Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00769/16.0BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/21/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR ATO MÉDICO NO SNS;
JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO- HISTERECTOMIA;
VIOLAÇAO DA LEGES ARTIS;
Sumário:1.Mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso, pela 2.ª Instância, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

2. No âmbito de qualquer processo judicial, não sendo possível alcançar a verdade absoluta, resta ao Tribunal obter uma verdade provável, isto é, uma verdade que se caracterize por um grau de probabilidade tal que permita a resolução do litígio de uma forma mais justa possível.

3.Em ação de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais assente em responsabilidade médica, por atos clínicos e/ou cirúrgicos praticados ou omitidos em estabelecimento do SNS, incumbe ao demandante/autor alegar e provar factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, ou seja: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
3. Nessas ações a ilicitude decorre de o corpo clínico demandado ter, nos atos médicos prestados ou omitidos, infringido a leges artis próprias da sua atividade, atento o desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico da arte médica, no concreto momento em que foram prestados ou omitidos os atos médicos ao doente, independentemente do resultado alcançado.

4.O preenchimento do requisito da ilicitude exige que o demandante/autor alegue e prove factos, com poder persuasivo bastante, para que num juízo corrente de probabilidade, se firme o convencimento de que o restado danoso verificado na pessoa do doente (lesado) foi antecedido de atos clínicos cirúrgicos, praticados ou omitidos, com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou científica próprias da atividade médica.

5. Para além de o facto gerador de responsabilidade civil ser ilícito, tem o médico de o praticar com culpa. Para tal, incumbia à autora alegar e provar a existência de uma relação de desconformidade entre o comportamento observado e a conduta devida “ no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes”.

6. O erro médico só existe quando o médico viola, cumulativamente, a leges artis e o dever de cuidado que lhe cabe e pode ser cometido por:(i)imperícia ( impreparação: fazer mal o que deveria ser feito de acordo com a leges artis);(ii)imprudência (fazer o que não consta da leges artis; (iii)negligência ( deixar de fazer o que a leges artis impunha que se fizesse).
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo:

I. RELATÓRIO
1.1.«AA», residente na Rua ..., ... ..., ..., titular do NIF ..., instaurou a presente ação administrativa, contra o Hospital da ..., E. P. E., pessoa coletiva número ..., com sede na Rua ..., ... ... [inicialmente, Centro Hospitalar..., E.P.E.], e «BB», com domicílio profissional indicado na sede da primeira ré, formulando o seguinte pedido:
Nestes termos, deve a presente ação ser considerada procedente por provada e, em consequência:
- Serem os réus condenados a pagar à autora uma compensação de valor nunca inferior 50.000,00€ (cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, sofridos até ao presente, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até ao integral pagamento;
- Serem os réus condenados a pagar à autora a título de danos patrimoniais, despesas e dano património futuro, a quantia nunca inferior a 17.660,00€ (dezassete mil e seiscentos e sessenta euro).
- Tudo isto acrescido dos respetivos juros, à taxa legal em vigor, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento;
- Condenados os réus nas custas e demais encargos legais.”
Para tanto, alega, em síntese, que no dia 26/04/2013 foi submetida a uma histerectomia abdominal total por macroscópica sob anestesia geral, por decisão dos serviços médicos do Réu, e que dessa cirurgia, resultou lesão iatrogénica do reto.
Como consequência da alegada lesão, a Autora foi sujeita a novo reinternamento de urgência no dia 30/04/2013, por evidenciar peritonite fecaloide, tendo sido necessária nova intervenção para realizar colostomia.
Acontece que, o Réu não lhe prestou a assistência médica devida, tendo a colostomia sido retirada muito tempo depois.
Mais alegou que a situação vivida lhe causou danos não patrimoniais e patrimoniais, dos quais devem ser responsabilizados os réus.
1.2. Citados, os réus contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção, os Réus invocaram a ilegitimidade passiva do segundo Réu (Dr. «BB»).
Por impugnação, sustentaram não ter ocorrido qualquer erro médico, considerando que a Autora foi corretamente assistida nos serviços hospitalares do Réu, não se vislumbrando, por isso, qualquer atuação à margem das leges artis.
Como tal, consideraram não se encontrarem preenchidos os pressupostos cumulativos subjacentes à responsabilidade civil extracontratual, pugnando pela total improcedência da ação.
1.3. A Autora deduziu réplica, na qual pugnou pela improcedência da exceção de ilegitimidade do segundo Réu, pedindo a condenação do primeiro Réu, como litigante de má fé.
1.4. O Réu pronunciou-se refutando a condenação a esse título.
1.5. Realizou-se audiência prévia, em que foi proferido despacho saneador, julgando-se procedente a invocada exceção de ilegitimidade passiva do segundo réu, com a consequente absolvição da instância, e procedeu-se à identificação do objeto do litígio, bem como à enunciação dos temas da prova. Determinou-se a realização de prova pericial.
1.6. Realizada audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, constando da mesma a seguinte parte decisória:
«Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação administrativa totalmente improcedente e, em consequência, absolvo o réu dos pedidos.
Mais julgo improcedente o pedido de condenação do réu como litigante de má-fé.
**
Condeno a Autora no pagamento das custas processuais, por ter ficado integralmente vencida – cf. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, e artigos 6.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, e tabela I-A do RCP.
**
Registe e notifique.»
1.7. Inconformada com a sentença proferida que julgou a ação improcedente, a Autora interpôs o presente recurso de apelação que terminou com a apresentação das seguintes CONCLUSÕES:
«A. Pretende a recorrente ver analisadas no âmbito deste recurso, as seguintes questões: existência de Erro de julgamento da matéria de facto e de Erro na aplicação do direito;
B. Entende a recorrente que existe erro na valoração e apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente, na valoração da prova testemunhal que se encontra gravada conjugada com a análise dos documentos juntos aos autos;
C. Entende a recorrente que as respostas negativas constantes das alíneas B), D), E), F), H), M), O), dos factos não provados) não se enquadram nas respostas dadas pela testemunha, «CC» e nas declarações de parte que ao contrário do que entendeu o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo, foram totalmente isentas e credíveis;
D. Não se compreendendo porque razão o Tribunal desconsiderou o depoimento de parte da autora e o depoimento da testemunha marido, na aferição do estado de saúde da autora aquando da alta médica, bastando-se com a comparação ou o confronto entre os documentos juntos aos autos, quando para dar como provada a factualidade dos pontos 16, 17 e, 19, 20, 21, 22 e 23, o tribunal considerou os mesmos depoimentos;
E. O certo é que, em momento algum é feita uma apreciação das questões levantadas nas alíneas E) e F), ou seja, quanto ao contacto e conversas que o marido da autora teria tido com o médico Dr. «BB»;
F. Das declarações da testemunha «CC» reproduzidas no corpo das alegações e resultantes do depoimento prestado no dia 24 de Maio de 2021, gravado no sistema de gravação Sitaf, de 04:03:50 (h.m.s) a 04:26:36 (h.m.s.), designadamente ao minuto 3:08, conclui-se que as mesmas foram totalmente conviventes e espontâneas bastando para tal ouvir o depoimento prestado;
G. Não podia assim o tribunal a quo desconsiderar o depoimento prestado e devia como se impunha ter dado como provada a factualidade constante das alíneas E e F dos factos não provados;
H. Do depoimento do Dr. «DD» resulta que este acompanhou a autora e só passado um ano é que deixou de a acompanhar, tudo como melhor resulta do depoimento prestado ao minuto 1:47, depoimento prestado no dia 24 de Maio de 2021, e gravado no sistema de gravação Sitaf, de 01:25:54 (h.m.s) a 01:59:58 (h.m.s), designadamente ao minuto 01:47:18, e cuja transcrição melhor consta das alegações para onde expressamente se remete;
I. Assim, não podia o tribunal a quo servir-se da negação do Dr. «DD» para desacreditar o depoimento do marido da autora, pois, o depoimento coincide, nesta parte, com o depoimento da testemunha;
J. Do depoimento prestado pela testemunha «CC», prestado no dia 24 de Maio de 2021, depoimento gravado no sistema de gravação Sitaf, de 04:03:50 (h.m.s) a 04:26:36 (h.m.s.), ao minuto 3:31:16, quando questionado pelo mandatário da autora respondeu: “levei o exame e fui à terceira consulta. Já me tinha dito que dava para ser operada, vamos lá marcar uma consulta para daqui a uma ano. Falei com a pessoa que tirou o exame e ele disse-me para falar com um médico do ....”
K. Assim, não podia o tribunal a quo deixar de considerar como provada a factualidade da al. H, dos factos não provados, pelo menos em parte;
L. A factualidade constante da al.s H) e M) dos factos não provados terão de ser consideradas provadas, pelo menos, em parte. Ou seja: O Réu Centro Hospitalar jamais marcou a cirurgia de reconstituição do trânsito intestinal. - A autora recorreu a um outro hospital para realizar uma operação de reconstituição do trânsito intestinal;
M. Considerando a fundamentação do tribunal a quo quando considerou que as declarações do marido ganharam crédito quanto à afectação da sua vida íntima, e que a situação da autora, pelo menos condiciona o acto sexual, deve o tribunal retirar dos factos não provados a matéria da alínea O), tanto mais que está em oposição a parte da factualidade dada como provada no ponto 80 dos factos provados;
N. Conhecendo-se a causa da peritonite, como sendo consequência directa da cirurgia, o tribunal deste facto conhecido podia e devia ter presumido a causa concreta da perfuração, e daí que devesse ter dado como provada a factualidade da alínea B) dos factos não provados.
O. Pois, embora não se tenha provado como é que aconteceu a perfuração não há duvidas que pelas razões apontadas, a causa só poderia ter sido ou pelo encosto do bisturi no cólon e ou por uma queimadura no próprio cólon que não tenha cicatrizado e que, por isso, veio a figurar e a criar uma ruptura do cólon.
P. Não restam dúvidas que a perfuração do cólon da autora decorrente da histeroctomia realizada no dia 26/4/2013 que foi causada pelo médico que a realizou tendo no decorrer daquela cirurgia sido violadas as regras das leges artis;
Q. Não é previsível e muito expectável que da realização de uma cirurgia de histeroctomia abdominal total laporoscópica seja afectada um outro órgão, neste caso o cólon;
R. Assim, ao contrário do que considerou o tribunal a quo, o mesmo devia ter considerado que: A cirurgia a que a autora foi sujeita no hospital do Réu não tem como riscos próprios, comuns e normais a perfuração intestinal e peritonite generalizada; A cirurgia a que a autora foi sujeita não tinha qualquer relação com o cólon; E, por isso, a cirurgia não foi realizada de acordo com as boas regras da prática da medicina.
S. A este propósito veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 20/04/2004, e publicado no site do ITIJ, em que numa situação em tudo semelhante à dos presentes autos, considerou que “Estando provado, no caso concreto, que o resultado espúrio - perfuração intestinal – foi originado, em termos causalmente adequados, pela intervenção cirúrgica efectuada – laqueação tubar por laparoscopia – e, gorado o intento da Ré de demonstrar que a perfuração intestinal estava incluída no universo dos riscos próprios, normais e comuns da cirurgia em causa, está justificada a convicção do tribunal a quo, que considerou provada a violação das leges artis”;
T. Assim, salvo o devido respeito que é muito, entendemos que o tribunal “a quo” errou na apreciação da prova quanto às respostas dadas à matéria das alíneas B, D, E, F, H, M e O, pelo que deve a matéria de facto ser reapreciada, alterando-se as respostas das alíneas B, D, E, F, H, M no sentido de se considerarem como provados e, consequentemente, a matéria aí constante passar para a disposição dos factos provados;
U. Existe erro de julgamento da matéria de facto, sendo a sentença em crise nula por violação do artigo 607.º, n.º 4.º do Código de Processo Civil;
V. Ora, havendo erro de julgamento da matéria de facto, deve o tribunal “ad quem” proceder à modificação da decisão da 1ª instância, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que tem enquanto tribunal de instância que garante um efectivo segundo grau de jurisdição;
W. Nos termos do artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, deve a matéria de facto ser reapreciada, alterando-se a resposta da matéria das alíneas B, D, E, F, H, M, e eliminando-se a resposta da alínea O;
X. Resultou provada toda a factualidade dos pontos 16 a 67 e 69 a 86 dos factos provados e ainda a matéria das alíneas, B) E), F), H) e M);
Y. Mais resultou que as médicas que realizaram a cirurgia do dia 26 de Abril de 2013 estavam ao serviço e actuaram no âmbito e interesse do Centro Hospitalar..., E.P.E, primeiro réu, ou seja, no interesse do Estado, enquanto ente público, que assume a satisfação de bens públicos – no caso presente, a saúde dos cidadãos que a eles recorre;
Z. Foram as omissões e erros com violação da legis artes por parte das médicas ao terem perfurado o cólon, que conduziram à situação descrita nos autos;
AA. O comportamento das médicas consubstanciou uma violação ilícita de um direito de personalidade da autora, o direito à sua integridade física.
BB. As médicas não realizaram a cirurgia do dia 26 de Abril de 2013, Histerecotomia abdominal total por laparoscopia, com total respeito pelas legis artis e dever geral de cuidado, cumprindo todas as exigências técnicas e todos os deveres de cuidado que conheciam e que podiam observar, caso contrário, não teria havido lesão;
CC. “È ilícita e culposa, por violadora das leges artis, que lhes impunha o cuidado de não lesar o intestino da autora, pelo que, o comportamento dos médicos ficou abaixo do standard técnico/científico que era exigível a um ginecologista cirurgião médio e que, por consequência a sua conduta é passível de um juízo de reprovação por parte do direito, à luz do critério previsto no n.º 2 do artigo 487.º do CC;
DD. Havendo uma relação de comitente e comissário entre os réus, pelos danos que os médicos, segundo e terceira ré, causaram à autora recai a obrigação de indemnizar, sendo que a mesma deverá ser assumida pela Unidade Hospitalar – Centro Hospitalar..., E.P.E., nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 500.º do C. Civi;
EE. Atendendo aos factos elencados, é evidente a existência do nexo de causalidade entre a intervenção realizada Réu e a perfuração do intestino junto ao cólon;
FF. Encontram-se, por isso, preenchidos todos os pressupostos para o Réu ser responsável civilmente por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela autora;
GG. Como se decidiu no Ac. do STA, supra referido de 20/04/200: assente que está, que “a intervenção cirúrgica efectuada à autora, nas instalações do Ré, causou-lhe perfuração intestinal e peritonite generalizada”, é forçoso concluir que este nexo naturalístico é causalmente adequado à produção dos danos alegados, de acordo com a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, consagrada no art. 563º do C. Civil”;
HH. Na verdade, nos termos daquela, a condição (procedimento médico/cirúrgico) só deixaria de ser causa do dano se, segundo a sua natureza geral, fosse de todo indiferente para a produção do dano e só se tivesse tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias (cf. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 10ª ed., p. 891,.
II. A conduta dos serviços do réu, não é pela sua natureza, em abstracto, indiferente à produção do dano. Em geral tem aptidão para originar o dano e, em concreto, foi condição directa e imediata dele;
JJ. Sendo a incapacidade parcial permanente ela própria um dano patrimonial presente, porque se traduz num agravamento da penosidade para a execução, com normalidade e regularidade, das tarefas diárias, acarretando à autora um esforço suplementar, pelo que à autora, recorrente, deverá ser atribuída, a título de dano biológico, ou patrimonial uma quantia nunca inferior a €5.000,00;
KK. Quantia esta que deverá ser acrescida de uma indemnização para compensar as despesas melhor descritos nos pontos 82 a 86 dos factos provados, no valor de € 1.080,00€ a título de danos patrimoniais;
LL. Tendo em conta as lesões de que a autora padeceu, as dores que sofreu, o grau 5 numa escala de 7 do dano estético, tudo bem evidenciado nos factos dados como provados para os quais se remete, e a incapacidade parcial permanente, deve ser fixada à Autora, a título de danos não patrimoniais uma indemnização em quantia nunca inferior a €30.000,00 (trinta mil euros);
MM. Recorrendo à equidade na fixação da indemnização que permita a colocação do lesado, a ora recorrente, na situação em que estaria se não tivesse ocorrido a lesão (artigos 496º, 562º, 563º e 566º, nº 3, do Código Civil), a indemnização a atribuir à recorrente, a esse título, porque justa e equitativa, deve ser fixada no valor de €36.080,00;
NN. Pelo que, o tribunal “a quo”, ao ter absolvido o réu, violou a melhor interpretação e aplicação dos preceitos contidos nos artigos 483.1, 496.1, 562.1, 563.1 e 566.1, todos do Código Civil;
OO. Assim, revogando-se a douta sentença proferida pelo tribunal “a quo” deve o réu ser condenado a pagar à autora, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a indemnização no valor nunca inferior a € 36.080,00 (trinta e seis mil e oitenta euros).
Nestes termos, e nos demais de direito que por Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, serão supridos, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, por via disso, a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” ser revogada, por ilegal e injusta, julgando-se procedente a acção intentada pela autora, na parte objecto do presente recurso.
Assim se fazendo inteira JUSTIÇA.»
1.7. O Réu contra-alegou mas não formulou conclusões.
1.8. O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º1 do CPTA, não se pronunciou sobre o mérito do recurso.
1.9. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1.Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas mencionadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se a saber:
b.1. se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria de facto por ter dado como não provados os factos insertos nas alíneas B), D), E), F), H), M) e O) quando essa matéria deveria ter sido levada ao elenco dos factos provados.
b.2. se a sentença recorrida, na procedência do invocado erro sobre o julgamento da matéria de facto, enferma de erro de julgamento sobre a matéria de direito, por ter julgado como cumprida a legis artis, e assim, ter absolvido o réu, com o que violou a melhor interpretação e aplicação dos preceitos contidos nos artigos 483.1, 496.1, 562.1, 563.1 e 566.1, todos do Código Civil.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora nasceu em .../.../1957, e é utente do serviço nacional de saúde número ...91 – cf. facto não controvertido;
2. O primeiro réu é uma instituição acreditada pela Joint Commission Internacional desde o ano de 2008, maior órgão acreditador de instituições de saúde do mundo, cumprindo os requisitos organizacionais e clínicos necessários para que a acreditação seja efetivamente possível;
3. O então designado Centro Hospitalar..., E. P. E., estava, em 2013, integrado no serviço nacional de saúde – facto não controvertido;
4. Naquele mesmo ano de 2013, «BB» encontrava-se ao serviço daquele Centro Hospitalar, como médico interno da especialidade de ginecologia/obstetrícia – facto não controvertido;
5. Desde o ano de 2011, a Autora vinha a ser seguida clinicamente em consulta de ginecologia nas instalações do referido Centro Hospitalar, por espessamento endometrial, sendo seguida pela Dr.ª «EE» – facto não controvertido;
6. Por decisão dos serviços clínicos do Centro Hospitalar, em 25/04/2013 a Autora foi internada nas instalações do Centro Hospitalar, situadas na cidade ... (Hospital ...) – facto não controvertido;
7. No dia 26/04/2013, também por decisão dos serviços clínicos do Centro Hospitalar, a Autora foi submetida a histerectomia abdominal total laparoscópica sob anestesia geral – facto não controvertido;
8. A intervenção laparoscópica tem, para o paciente, vantagens: a nível cosmético; menos perdas hemáticas durante a cirurgia, e menos dor no pós-operatório, permitindo ao doente recuperar e voltar à vida ativa o mais rapidamente possível; probabilidade de ocorrência de menos complicações; redução dos dias de baixa médica de que o doente precisa, com redução dos medicamentos analgésicos que terá de fazer no domicílio;
9. O procedimento em causa (laparoscopia) é minimamente invasivo, associado a baixa taxa de complicações intra e pós-operatórias, mesmo em mulheres com elevado IMC e antecedentes de cirurgia abdomino-pélvica;
10. A intervenção cirúrgica decorreu sem intercorrências;
11. Todos os procedimentos cirúrgicos foram cumpridos, designadamente ao nível da contagem de material, verificação do campo cirúrgico e cumprimento dos respetivos protocolos, nada fazendo antecipar qualquer evolução negativa na situação da Autora;
12. Por ter sido operada com anestesia geral e tendo estado medicada, não sentiu quaisquer dores – facto não controvertido;
13. Do relato cirúrgico dessa intervenção resulta como achados operatórios útero aumentado de volume com cerca de 12cm, com mioma intramural deformando a parede lateral direita, Anexo esquerdo normal, Anexo direito com ovário encastoado numa ansa intestinal que se encontrava aderente a parede posterior do útero e região anexial direita – cf. documento de fls. 130 (verso) do suporte físico dos autos;
14. O exame histológico confirmou a existência de leiomiomas uterinos intersticiais, e pólipo endometrial, os quais são causa de dor, sangramento, inchaço e necessidade de urinar frequente – cf. documento de fls. 102 (verso) do suporte físico dos autos;
15. Devido à realização dessa cirurgia de 26/04/2013, a Autora sofreu perfuração do intestino junto do colon, que não sentiu;
16. No dia 27/04/2013, a Autora apresentou vómitos, passando a noite com dores;
17. No dia seguinte, 28/04/2013, a Autora sentiu dores abdominais e vómitos;
18. A 29/04/2013, o médico «BB», indicado como segundo réu, deu alta clínica à Autora;
19. Nesse dia, à tarde, a Autora foi para casa, e, quando aí chegou, foi para a cama;
20. No mesmo dia, à noite, a Autora sentiu dores abdominais, teve vómitos e diarreia, o que a impossibilitou de dormir, sendo levada pelo marido para a casa de banho;
21. No dia seguinte, 30/04/2013, a Autora continuou com dores, e não conseguia ingerir alimentos;
22. À tarde, nesse dia, a Autora sentiu dores abdominais constantes e mais fortes, assim como vómitos;
23. O seu estado piorou, o que assustou o marido que a transportou aos serviços de urgência do Hospital ..., de ...;
24. Chegada ao Hospital, a Autora apresentava queixas de dores abdominais e vómitos – cf. documento de fls. 195 do suporte físico dos autos;
25. Os serviços da urgência enviaram a Autora para o serviço de ginecologia e obstetrícia, no qual tinha sido operada – cf. documento de fls. 195 e ss. do suporte físico dos autos;
26. Foi observada pelo segundo réu «BB» – cf. documento de fls. 195 e ss. do suporte físico dos autos;
27. Neste serviço, além da observação médica, a Autora também realizou TAC abdomino-pélvica, e ficando em observação por, pelo menos, cinco horas – cf. documento de fls. 195 e ss. do suporte físico dos autos;
28. Após a análise do resultado dos exames, concluíram os serviços do réu Centro Hospitalar ter havido lesão iatrogénica do reto, por quadro de peritonite fecaloide – cf. documento de fls.198 do suporte físico dos autos;
29. Que podia levar à morte da Autora;
30. Assim, o médico cirurgião «DD» dirigiu-se ao marido da Autora e transmitiu-lhe que a mesma necessitava de ser operada com urgência – cf. documento de fls. 195 (verso) do suporte físico dos autos;
31. A Autora foi operada na madrugada de 01/05/2013, de urgência, pelo médico cirurgião «DD», tendo sido submetida a laparotomia exploradora com rafia de laceração do colon sigmoide/reto e colostomia terminal por pneumoperitoneu pós-histerectomia laparoscópica – cf. documento de fls. 200 do suporte físico dos autos;
32. Durante a cirurgia, a Autora esteve inconsciente, tendo-lhe sido dada anestesia geral – cf. documento de fls. 200 do suporte físico dos autos;
33. No pós-operatório, a Autora sentiu dores e esteve inconsciente pelo menos 24 horas;
34. E, após a operação, esteve sempre acamada;
35. Foi-lhe colocado, naquela operação de 01/05/2013, um saco para retenção das fezes e líquidos (colostomia) – cf. documento de fls. 200 do suporte físico dos autos;
36. Os pontos dessa cirurgia não cicatrizaram, o que provocou dores à autora;
37. A ferida operatória veio a infecionar – cf. documento de fls. 202 do suporte físico dos autos;
38. Razão pela qual, no dia 07/05/2013, a autora foi submetida a nova cirurgia para reconstrução da colostomia – cf. documento de fls. 202 do suporte físico dos autos;
39. Nesta nova operação à Autora, foi feita a limpeza, e novo corte do intestino grosso – cf. documento de fls. 202 do suporte físico dos autos;
40. Após esta cirurgia, a Autora esteve isolada num quarto durante quatro semanas, recebendo poucas visitas;
41. Nesse período, a Autora esteve medicada, mas sentia dores – cf. documento de fls. 112 (verso) e seguintes do suporte físico dos autos;
42. Continuou sempre acamada;
43. Temeu pela vida;
44. A limpeza e a higiene pessoais eram feitas na cama;
45. Chegou a usar fraldas;
46. Para ir à casa-de-banho, tinha de ser com o apoio das auxiliares ou do marido;
47. Tinha, e ainda tem, que usar uma cinta de contenção abdominal e esteve algaliada – cf. documento de fls. 112 (verso) e seguintes do suporte físico dos autos;
48. Teve alta clínica em 18/06/2013 – cf. documento de fls. 94 do suporte físico dos autos;
49. Após o que foi para casa, à qual regressou com colostomia, permanecendo os primeiros 15 dias na cama;
50. Após a alta hospitalar, a Autora teve necessidade de ir ao posto médico de dois em dois dias, fazer curativos, nos primeiros quinze dias, e depois uma vez por semana, o que durou, pelo menos, dois meses;
51. O que implicou, pelo menos, 20 deslocações;
52. Após a alta clínica, a Autora teve ainda de se deslocar ao Hospital ... pelo menos dez vezes – cf. documento de fls. 93 (verso) e 96 (verso)/97 do suporte físico dos autos;
53. Continuou a utilizar cinta de contenção;
54. A autora tinha vergonha e não se adaptava a usar o saco para retenção de líquidos e fezes;
55. Foi o marido da autora quem sempre esteve ao lado dela e tudo fez para que a mesma fosse aceitando a sua situação clínica;
56. No período em que usou o saco higiénico, era o marido da Autora quem lho mudava, pois aquela não conseguia fazê-lo;
57. Depois da alta, a Autora não conseguia fazer a sua higiene pessoal, dependendo de terceiros para o efeito, o marido e a nora;
58. Durante duas a três semanas, teve de tomar banho e fazer a higiene pessoal na cama;
59. No dia 08/04/2015, a Autora realizou no Hospital ..., no ..., cirurgia de reconstituição do trânsito intestinal com anostomose colo-retal, tendo tido alta dessa cirurgia no dia 15 do mesmo mês – cf. documentos de fls. 206/229 do suporte físico dos autos
60. Tendo retirado, então, o saco higiénico;
61. Para realização da operação de reconstituição no Hospital ..., a Autora teve pelo menos 4 deslocações para consultas e execução da cirurgia – cf. documentos de fls. 230/237 do suporte físico dos autos;
62. Mantendo acompanhamento clínico junto daquela unidade hospitalar – cf. documento de fls. 238/240 do suporte físico dos autos;
63. Fruto das preocupações e dos medicamentos, a Autora teve depressão, que lhe provocou a queda do cabelo, com necessidade de realizar tratamento;
64. Ficou a aguardar marcação de cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal;
65. Mantendo, porém, a cinta de contenção, que ainda usa;
66. Fruto das cirurgias a que foi sujeita, a Autora ficou com uma cicatriz no abdómen de pelo menos 35cm de comprimento, por um centímetro de largura, sendo visível, que a desfeiam, levando-a a ocultar sempre a região afetada, ao que corresponde o grau cinco numa escala de gravidade crescente até 7;
67. Após ter sido operada, e pelo menos durante o período de um ano, a Autora não conseguiu ter quaisquer relações sexuais;
68. À data de 26/04/2013, a Autora estava reformada, mas realizava, em casa, as tarefas domésticas;
69. Durante o internamento, e depois até 06/11/2017, a Autora não conseguiu realizar as tarefas que anteriormente realizava, e mesmo hoje as mais básicas fá-lo com esforços suplementares, tais como limpeza, cozinhar, fazer uma cama, lavar a louça ou a roupa, graduando o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica em 10 pontos;
70. Devido à situação clínica, à necessidade de usar saco higiénico e cinta, a Autora sentiu-se e sente-se incomodada como mulher;
71. Sentiu-se muito dependente dos outros;
72. Sentiu-se invadida na sua intimidade como ser humano e mulher;
73. Chegou a ter pesadelos e distúrbios com a situação vivenciada, e teve de tomar medicação para dormir;
74. Houve dias em que, mesmo com a medicação, não conseguia descansar, o que fazia com que temesse pela sua vida e saúde mental;
75. Não aceitou, nem aceita, o que lhe aconteceu;
76. Sofreu, e ainda sofre, a angústia da sua desvalorização funcional como ser humano e mulher;
77. Atualmente, é uma mulher triste, e jamais esquecerá o sofrimento, dor e tormentos por que passou;
78. As sequelas com que ficou são motivo de desgosto, angústia, desespero e revolta;
79. Continuará a necessitar de consultas periódicas e de ser acompanhada clinicamente;
80. Ficou impossibilitada de ter uma vida afetiva normal, e viu-se diminuída como mulher psicológica e sexualmente;
81. Jamais esquecerá todo o sofrimento, dor e tormentos por que passou;
82. Despendeu € 80,00 na aquisição da cinta de contenção;
83. No período compreendido entre 30/04/2013 e 18/06/2013, o marido da Autora deslocou-se ao hospital diariamente, para estar com aquela, percorrendo, em média, 60km por dia;
84. Da residência da Autora ao posto médico em que realizava os curativos distam cerca de 15 km;
85. Da residência da Autora ao Hospital ..., no ..., distam pelo menos 90 km;
86. Em portagens, para a deslocação ao ..., a despesa da Autora nunca foi inferior a € 6,00 por cada viagem;
87. O marido da autora, apesar de reformado, dedicava-se à agricultura doméstica, cultivando couves, alfaces, batatas, cebolas e outros produtos hortícolas, bem como à criação de pequenos animais, como galináceos, ovelhas e porcos.
*
II – Factos Não Provados
Com relevo para a decisão a proferir, não ficou provado que:
A) Foi o Dr. «BB» quem realizou a primeira cirurgia à Autora [26/04/2013];
B) A perfuração do colon da Autora decorrente da histerectomia realizada em 26/04/2013 foi causada pelo médico que a realizou;
C) E da qual o referido médico não se apercebeu, tendo ocultado, no relatório da alta clínica, consciente ou inconscientemente, as lesões verificadas na Autora;
D) No mesmo dia 26/04/2013, o Dr. «BB», em conversa com o marido da Autora, comunicou-lhe que a operação tinha corrido muito bem, ficando aquele descansado;
E) Perante as dores que a Autora apresentava em 27/04/2013, o marido questionou o médico «BB» que lhe disse que as dores e vómitos eram normais e que passavam;
F) Perante a informação de que a Autora tinha alta, em 29/04/2013, o marido deslocou-se ao Hospital e falou com o médico, comunicando-lhe que aquela não estava bem, pois sentia muitas dores e tinha febre alta, pelo que não podia ir para casa; ao que o médico respondeu que tinha alta e, por isso, podia ir para casa;
G) No internamento após a cirurgia de 01/05/2013, a Autora teve períodos de inconsciência;
H) O réu Centro Hospitalar jamais marcou a cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, o que levou a autora a procurar outro hospital;
I) O referido em 54 dos factos provados foi transmitido aos serviços clínicos do Centro Hospitalar;
J) Mas, mesmo assim, este jamais disponibilizou à autora ou ao seu marido qualquer apoio psicológico, e muito menos aconselhou;
K) Tendo, inclusive, os respetivos serviços clínicos comunicado à Autora que o mais provável era a mesma ter que usar o saco de retenção para o resto da vida;
L) O que causou à Autora muito sofrimento;
M) Só recorrendo a outro hospital é que a Autora conseguiu realizar uma operação de reconstrução do trânsito intestinal;
N) A autora, por vezes, tem incontinências urinárias;
O) A Autora ficou impossibilitada de ter uma vida afetiva normal, e ficou impossibilitada de se relacionar sexualmente, o que lhe desperta sentimentos de angústia e revolta pessoal;
P) Devido ao problema de saúde da Autora, o casal teve de vender os animais, causando-lhe um prejuízo na ordem dos € 1.000,00;
Q) O casal ficou impossibilitado de ter novos animais;
R) E deixou de poder cultivar os produtos hortícolas e de se poder alimentar dos animais que criava, sofrendo um prejuízo mensal de € 100,00.»
*
3.2. O Senhor juiz a quo adiantou a seguinte motivação para justificar o julgamento da matéria de facto:
«Exposto o julgamento de facto, com separação dos factos provados e não provados, como manda o n.º 3 do art.º 94.º do CPTA, cumpre justifica-lo; neste sentido, atentar-se-á que, segundo o n.º 4 do mesmo artigo, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, ressalvados os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial e aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Ora, começando pelos factos provados por acordo das partes, encontram-se nessa situação, tendo por base o art.º 4.º da contestação, os factos provados nos pontos 1, 3 a 7, e 12. Tratando-se de prova plena, somente se impõe constatar essa circunstância, dado que ficam alheios à livre convicção do Tribunal.
Em relação aos restantes factos, provados e não provados, e em obediência ao citado comando normativo, o Tribunal tomou em consideração, então, os vários meios de prova colocados à sua disposição, valorando-os de modo crítico.
Desde logo, assume-se como muito relevante a prova documental, em especial quanto aos atos médicos a que a Autora foi sujeita, e aos respetivos períodos de internamento. Saliente-se, a este respeito, que o réu Centro Hospitalar juntou aos autos o respetivo processo clínico da Autora, incluindo dos vários serviços por que passou, e essa documentação não foi objeto de impugnação ou reparo por parte desta (apenas impugnou o documento junto com a contestação).
Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que, da análise crítica a esses documentos, não resulta qualquer evidência que nos permita colocar em causa a sua genuinidade (portanto, e em especial, a sua autoria) ou a fidedignidade do seu conteúdo (portanto, o que deles consta), e por esse motivo são merecedores de crédito para efeitos probatórios (sem prejuízo do referido quanto a serem pacíficos, também, entre as partes).
Da mesma forma, foram juntos ao processo documentos por parte do Centro Hospitalar Universitário de ..., E.P.E., conforme ofício registado nos autos sob a ref.ª ...67, também referentes à situação clínica da Autora, em particular quanto à cirurgia de reposição do trânsito intestinal. Tal como sucedeu com os demais documentos relativos a informação clínica, também neste caso não foi deduzida, pelas partes, qualquer espécie de impugnação a esta documentação.
Sendo certo que, tal como sucede com o já referido processo clínico remetido pelo réu Centro Hospitalar, também neste caso, fazendo a análise crítica dos documentos, não sobram razões para duvidar da sua genuinidade ou da fidedignidade do seu conteúdo, e, por isso, mereceram crédito para efeitos de prova. Devendo acrescentar-se, a este respeito, que os documentos foram elaborados por uma entidade que nenhum interesse direto tem na decisão a proferir.
Relativamente a cada um dos factos elencados, e sempre que foi o caso, o Tribunal indicou o documento, ou o conjunto de documentos, que contribui para a formação da sua convicção.
Além disso, e como é natural, sempre que se proporcionou, o Tribunal não deixou de conjugar estes documentos com os restantes meios de prova; sendo que, se determinado facto provado tem referência a prova documental e, depois, é mencionado em outro meio de prova, isso significa que o Tribunal os conjugou, considerando-os coerentes e congruentes entre si.
Daqui em diante, importa introduzir a restante prova produzida, em concreto, as declarações de parte e o depoimento das testemunhas.
Começando pelas declarações de parte. Como decorre do art.º 466.º, n.º 3, do CPC, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão. Quanto a esta parte final da norma, como resulta da leitura da ata da primeira sessão de discussão e julgamento, não ocorreu qualquer confissão. Em relação às declarações propriamente ditas, mesmo tendo por base a liberdade do Tribunal na sua apreciação, impõe-se a sua análise cuidadosa, porque não deixam de ser prestadas por alguém que tem interesse na causa. Como recentemente se escreveu no acórdão do TCA Norte de 13/05/2022, proferido no processo n.º 01480/10.3BEPRT “As declarações de parte (...) permitidas pelo artigo 466º do Código de Processo Civil, devem ser apreciadas com cautela, pois são declarações interessadas e por isso não isentas. E designadamente deve ser rigoroso o juízo quanto à sua coerência e devem ser complementadas, em casos de dúvida, com outros meios de prova.
No caso concreto, as declarações de parte – além da conjugação com outros meios de prova – devem ser analisadas em paralelo com o depoimento da testemunha «CC», marido da Autora.
Pois bem, neste sentido, diremos que as declarações da Autora não nos mereceram credibilidade em toda a sua extensão. Aliás, como adiante se verá, as testemunhas arroladas pela Autora a respeito de determinada factualidade apresentam, todas, causas objetivas de falta de isenção, já que se tratam de familiares (além do marido, filhos e nora) ou, então, pessoas amigas. E, como se verá, em vários pontos, esses depoimentos, e as declarações da própria Autora, apresentam, entre si, contradições que não podem ser qualificadas de irrelevantes.
Sumariando logo ao início, existem três pontos em que a prova (partindo das declarações de parte) não logrou convencer o Tribunal: quanto ao estado da Autora, no momento em que lhe foi dada alta; quanto à questão da recusa ou falta de colaboração na marcação da cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal; e ainda quanto à suposta incapacidade da Autora para realizar tarefas domésticas básicas. Vejamos.
Desde logo, no que, em concreto, diz respeito ao estado da Autora quando lhe foi dada alta – no dia 29/04/2013, à tarde – o relato apresentado não coincide com os registos clínicos. Com efeito, a fls. 132 (verso) do suporte físico dos autos encontra-se o diário médico do período de internamento posterior à histerectomia, e ali consta registado: “Consciente. Desconforto abdominal ligeiro, sem outras queixas. Micções e trânsito intestinal regularizados (mesmo hoje de manhã). Sem vómitos. T – 36,2 ºC (...) Penso limpo e seco. Abd – depressível, indolor, sem sinais de infeção.
Cumpre aqui salientar/recordar que a Autora não impugnou estes documentos integradores do processo clínico. Além do mais, sempre se diga que (sem prejuízo dessa não impugnação, por si só relevante), não encontramos no documento quaisquer sinais de adulteração do respetivo conteúdo, nomeadamente rasuras ou alterações de caligrafia. De resto, a nota está trancada (porque termina com alta da paciente) com a assinatura e o carimbo do respetivo médico, e aqui indicado como segundo réu.
As declarações da Autora não coincidem com estes registos. De todo. Além disso, nesta parte, o depoimento mostra-se abstrato, referindo apenas que se queixou que “estava mal”; mas nunca assistiu, segundo diz, às conversas entre o médico – indicado como segundo réu – e o marido, nesse momento. As próprias declarações, em si, não são congruentes; na verdade, segundo a Autora, “passou a noite muito mal”, mas quando já estava em casa, e não no hospital. Na verdade, não é muito credível que se a Autora estivesse no estado que relatou estar em casa, lhe fosse dada alta, porque saía do padrão normal da própria cirurgia.
Soma-se, a este respeito, o depoimento da testemunha «CC», marido da Autora. Veio corroborar a tese da petição inicial, mas também sem nos merecer crédito; aliás, neste ponto do estado da Autora/esposa aquando da alta, bem como nos outros pontos acima referidos, foi notório não apenas que a testemunha não falava espontaneamente, apresentando um discurso marcado pelo ressentimento para com o primeiro réu, mas também pela situação causada à esposa.
Também não se pode deixar de notar a incongruência destas declarações e depoimento com o relatório do episódio de urgência que consta a fls. 195 do suporte físico dos autos. A admissão, na triagem, anota como queixas da Autora vómitos persistentes e mau estar generalizado, sem referência a diarreia ou a febre; aliás, já no respetivo serviço, é anotado que “nega febre, alterações urinárias ou outros sintomas”.
Tendo em consideração que, como já dito mais de uma vez, estes documentos não foram impugnados (em geral ou em concreto, dado que apenas a Autora apenas versou sobre o relato cirúrgico junto com a contestação), vemos que, além de as declarações/depoimento se nos terem apresentado subjetivos e parciais, marcadamente sustentados no propósito de justificar um erro aquando da alta, não coincidem, sequer, com o quadro que a Autora apresentava na chegada ao serviço de urgência – desde logo, à triagem. Nesse ponto, é preciso também referir o depoimento da testemunha «DD». Com efeito, e com suporte nos registos clínicos, a testemunha confirmou que foi o médico que realizou a colostomia de urgência à Autora, já na madrugada de 01/05/2013. Este depoimento foi prestado num registo sempre objetivo, circunstanciado e, além disso, sustentado pelos conhecimentos técnicos da testemunha. Ora, um dos pontos mais relevantes deste depoimento disse respeito, precisamente, à questão de saber se a peritonite poderia demorar alguns dias a manifestar-se; de modo absolutamente claro e esclarecedor, a esclarecimento do mandatário do réu Hospital, elucidou que o tempo que passou até à real manifestação da peritonite é normal; deu, até, o exemplo de uma criança que pode bater com o abdómen na bicicleta, podendo a perfuração surgir apenas 4 ou 5 dias depois, porque se vai instalando. Tratando-se de uma testemunha arrolada pela Autora, em primeira linha, o depoimento prestado não só não confirma a tese da Autora, no sentido de a peritonite ter de se revelar ainda no Hospital, como ainda a infirma – e também aqui tirando sustento à já de si débil restante prova apresentada a esse respeito. Mais do que isso, afasta de forma clara a tese de que uma eventual perfuração era detetável de imediato, ou seja, ainda no decorrer da cirurgia – pelo contrário, segundo afirmou a testemunha.
Nessa medida, pela falta de prova credível sobre os factos em causa (e sem prejuízo do que ainda se dirá sobre outros depoimentos), foram considerados não provados os que constam das alíneas D), E) e F).
Porém, e porque os documentos e a situação subsequente assim o confirmam, já temos por certo que no dia 30/04/2013, com início pelo menos de madrugada, a Autora começou a apresentar um quadro de sintomas mais relevantes. Aliás, impõe-se aqui dizer que, para o Tribunal, foi quase palpável a diferença de registo nas declarações de parte e no depoimento da testemunha marido. Sem prejuízo de se dizer que mal se percebe como a Autora afirma que só foi ao Hospital porque o marido, a bem dizer, assim o impôs, apesar dos sintomas que apresentava (se bem que, mesmo aqui, não existe coincidência com o que consta do episódio de urgência). Enfim, em todo o caso, sobretudo pela conjugação com os documentos constantes do processo clínico, foram considerados provados, a partir das declarações de parte e do depoimento da testemunha marido da Autora, os factos que constam dos pontos 16 a 27.
Voltando à análise dos aspetos em que não conseguimos dar crédito às declarações de parte, conjugadas com o depoimento da testemunha marido da Autora (ele próprio, a bem dizer, “autor”, porque muitos dos danos patrimoniais também o afetam, revelando o seu interesse direto na decisão a proferir), também não nos convenceu, de todo, a suposta falta de assistência do Hospital réu. Desde logo, constatamos a manifesta hesitação da testemunha marido, quando confrontado com a circunstância de a Autora ter faltado a consultas – primeiro, garantiu que não, depois corrigiu, de seguida justificou que não foi porque já tinha a cirurgia agendada no ...; já depois, garantiu que o próprio Dr. «DD», também testemunha, lhe disse que não era possível fazer a operação (quando o próprio «DD» disse que não acompanhou a Autora, devido a alterações no funcionamento do serviço; e em relatório médico de 13/06/2014, junto a fls. 94 do suporte físico dos autos, fez constar, precisamente, que a Autora já estava a aguardar aquela cirurgia), e ainda afirmou que o médico da clínica privada lhe disse “daqui de ... fuja”. Assim, declarações e depoimento subjetivos, sem respaldo nos outros meios de prova, e até por eles contrariados.
Os registos clínicos também contradizem frontalmente esta versão. A fls. 96 (verso) e 97 (frente) do suporte físico dos autos constam as consultas de acompanhamento que foram proporcionadas à Autora, e a anotação da última consulta consiste, precisamente, na ponderação da cirurgia de reconstrução do trânsito, com data de 26/04/2014, dependendo da vontade da doente, naturalmente.
Por outro lado, e ainda a este respeito, resultou da prova produzida que a Autora e o marido se serviram de “conhecimentos” para obter vaga no CHU de .... Isso mesmo foi confirmado pela testemunha «FF» (depoimento a que se voltará), que declarou ao Tribunal que assistiu a Autora porque um colega lhe pediu, deduzindo que esse colega a conhecia pessoalmente. A cronologia dos eventos confirma a falta de sustento da tese da Autora; com efeito, sendo mencionada na consulta de 26/04/2014, no Hospital réu, a proposta de cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, e perante o abandono das consultas (como, embora relutantemente, a testemunha marido acabou por admitir), não surpreende que a consulta com a testemunha «FF», no CHU de ..., ocorra a 30/06/2014 [fls. 230 do suporte físico dos autos], a partir daí constando o acompanhamento naquele centro hospitalar. Esta sequência cronológica revela a falta de sustento da tese da Autora, e a clara tentativa de sustentar uma falta de apoio ou seguimento que nunca existiu – foi a Autora, ou a sua família, quem decidiu procurar assistência de outra unidade hospitalar, nem sequer por meios formais, mas antes com recurso a conhecimentos pessoais ou contactos junto daquela outra unidade hospitalar.
Daí que o Tribunal, pela análise dos meios de prova à disposição, e já tendo constatado em sede de audiência a apresentação de discursos nitidamente subjetivos, parciais e comprometidos, além da clara ideia de terem sido previamente pensados para sustentar determinada tese, bem como que, objetivamente, as provas são prestadas por quem tem interesse na decisão, não podemos considerar credível a prova produzida a esse respeito. E daí que ficaram não provados os factos das alíneas H), I), J), K), L) e M).
Por último, a este respeito, outro aspeto em que as declarações de parte não nos convenceram reside no estado físico da Autora, descrito na petição inicial como altamente incapacitada. Refira-se que, em primeiro lugar, a presença da Autora já nos fez questionar a alegação, dado que não se vislumbra, pelo menos em termos empíricos, tamanha dificuldade física. E assim o confirmou a perícia realizada nestes autos, que atribuiu à Autora uma incapacidade de apenas 10 pontos, e concluindo ser capaz de exercer as respetivas atividades, mas com esforços suplementares (incapacidade, claro, decorrente do evento, porque dada a situação de aposentação precoce a Autora já não seria totalmente capaz).
A este respeito, tanto as declarações de parte da Autora como o depoimento da testemunha marido (e de outras, todas com razões objetivas e subjetivas para questionar a sua isenção, como adiante se verá) se afiguraram, desde logo, hiperbolizadas, passando a ideia de a Autora ser uma pessoa absolutamente inválida. Sobre a ajuda concreta que dava ao marido na agricultura ou na pecuária, apenas concretizou que “levava o lanche”, e diz a testemunha marido que a vida dele era “um regalo” nessa altura.
Se fosse de seguir a tese apresentada, teríamos de constatar que a Autora era uma pessoa com incapacidade quase total, a exigir em permanência a presença de um terceiro. Todavia, como a perícia revelou, longe disso: as sequelas geram uma situação de incapacidade de apenas dez pontos, e permitem à Autora fazer o que fazia, apenas impondo esforços suplementares. E como se diz no mesmo relatório, o auxílio de terceira pessoa poderá verificar-se pontualmente.
Nem compreendemos a que propósito a Autora e o marido tiveram, por causa do sucedido, de deixar de cultivar ou criar gado. Só seria assim se a Autora necessitasse de acompanhamento em permanência absoluta, o que, segundo a perícia, está longe de ser verdade. Mesmo no período em que a Autora esteve internada, a partir de 01/05/2013, disse a testemunha marido que ia ao hospital visitar a esposa, nem que fossem cinco ou dez minutos; ao que legitimamente se questiona se, no resto do dia, não se podia ocupar dos seus afazeres. Ressalva-se, porém, que não se levantam dúvidas de que a testemunha marido se dedicava (ao que parece, em menor escala, ainda se dedica) à agricultura doméstica – pelo que se deu como provado o facto do ponto 87.
De todo o modo, e mais importante, o certo é que a perícia realizada infirma a supostamente calamitosa situação de incapacidade da Autora – longe disso. Tem autonomia e é capaz de desenvolver as tarefas que desenvolvia, embora com esforços suplementares, com graduação da incapacidade em 10 pontos.
Por isso mesmo, pela falta de valia intrínseca, e igualmente porque existem outros meios de prova que contradizem as declarações de parte e o depoimento em causa, resultaram não provados os factos das alíneas P), Q) e R) – sem embargo de se voltar ao tema na análise de outros depoimentos testemunhais.
Não obstante o referido sobre os pontos de pouca credibilidade acima enunciados, existem, ainda, dois outros aspetos a ressalvar a este respeito. O primeiro, diz respeito à afetação da vida sexual da Autora; na verdade, neste caso, não questionamos propriamente a veracidade das declarações de parte ou do depoimento da testemunha marido (os únicos meios de prova sobre o assunto, em termos de declarações presenciais), mas antes se notou a circunstância de não existir grande à-vontade para falar sobre esse aspeto. Com efeito, a questão ganhou acuidade pela circunstância de, em sede de prova pericial, ser afirmado que não existia impossibilidade de relações sexuais. Essa posição foi mantida em esclarecimentos prestados pela Sr.ª Perita em sede de audiência final, e, pela segurança demonstrada, não só da leitura do caso concreto mas pelos conhecimentos técnicos inerentes ao assunto, é possível dizer que as relações sexuais não são impossíveis – daí que tenha ficado não provado o que consta da alínea N).
Mas, e por outro lado, julgamos que as declarações de parte e o depoimento da testemunha marido merecem crédito quanto à afetação da sua vida íntima. Note-se, no período em que a Autora foi portadora de colostomia, é natural que não se sentisse confortável para ter relações sexuais; menos ainda quando estava em convalescença. Até porque, tendo a Autora uma hérnia bastante volumosa, e como também reconhecido pela Sr.ª Perita, essa circunstância não impede as relações, mas a certo ponto condiciona o ato sexual. Daí que o Tribunal, conjugando esses aspetos, considerou provada a matéria dos pontos 67, 70 e 80.
O outro ponto pouco clarividente diz respeito à incontinência da Autora; com efeito, o relatório pericial, neste caso, refere que a examinanda não apresenta lesões ou sequelas; a resposta que a Autora deu sobre o assunto não foi minimamente esclarecedora, dizendo apenas genericamente que acha que a incontinência se deve à hérnia; porém, nem mesmo em sede pericial se apurou essa sequela. Nem a queixa surge em qualquer registo clínico junto aos autos, máxime do processo clínico remetido ao CHU .... Nessa medida, não podemos considerar que haja prova suficientemente sólida sobre o assunto, pelo que foi dado como não provado o facto constante da alínea O).
Sem prejuízo dos pontos atrás referidos, em que também nos mereceram crédito, bem como das partes em que esse crédito não lhe foi atribuído, diremos que as declarações de parte foram espontâneas e verdadeiras quanto ao sofrimento por que a Autora passou; veja-se: não se pode questionar que a experiência pela qual a Autora passou foi altamente negativa, e que, na realidade, ser portadora de colostomia não é fácil (ao menos, pelo elevado constrangimento social); também o sofrimento físico e psicológico adveniente ficou bem espelhado nas declarações de parte (aliás, como dito, a diferença para este registo foi quase palpável, tratando-se de partes em que a descrição é inquestionavelmente mais presente, vivida e impressiva, levando mesmo a Autora a expressar as suas emoções sobre o assunto). De resto, no que ao período de internamento após 30/04/2013 e até 18/06/2013 diz respeito, os registos clínicos vão atestando esse sofrimento. Nesse aspeto, as declarações da testemunha marido também se mostraram bem mais espontâneas (com uma diferença também perfeitamente percetível ao relatar a situação vivida); e diremos que a experiência comum nos diz que este sofrimento, tendo em conta os tratamentos e intervenções que a Autora sofreu, são perfeitamente plausíveis, o mesmo sucedendo com todo o constrangimento pessoal e social. Por estas razões, a partir das declarações de parte e depoimento da testemunha marido, associados a outros meios de prova – quando possível – foram dados como provados os factos elencados nos pontos 30, 31, 33 a 38, 40 a 46, 48 a 52, 54 a 58, 61 a 64, 71 a 78, e 81 a 83.
Importa introduzir, ainda, a prova pericial (também aqui ressalvando o já referido – em especial a propósito da vida sexual e da incapacidade da Autora – e que se mantém naquela outra sede). Esta prova mereceu-nos credibilidade, considerando que o relatório se encontra sustentado na análise dos elementos clínicos, e é tecnicamente subscrito por quem, para o efeito, dispõe de conhecimentos técnicos. De resto, a assertividade da autora do relatório pericial ficou patente em sede de audiência final. A partir deste relatório considerou-se provado o que consta dos pontos 47, 53 e 65 (por atestar a necessidade do uso da cinta de contenção), conjugado com as declarações de parte e o depoimento da testemunha marido; também se considerou como provado, a partir deste relatório, o que consta provado em 66 e 69. É preciso esclarecer que este ponto 69 não se confunde com o facto não provado sobre a incapacidade permanente, dado que naquele caso o que está em causa é apenas um determinado período, i. e., até à consolidação das lesões, e neste a permanência dessa incapacidade, que só se verificou em grau fixável em apenas 10 pontos; como não se questiona que a Autora tratava da lide da casa, antes das cirurgias (facto provado 68). Por outro lado, a prova pericial também atesta a necessidade de seguimento, como havia sido declarado, e consta, igualmente, dos registos clínicos que o CHU de ... remeteu aos autos – tudo o que, em conjunto, permitiu dar por provado o facto do ponto 79.
Avançando.
Um dos pontos essenciais da alegação da Autora (e para a decisão) diz respeito à causa da perfuração verificada no intestino. Diga-se, a este respeito, que não restaram dúvidas, da prova documental e do depoimento da testemunha «DD» (com o registo credível que lhe atribuímos), que a Autora apresentava o quadro de peritonite, decorrente de uma perfuração no intestino. Também não nos restaram dúvidas, por aqueles elementos de prova, que a perfuração encontrada decorre da intervenção cirúrgica de histerectomia, realizada em 26/04/2013. Daí que tenha sido considerada provada a factualidade dos pontos 15, 28 a 32 e 35; bem como a necessidade de uma nova cirurgia a 07/05/2013 – factos provados 36 a 39.
Aquilo de que já não temos prova é a concreta causa dessa perfuração, nomeadamente se a mesma se ficou a dever a imperícia da cirurgiã que a realizou.
Começando por aí – ou seja, por quem realizou a cirurgia – veja-se que a Autora alegava que teria sido o indicado segundo réu, «BB», quando tal não sucedeu – bastando atentar, para esse efeito, no respetivo relato cirúrgico. É certo que a Autora veio impugnar esse documento (que, além de constar do processo clínico, também foi junto com a contestação). Todavia, foi ouvida como testemunha «GG», que assumiu ter sido a cirurgiã que realizou a parte laparoscópica da cirurgia (segundo disse, parte da cirurgia foi por via vaginal, mas aí sob a execução da colega «EE»). De modo esclarecido, e aliás sem demonstrar qualquer constrangimento, relatou que foi uma cirurgia que decorreu dentro da normalidade, e, no final, como procede de forma habitual, foi confirmada a inexistência de hemorragias, incluindo pela injeção de dióxido de carbono na zona em causa, com a confirmação da ausência de hemorragias. É de ressalvar que a Autora não impugnou o relato cirúrgico que consta do processo clínico, e que é o original, datado de 26/04/2013, devidamente assinado.
Na realidade, era a Autora quem tinha de fazer prova que a perfuração foi ocasionada pela médica cirurgiã; é bem diferente dizer-se que a perfuração decorre da cirurgia (como decorre), de dizer-se que foi causada pelo cirurgião. E não o fez. Esta testemunha, como visto, não o disse (e, na realidade, é a única prova direta sobre essa factualidade); aliás, referiu mesmo que não é mulher de levar dúvidas para casa e que a única explicação que encontra terá sido a criação de uma zona de fragilidade. Sendo certo que, repita-se, de toda a prova (em particular, testemunhal), foi a única pessoa ouvida e que esteve na realização da cirurgia de 26/04/2013.
Além disso, a sua posição não é afastada por outras provas. A testemunha «DD», apesar de, como o próprio assumiu, não ser especialista em ginecologia/obstetrícia, também afiançou que qualquer intervenção laparoscópica tem o risco de perfurar o intestino; mas sobre a concreta causa, apenas referiu que existia elevada probabilidade de o intestino ter sido ofendido na anterior operação; só que a testemunha, além de não negar outras causas possíveis para o desenvolvimento da perfuração (pelo contrário), não pôde afirmar a concreta causa da mesma, porque não participou na intervenção. Mas, sobretudo, a testemunha explicou que, mesmo na hipótese de poder ter sido com o bisturi elétrico, é uma complicação descrita e possível, mesmo nas situações de cumprimento rigoroso da técnica cirúrgica. Este relato corresponde ao que foi apresentado pela testemunha «HH», médico especialista em ginecologia e obstetrícia, com as funções de diretor do respetivo serviço no Hospital réu desde 2007; sobre esta matéria, em registo credível e sustentado, também alinhou pelo referido pela testemunha antes referida, considerando várias hipóteses para a ofensa do intestino, entre elas ter sido causada pelo bisturi elétrico. Só que, como também reconhecido por estas testemunhas, também existem outras causas possíveis, nomeadamente a criação de uma zona de sensibilidade pelo descolamento/remoção do próprio útero; de todo o modo, as testemunhas concordam quanto à circunstância de a perfuração não ser detetada, ou nem sequer se manifestar, durante a operação (ou, como explicado acima, pode até levar dias a manifestar-se). Isso atesta e reforça as declarações da testemunha cirurgiã que realizou a operação.
Como tal, pela análise deste conjunto de prova, não se pôde considerar provada a factualidade que consta das alíneas A), B) e C). In extremis, ainda cogitámos retirar aqui uma presunção judicial, a partir do facto conhecido (i. e., que a perfuração se devia à cirurgia) retirando o desconhecido (a causa concreta da perfuração); só que, em face da prova produzida, não está reunido o grau de certeza exigível, em particular em matéria tão técnica, que permitisse esse passo, em especial porque as testemunhas são unânimes em reconhecer múltiplas causas possíveis; e o facto de a peritonite ter demorado dias a revelar-se também indicia no sentido oposto. E, havendo ao menos séria dúvida sobre esses factos, sempre valerá a regra do ónus da prova.
Nessa medida, os depoimentos referidos mereceram crédito. Assim, o depoimento da testemunha «HH», conjugado com o depoimento das duas outras testemunhas mencionadas, permitiu considerar provados os factos elencados nos pontos 2, 8 e 9. No caso do depoimento da testemunha «GG», por si ou conjugado com prova documental, foi tido em conta para considerar provados os factos dos pontos 10, 11, 13 e 14.
Voltando à prova produzida sobre a restante factualidade, ou ainda relacionada com a já visada.
O depoimento da testemunha «II» afigurou-se ao Tribunal altamente subjetivo, parcial e contraditório, até, com as declarações da própria Autora. Disse a testemunha que é vizinha da Autora há cerca de 40 anos, e é daí que a conhece. Sem qualquer espécie de questão pendente, começou desde logo a descrever o que entendia por conveniente, no que se notou um discurso pouco espontâneo e previamente preparado. A sua razão de ciência é, também ela, muito fraca. Por partes. No que diz respeito ao estado da Autora quando foi para casa após a alta da histerectomia, garantiu ao Tribunal que foi vê-la a casa e que estava “muito mal, muito mal...”; sucede, porém, que a Autora referiu o contrário, ou seja, que quando foi para casa depois da operação de 26/04/2013 nem quis ver ninguém, incluindo a neta ou a nora. E quando confrontada com essa contradição, apresentou uma resposta abstrata e evasiva. Falou ao Tribunal que a Autora foi operada duas vezes, mas sobre isso não tem qualquer razão de ciência, dado que, segundo a própria, quem lhe contava era o marido da Autora, também ele testemunha. Outro detalhe particularmente estranho, quando referiu o estado da Autora após a colostomia, diz que notou a cicatriz e um talo muito grande; porém, só falou do saco da colostomia quando a questão lhe foi induzida – sendo certo que, pelo alegado, o mais incomodativo era mesmo o saco em que as fezes eram depositadas. Não concretizou em que medida o marido da Autora ficou impedido de cultivar os terrenos, referindo apenas que tem de estar com a Autora (aqui valendo o que acima se disse a este respeito). Destarte, pela forma subjetiva, parcial e comprometida com que depôs, o Tribunal não considera credível este depoimento.
Também se notou o mesmo problema no que respeita à testemunha «JJ», que é filho da Autora; também este começou a prestar depoimento sem qualquer espécie de questão pendente, notando-se que trazia o discurso previamente pensado e preparado, no sentido de não comprometer a versão da mãe. É de salientar, além disso, que a testemunha vivia longe da Autora (já à data dos factos), mais concretamente em ...; sem apresentar qualquer espécie de razão de ciência minimamente sólida, afirmou que foi ter com o pai aquando do internamento de urgência da Autora [portanto, em 30/04/2013], e aí o “o diretor interino de cirurgia” veio depois falar com ele, “foi porreiro”, e ter-lhe-á passado a impressão de que tinha havido “laxismo” aquando da alta. Versão que não nos convenceu pelo modo subjetivo do discurso, e, sobretudo, porque nunca a testemunha marido da Autora referiu o envolvimento desta testemunha nas conversas com médicos; aliás, nem sequer referiu a presença de qualquer dos filhos naqueles momentos. E não há qualquer registo clínico que permita aferir dessa presença. Claro que, quando perguntado, e de modo conveniente, não se recordava do nome daquele primeiro médico; mas já recordava o nome do cirurgião, e testemunha, «DD» – mesmo aqui, o depoimento não soou espontâneo, esforçando-se por parecer esquecido; de resto, a testemunha «DD» disse não se recordar, sequer, de falar com o marido da Autora, e nem sequer lhe foi perguntado se havia conversado com qualquer outro familiar da paciente, aqui Autora. Aliás, por volta das 23 horas do dia 30/04/2013, a testemunha «DD» anota que “após período de reflexão e conversa com o marido, a doente pretende ser operada.”; portanto, nunca se refere alguém para além do marido da Autora (nem sequer genericamente, por exemplo referindo “familiares”).
Ficou, para o Tribunal, a clara ideia de um discurso forçado e esforçado, sem respaldo em qualquer outro meio de prova, visando colocar a testemunha em certos momentos – mas em relação aos quais não se acredita que lá estivesse, nomeadamente quanto às convenientes conversas com o diretor interino de cirurgia (não identificado) e o cirurgião que realizou a segunda intervenção.
Outra contradição desta testemunha diz respeito ao período de isolamento da mãe/Autora; disse a testemunha que, nesse período, visitava-a praticamente todos os dias, e entravam de bata e com máscara; ao contrário, a testemunha marido disse que ao início só ele podia visitar a esposa, e que só mais tarde viria a ser permitida a visita dos filhos. A própria Autora desdiz também aquela declaração, pois afirmou que só o marido a ia visitar, vestia fato e luvas, e os filhos muito de vez em quando, longe a longe, porque não podiam.
Também afirmou que a operação no ... se deveu à mãe não ter feedback do Hospital réu quanto à retirada do saco, mas, por outro lado, nada sabia das consultas pós-operatórias. Aliás, sobre a questão da retirada do saco, veio a dizer que via a mãe – Autora – desanimada porque andava no “dilema não queria o saco, e também não queria outra operação”, o que já demonstra que, afinal, sempre era a Autora quem estava relutante em fazer a nova operação (ao menos, nas instalações do Hospital réu); é que não é congruente dizer-se que foi o Hospital réu quem não providenciou pela cirurgia, e, noutro plano, dizer-se que era afinal a mãe/Autora quem, apesar de desconfortável, estava relutante em realizar nova operação para retirar o saco higiénico.
Portanto, além do depoimento da testemunha se apresentar particularmente subjetivo, em especial em determinados momentos da cronologia dos factos, também assenta em razão de ciência muito dúbia, tanto mais que não está, nem esteve, próximo dos pais, vivendo distante. Não lhe podemos, por isso, dar crédito.
No que diz respeito ao depoimento da testemunha «KK», trata-se de outra familiar da Autora, em concreto uma nora. A testemunha refere que foi visitar a sogra ao final do dia 29/04/2013, referindo que já aí apresentava alguns sintomas. Mas no dia 30/04/2013 não esteve com ela, porque foi trabalhar. Todavia, aquele relato não é muito congruente com as declarações de parte, porque a Autora disse que no dia 29/04/2013 passou a noite muito mal (e na madrugada de 30/04, portanto). De facto, é um depoimento muito baseado naquilo que o sogro, e testemunha, também lhe disse, dado que não visitou a sogra, sequer, no segundo período de internamento, isto é, após 30/04/2013. De todo o modo, já nos convenceu o relato que fez sobre os tempos imediatos ao regresso a casa (ou seja, após 18/06/2013), porque o discurso apresentou-se mais espontâneo e, em especial, com conhecimento direto (só limitado porque a testemunha também trabalhava). Nesse sentido, contribuiu para considerar provados os factos elencados nos pontos 49, 50, 51, 54 a 58 e 69. Também se nos afigurou como espontâneo e objetivo o relato que fez sobre os constrangimentos da Autora, decorrentes da utilização do saco higiénico, pelo que, a esse respeito, contribuiu para dar como provados os factos elencados nos pontos 70 a 72, 75 e 77. Também confirmou a utilização da cinta, matéria sobre a qual já havia sido produzida prova.
Todavia, e aliás na decorrência do acima referido, já não nos convenceu o relato sobre a incapacidade da Autora ou a impossibilidade de o marido da Autora cultivar os terrenos. Neste aspeto, como aliás no seu início, o depoimento voltou a demonstrar-se pouco concretizado e evasivo; isso foi particularmente notório na parte das supostas perdas por não cultivo dos terrenos; de salientar que os valores supostamente perdidos foram ditos de forma nada convicta, demonstrando prévia consideração sobre o assunto. Até porque, repete-se, o estado da Autora (o derivado das lesões, que é aquele que nos interessa) não é tão grave como se pretende fazer crer, atendendo ao relatório pericial. Sem esquecer que tanto a Autora como a testemunha marido são, a esta data, pessoas já de mais idade, dificilmente dispondo de força física para tratar sozinhos dos terrenos (ao menos a testemunha marido, porque, na versão da Autora, o seu contributo decisivo no equilíbrio familiar era levar o lanche). Por isso, nesses aspetos, não podemos atribuir crédito ao depoimento.
Depôs ainda como testemunha «LL», este também familiar da Autora (filho). Também neste caso, quanto ao estado da mãe a 29/04/2013 (quando regressou do hospital após a histerectomia), o depoimento não foi concretizador, referindo apenas que “estava na cama, mal”, sem adiantar em que termos. Ainda de acordo com a sua versão, disse que só foi ao Hospital no dia seguinte ao da operação, ainda a mãe estava em isolamento (também nunca mencionou a presença do irmão/testemunha, anote-se; disse que esteve com o pai). Segundo disse, só visitou a mãe 3 ou 4 vezes, e queixava-se das dores um bocadinho. Em nenhum desses pontos o depoimento se apresentou concreto, antes assentando em respostas bastante abstratas e pouco esclarecidas. De facto, a única parte em que apresentou alguma concretização foi no relato do período imediato após o regresso da mãe/Autora do Hospital (ou seja, após 18/06/2013); nesse aspeto, ainda nos pudemos socorrer do depoimento para considerar provados os factos elencados nos pontos 49, 54, 55 e 57. Não nos mereceu crédito quanto à questão da incapacidade da mãe para realizar, de todo, as tarefas domésticas (atendendo à prova pericial, particularmente), nem à suposta impossibilidade de cultivo dos campos; aliás, a este respeito apresentou até um discurso pouco congruente, tanto dizendo que o pai só cultiva mesmo as coisas para casa, como depois afirma, em contradição, que o pai tem mais despesas porque tem de comprar os legumes (e também não sabe quantificar; de resto, também o depoimento da testemunha «CC» é pouco esclarecido a este respeito, quando afirma que tem de comprar a partir de Dezembro/Janeiro, sem que se perceba por que razão – isto claro, sem prejuízo de se dizer que, à mercê do clima, poucos legumes existem que perdurem todo o ano; e segundo o próprio, poucos animais tem para alimentar). Já nos mereceu mais crédito na parte em que referiu os constrangimentos da mãe, na altura em que foi portadora da colostomia, dado que vivia muito próximo e, portanto, ia acompanhando o dia-a-dia; neste sentido, foi possível aproveitar o depoimento quanto aos factos provados nos pontos 70, 71, 72, 77 e 78.
Quanto à testemunha «FF», confirmou ao Tribunal ter sido o médico cirurgião que, no CHU de ... recebeu a Autora, e realizou a intervenção para repor o trânsito intestinal. Auxiliou-se do processo clínico, mas não deixou de merecer crédito por causa disso mesmo, i. e., porque o depoimento é condizente, em pleno, com os registos clínicos. Disse desconhecer qual foi, em concreto, a complicação associada à colostomia; também afirmou que a Autora nunca lhe confidenciou (ou, pelo menos, não recorda) a razão pela qual não procurou o Hospital ... [pelo que o depoimento não faz prova do facto da alínea J)]; do caso concreto, nada mais recordou, falando em termos de normalidade e de casos como os da Autora. Assim sendo, e considerando a limitação da razão de ciência, mas não havendo razões para duvidar do depoimento na parte em que se pode afirmar que a testemunha tem conhecimento do caso concreto, contribuiu para considerar provados os factos elencados nos pontos 59, 60 e 62.
Resta dizer, em matéria de prova testemunhal, que foi ouvida, também, «MM»; porém, trata-se de um depoimento sem relevo para o caso em apreço. Com efeito, referiu que não recorda o caso, nem sequer a partir dos registos; acrescentou, depois de perguntada, que terá feito a nota da alta do internamento, altura em que terá acompanhado a Autora; mas de concreto nada conseguiu dizer ao Tribunal sobre o assunto, pelo que não retiramos do depoimento qualquer utilidade (mesmo não existindo razões para duvidar da testemunha).
Por fim, importa referir os factos provados em 84, 85 e 86. Dir-se-á que são factos quase objetivos, bastando confrontar as distâncias nos mapas e os valores das portagens. Ainda assim, foram considerados, essencialmente, os depoimentos da testemunha marido e do filho «LL», os mais esclarecidos a este respeito. Só não conseguimos quantificar o valor em concreto das deslocações, dado que a própria testemunha marido não o adiantou, e a outra testemunha apontou um valor em abstrato, entre dois limites.»
*
III.B.DE DIREITO
b.1. do erro de julgamento sobre a matéria de facto das alíneas B),D), E), F), H), M) e O).
3.3.A Apelante sustenta que a sentença recorrida julgou erroneamente ao dar como não provada a matéria que consta das alíneas sobreditas que devia antes ter sido julgada provada, e que é a seguinte:
« B. A perfuração do colou da Autora decorrente da histerectomia realizada em 26/0412013 foi causada pelo médico que a realizou;
D. No mesmo dia 26/04/2013, o Dr. «BB», em conversa com o marido da Autora, comunicou-lhe que a operação tinha corrido muito bem, ficando aquele descansado;
E. Perante as dores que a Autora apresentava em 27/04/2013, o marido questionou o médico «BB» que lhe disse que as dores e vómitos eram normais e que passavam;
F. Perante a informação de que a Autora tinha alta, em 29/04/2013, o marido deslocou-se ao Hospital e falou com o médico, comunicando-lhe que aquela não estava bem, pois sentia muitas dores e tinha febre alta, pelo que não podia ir para casa; ao que o médico respondeu que tinha alta e, por isso, podia ir para casa;
H. O réu Centro Hospitalar jamais marcou a cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, o que levou a autora a procurar outro hospital;
M. Só recorrendo a outro hospital é que a Autora conseguiu realizar uma operação de reconstrução do trânsito intestinal;
O. A Autora ficou impossibilitada de ter uma vida afetiva normal, e ficou impossibilitada de se relacionar sexualmente, o que lhe desperta sentimentos de angústia e revolta pessoal;»
Em termos sumários, a Apelante sustenta que o Tribunal a quo não procedeu a uma correta valoração e apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, invocando que incorreu em erro na valoração das declarações de parte prestadas pela Autora e no depoimento prestado pela testemunha «CC», seu marido, que impunham que a matéria das alíneas B), D), E), F), H), M) e O) fosse dada por provada.
A Apelante entende que as respostas negativas constantes das alíneas B), D), E), F), H), M) e O), dos factos não provados, não se enquadram nas respostas dadas pela testemunha «CC» e nas declarações de parte que, diversamente do que entendeu o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo, foram totalmente isentas e credíveis.
Em síntese, resulta dos factos não provados, que a Autora, segundo o Tribunal a quo, não logrou provar: (i) o seu estado no momento em que lhe foi dada alta; (ii) a recusa ou falta de colaboração na marcação da cirurgia de reconstrução do transito intestinal; (iii) a suposta incapacidade da autora para a realização das tarefas domésticas básicas; (iv) que a perfuração do cólon se tivesse nomeadamente ficado a dever a imperícia da cirurgiã que a realizou, não bastando a prova da causa da perfuração.
Vejamos.
3.4. A propósito da impugnação do julgamento da matéria de facto operado pela Apelante coloca-se a questão prévia de saber se esta cumpriu com os ónus impugnatórios do artigo 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, e, no caso de incumprimento desses ónus, quais as consequências jurídicas daí decorrentes para a sorte do presente recurso.
b.1.1.dos critérios impostos ao recorrente em sede de impugnação da matéria de facto.
3.5. Com a reforma introduzida pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, ao CPC, o legislador introduziu o registo da audiência de discussão e julgamento, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, de modo que a alteração da matéria de facto, que no anterior regime processual era excecional, passou a ser uma função normal da 2.ª Instância.
A intenção do legislador foi a de que o tribunal de segunda instância passasse a realizar um novo julgamento em relação à matéria impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo esta a conclusão que resulta expressamente do disposto no art.º 662º, n.º 1 do CPC, quando nele se expressa que a “Relação” deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento supervenientes impuserem decisão diversa.
Como vem sendo repetidamente afirmado, quer pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência daquelas alterações, são de rejeitar todas as interpretações minimalistas do enunciado artigo 662.º que, refugiando-se nas dificuldades relacionadas com a audição dos depoimentos testemunhais captados sem registo de imagem, com prejuízo do princípio da imediação (prejuízo esse que, aliás, é uma realidade), se limitam a fazer um controlo meramente formal da fundamentação vertida pelo tribunal a quo, assim como aquelas que se limitam a fundamentar, de forma genérica, sem referência aos concretos meios de prova e a conectá-los entre si e com as regras da experiência comum, isto é, sem fazer um novo julgamento, por forma a demonstrar o acerto ou desacerto da decisão proferida pelo tribunal a quo em relação à matéria impugnada em sede recursória. Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI..
Perante as regras positivas enunciadas na atual lei processual civil, tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, o Tribunal de 2.ª Instância deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da primeira instância.
Como verdadeiro tribunal de substituição, a 2.ª Instância aprecia livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).
Nessa sua livre apreciação, a 2.ª Instância não está condicionada pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que a 1ª instância fez dessa mesma prova, podendo e devendo na formação dessa sua convicção autónoma, recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI..
Contudo, importa não perder de vista que não foi propósito do legislador que o julgamento a realizar pela 2.ª Instância em sede de matéria de facto se transforme na repetição do julgamento realizado em 1.ª Instância, sequer admitir recursos genéricos, e daí que tenha imposto ao recorrente, em sede de impugnação da matéria de facto, o cumprimento dos ónus que enuncia no art.º 640º do CPC, pelo que se mantém o entendimento que o tribunal de 2ª instância deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 153., estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.
Acresce que tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo do princípio da auto -responsabilidade e dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a matéria que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, se impunha que tivesse sido proferida e os concretos meios de prova que reclamam essa solução diversa.
Deste modo é que o artigo 640º, n.º 1 do CPC, estabelece que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 662º).
Note-se que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial da delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem, é entendimento jurisprudencial uniforme que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados.
Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do âmbito do recurso, mas se destinam a fundamentar o recurso, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.
Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes ob. cit., pág. 155., sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente:
a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como alerta Abrantes Geraldes, a justificá-la a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da 2.ª Instância, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações. É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de auto- responsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo” Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 159.
No mesmo sentido vide Acs. S.T.J. de 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, todos in base de dados da DGSI..

Por último, precise-se que porque se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso pela 2.ª Instância dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
A alteração da matéria de facto só deve, assim, ser efetuada pelo Tribunal de 2.ª Instância quando, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. O que se acaba de dizer encontra sustentação na expressão “imporem decisão diversa” enunciada no n.º 1 do art. 662º, bem como na ratio e no elemento teleológico desta norma.
Deste modo, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609..
E suma, insiste-se, mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso, pela 2.ª Instância, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados que imponham decisão diversa.
b.1.1.– Do cumprimento dos ónus impugnatórios.
3.6.Posto isto, lidas as conclusões de recurso e as antecedentes motivações, é indiscutível que a Apelante cumpriu com todos os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, indicando nas conclusões, a matéria de facto erroneamente dada como não provada, a concreta decisão que, na sua perspetiva deve recair sobre essa facticidade, indicando quais os concretos meios probatórios que, na sua perspetiva, impõem esse julgamento de facto diverso que propugna, além de proceder a uma análise crítica suficiente desses meios de prova por forma a indicar o porquê destes imporem essa decisão diversa que postula.
Finalmente, quanto à prova gravada, a Apelante procede à transcrição dos excertos dessa prova em que funda o seu recurso.
b.1.2. da matéria de facto de facto das alíneas E) e F) dos factos não provados: do estado da autora no momento em que lhe foi dada alta.
3.7. Começando pela questão de saber se a Autora fez prova do estado em que alega que se encontrava no momento em que, após ter realizado, no dia 26/04/2013, por decisão dos serviços clínicos do Centro Hospitalar, uma histerectomia abdominal total laparoscópica sob anestesia geral, a que se reportam os factos constantes das alíneas D), E) e F) do elenco dos factos não provados, desde já adiantamos que tendo ouvido integralmente não só as declarações de parte prestadas pela autora, assim como os depoimentos prestados pelo seu marido, bem como os depoimentos prestados pelas demais testemunhas que foram inquiridas, designadamente da testemunha «DD», e conjugando-os com toda a prova documental junta aos autos, não podemos senão concluir que o Senhor Juiz a quo decidiu de forma correta ao dar como não provado que:
“D) No mesmo dia 26/04/2013, o Dr. «BB», em conversa com o marido da Autora, comunicou-lhe que a operação tinha corrido muito bem, ficando aquele descansado;
E)Perante as dores que a Autora apresentava em 27/04/2013, o marido questionou o médico «BB» que lhe disse que as dores e vómitos eram normais e que passavam;
F)Perante a informação de que a Autora tinha alta, em 29/04/2013, o marido deslocou-se ao Hospital e falou com o médico, comunicando-lhe que aquela não estava bem, pois sentia muitas dores e tinha febre alta, pelo que não podia ir para casa; ao que o médico respondeu que tinha alta e, por isso, podia ir para casa”.
Vejamos.
A Apelante afirma não compreender como pôde o Tribunal a quo basear-se nas declarações de parte prestadas pela Autora e no depoimento prestado pelo seu marido para dar como provados os factos 16 a 23, mas não os ter considerado a propósito da valoração dos factos contidos nas alíneas D), E) e F) da matéria de facto não provada. Entende que o depoimento prestado pelo seu marido sempre se revelou “totalmente coerente e compreensível”, “estruturado e conhecedor”, tendo este respondido de forma “clara, direta e com um discurso percetível, coordenado e orientado”, sugerindo ainda que o Tribunal descredibilizou o depoimento prestado pelo mesmo com o argumento de que, na qualidade de marido da Autora, teria especial interesse na procedência da ação.
Nos pontos 16 a 23 do elenco dos factos provados o Tribunal a quo deu como assente a seguinte matéria:
«16. No dia 27/04/2013, a Autora apresentou vómitos, passando a noite com dores;
17. No dia seguinte, 28/04/2013, a Autora sentiu dores abdominais e vómitos;
18. A 29/04/2013, o médico «BB», indicado como segundo réu, deu alta clínica à Autora;
19. Nesse dia, à tarde, a Autora foi para casa, e, quando aí chegou, foi para a cama;
20. No mesmo dia, à noite, a Autora sentiu dores abdominais, teve vómitos e diarreia, o que a impossibilitou de dormir, sendo levada pelo marido para a casa de banho;
21. No dia seguinte, 30/04/2013, a Autora continuou com dores, e não conseguia ingerir alimentos;
22. À tarde, nesse dia, a Autora sentiu dores abdominais constantes e mais fortes, assim como vómitos;
23. O seu estado piorou, o que assustou o marido que a transportou aos serviços de urgência do Hospital ..., de ...;»
O Senhor juiz a quo na motivação que elaborou para justificar o julgamento da matéria de facto começou, e muito bem, por precisar o seguinte:
«Exposto o julgamento de facto, com separação dos factos provados e não provados, como manda o n.º 3 do art.º 94.º do CPTA, cumpre justifica-lo; neste sentido, atentar-se-á que, segundo o n.º 4 do mesmo artigo, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, ressalvados os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial e aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Ora, começando pelos factos provados por acordo das partes, encontram-se nessa situação, tendo por base o art.º 4.º da contestação, os factos provados nos pontos 1, 3 a 7, e 12. Tratando-se de prova plena, somente se impõe constatar essa circunstância, dado que ficam alheios à livre convicção do Tribunal.
Em relação aos restantes factos, provados e não provados, e em obediência ao citado comando normativo, o Tribunal tomou em consideração, então, os vários meios de prova colocados à sua disposição, valorando-os de modo crítico.
Desde logo, assume-se como muito relevante a prova documental, em especial quanto aos atos médicos a que a Autora foi sujeita, e aos respetivos períodos de internamento. Saliente-se, a este respeito, que o réu Centro Hospitalar juntou aos autos o respetivo processo clínico da Autora, incluindo dos vários serviços por que passou, e essa documentação não foi objeto de impugnação ou reparo por parte desta (apenas impugnou o documento junto com a contestação).
Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que, da análise crítica a esses documentos, não resulta qualquer evidência que nos permita colocar em causa a sua genuinidade (portanto, e em especial, a sua autoria) ou a fidedignidade do seu conteúdo (portanto, o que deles consta), e por esse motivo são merecedores de crédito para efeitos probatórios (sem prejuízo do referido quanto a serem pacíficos, também, entre as partes).
Da mesma forma, foram juntos ao processo documentos por parte do Centro Hospitalar Universitário de ..., E.P.E., conforme ofício registado nos autos sob a ref.ª ...67, também referentes à situação clínica da Autora, em particular quanto à cirurgia de reposição do trânsito intestinal. Tal como sucedeu com os demais documentos relativos a informação clínica, também neste caso não foi deduzida, pelas partes, qualquer espécie de impugnação a esta documentação.
Sendo certo que, tal como sucede com o já referido processo clínico remetido pelo réu Centro Hospitalar, também neste caso, fazendo a análise crítica dos documentos, não sobram razões para duvidar da sua genuinidade ou da fidedignidade do seu conteúdo, e, por isso, mereceram crédito para efeitos de prova. Devendo acrescentar-se, a este respeito, que os documentos foram elaborados por uma entidade que nenhum interesse direto tem na decisão a proferir.
Relativamente a cada um dos factos elencados, e sempre que foi o caso, o Tribunal indicou o documento, ou o conjunto de documentos, que contribui para a formação da sua convicção.
Além disso, e como é natural, sempre que se proporcionou, o Tribunal não deixou de conjugar estes documentos com os restantes meios de prova; sendo que, se determinado facto provado tem referência a prova documental e, depois, é mencionado em outro meio de prova, isso significa que o Tribunal os conjugou, considerando-os coerentes e congruentes entre si.
Daqui em diante, importa introduzir a restante prova produzida, em concreto, as declarações de parte e o depoimento das testemunhas.
Começando pelas declarações de parte. Como decorre do art.º 466.º, n.º 3, do CPC, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão. Quanto a esta parte final da norma, como resulta da leitura da ata da primeira sessão de discussão e julgamento, não ocorreu qualquer confissão. Em relação às declarações propriamente ditas, mesmo tendo por base a liberdade do Tribunal na sua apreciação, impõe-se a sua análise cuidadosa, porque não deixam de ser prestadas por alguém que tem interesse na causa. Como recentemente se escreveu no acórdão do TCA Norte de 13/05/2022, proferido no processo n.º 01480/10.3BEPRT “As declarações de parte (...) permitidas pelo artigo 466º do Código de Processo Civil, devem ser apreciadas com cautela, pois são declarações interessadas e por isso não isentas. E designadamente deve ser rigoroso o juízo quanto à sua coerência e devem ser complementadas, em casos de dúvida, com outros meios de prova.
No caso concreto, as declarações de parte – além da conjugação com outros meios de prova – devem ser analisadas em paralelo com o depoimento da testemunha «CC», marido da Autora.
Pois bem, neste sentido, diremos que as declarações da Autora não nos mereceram credibilidade em toda a sua extensão. Aliás, como adiante se verá, as testemunhas arroladas pela Autora a respeito de determinada factualidade apresentam, todas, causas objetivas de falta de isenção, já que se tratam de familiares (além do marido, filhos e nora) ou, então, pessoas amigas. E, como se verá, em vários pontos, esses depoimentos, e as declarações da própria Autora, apresentam, entre si, contradições que não podem ser qualificadas de irrelevantes.
Sumariando logo ao início, existem três pontos em que a prova (partindo das declarações de parte) não logrou convencer o Tribunal: quanto ao estado da Autora, no momento em que lhe foi dada alta; quanto à questão da recusa ou falta de colaboração na marcação da cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal; e ainda quanto à suposta incapacidade da Autora para realizar tarefas domésticas básicas. Vejamos.»
Seguidamente, e em relação à não prova da facticidade constante das alíneas D), E) e F) e à prova dos factos constantes dos pontos 16.º a 23.º, o Senhor Juiz a quo fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
«Desde logo, no que, em concreto, diz respeito ao estado da Autora quando lhe foi dada alta – no dia 29/04/2013, à tarde – o relato apresentado não coincide com os registos clínicos. Com efeito, a fls. 132 (verso) do suporte físico dos autos encontra-se o diário médico do período de internamento posterior à histerectomia, e ali consta registado: “Consciente. Desconforto abdominal ligeiro, sem outras queixas. Micções e trânsito intestinal regularizados (mesmo hoje de manhã). Sem vómitos. T – 36,2 ºC (...) Penso limpo e seco. Abd – depressível, indolor, sem sinais de infeção.
Cumpre aqui salientar/recordar que a Autora não impugnou estes documentos integradores do processo clínico. Além do mais, sempre se diga que (sem prejuízo dessa não impugnação, por si só relevante), não encontramos no documento quaisquer sinais de adulteração do respetivo conteúdo, nomeadamente rasuras ou alterações de caligrafia. De resto, a nota está trancada (porque termina com alta da paciente) com a assinatura e o carimbo do respetivo médico, e aqui indicado como segundo réu.
As declarações da Autora não coincidem com estes registos. De todo. Além disso, nesta parte, o depoimento mostra-se abstrato, referindo apenas que se queixou que “estava mal”; mas nunca assistiu, segundo diz, às conversas entre o médico – indicado como segundo réu – e o marido, nesse momento. As próprias declarações, em si, não são congruentes; na verdade, segundo a Autora, “passou a noite muito mal”, mas quando já estava em casa, e não no hospital. Na verdade, não é muito credível que se a Autora estivesse no estado que relatou estar em casa, lhe fosse dada alta, porque saía do padrão normal da própria cirurgia.
Soma-se, a este respeito, o depoimento da testemunha «CC», marido da Autora. Veio corroborar a tese da petição inicial, mas também sem nos merecer crédito; aliás, neste ponto do estado da Autora/esposa aquando da alta, bem como nos outros pontos acima referidos, foi notório não apenas que a testemunha não falava espontaneamente, apresentando um discurso marcado pelo ressentimento para com o primeiro réu, mas também pela situação causada à esposa.
Também não se pode deixar de notar a incongruência destas declarações e depoimento com o relatório do episódio de urgência que consta a fls. 195 do suporte físico dos autos. A admissão, na triagem, anota como queixas da Autora vómitos persistentes e mau estar generalizado, sem referência a diarreia ou a febre; aliás, já no respetivo serviço, é anotado que “nega febre, alterações urinárias ou outros sintomas”.
Tendo em consideração que, como já dito mais de uma vez, estes documentos não foram impugnados (em geral ou em concreto, dado que apenas a Autora apenas versou sobre o relato cirúrgico junto com a contestação), vemos que, além de as declarações/depoimento se nos terem apresentado subjetivos e parciais, marcadamente sustentados no propósito de justificar um erro aquando da alta, não coincidem, sequer, com o quadro que a Autora apresentava na chegada ao serviço de urgência – desde logo, à triagem. Nesse ponto, é preciso também referir o depoimento da testemunha «DD». Com efeito, e com suporte nos registos clínicos, a testemunha confirmou que foi o médico que realizou a colostomia de urgência à Autora, já na madrugada de 01/05/2013. Este depoimento foi prestado num registo sempre objetivo, circunstanciado e, além disso, sustentado pelos conhecimentos técnicos da testemunha. Ora, um dos pontos mais relevantes deste depoimento disse respeito, precisamente, à questão de saber se a peritonite poderia demorar alguns dias a manifestar-se; de modo absolutamente claro e esclarecedor, a esclarecimento do mandatário do réu Hospital, elucidou que o tempo que passou até à real manifestação da peritonite é normal; deu, até, o exemplo de uma criança que pode bater com o abdómen na bicicleta, podendo a perfuração surgir apenas 4 ou 5 dias depois, porque se vai instalando. Tratando-se de uma testemunha arrolada pela Autora, em primeira linha, o depoimento prestado não só não confirma a tese da Autora, no sentido de a peritonite ter de se revelar ainda no Hospital, como ainda a infirma – e também aqui tirando sustento à já de si débil restante prova apresentada a esse respeito. Mais do que isso, afasta de forma clara a tese de que uma eventual perfuração era detetável de imediato, ou seja, ainda no decorrer da cirurgia – pelo contrário, segundo afirmou a testemunha.
Nessa medida, pela falta de prova credível sobre os factos em causa (e sem prejuízo do que ainda se dirá sobre outros depoimentos), foram considerados não provados os que constam das alíneas D), E) e F).
Porém, e porque os documentos e a situação subsequente assim o confirmam, já temos por certo que no dia 30/04/2013, com início pelo menos de madrugada, a Autora começou a apresentar um quadro de sintomas mais relevantes. Aliás, impõe-se aqui dizer que, para o Tribunal, foi quase palpável a diferença de registo nas declarações de parte e no depoimento da testemunha marido. Sem prejuízo de se dizer que mal se percebe como a Autora afirma que só foi ao Hospital porque o marido, a bem dizer, assim o impôs, apesar dos sintomas que apresentava (se bem que, mesmo aqui, não existe coincidência com o que consta do episódio de urgência). Enfim, em todo o caso, sobretudo pela conjugação com os documentos constantes do processo clínico, foram considerados provados, a partir das declarações de parte e do depoimento da testemunha marido da Autora, os factos que constam dos pontos 16 a 27.» ( negrito nosso).
Conforme se extrai da motivação que acabamos de transcrever, a prova dos factos constantes dos pontos 16.º a 23.º do elenco dos factos assentes, contrariamente ao que a Apelante pretende fazer crer, não resultou exclusivamente das declarações de parte prestadas pela mesma e do depoimento da testemunha «CC», seu marido, mas da conjugação dos mesmos com os documentos constantes do processo clínico.
Diversamente, a não prova da matéria que consta das alíneas D), E) e F) resulta do facto de sobre essa matéria o Tribunal a quo apenas dispor, para a formação da sua convicção, das declarações de parte prestadas pela Autora, que não presenciou qualquer conversa que tivesse ocorrido entre o médico Dr. «BB» e o seu marido, e do depoimento do seu marido. Da análise conjugada de toda a prova produzida, e ao contrário do que refere a Apelante, não ficou demonstrado que a conversa entre o marido da Autora e o médico Dr. «BB», inicialmente indicado como segundo Réu, tenha acontecido e ainda que este último tenha mantido a decisão de dar alta à Autora, depois de confrontado pelo seu marido, a testemunha «CC». Em boa verdade, ainda que tais conversações tenham acontecido, a Apelante não logrou fazer prova das mesmas.
Ademais, as considerações que o Tribunal a quo expendeu sobre as declarações de parte da Autora e o depoimento do seu marido, afiguram-se-nos corretas. Sabe-se que a prova pessoal é uma prova falível, em relação à qual, como bem nota o Apelado, o Tribunal deve ter um prudente senso crítico na ponderação do depoimento testemunhal, principalmente quando se tratem de declarações de parte e de depoimentos prestados por testemunhas que revelam particular interesse na causa.
Neste sentido veja-se, a titulo exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13.09.2018, proferido no âmbito do processo n.º 159/17.8T8FAF,G I, onde se refere que:
“A conclusão final sobre a credibilidade e o valor de um depoimento ou de umas declarações de parte alcança-se quando tal conteúdo “é enquadrado com a restante prova produzida, permitindo aferir da existência de linha de continuidade entre esse depoimento e o conjunto do material probatório recolhido” [sublinhado nosso].
Ou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17.06.2021, proferido no âmbito do processo n.º 2358/19.9T8MTS.P1, que aponta no mesmo sentido, referindo que:
“As declarações de parte são um meio de prova livre, a analisar criticamente no âmbito de cada processo (artigo 466.º do Código de Processo Civil), sendo insuficientes para estabelecer a prova de um facto, favorável à parte, quando se revelam frágeis e desacompanhadas de outro meio de prova ao seu alcance e que as sustente” [sublinhado nosso].
No caso sub judice, importa frisar que o Tribunal a quo não deixou de valorizar as declarações de parte da Autora e o depoimento do seu marido, apesar de ambos terem um interesse especial na procedência da ação, mas teve em devida conta a natural tendência das partes para deporem especialmente sobre os factos que lhe são favoráveis, e como tal, e bem, como forma de atenuar a especial parcialidade e debilidade deste tipo de prova, apenas a considerou quando a mesma se apresentou corroborada por outros elementos probatórios que permitiram ao Senhor Juiz a quo aferir da credibilidade de tais declarações/depoimentos.
Efetivamente, no âmbito de qualquer processo judicial, não sendo possível alcançar a verdade absoluta, resta ao Tribunal obter uma verdade provável. Uma verdade que se caracterize por um grau de probabilidade tal que permita a resolução do litígio de uma forma mais justa possível.
In casu, para a descoberta da verdade, não foram alheias as declarações da Autora e o depoimento do seu marido. Aliás, é o próprio Tribunal que, na sentença recorrida, refere que “as declarações da Autora não nos merecem credibilidade em toda a sua extensão” e que o depoimento da testemunha «CC» “veio corroborar a tese da petição inicial, mas também sem nos merecer crédito”.
Simplesmente, por se tratarem de declarações interessadas e não isentas, o Tribunal procedeu a uma confrontação, diga-se minuciosa, das mesmas com a restante prova.
Tendo sido, efetivamente, desse confronto que se deparou com contradições entre as declarações da Autora e a prova documental existente e ainda com os depoimentos prestados pelas testemunhas por si arroladas, sendo certo que, como referiu o Tribunal a quo, não se verificaram quaisquer motivos para duvidar da prova documental junta, ou seja, do processo clínico da autora. A prova documental não só não manifestava qualquer sinal de adulteração, como nunca foi o seu conteúdo impugnado pela Autora, aqui Apelante.
Por todo o exposto, não poderá, neste segmento, proceder o alegado pela recorrente.
b.1.3. da matéria de facto de facto das alíneas H) e M) dos factos não provados: da recusa de colaboração do Réu na marcação da cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal.
Nas alíneas H) e M) o Tribunal a quo deu como não provada a seguinte facticidade:
H. O réu Centro Hospitalar jamais marcou a cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, o que levou a autora a procurar outro hospital;
M. Só recorrendo a outro hospital é que a Autora conseguiu realizar uma operação de reconstrução do trânsito intestinal;”
Na tese da Apelante, os factos que constam das alíneas H) e M) da matéria de facto não provada deveriam ter sido levados ao elenco dos factos provados, cerzindo a esse respeito que o primeiro Réu, jamais procedeu à marcação da cirurgia de reconstrução do transito intestinal, levando a Autora a procurar um outro hospital, sendo que só assim conseguiu realizar a referida operação.
Alega a esse respeito – vide conclusões formuladas sob as alíneas H),I),J), K) e L)- que do depoimento do Dr. «DD» resulta que este acompanhou a autora e só passado um ano é que deixou de a acompanhar, pelo que não podia o tribunal a quo servir-se da negação do Dr. «DD» para desacreditar o depoimento do marido da autora, pois, o depoimento coincide, nesta parte, com o depoimento da testemunha. Como tal, não podia o tribunal a quo deixar de considerar como provada a factualidade constante da al.s H) e M) dos factos não provados, pelo menos, em parte. Ou seja: O Réu Centro Hospitalar jamais marcou a cirurgia de reconstituição do trânsito intestinal. - A autora recorreu a um outro hospital para realizar uma operação de reconstituição do trânsito intestinal.
A respeito desta matéria lê-se na motivação avançada pelo Senhor Juiz a quo para a formação da sua convicção a seguinte fundamentação:
«Voltando à análise dos aspetos em que não conseguimos dar crédito às declarações de parte, conjugadas com o depoimento da testemunha marido da Autora (ele próprio, a bem dizer, “autor”, porque muitos dos danos patrimoniais também o afetam, revelando o seu interesse direto na decisão a proferir), também não nos convenceu, de todo, a suposta falta de assistência do Hospital réu. Desde logo, constatamos a manifesta hesitação da testemunha marido, quando confrontado com a circunstância de a Autora ter faltado a consultas – primeiro, garantiu que não, depois corrigiu, de seguida justificou que não foi porque já tinha a cirurgia agendada no ...; já depois, garantiu que o próprio Dr. «DD», também testemunha, lhe disse que não era possível fazer a operação (quando o próprio «DD» disse que não acompanhou a Autora, devido a alterações no funcionamento do serviço; e em relatório médico de 13/06/2014, junto a fls. 94 do suporte físico dos autos, fez constar, precisamente, que a Autora já estava a aguardar aquela cirurgia), e ainda afirmou que o médico da clínica privada lhe disse “daqui de ... fuja”. Assim, declarações e depoimento subjetivos, sem respaldo nos outros meios de prova, e até por eles contrariados.
Os registos clínicos também contradizem frontalmente esta versão. A fls. 96 (verso) e 97 (frente) do suporte físico dos autos constam as consultas de acompanhamento que foram proporcionadas à Autora, e a anotação da última consulta consiste, precisamente, na ponderação da cirurgia de reconstrução do trânsito, com data de 26/04/2014, dependendo da vontade da doente, naturalmente.
Por outro lado, e ainda a este respeito, resultou da prova produzida que a Autora e o marido se serviram de “conhecimentos” para obter vaga no CHU de .... Isso mesmo foi confirmado pela testemunha «FF» (depoimento a que se voltará), que declarou ao Tribunal que assistiu a Autora porque um colega lhe pediu, deduzindo que esse colega a conhecia pessoalmente. A cronologia dos eventos confirma a falta de sustento da tese da Autora; com efeito, sendo mencionada na consulta de 26/04/2014, no Hospital réu, a proposta de cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, e perante o abandono das consultas (como, embora relutantemente, a testemunha marido acabou por admitir), não surpreende que a consulta com a testemunha «FF», no CHU de ..., ocorra a 30/06/2014 [fls. 230 do suporte físico dos autos], a partir daí constando o acompanhamento naquele centro hospitalar. Esta sequência cronológica revela a falta de sustento da tese da Autora, e a clara tentativa de sustentar uma falta de apoio ou seguimento que nunca existiu – foi a Autora, ou a sua família, quem decidiu procurar assistência de outra unidade hospitalar, nem sequer por meios formais, mas antes com recurso a conhecimentos pessoais ou contactos junto daquela outra unidade hospitalar.
Daí que o Tribunal, pela análise dos meios de prova à disposição, e já tendo constatado em sede de audiência a apresentação de discursos nitidamente subjetivos, parciais e comprometidos, além da clara ideia de terem sido previamente pensados para sustentar determinada tese, bem como que, objetivamente, as provas são prestadas por quem tem interesse na decisão, não podemos considerar credível a prova produzida a esse respeito. E daí que ficaram não provados os factos das alíneas H), I), J), K), L) e M).»
Ouvida a prova pessoal produzida, conjugada com prova documental junta aos autos, bem andou o Tribunal a quo ao julgar essa matéria não provada.
Uma primeira observação que nos cumpre efetuar, é que para a não prova da facticidade constante da alínea H), contrariamente ao invocado pela Apelante, o Tribunal a quo não se baseou apenas no facto de ter verificado uma hesitação da testemunha marido quando confrontado com a ausência da Autora às consultas que lhe haviam sido marcadas, mas teve ainda em consideração a incongruência entre as declarações prestadas por este último e a testemunha «DD» ( médico).
Ouvido o depoimento prestado pelo médico «DD», o mesmo foi perentório em infirmar que alguma vez tivesse dito ao marido da Autora que a operação para a reconstrução do trânsito intestinal não poderia acontecer, que a esse respeito disse que dadas as alterações no funcionamento do serviço, não foi quem acompanhou a Autora neste período.
Ademais, a versão dos factos apresentada pela testemunha marido é também contraditada pela prova documental: por um lado, pelo relatório médico (fls. 94) datado de 13.06.2014 onde é referido que a Autora se encontrava a aguardar pela marcação da cirurgia e, por outro, pelos registos clínicos (fls. 96 e 97) onde se constata que a última consulta consistiu na ponderação da realização da cirurgia. Essa consulta teve lugar a 26.04.2014, portanto meses antes da elaboração do referido relatório datado de 13.06.2014 onde se refere que a Autora aguardava pela cirurgia.
Claro está que nessa mesma consulta ficou decidido avançar com a cirurgia, justificando-se assim a referência no relatório datado de 13.06.2014 ao facto de a Autora se encontrar a aguardar pela mesma.
Refira-se também que depois de abandonar as consultas junto do primeiro Réu, a Autora, aqui Recorrente, procurou acompanhamento numa outra unidade hospitalar, o Hospital ....
A consulta neste último ocorreu a 30.06.2014, portanto já depois de ter sido elaborado o relatório médico onde vinha referido que a Autora se encontrava a aguardar pela marcação da cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal.
A Apelante, nas suas alegações, afirma que “o registo clínico apenas dá conta de uma ponderação e não de qualquer marcação” da cirurgia.
Ora, é da experiência de vida que a marcação de uma cirurgia não é, na maior parte das vezes imediata, principalmente num Hospital Público, inserido no Sistema Nacional de Saúde, mas daí não se pode concluir, como pretende a Apelante, que o Recorrido “jamais” procedeu à marcação da cirurgia. Ademais, note-se que foi a Apelante quem abandonou as consultas por vontade exclusiva da mesma. A este respeito, a Apelante pretende que seja levado ao elenco dos factos provados a conclusão de que, dada a inércia do primeiro Réu, não teve alternativa a não ser procurar um outro hospital, sendo que, só assim, conseguiu realizar a cirurgia de que necessitava.
Acontece que, pese embora o seu direito de se dirigir a uma outra unidade hospitalar com o objetivo de nela ser seguida, essa essa decisão voluntária da Apelante não pode ter como justificação, nas circunstâncias do caso, uma suposta inércia do Apelado na marcação da cirurgia.
Nesse sentido aponta o facto de a Autora ter sido remetida para a especialidade de reconstituição do trânsito intestinal, e de ter realizado várias consultas, em especial a consulta de ponderação da cirurgia e que, mais tarde, se incluísse no seu relatório que se encontrava a aguardar a realização da mesma. Tudo isto não teria qualquer sentido, se a intenção do Réu não fosse, efetivamente, a marcação definitiva da cirurgia.
O que se provou, é que foi a Autora quem abandonou, sem mais, as consultas junto do Apelado (circunstância admitida pelo marido da Autora) e foi a Autora quem decidiu, voluntariamente, dirigir-se a um outro hospital.
De facto, nada garante à Autora que, tendo continuado a ser seguida junto do Apelado, a sua cirurgia não seria marcada antes do dia 08.04.2015, dia em que foi operada nas instalações do Hospital .... Aliás, não esqueçamos que a testemunha «FF», médico que acompanhou a Autora no Hospital ... e cujo testemunho se afigurou credível e genuíno, referiu ter acompanhado a Apelante a pedido de um colega.
Por fim, constata-se ainda que o relatório médico onde vem referido que a Autora aguardava a marcação da cirurgia data de 13.06.2014 e que a Autora foi consultada no Hospital ... a 30.06.2014. Ora, entre a data do referido relatório e a decisão voluntária da Autora de se dirigir a um outro hospital passaram apenas 11 (onze) dias úteis. Claramente, como bem observa o Apelado, não foi a falta de uma data precisa para a realização da cirurgia que levou a Autora a optar por um novo hospital, uma vez que não seria expectável que, num tão curto espaço de tempo (11 dias apenas), o primeiro Réu estivesse em condições de oferecer uma data á Autora.
Não pode também proceder o argumento da Apelante de que ao seu marido tinha sido comunicado “numa consulta” que “iriam marcar a nova consulta para dai a um ano” e que o mais provável seria de que essa consulta fosse “para agendar ou não a dita cirurgia [que] ocorreria apenas em Junho de 2015”.
Mais uma vez, a Recorrente não logrou fazer prova desta comunicação, sendo que apenas o seu marido referiu a existência desta suposta conversa.
Termos em que improcede o invocado erro de julgamento sobre a matéria de facto.
b.1.4. da matéria de facto da alínea O): da afetação da vida diária, afetiva e sexual da Autora.
O Tribunal a quo deu como não provado que:
“O. A Autora ficou impossibilitada de ter uma vida afetiva normal, e ficou impossibilitada de se relacionar sexualmente, o que lhe desperta sentimentos de angústia e revolta pessoal”.
A Apelante pretende que esta matéria seja levada ao elenco dos factos assentes, cuja não prova está, além do mais, em oposição a parte da factualidade dada como provada no ponto 80 dos factos provados. Ademais, adianta que segundo o Tribunal a quo, as declarações da testemunha «CC» quanto à afetação da vida íntima se revelaram mais credíveis e ainda que a vida sexual da Autora não tenha ficado impossibilitada, ficou, pelo menos, limitada. Para além disso, dada a debilidade resultante das cirurgias. a que foi sujeita, não poderia o Tribunal ter desvalorizado o grau de dependência da Autora, necessitando do acompanhamento do seu marido para a prestação dos cuidados básicos.
A fundamentação que o Senhor Juiz a quo adiantou para a não prova desta matéria alicerçou-se nas seguintes considerações:
« Não obstante o referido sobre os pontos de pouca credibilidade acima enunciados, existem, ainda, dois outros aspetos a ressalvar a este respeito. O primeiro, diz respeito à afetação da vida sexual da Autora; na verdade, neste caso, não questionamos propriamente a veracidade das declarações de parte ou do depoimento da testemunha marido (os únicos meios de prova sobre o assunto, em termos de declarações presenciais), mas antes se notou a circunstância de não existir grande à-vontade para falar sobre esse aspeto. Com efeito, a questão ganhou acuidade pela circunstância de, em sede de prova pericial, ser afirmado que não existia impossibilidade de relações sexuais. Essa posição foi mantida em esclarecimentos prestados pela Sr.ª Perita em sede de audiência final, e, pela segurança demonstrada, não só da leitura do caso concreto mas pelos conhecimentos técnicos inerentes ao assunto, é possível dizer que as relações sexuais não são impossíveis – daí que tenha ficado não provado o que consta da alínea N).
Mas, e por outro lado, julgamos que as declarações de parte e o depoimento da testemunha marido merecem crédito quanto à afetação da sua vida íntima. Note-se, no período em que a Autora foi portadora de colostomia, é natural que não se sentisse confortável para ter relações sexuais; menos ainda quando estava em convalescença. Até porque, tendo a Autora uma hérnia bastante volumosa, e como também reconhecido pela Sr.ª Perita, essa circunstância não impede as relações, mas a certo ponto condiciona o ato sexual. Daí que o Tribunal, conjugando esses aspetos, considerou provada a matéria dos pontos 67, 70 e 80.
O outro ponto pouco clarividente diz respeito à incontinência da Autora; com efeito, o relatório pericial, neste caso, refere que a examinanda não apresenta lesões ou sequelas; a resposta que a Autora deu sobre o assunto não foi minimamente esclarecedora, dizendo apenas genericamente que acha que a incontinência se deve à hérnia; porém, nem mesmo em sede pericial se apurou essa sequela. Nem a queixa surge em qualquer registo clínico junto aos autos, máxime do processo clínico remetido ao CHU .... Nessa medida, não podemos considerar que haja prova suficientemente sólida sobre o assunto, pelo que foi dado como não provado o facto constante da alínea O).»
O julgamento de facto realizado pelo Senhor Juiz tendo em conta a prova produzida a respeito desta matéria não enferma de qualquer erro.
Tendo em conta a natureza das questões em causa, é naturalmente aceitável que o Tribunal a quo tenha atribuído uma maior credibilidade ao depoimento da testemunha «CC» e às declarações de parte da Autora no que respeita à afetação da vida íntima desta última.
Contudo, essa afetação circunscreveu-se ao período em que a Autora foi portadora de colostomia, bem como ao período pós-operatório onde, compreensivelmente, a debilidade da Autora acabou por afetar a sua vida sexual, tendo para o efeito atendido ao resultado da prova pericial junta aos autos, no qual, a Senhora Perita, fixou à Autora uma incapacidade de apenas 10 (dez) pontos.
Nesse mesmo relatório, e quanto à capacidade da Autora para realizar as tarefas diárias, concluiu a Sra. Perita que a mesma estaria apta a realizar tais atividades, sendo que, o auxílio de terceiros, a verificar-se, seria apenas pontual. As dificuldades que pudessem surgir na realização das mesmas implicariam apenas um esforço complementar, mas nunca estariam impossibilitadas.
Da mesma forma, mas agora a respeito da vida sexual da Autora, concluiu-se no relatório pericial não existir também impossibilidade na prática de relações sexuais.
A vida diária da Autora não ficou ainda afetada por qualquer problema respeitante ao sistema urinário, uma vez que não ficou provada a existência de um qualquer problema de incontinência. Realidade esta confirmada pelo relatório pericial, dado que o mesmo refere não se evidenciarem quaisquer lesões ou sequelas.
Ora, a prova pericial revela-se uma prova particularmente credível porque prestada por um técnico imparcial e especializado. De facto, o perito afigura-se, no fundo, como um auxiliar do juiz, chamado a dilucidar uma determinada questão atendendo à sua especial aptidão técnica e científica. Mesmo tratando-se a avaliação do perito de um juízo técnico e científico, a divergência do juízo pericial implica sempre, para o magistrado, um acrescido dever de fundamentação, não obstante a livre apreciação do julgador estabelecida por lei.
Ora, não tendo a prova testemunhal contrariado a prova pericial junta aos autos e não havendo motivo para discordar do relatório pericial, não tem fundamento a pretensão da Apelante de ver dado como provada a matéria da alínea O).
Assim sendo, improcede o invocado erro de julgamento sobre a matéria de facto.
b.1.5. da matéria de facto da alíena B) : da ocorrência de das causas da perfuração do cólon da Autora.
Finalmente, a Apelante insurge-se contra a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a fundamentação de facto por ter considerado como não provada a seguinte factualidade constante da alínea B):
B. A perfuração do colon da Autora decorrente da histerectomia realizada em 26/0412013 foi causada pelo médico que a realizou;”
Aduz que “embora não se tenha provado, por depoimentos diretos esta causa, como bem refere a douta sentença, tanto mais que a médica cirurgiã ouvida em sede de julgamento não o confirmou, bem pelo contrário e a outra médica não foi ouvida, o certo é que conhecendo-se a causa da peritonite, como sendo consequência direta da cirurgia, o tribunal deste facto conhecido podia e devia ter presumido a causa concreta da perfuração”.
Mas sem razão, como desde já adiantamos.
Atentemos antes de mais na motivação avançada pelo Senhor Juiz a quo para dar como não provada esta matéria, de cuja prova dependia a sorte da presente ação:
« Um dos pontos essenciais da alegação da Autora (e para a decisão) diz respeito à causa da perfuração verificada no intestino. Diga-se, a este respeito, que não restaram dúvidas, da prova documental e do depoimento da testemunha «DD» (com o registo credível que lhe atribuímos), que a Autora apresentava o quadro de peritonite, decorrente de uma perfuração no intestino. Também não nos restaram dúvidas, por aqueles elementos de prova, que a perfuração encontrada decorre da intervenção cirúrgica de histerectomia, realizada em 26/04/2013. Daí que tenha sido considerada provada a factualidade dos pontos 15, 28 a 32 e 35; bem como a necessidade de uma nova cirurgia a 07/05/2013 – factos provados 36 a 39.
Aquilo de que já não temos prova é a concreta causa dessa perfuração, nomeadamente se a mesma se ficou a dever a imperícia da cirurgiã que a realizou.
Começando por aí – ou seja, por quem realizou a cirurgia – veja-se que a Autora alegava que teria sido o indicado segundo réu, «BB», quando tal não sucedeu – bastando atentar, para esse efeito, no respetivo relato cirúrgico. É certo que a Autora veio impugnar esse documento (que, além de constar do processo clínico, também foi junto com a contestação). Todavia, foi ouvida como testemunha «GG», que assumiu ter sido a cirurgiã que realizou a parte laparoscópica da cirurgia (segundo disse, parte da cirurgia foi por via vaginal, mas aí sob a execução da colega «EE»). De modo esclarecido, e aliás sem demonstrar qualquer constrangimento, relatou que foi uma cirurgia que decorreu dentro da normalidade, e, no final, como procede de forma habitual, foi confirmada a inexistência de hemorragias, incluindo pela injeção de dióxido de carbono na zona em causa, com a confirmação da ausência de hemorragias. É de ressalvar que a Autora não impugnou o relato cirúrgico que consta do processo clínico, e que é o original, datado de 26/04/2013, devidamente assinado.
Na realidade, era a Autora quem tinha de fazer prova que a perfuração foi ocasionada pela médica cirurgiã; é bem diferente dizer-se que a perfuração decorre da cirurgia (como decorre), de dizer-se que foi causada pelo cirurgião. E não o fez. Esta testemunha, como visto, não o disse (e, na realidade, é a única prova direta sobre essa factualidade); aliás, referiu mesmo que não é mulher de levar dúvidas para casa e que a única explicação que encontra terá sido a criação de uma zona de fragilidade. Sendo certo que, repita-se, de toda a prova (em particular, testemunhal), foi a única pessoa ouvida e que esteve na realização da cirurgia de 26/04/2013.
Além disso, a sua posição não é afastada por outras provas. A testemunha «DD», apesar de, como o próprio assumiu, não ser especialista em ginecologia/obstetrícia, também afiançou que qualquer intervenção laparoscópica tem o risco de perfurar o intestino; mas sobre a concreta causa, apenas referiu que existia elevada probabilidade de o intestino ter sido ofendido na anterior operação; só que a testemunha, além de não negar outras causas possíveis para o desenvolvimento da perfuração (pelo contrário), não pôde afirmar a concreta causa da mesma, porque não participou na intervenção. Mas, sobretudo, a testemunha explicou que, mesmo na hipótese de poder ter sido com o bisturi elétrico, é uma complicação descrita e possível, mesmo nas situações de cumprimento rigoroso da técnica cirúrgica. Este relato corresponde ao que foi apresentado pela testemunha «HH», médico especialista em ginecologia e obstetrícia, com as funções de diretor do respetivo serviço no Hospital réu desde 2007; sobre esta matéria, em registo credível e sustentado, também alinhou pelo referido pela testemunha antes referida, considerando várias hipóteses para a ofensa do intestino, entre elas ter sido causada pelo bisturi elétrico. Só que, como também reconhecido por estas testemunhas, também existem outras causas possíveis, nomeadamente a criação de uma zona de sensibilidade pelo descolamento/remoção do próprio útero; de todo o modo, as testemunhas concordam quanto à circunstância de a perfuração não ser detetada, ou nem sequer se manifestar, durante a operação (ou, como explicado acima, pode até levar dias a manifestar-se). Isso atesta e reforça as declarações da testemunha cirurgiã que realizou a operação.
Como tal, pela análise deste conjunto de prova, não se pôde considerar provada a factualidade que consta das alíneas A), B) e C). In extremis, ainda cogitámos retirar aqui uma presunção judicial, a partir do facto conhecido (i. e., que a perfuração se devia à cirurgia) retirando o desconhecido (a causa concreta da perfuração); só que, em face da prova produzida, não está reunido o grau de certeza exigível, em particular em matéria tão técnica, que permitisse esse passo, em especial porque as testemunhas são unânimes em reconhecer múltiplas causas possíveis; e o facto de a peritonite ter demorado dias a revelar-se também indicia no sentido oposto. E, havendo ao menos séria dúvida sobre esses factos, sempre valerá a regra do ónus da prova.
Nessa medida, os depoimentos referidos mereceram crédito. Assim, o depoimento da testemunha «HH», conjugado com o depoimento das duas outras testemunhas mencionadas, permitiu considerar provados os factos elencados nos pontos 2, 8 e 9. No caso do depoimento da testemunha «GG», por si ou conjugado com prova documental, foi tido em conta para considerar provados os factos dos pontos 10, 11, 13 e 14.»
Quanto à perfuração do intestino da Autora, os depoimentos prestados pelas diversas testemunhas com conhecimentos médicos contrariam largamente o alegado pela Apelante.
Ouvindo os depoimentos prestados pelas testemunhas Dra. «GG» (médica cirurgiã que realizou a cirurgia da Autora), Dr. «HH» (médico especialista em genecologia e obstetrícia e diretor deste serviço nas instalações do Réu), Dr. «DD» (médico que realizou a colostomia de urgência à Autora) e, por fim, o Dr. «FF» (médico cirurgião do Hospital ... que realizou a intervenção para repor o trânsito intestinal da Autora), não pode senão concluir-se pela não prova desta matéria da alínea B).
Resultou provado, da consideração dos referidos depoimentos, que às intervenções laparoscópicas está sempre associado o risco de perfuração intestinal, ainda que em estrito cumprimento por todas as regras impostas pela legis artis, sendo certo que a perfuração provocada pelo bisturi elétrico é apenas uma das muitas causas que poderão levar à ofensa do intestino. Desde logo, a possibilidade de ser criada uma zona de sensibilidade/fragilidade pelo deslocamento/remoção do próprio útero. Acresce a tudo isto a circunstância já referida quanto ao facto de a peritonite não ter que se manifestar assim que ocorra a perfuração intestinal.
Não está em causa que a perfuração do intestino da Autora ocorreu como consequência da cirurgia realizada a 26.04.2013. Porém, não se provou, de todo, quer o momento em essa perfuração se manifestou, quer as causas dessa perfuração, especialmente se ficou a dever-se à imperícia da cirurgiã que procedeu à realização da cirurgia.
De facto, toda a prova presente nos autos aponta para a normal, decorrência da cirurgia, em estrito cumprimento das regras técnicas impostas pela prática médica.
A Apelante, depois de reconhecer que “embora não se tenha provado como é que aconteceu a perfuração” alega que “(...) não há dúvidas pelas razões apontadas, a causa só poderia ter sido ou pelo encosto do bisturi no cólon e ou por urna queimadura no próprio cólon que não tenha cicatrizado e que, por isso, veio a figurar e a criar urna ruptura do cólon”.
Acontece que a mesma não logrou oferecer quaisquer provas que sustentem o que alega, não sendo consentido ao Tribunal presumir a ocorrência da perfuração pelo simples facto de a possibilidade de perfuração intestinal se tratar de um risco normalmente associado à cirurgia a que foi sujeita. Valem aqui, inteiramente, as palavras proferidas pelo Tribunal Central Administrativo Norte, no acórdão de 10.03.2022, proferido no âmbito do processo ri.º 00459/11.0BECBR: “Não sendo o exercício da medicina uma ciência exata em que o diagnóstico e o tratamento que lhe corresponde tenham de ser um único, é forçoso concluir que um mau resultado não prova, sem mais, um mau diagnóstico e/ou um mau tratamento”.
Como bem se escreve na sentença recorrida “O erro médico capaz de desencadear os mecanismos indemnizatórios terá de ser aferido não em função do (mau) resultado obtido mas em função do juízo que se faça sobre a forma como o profissional agiu e desse juízo resultar a conclusão de que houve uma culposa violação das regras que ele devia respeitar e de que se ela não se tivesse verificado, os danos cuja reparação se peticiona não teriam existido.
A apontada responsabilidade pressupõe a formulação de um juízo de reprovação que parte da existência de um comportamento padrão que o agente podia e devia observar e de que ele não foi observado e que foi esse desvio que provocou os danos que se impõe ressarcir”.
Ora, a Autora não fez prova de que a cirurgiã que realizou a operação agiu de forma culposa e ilícita, ou seja, em estrita violação das legis artis que lhe eram impostas e, por isso, não se encontram preenchidos os requisitos de que depende o surgimento da obrigação de indemnizar, devendo ser integralmente confirmada a decisão do Tribunal a quo.
Importa recordar que o Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1.ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto” (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.10,2005, proferido no âmbito do processo n.º 0394/05).
Logo, “Tendo em conta que o tribunal superior é chamado a pronunciar-se privado da oralidade e da imediação que foram determinantes da decisão em 1.ª instância e que a gravação/transcrição da prova, por sua natureza, não pode transmitir todo o conjunto de fatores de persuasão que foram diretamente percecionados por quem primeiro julgou, deve aquele tribunal, sob pena de aniquilar a capacidade de livre apreciação do tribunal a quo, ser particularmente cuidadoso no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto e reservar a modificação para os casos em que a mesma se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que for seguro, segundo as regras da ciência, da lógica e/ou da experiência comum que a decisão não é razoável” (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14.03.2006, proferido no âmbito do processo n.º 01015/05).
Em suma, não colhe todo o alegado pela Recorrente, não devendo por isso os factos inscritos nas alíneas B), D), E), F), H), M) e O) serem levados ao elenco dos factos provados, não merecendo qualquer censura a decisão do Tribunal a quo a respeito da matéria de facto, que se mantém invicta.
b.2. do erro de julgamento sobre o mérito
Com a presente ação administrativa, a Autora pretende ser indemnizada por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrente das lesões e respetivas sequelas por ela sofridas em consequência, em síntese, de alegado erro médico ocorrido no âmbito da histerectomia abdominal total laparoscópica sob anestesia geral a que, no dia 26/04/2013, também por decisão dos serviços clínicos do Centro Hospitalar, a mesma foi submetida, bem como da falta de assistência devida.
A Autora alegou na p.i., em termos sumários, que em consequência da histerectomia abdominal total laparoscópica a que se submeteu no Hospital Réu, sofreu uma perfuração no colon, o que obrigou ao recurso ao serviço de urgência, tendo aí sido submetida a duas cirurgias para colocação de colostomia, ficando internada até 18/06/2013. Viveu durante dois anos com a colostomia, porque o Hospital nunca lhe providenciou a realização de cirurgia para reposição do trânsito intestinal.
A responsabilidade médica, na falta de regime especial, tem sido enquadrada pela doutrina e pela jurisprudência, quer no âmbito da responsabilidade contratual, quando estejam em causa atos médicos ocorridos no seio do exercício da medicina privada, quer no domínio da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública, quando estejam em causa atos médicos praticados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
Em relação à responsabilidade civil decorrente da prática de atos médicos em estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo é consistente no sentido de a mesma ser de natureza extracontratual ou aquiliana.
Nesse sentido, cita-se, exemplificativamente:
- Acórdão do STA de 09/06/2011, proferido no processo n.º 0762/09 no qual se enuncia que: «A responsabilidade por atos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos tem natureza extracontratual, incumbindo ao lesado o ónus de alegar e provar os factos integradores dos pressupostos dessa responsabilidade, regulada, fundamentalmente, no Decreto-Lei 48 051, de 21 de novembro de 1967».
- Acórdão do STA 16/01/2014, proferido no processo nº 0445/13 no qual se expende igualmente que: «A responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos imputados a um Hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde não tem natureza contratual, sendo-lhe aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos».
Esta jurisprudência filia-se no entendimento de que nas relações entre o utente e o SNS se aplica o regime da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana porque os cuidados de saúde que são prestados aos pacientes por estabelecimentos ou profissionais SNS emergem da obrigação constitucional e legal do Estado de assegurar a todos os cidadãos que careçam de cuidados médico-cirúrgicos essa prestação de serviço público, não estando na disponibilidade dos profissionais/estabelecimentos hospitalares que integrem a rede do SNS a possibilidade de recusarem a prestação dos cuidados de saúde a quem deles necessite e se socorra desses serviços.
A este respeito, apraz-nos ainda invocar o Acórdão do STJ de 25/02/2015, processo nº 804/03.2TAALM.L.S1, no qual aquela alta instância, acompanhando a jurisprudência já expressa supra, reiterou uma vez mais tal entendimento, ao expender que: «O ato médico praticado em hospital público integrado no SNS representa um ato técnico no exercício de uma dada profissão de acordo com certas prescrições, naturalmente que da ciência médica, constituindo uma função pública, integrada na denominada “função técnica do Estado”, qualquer que seja a natureza de que se revista o hospital, com ou sem autonomia patrimonial, empresarial ou sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, segundo a classificação adotada na Lei de Gestão Hospitalar n.º 27/2002, de 08-11.
É, pois maioritária a posição - excluindo-se, ainda a conceção da natureza atípica - que perfilha o entendimento de que a prestação de serviços médicos nos hospitais públicos se não enquadra no contrato de prestação de serviços previsto no CC, no art.º 1154.º e ss., antes assumindo uma simples prestação de serviço público, em que, como regra, o médico é desconhecedor da pessoa do doente, e este da pessoa do médico, surgido acidentalmente, ignorando as suas qualidades técnicas, de quem espera o melhor desempenho na aplicação dos melhores e mais oportunos conhecimentos da sua ciência e que não recebe do beneficiário ordens ou instruções, gozando de uma quase total ou, melhor dizendo, total independência» - no mesmo sentido, .cfr. também Acs. do STJ, de 24/5/2011, Processo nº 1347/04.2TBPNF.P1.S1; de 29/10/2015, Processo nº 2198/05.2TBFIG.C1.S1.
Em suma, podemos afirmar que os hospitais públicos, em sentido amplo, sejam os que estão enquadrados no setor público administrativo, como os que apenas fazem parte do setor empresarial do Estado e as Parcerias Público-Privadas, todos eles, atuam no exercício de prerrogativas de poder público e/ou exercem atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, pelo que os atos médicos (sejam eles ações ou omissões) neles praticados correspondem, inequivocamente, ao exercício da função administrativa.
Foi também este o entendimento subscrito pela 1.ª Instância na sentença recorrida, em que se considera que a efetivação da responsabilidade médica por ato médico realizado no estabelecimento hospitalar demandado, integrado no SNS, é de natureza extracontratual ou aquiliana, o que conforme resulta do que se acaba de expender se mostra conforme à jurisprudência largamente maioritária da jurisdição administrativa, a qual se subscreve.
Por outro lado, é igualmente pacífico que os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública decorrente de atos ilícitos praticados pelos seus agentes são idênticos aos do regime da responsabilidade civil extracontratual prevista e regulada no art. 483º Código Civil.

Assim se expendeu, por exemplo, em Acórdão do STA, de 03/07/2007, proferido processo nº 0443/07, onde se lê que: «A responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas coletivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, que são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa), o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade entre este e o facto».
Logo, ao contrário do que sucederia no regime da responsabilidade civil contratual, aplicável no âmbito do regime privatístico (em que a Autora teria de provar, apenas, a ilicitude, beneficiando, depois, de uma presunção de culpa, nos termos do art.º 799.º do Código Civil, passando a incumbir ao devedor da prestação a prova de que a ocorrência não lhe é imputável – cf., por exemplo, o acórdão do STJ de 23/03/2017, proferido no processo n.º296/07.7TBMCN.P1.S1), no caso da responsabilidade extracontratual, e na falta de qualquer presunção legal, a Autora continua onerada com o ónus de demonstrar todos os requisitos.
Assim se obtemperou no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 30/10/2020, proferido no âmbito do processo n.º 02027/12.0BEPRT, onde se escreveu: “Nas ações que corram termos nos tribunais administrativos destinadas a obter a condenação dos estabelecimentos hospitalares que integrem o SNS com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, de acordo com o regime-regra, é sobre o utente do SNS que impende o ónus de alegar e demonstrar a ilicitude da atuação, provando a infração de regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e a culpa dos profissionais de saúde, aferida pelo critério da diligência e aptidão razoavelmente exigíveis a um funcionário ou agente zeloso e cumpridor, bem como o nexo de causalidade adequada entre os atos médicos praticados ou omitidos e os danos sofridos”.
No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do TCAN, de 28/01/2022, proferido no âmbito do processo n.º 02174/15.7BEPNF: “Em situações de responsabilidade extracontratual, diversamente da responsabilidade contratual, por responsabilidade civil por alegada negligência médica em hospitais públicos - como é o caso dos autos - não se verifica a inversão do ónus da prova, pois que tal não resulta de nenhuma norma jurídica. Em relação aos hospitais públicos ­como é o caso do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE - não se aplica a presunção de culpa prevista no art.º 799.º do Código Civil, antes compete ao A. - art.º 342,º, n.º 1 do Cód. Civil - a prova dos factos constitutivos do seu direito”.
Cingindo-se especificamente à responsabilidade médica, veja-se o Acórdão do STA de 20/04/2014, proferido no processo n.º 982/05, no qual aquela Alta Instância obtemperou que: «Nas ações de responsabilidade médica tem aplicação o regime geral do nosso ordenamento jurídico – art. 342º, n.º 1 do CC -, de acordo com o qual cabe à Autora fazer a prova dos factos constitutivos do direito à indemnização, salvo nos casos de presunção legal – art. 344º, n.º 1 do CC – ou quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado – art. 344º, n.º 2 do CC».

Deriva do que se vem dizendo que ancorando-se a pretensão indemnizatória a que a Autora se arroga titular perante o hospital público Réu no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por ato ilícito de um ente público, cabe àquela o ónus da alegação e da prova da verificação dos requisitos gerais cumulativos da responsabilidade civil aquiliana, os quais se reconduzem ao facto, à ilicitude, à culpa, ao dano e ao nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano – neste sentido veja-se ainda os Acs. do STA, de 20/05/1999, Rec. 39535; 2/12/2009, Processo nº 0763/09; 10/05/2001, Proc. 47173; e de 14/04/2005, Proc. 0677/03.

A histerectomia a que a Autora se submeteu no hospital Réu teve lugar no dia 26 de abril de 2013, altura em que se encontrava em vigor a Lei n.º 67/2007, de 31/12 ( RRCEE) pelo que é à luz deste diploma que se terá de aferir do preenchimento ou não dos enunciados pressupostos legais constitutivos do direito indemnizatório a que aquela se arroga titular perante o hospital demandado.

A 1.ª Instância deu como não verificados os pressupostos da ilicitude e da culpa, e, em consequência absolveu o Réu, aqui Apelado, dos pedidos formulados.
Ora, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1.ª Instância, como resulta da improcedência dos erros de julgamento que lhe foram impetrados pela Apelante, só podemos concluir, como bem decidiu a 1.ª Instância, que a Autora/Apelante não demonstrou o preenchimento dos pressupostos da ilicitude e da culpa necessários à condenação do Réu no pagamento da peticionada indemnização com fundamento em responsabilidade civil extracontratual.
Subscrevemos integralmente a sentença recorrida, cuja fundamentação sólida e consistente, não deixa qualquer dúvida sobre a correção do julgamento efetuado, razão pela qual consideramos útil proceder à sua transcrição.
Lê-se na sentença recorrida, designadamente, que:
« (…)
No caso concreto que nos ocupa, forçoso é concluir pela existência de um facto voluntário. Com efeito, está provado que a Autora foi submetida, no dia 26/04/2013, a uma intervenção cirúrgica de histerectomia (portanto, remoção do útero). Tal intervenção constitui um facto que não apenas não é alheio à vontade humana como, inclusivamente, dela depende. O que não se confunde com saber se esse facto é ilícito e culposo, pois esses são os pressupostos de que passa a cuidar-se de seguida, atendendo ao conjunto de requisitos acima enunciados.
(…)
Para que se possa imputar a terceiro a obrigação de indemnizar os danos que possa ter causado, além de voluntário, o facto terá de ser ilícito e culposo.
No caso sobre o qual versamos, por se tratar de uma situação fundada em erro médico, impõe-se a análise conjunta dos dois requisitos. Frise-se: são requisitos, ainda assim, distintos. Como explica Nuno Pinto Oliveira: “[e]nquanto o juízo de ilicitude é um juízo de censura, dirigido a um comportamento (acção ou omissão), o juízo de culpa é um juízo de censura, dirigido a uma pessoa (ao agente ou omitente), por ter adoptado um comportamento ilícito (desconformidade ao direito), quando podia e devia ter adoptado um comportamento lícito – conforme ao direito. (...) O conceito de ilicitude indica que houve algo de errado na actuação do médico e o conceito de culpa, que aquilo que houve de errado na actuação do médico deve ser-lhe assacado ou imputado – por dolo ou, como é praticamente a regra, por negligência” – cf. “Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica”, pág. 71.
E prossegue o mesmo autor: [op. cit., págs. 73/74]: “Excluídos os casos de dolo, por serem praticamente insignificantes, os critérios da tipicidade, da ilicitude e da culpa têm como ponto de referência comum o conceito de diligência. O médico comportar-se-á com diligência desde que se conforme com os padrões ou standards de conduta do seu círculo profissional e com negligência desde que não se conforme com tais padrões ou com tais standards. Estando em causa o comportamento dos médicos, o conceito de diligência é um caso particular – e só é um caso particular – pelo facto de o conteúdo do dever de diligência ser um conteúdo de alguma forma determinado pelas leis da arte e da ciência médicas.
Exatamente por isso, em matéria de responsabilidade fundada em ato médico, como a apreciação dos dois requisitos tem esse ponto comum (i. e., o conceito de diligência), e embora a sua autonomia, a respetiva análise deve ser levada a cabo conjuntamente.
*
Definida a autonomia dos requisitos em análise, mas com a justificação do seu conhecimento conjunto, importa de seguida atentar nas respetivas disposições normativas.
Em termos legais, o requisito da ilicitude vem previsto no art.º 9.º do RRCEE, em cujo n.º 1 (o único que aqui interessa) se lê:
1 – Consideram-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares, ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.” Consagra-se, portanto, um conceito amplo (não coincidente com o de ilegalidade) e subjetivo de ilicitude. A amplitude da previsão legal resulta da circunstância de a ilicitude não corresponder, apenas, à violação de disposições ou princípios normativos, mas também abranger o desrespeito por regras de natureza técnica ou, até, de simples deveres objetivos de cuidado.
Esta constatação não deixa de ser relevante para o caso concreto, dado que as designadas leges artis (conceito que adiante se desenvolverá), independentemente de se encontrarem escritas ou decorrerem da boa prática médica comummente aceite por essa área científica, constituirão sempre, e pelo menos, regras de ordem técnica a observar pelo profissional da medicina.
Depois, a subjetividade da ilicitude resulta da ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. Neste sentido, Carlos Alberto Fernandes Cadilha afirma que esta última parte do n.º 1 do art.º 9.º do RRCEE “deixa claro que o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objectivamente antijurídico (...) exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (...)” – cf. Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, 2.º Edição, Coimbra Editora, 2011, pág. 178. No mesmo sentido se pronuncia Tiago Antunes – cf. “Regime (...)”, cit., pág. 635.
No mesmo sentido, diz-nos Tiago Antunes [in “O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado de Demais Entidades Públicas: Comentários à Luz da Jurisprudência”, 2.º Edição, 2018, AAFDL, pág. 635] que “seja qual for o fundamento da ilicitude, ela só releva para efeitos ressarcitórios se conduzir à ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. É esse o sentido da parte final do artigo 9.º, n.º 1, do RRCEE.
Ou seja, não basta, para que se possa afirmar a ilicitude (ou, pelo menos, a ilicitude relevante para efeitos de responsabilidade civil) a constatação de ter sido violado um determinado preceito normativo, uma regra de ordem técnica ou um dever objetivo de cuidado. É também necessário que essa violação ocorra no círculo de interesses protegidos pela norma violada [cf. Tiago Antunes, op. cit., pág. 637].
Relativamente à norma que versa sobre a culpa, está em causa a interpretação e aplicação do art.º 10.º do RRCEE, assumindo particular interesse, para este efeito, o n.º 1, que reza assim:
1 – A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.
O preceito, naturalmente, não é alheio à situação dos autos, dado que sempre estará em causa avaliar se os médicos do réu Centro Hospitalar atuaram de acordo com a diligência e aptidão que era razoável exigir na situação concreta. De todo o modo, e ao abrigo do acima exposto, o ponto essencial é, precisamente, o da diligência na atuação, enquanto critério aferidor da culpa (e, em simultâneo, da própria ilicitude, como também se anotou).
Sendo certo que – importará também deixar claro logo inicialmente – não está em causa o dolo na atuação daqueles clínicos (quanto compreendemos, a Autora nem o alega, a não ser na anotação da suposta intercorrência, em que escreve que o médico omitiu essa circunstância consciente ou inconscientemente). E daí a plena aplicação daquele critério aferidor da culpa.
*
Aqui chegados, passemos então a escalpelizar o conceito de leges artis.
As designadas “leges artis” constituem um conjunto disforme de regras; i. e., tanto podem estar escritas como não escritas. Em todo o caso, quando referidas ao modo de execução em concreto de certo tratamento, serão normalmente regras de ordem técnica (mas também poderão ser regras de ordem jurídica, por exemplo, quanto aos deveres que decorrem do código deontológico e da própria lei no sentido de garantir o consentimento informado, garantir o registo clínico de todos os eventos, etc...).
Assim, as leges artis, escritas ou não, constituem regras da medicina aceites e seguidas no universo da especialidade – cf. acórdão do STJ de 15.12.2020, proferido no processo n.º 765/16.8T8AVR.P1.S1. Sendo certo que, quando não escritas, são métodos ou procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de atuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazes – cf. acórdão do TCA Sul de 05.05.2016, proferido no processo n.º 08411/12, parafraseando acórdão do colendo STA de 09.10.2014, proferido no processo n.º 0279/14.
Noutros termos: “A observância das leges artis consiste na obediência às regras teóricas e práticas de profilaxia, diagnóstico e tratamento, aplicáveis no caso concreto, em função das características do doente e dos recursos disponíveis pelo médico” – cf. acórdão do TCA Norte de 18.09.2020, proferido no processo n.º 00063/15.4BECBR.
Um erro médico será, portanto, e em primeiro lugar, uma violação das leges artis aplicáveis no caso concreto. Por isso, como afirmado no acórdão do TR de Lisboa de 13.05.2021, proferido no processo n.º 25550/15.0T8LSB.L1-2, “o erro pode ser cometido por imperícia, imprudência ou negligência.”
Tendo por base o exposto, no caso concreto temos então que, em suma, a Autora funda o alegado erro médico em três vertentes: a primeira, e mais relevante, a intercorrência na cirurgia, i. e., a perfuração do intestino por ato positivo (não intencional, segundo se depreende) do segundo réu (entretanto, assim não se verificou a autoria da cirurgia); a segunda, o erro na concessão da alta; a terceira, a não prestação dos cuidados devidos no sentido de ser retirada a colostomia.
Cabendo à Autora demonstrar a ilicitude na sua primeira vertente – ou seja, a objetiva, decorrente da violação das leges artis – constata-se que tal não ocorreu.
Com efeito, e desde logo, ficou provado que nem sequer foi o então indicado como segundo réu quem realizou a histerectomia. Em todo o caso, o que se sabe é que devido a essa intervenção veio a verificar-se o rompimento ou perfuração do intestino da Autora – facto provado 15. Mas não se provou, por outro lado, que essa perfuração ou rompimento do intestino se tenha ficado a dever a ato positivo ou negativo da cirurgiã que realizou a cirurgia – facto não provado em B).
De salientar que, como qualquer intervenção cirúrgica, ficou provado que também a laparoscopia não é alheia a riscos que derivam da própria intervenção, pese embora apresente uma taxa reduzida de complicações – facto provado em 9. Nem sempre, por isso, a complicação pós-operatória fica a dever-se a qualquer comportamento ativo ou omisso da equipa médica; ou, noutro sentido, a simples verificação de um evento adverso não significa que tenha existido atuação segundo um grau de diligência inferior ao devido.
Também não se demonstrou nestes autos qualquer erro aquando da alta médica que foi dada à Autora em 29/04/2013. Por outro lado, os factos provados permitem afirmar que, quando a Autora recorreu ao serviço de urgência do réu Centro Hospitalar, apresentando, aí sim, sintomas reveladores de algum tipo de problema, foram-lhe prestados todos os cuidados ao nível de deteção do problema e da sua solução, acautelando de forma adequada o risco para a vida da Autora. Neste sentido, a assistência hospitalar prestada revelou-se apropriada, célere e tecnicamente fundada.
Seguidamente, também não ficou demonstrado nestes autos que o réu Centro Hospitalar jamais tenha proposto ou proporcionado à Autora a realização de cirurgia para a reconstrução do trânsito intestinal, no que se poderia afirmar a omissão do tratamento devido, em ordem à reposição possível do estado de saúde da Autora – factos não provados das alíneas H), I) e J).
Portanto, aquilo que, à luz do regime exposto e dos factos provados, se pode concluir é que não ficou demonstrada factualmente qualquer ilicitude na conduta dos médicos do réu Centro Hospitalar. Ou, noutros termos, não é possível afirmar a violação das leges artis por parte dos médicos do réu.
Não se pode ter por verificada, portanto, a ilicitude do seu ponto de vista objetivo (i. e., a violação das leges artis). Tanto seria suficiente para julgar a ação improcedente.
Daquilo que vem de dizer-se, e sem prejuízo da constatação do não preenchimento dos requisitos cumulativos subjacentes à responsabilidade civil extracontratual, sempre se dirá que os factos apurados não permitem afirmar qualquer culpa por parte dos serviços do réu Centro Hospitalar.
Também neste caso, era à Autora que incumbia demonstrar não apenas que a lesão durante a cirurgia se deveu a ato positivo ou negativo do médico-cirurgião, mas também que estamos perante um erro cometido por imperícia, imprudência ou negligência. Com efeito, ao contrário do que sucederia no regime da responsabilidade civil contratual, aplicável no âmbito do regime privatístico (em que a Autora teria de provar, apenas, a ilicitude, beneficiando, depois, de uma presunção de culpa, nos termos do art.º 799.º do Código Civil, passando a incumbir ao devedor da prestação a prova de que a ocorrência não lhe é imputável – cf., por exemplo, o acórdão do STJ de 23/03/2017, proferido no processo n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1), no caso da responsabilidade extracontratual, e na falta de qualquer presunção legal, a Autora continua onerada com o ónus de demonstrar todos os requisitos.
Sucede que, e como adiantado, também neste caso não há demonstração de factualidade que nos permitisse estabelecer o nexo de censura ou subjetivo ao autor da suposta (mas também não provada) lesão. Ou seja, como a própria intervenção cirúrgica tem – como a generalidade de qualquer tratamento – riscos que lhe são próprios e inerentes (uma cirurgia é sempre, por definição, a violação da integridade física de alguém, por envolver a lesão do corpo), de um resultado ou evento adverso não pode simplesmente presumir-se que há culpa do médico (como sucederia no regime da responsabilidade contratual, desde que provada a ilicitude, nos termos expostos).
Acontece que, no caso concreto, a prova que existe é a de que todos os procedimentos cirúrgicos foram cumpridos, nomeadamente ao nível da contagem de material, da verificação do campo cirúrgico e cumprimento dos respetivos protocolos – facto provado 11. Ou seja, tanto quanto se tem por demonstrado, os médicos do réu Centro Hospitalar atuaram em obediência às leges artis.
Mais, é preciso também considerar que consta como achado operatório que o útero da Autora era aumentado de volume com cerca de 12 cm, com mioma intramural deformando a parede lateral direita – facto provado 13. O que indicia no sentido da hipótese de um rompimento espontâneo do intestino, decorrente da simples remoção do útero que, por aumentado, ocupava mais espaço do que seria normal.
Também não existe prova alguma quanto a factos que nos permitissem afirmar que o cirurgião que executou a histerectomia atuou sobre o intestino, como sucederia no caso de, por exemplo, na cirurgia de colostomia serem encontrados no local fios de sutura ou detetados cortes por lâmina no intestino. Nada disso consta.
Assim sendo, não é possível, a partir dos factos provados, afirmar qualquer imperícia (ou seja, falta de habilidade, nomeadamente por não ser aplicada a técnica que o agente sabia ou devia saber), imprudência (precipitação ou lapso da adoção das atitudes esperadas) ou negligência (falta de cuidado).
Não se demonstrou, igualmente, qualquer culpa no que respeita à alta da Autora após a primeira intervenção, nem qualquer omissão (intencional ou não) na proposta de tratamento de reposição do trânsito intestinal.
O mesmo é dizer que, além de não se poder afirmar a ilicitude logo na sua primeira dimensão – objetiva – também não existe factualidade provada que nos possa permitir a afirmação de qualquer culpa, i. e., censurar o réu Centro Hospitalar pela conduta dos seus profissionais.
Assim, e porque, como se disse, os pressupostos inerentes à responsabilidade civil extracontratual são de preenchimento cumulativo, a não verificação dos dois pressupostos acima enunciados conduz à improcedência da presente ação administrativa, com a consequente absolvição do réu do pedido – como se decidirá. »
Conforme se pondera no acórdão do STA, proferido no Processo 0982/03: “(…) A lei não se basta com a produção causalmente adequada da ofensa dos direitos de terceiros ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses (art.3º do DL 48 051, de 1967.11.21). Exige a infração de regras técnicas e/ou do dever geral de cuidado, como dimensão ineliminável de um comportamento ilícito, significando que a ilicitude não está centrada exclusivamente no resultado danoso - ilicitude de resultado – e que, igualmente, está sempre na dependência do desvalor de um determinado comportamento – ilicitude de conduta (vide, neste sentido, na doutrina GOMES CANOTILHO, RLJ, Ano 125º, p. 84, MARCELO REBELO DE SOUSA, “ Responsabilidade dos Estabelecimentos Públicos de Saúde: Culpa do Agente ou Culpa da Organização? “, in “Direito da Saúde e Bioética”, ed, AAFDL, 1996, p. 172 e MARGARIDA CORTEZ, “Responsabilidade Civil da Administração por Atos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado”, pp. 50/53 e na jurisprudência deste Supremo Tribunal, por exemplo, o acórdão de 1998.03.17 – recº nº 42 505). Posto isto, podemos concluir que na responsabilidade civil extracontratual, por acto cirúrgico ilícito, o desvalor da ação do agente - a violação das leges artis ou do dever geral de cuidado – é um dos pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar. (…)”.
Como bem observa VERA LÚCIA RAPOSO - in “Do ato médico ao problema jurídico. Breves Notas sobre o Acolhimento da Responsabilidade Médica Civil e Criminal na Jurisprudência Nacional”, Coimbra, 2015, pág. 17- : «A ilicitude da atividade médica não resulta necessariamente de violação da lei, do contrato, e nem mesmo do interesse de outrem, mas sim da violação das regras próprias da prática médica, consagradas nos mais diversos locais». Note-se que no domínio da responsabilidade civil médica, «só existe falta médica quando o médico viola, cumulativamente, uma lei da arte e o dever de cuidado que lhe cabe, e assim se afasta daquilo que dele é esperado naquele caso (o que, no mundo anglo-saxónico, é conhecido como common practises”)».«Noutros casos a falta médica não radica no ato praticado – aquele resultado nefasto pode até ser considerado um dos riscos possíveis e inevitáveis do ato médico, ou uma consequência que no caso concreto não se ficou a dever a uma falta do agente – mas sim na ausência do subsequente ato que corrigiria o resultado lesivo».
De resto, o entendimento que tem seguido pela doutrina e pela jurisprudência administrativa que acabamos de enunciar, nos termos do qual, a ilicitude terá de radicar na violação pelo médico da leges artis própria da sua atividade e/ou na violação do dever geral de cuidado, não deixa de se mostrar conforme com a circunstância de, no ato médico, o prestador do ato não se obrigar a curar o doente da patologia de saúde que o afeta, mas sim a prestar-lhe tratamento adequado para essa patologia, mediante observância diligente e cuidada das regras da ciência e da arte médicas (leges artis), porquanto a prática da medicina envolve, em regra, uma natureza complexa e aleatória derivada da própria complexidade dos sistemas psicossomáticos humanos, a par do estado e desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis e, nessa medida, a obrigação de prestar o ato médico configura-se, não como uma obrigação de resultado, mas de meios, em que o médico se obriga tão só a diligentemente, atento o conhecimento científico e o desenvolvimento da arte médica, a prestar o tratamento médico adequado ao doente- cfr. Ac. STJ. de 23/03/2017, Proc. 296/07.7TBMCN.P1.S1, in base de dados da DGSI.
Como ensina Almeida Costa- in “Direito das Obrigações”, 11ª ed., Almedina, pág. 1039-, “as obrigações de meios” são aquelas em que o devedor se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa atividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”, pelo que, sendo assim, a ilicitude nunca poderia resultar do ato médico praticado ou omitido ter tido como consequência a ofensa dos direitos subjetivos do doente ou de disposições legais destinadas a proteger os interesses destes, mas apenas pode derivar da circunstância do médico não ter agido de acordo com a legis artis próprios da sua arte (profissão) e do estado de desenvolvimento desta ou ter infringido o dever geral de cuidado.
Logo, deriva do que se vem dizendo que para se aferir do requisito da ilicitude é necessário que, no caso, a Autora tenha alegado e provado factos com poder persuasivo bastante para num juízo corrente de probabilidade firmar o convencimento de que o resultado danoso verificado na sua pessoa foi antecedido de gestos clínicos e/ou cirúrgicos dos serviços do Réu praticados ou omitidos com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou do dever geral de cuidado, próprios da atividade médicacfr. Ac. STA de 16/01/2014, Proc. 0445/13, in base de dados da DGSI..
No caso em análise, a Autora não provou que a cirurgiã que efetuou a efetuou a histerectomia não observou as leges artis, resultando antes demonstrado que a referida cirurgia decorreu sem quaisquer intercorrências, e que todos os procedimentos médicos foram cumpridos.
O erro médico só existe quando o médico viola, cumulativamente, a leges artis e o dever de cuidado que lhe cabe e pode ser cometido por:(i)imperícia ( impreparação: fazer mal o que deveria ser feito de acordo com a leges artis);(ii)imprudência (fazer o que não consta da leges artis; (iii)negligência ( deixar de fazer o que a leges artis impunha que se fizesse)- cfr. João Carlos Gralheiro, in “O ato médico é uma empreitada?”. 2.ª edição, Edições Esgotadas, pág.34.
Termos em que se impõe julgar improcedente o recurso interposto quanto ao julgamento de direito, e confirmar a sentença recorrida, com a consequente absolvição do apelado dos pedidos formulados pela Recorrente.
**
IV-DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
*
Custas pela Apelante (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
*

Porto, 21 de abril de 2023

Helena Ribeiro
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa