ainda nos pudemos socorrer do depoimento para considerar provados os factos elencados nos pontos 49, 54, 55 e 57. Não nos mereceu crédito quanto à questão da incapacidade da mãe para realizar, de todo, as tarefas domésticas (atendendo à prova pericial, particularmente), nem à suposta impossibilidade de cultivo dos campos; aliás, a este respeito apresentou até um discurso pouco congruente, tanto dizendo que o pai só cultiva mesmo as coisas para casa, como depois afirma, em contradição, que o pai tem mais despesas porque tem de comprar os legumes (e também não sabe quantificar; de resto, também o depoimento da testemunha «CC» é pouco esclarecido a este respeito, quando afirma que tem de comprar a partir de Dezembro/Janeiro, sem que se perceba por que razão – isto claro, sem prejuízo de se dizer que, à mercê do clima, poucos legumes existem que perdurem todo o ano; e segundo o próprio, poucos animais tem para alimentar). Já nos mereceu mais crédito na parte em que referiu os constrangimentos da mãe, na altura em que foi portadora da colostomia, dado que vivia muito próximo e, portanto, ia acompanhando o dia-a-dia; neste sentido, foi possível aproveitar o depoimento quanto aos factos provados nos pontos 70, 71, 72, 77 e 78. Quanto à testemunha «FF», confirmou ao Tribunal ter sido o médico cirurgião que, no CHU de ... recebeu a Autora, e realizou a intervenção para repor o trânsito intestinal. Auxiliou-se do processo clínico, mas não deixou de merecer crédito por causa disso mesmo, i. e., porque o depoimento é condizente, em pleno, com os registos clínicos. Disse desconhecer qual foi, em concreto, a complicação associada à colostomia; também afirmou que a Autora nunca lhe confidenciou (ou, pelo menos, não recorda) a razão pela qual não procurou o Hospital ... [pelo que o depoimento não faz prova do facto da alínea J)]; do caso concreto, nada mais recordou, falando em termos de normalidade e de casos como os da Autora. Assim sendo, e considerando a limitação da razão de ciência, mas não havendo razões para duvidar do depoimento na parte em que se pode afirmar que a testemunha tem conhecimento do caso concreto, contribuiu para considerar provados os factos elencados nos pontos 59, 60 e 62. Resta dizer, em matéria de prova testemunhal, que foi ouvida, também, «MM»; porém, trata-se de um depoimento sem relevo para o caso em apreço. Com efeito, referiu que não recorda o caso, nem sequer a partir dos registos; acrescentou, depois de perguntada, que terá feito a nota da alta do internamento, altura em que terá acompanhado a Autora; mas de concreto nada conseguiu dizer ao Tribunal sobre o assunto, pelo que não retiramos do depoimento qualquer utilidade (mesmo não existindo razões para duvidar da testemunha). Por fim, importa referir os factos provados em 84, 85 e 86. Dir-se-á que são factos quase objetivos, bastando confrontar as distâncias nos mapas e os valores das portagens. Ainda assim, foram considerados, essencialmente, os depoimentos da testemunha marido e do filho «LL», os mais esclarecidos a este respeito. Só não conseguimos quantificar o valor em concreto das deslocações, dado que a própria testemunha marido não o adiantou, e a outra testemunha apontou um valor em abstrato, entre dois limites.» * III.B.DE DIREITO b.1. do erro de julgamento sobre a matéria de facto das alíneas B),D), E), F), H), M) e O). 3.3.A Apelante sustenta que a sentença recorrida julgou erroneamente ao dar como não provada a matéria que consta das alíneas sobreditas que devia antes ter sido julgada provada, e que é a seguinte: « B. A perfuração do colou da Autora decorrente da histerectomia realizada em 26/0412013 foi causada pelo médico que a realizou; D. No mesmo dia 26/04/2013, o Dr. «BB», em conversa com o marido da Autora, comunicou-lhe que a operação tinha corrido muito bem, ficando aquele descansado; E. Perante as dores que a Autora apresentava em 27/04/2013, o marido questionou o médico «BB» que lhe disse que as dores e vómitos eram normais e que passavam; F. Perante a informação de que a Autora tinha alta, em 29/04/2013, o marido deslocou-se ao Hospital e falou com o médico, comunicando-lhe que aquela não estava bem, pois sentia muitas dores e tinha febre alta, pelo que não podia ir para casa; ao que o médico respondeu que tinha alta e, por isso, podia ir para casa; H. O réu Centro Hospitalar jamais marcou a cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, o que levou a autora a procurar outro hospital; M. Só recorrendo a outro hospital é que a Autora conseguiu realizar uma operação de reconstrução do trânsito intestinal; O. A Autora ficou impossibilitada de ter uma vida afetiva normal, e ficou impossibilitada de se relacionar sexualmente, o que lhe desperta sentimentos de angústia e revolta pessoal;» Em termos sumários, a Apelante sustenta que o Tribunal a quo não procedeu a uma correta valoração e apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, invocando que incorreu em erro na valoração das declarações de parte prestadas pela Autora e no depoimento prestado pela testemunha «CC», seu marido, que impunham que a matéria das alíneas B), D), E), F), H), M) e O) fosse dada por provada. A Apelante entende que as respostas negativas constantes das alíneas B), D), E), F), H), M) e O), dos factos não provados, não se enquadram nas respostas dadas pela testemunha «CC» e nas declarações de parte que, diversamente do que entendeu o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo, foram totalmente isentas e credíveis. Em síntese, resulta dos factos não provados, que a Autora, segundo o Tribunal a quo, não logrou provar: (i) o seu estado no momento em que lhe foi dada alta; (ii) a recusa ou falta de colaboração na marcação da cirurgia de reconstrução do transito intestinal; (iii) a suposta incapacidade da autora para a realização das tarefas domésticas básicas; (iv) que a perfuração do cólon se tivesse nomeadamente ficado a dever a imperícia da cirurgiã que a realizou, não bastando a prova da causa da perfuração. Vejamos. 3.4. A propósito da impugnação do julgamento da matéria de facto operado pela Apelante coloca-se a questão prévia de saber se esta cumpriu com os ónus impugnatórios do artigo 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, e, no caso de incumprimento desses ónus, quais as consequências jurídicas daí decorrentes para a sorte do presente recurso. b.1.1.dos critérios impostos ao recorrente em sede de impugnação da matéria de facto. 3.5. Com a reforma introduzida pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, ao CPC, o legislador introduziu o registo da audiência de discussão e julgamento, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, de modo que a alteração da matéria de facto, que no anterior regime processual era excecional, passou a ser uma função normal da 2.ª Instância. A intenção do legislador foi a de que o tribunal de segunda instância passasse a realizar um novo julgamento em relação à matéria impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo esta a conclusão que resulta expressamente do disposto no art.º 662º, n.º 1 do CPC, quando nele se expressa que a “Relação” deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento supervenientes impuserem decisão diversa. Como vem sendo repetidamente afirmado, quer pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência daquelas alterações, são de rejeitar todas as interpretações minimalistas do enunciado artigo 662.º que, refugiando-se nas dificuldades relacionadas com a audição dos depoimentos testemunhais captados sem registo de imagem, com prejuízo do princípio da imediação (prejuízo esse que, aliás, é uma realidade), se limitam a fazer um controlo meramente formal da fundamentação vertida pelo tribunal a quo, assim como aquelas que se limitam a fundamentar, de forma genérica, sem referência aos concretos meios de prova e a conectá-los entre si e com as regras da experiência comum, isto é, sem fazer um novo julgamento, por forma a demonstrar o acerto ou desacerto da decisão proferida pelo tribunal a quo em relação à matéria impugnada em sede recursória. Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI.. Perante as regras positivas enunciadas na atual lei processual civil, tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, o Tribunal de 2.ª Instância deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da primeira instância. Como verdadeiro tribunal de substituição, a 2.ª Instância aprecia livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil). Nessa sua livre apreciação, a 2.ª Instância não está condicionada pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que a 1ª instância fez dessa mesma prova, podendo e devendo na formação dessa sua convicção autónoma, recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI.. Contudo, importa não perder de vista que não foi propósito do legislador que o julgamento a realizar pela 2.ª Instância em sede de matéria de facto se transforme na repetição do julgamento realizado em 1.ª Instância, sequer admitir recursos genéricos, e daí que tenha imposto ao recorrente, em sede de impugnação da matéria de facto, o cumprimento dos ónus que enuncia no art.º 640º do CPC, pelo que se mantém o entendimento que o tribunal de 2ª instância deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 153., estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação. Acresce que tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo do princípio da auto -responsabilidade e dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a matéria que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, se impunha que tivesse sido proferida e os concretos meios de prova que reclamam essa solução diversa. Deste modo é que o artigo 640º, n.º 1 do CPC, estabelece que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 662º). Note-se que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial da delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem, é entendimento jurisprudencial uniforme que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados. Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do âmbito do recurso, mas se destinam a fundamentar o recurso, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações. Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes ob. cit., pág. 155., sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos. O cumprimento dos referidos ónus tem, como alerta Abrantes Geraldes, a justificá-la a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da 2.ª Instância, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações. É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações. A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de auto- responsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo” Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 159. No mesmo sentido vide Acs. S.T.J. de 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, todos in base de dados da DGSI.. Por último, precise-se que porque se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso pela 2.ª Instância dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. |