Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00292/24.0BECBR-S2
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/10/2025
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:TIAGO MIRANDA
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL;
Sumário:
I – Se o critério, quer da admissão, quer da graduação reside na proposta em si mesma, isto é, em ela satisfazer objectivamente os condições e termos especificados no caderno de encargos, e não na capacidade do concorrente para “convencer” o júri de que assim é, então não é inútil nem dilatória, antes se pode revelar decisiva, a diligência de prova pericial cujo objecto resida em se apurar se determinada proposta satisfaz os termos e ou as condições constitutivas do objecto do concurso.

II - Se as questões de facto que se colocam são de natureza científica e ou técnica, nenhuma prova se não a pericial pode ser produzida sobre elas. A prática corrente de se aproveitar os conhecimentos especializados de uma testemunha para produzir prova sobre factos cujo conhecimento os requer não pode ser acalentada, pois viola o artigo 388º do CC.

III - Na medida em que se referir a factos integrantes da proposta, designadamente os factos em que se analise ela atender ou não atender a todos ou determinados requisitos funcionais exigidos pelo programa do concurso, a determinação da perícia não interfere com a separação de poderes nem com as atribuições da Recorrente enquanto entidade adjudicante.

IV - Precisamente porque não se destina a responder sobre a avaliação das propostas, mas apenas sobre os factos de que depende a proposta ser admitida ou excluída e avaliada, a perícia tão pouco pode resultar na desconsideração de elementos avaliativos invocados pelo júri no relatório. Independentemente de a correcção de um pressuposto de facto poder revelar um consequente erro na avaliação, objecto da perícia é apenas facto, não a avaliação que dele possa ter feito o júri.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I - Relatório
Unidade Local de Saúde ..., E.P.E., Ré na acção em epígrafe, que tem por objecto a anulação judicial da deliberação do seu Conselho de Administração, de 18/04/2024, que adjudicou à aqui contra-interessada, [SCom01...] Lda, a aquisição de uma aplicação informática de gestão de tempos de trabalho e gestão de assiduidade, interpôs recurso autónomo de apelação relativamente ao despacho saneador da Mª Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 8 de Outubro de 2024 que, deferindo requerimento de prova da Autora [SCom02...], LDA, determinou a realização de Prova Pericial sobre os quesitos discriminados desde os nºs 1 a 26 do despacho recorrido.

Rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:
«CONCLUSÕES:
1. O recurso submetido à mui douta e criteriosa apreciação de Vossas Excelências, vem interposto do despacho saneador proferido em 1ª instância pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em 07.10.2024, o qual, entre outras questões, entendeu ser de admitir a realização da perícia requerida pela A., limitando-se o objecto do presente recurso a esse segmento decisório.
2. A A., ora Recorrida, vem requerer, em suma, que seja realizada uma perícia que tenha por objecto a solução informática por si proposta, visando determinar se a mesma permite atingir plena e integralmente os 26 requisitos funcionais exigidos no presente concurso público.
3. O que, salvo melhor opinião, é completamente desprovido de sentido.
4. Recorda-se que, no seguimento do estabelecido no Ac. do TCAN de 10.03.2023, confirmado pelo Ac. do STA de 07.09.2023, o júri do concurso deliberou “emitir um novo relatório final devidamente fundamentado, com o objectivo de proceder à avaliação e graduação das concorrentes que devem permanecer (…)”
5. Entendendo, ainda, e com vista à emissão desse mesmo relatório, ser necessário proceder a uma nova demonstração das respectivas soluções informáticas, dado existirem "dúvidas quanto aos diferentes níveis de implementação dos requisitos funcionais da solução propostas (…)”
6. Tratando-se esta de uma prerrogativa prevista e tutelada no art.º 13.° do programa do Concurso, a qual foi devidamente comunicada a ambas as candidatas, sem que tenha sido colocada qualquer oposição à sua realização ou aos moldes em que decorreu.
7. Acresce que, em momento algum, foi colocada qualquer limitação objectiva aos requisitos abrangidos pela apresentação, pelo que todos os 26 requisitos funcionais careciam de demonstração.
8. A demonstração realizada pela Recorrida teve lugar a 22.02.2024, vindo a entender o júri que a mesma não logrou demonstrar satisfatoriamente que a sua solução cumprisse os 26 requisitos, ou, pelo menos, que cumprisse em moldes que justificassem uma pontuação mais elevada.
9. Não se alcançando em que medida pode o Tribunal recorrido decretar a realização de uma perícia com os contornos estabelecidos no despacho recorrido.
10. Os quais desconsideram completamente a demonstração realizada e os demais elementos de prova que constam do procedimento concursal.
11. Dando-se por assente que, inexoravelmente, deve ser tida em conta a demonstração já realizada e os elementos que daí resultaram, destacadamente a acta n.° 11 e o relatório anexo à mesma, nada mais se poderá concluir a não ser que a realização da perícia é manifestamente desnecessária e dilatória.
12. Ao contrário do que entendeu o despacho saneador, em causa estão matérias que exigem conhecimentos específicos e especializados, exigindo a convocação de critérios técnicos e valorações subjectivas que cabem na margem da livre apreciação do júri e da discricionariedade técnica da Administração, a qual, conforme a mais alta e prestigiada jurisprudência, é jurisdicionalmente insindicável.
13. Não se encontrando presente qualquer causa justificativa e excepcional da sindicabilidade do acto, designadamente qualquer erro grosseiro, como vagamente alega a Recorrida.
14. Ainda que assim o fosse, tão-só se reforçaria a desnecessidade da prova pericial, dado que, por definição, o erro grosseiro seria tão evidente que o Tribunal conseguiria, pela sua mão, proceder à sua detecção e correcção.
15. Mais a mais, da referida acta n.° 11 do júri — nunca impugnada ou colocada em causa — resulta toda a fundamentação e explicitação do iter avaliativo efectuado, bem como a explicitação das conclusões que sustentam a pontuação atribuída, de uma forma clara, evidente e elucidativa.
16. A qual pode ser analisada por este Tribunal, encontrando-se habilitado, por si só, a sindicar — se assim se entender possível —, todas as ponderações feitas e os motivos da pontuação atribuída a cada um dos pontos e a cada uma das propostas.
17. Podendo essa mesma fundamentação, ainda, ser corroborada e densificada pelo recurso à prova testemunhal e à audição dos intervenientes presentes à data da realização da demonstração, com conhecimento directo dos factos.
18. Não obstante, caso assim não se entenda, cumpre apontar que nunca uma eventual perícia poderá ter por objecto a solução informática stricto sensu, mas sim se a Recorrida, aquando da sua apresentação de 22.02.2024, logrou demonstrar cabalmente que a solução proposta cumpria os requisitos exigidos.
19. que nunca poderá ser alcançado por uma perícia com os contornos estabelecidos no despacho saneador, desde logo por omitir qualquer tipo de quesito que incida exactamente sobre essa questão.
20. Considerando que, naturalmente, é impossível garantir a repetição exacta da demonstração de 22.02.2024 e do aí sucedido, tal perícia, forçosamente, terá de recair sobre o relatório anexo à atá n.° 11, redigido pelo júri após a sobredita apresentação, bem como sobre a prova testemunhal que se venha a produzir.
21. 0 que o Tribunal poderá fazer por mão própria.
22. Acresce, ainda, que mediaram mais de 7 meses desde a realização dessa mesma demonstração, pelo que nunca poderia ser garantido que a solução agora existente é a mesma que existia àquela data.
23. Termos em que, além de a perícia se demonstrar patentemente inútil à prova documental carreada para os autos e à prova testemunhal que pode ser produzida, sempre se demonstraria inadequada caso se realizasse nos moldes estabelecidos no despacho saneador.
Pelo exposto, o despacho recorrido - ao deferir a realização da perícia nos moldes em que o fez - é manifestamente ilegal, porquanto:
25. Viola claramente o princípio da imutabilidade das propostas,
26. Constitui uma clara ingerência em aspectos discricionários e altamente técnicos do júri,
27. Desconsidera elementos avaliativos preponderantes, sem os quais será impossível sindicar o racional levado a cabo pelo júri.
28. Situação essa que jamais poderá ser permitida por este Tribunal.
Nestes termos e nos melhores de Direito, a Recorrente está convicta de que V/Ex.ªs, Venerandos Juízes Desembargadores, apreciando objectivamente o presente recurso e subsumindo-o nos comandos legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de o julgar totalmente procedente:
a) revogando a decisão que deferimento da realização da prova pericial, substituindo-a por outra que peremptoriamente indefira a sua realização, conforme art. 476.°, n.° 1, a contrario, do CPC, aplicável ex vi do art. 90.°, n.° 1 e 102.°, n.° 1 do CPTA, ou caso se decida manter o despacho recorrido, b) que ordene a inclusão do seguinte quesito: com base em todas as informações e documentos carreados para os autos, conseguiu a candidata [SCom02...] cabalmente demonstrar, in loco, na data da sua apresentação, que a sua solução informática conseguia cumprir e executar os 26 requisitos funcionais exigidos pelo programa do concurso?”
Só assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!»

A Contra-Interessada respondeu à alegação, concluindo, por manifesta confusão com o objecto do outro recurso autónomo interposto no mesmo processo, nos seguintes termos:
«CONCLUSÕES:
1. A matéria de facto constante da mui douta Decisão recorrida, encontra-se mui doutamente fundamentada, tendo sido bem apreciada toda a prova carreada para os autos, sendo a expressão fiel da verdade;
2. A mui douta Sentença fez uma correcta aplicação da Lei e do Direito.
3. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, a mui douta Sentença não merece qualquer censura.
4. Ao contrário do afirmado pelo Recorrente a douta Decisão em análise não padece de nenhum erro por realizar um desadequado enquadramento da situação factual controvertida.
5. Nos presentes autos, a recorrente não logrou demonstrar com probabilidade razoável, a ocorrência de danos/ prejuízos que justifiquem uma efectiva urgência na aquisição da aplicação informática, que Aquela pretende adquirir através do presente procedimento concursal, que imponha que esta deva fazer-se desde já
e, que, a Entidade Contratante, ora recorrente, não possa esperar pelo desfecho do contencioso pré-contratual que a opõe à recorrida.
6. A argumentação aduzida pela Recorrente à evidência fracassa, quando se verifica que , tendo o presente contencioso pré contratual se iniciado há já mais de 3 anos, apenas "agora", se "lembra" de invocar urgência na necessidade de adjudicação do procedimento em causa, ou mesmo, quando se verifica a sua evidente inércia ao longo do procedimento concursal, que por sua única e exclusiva responsabilidade não só se arrasta há mais de três anos, como também esteve parado mais de 7 meses, conforme bem é evidenciado na douta sentença recorrida.
7. Não existe qualquer risco de paragem/ paralisação na gestão de tempos de trabalho e gestão de assiduidade dos recursos humanos da recorrente, por causa da suspensão do acto de adjudicação em causa nesta acção, conforme a recorrente pretende, sem êxito, fazer crer.
8. A Recorrente continua a poder fazer a gestão dos tempos de trabalho e gestão de assiduidade dos seus trabalhadores, mantendo a aplicação informática em produção, como tem feito nos últimos anos, garantindo a prossecução das suas atribuições e responsabilidades legais e estatutárias.
9. A recorrente sabe que a sua decisão de adjudicação é ostensiva mente ilegal, e por isso pretende com o seu pedido de levantamento do efeito suspensivo do acto impugnado, criar uma situação dificilmente reversível, para evitar/impedir uma futura e mais que certa, adjudicação do contrato de aquisição da aplicação informática de gestão de tempos de trabalho e gestão de assiduidade à ora recorrida.
10. Não se verifica no caso sub judice que a não execução imediata do acto de adjudicação infligirá uma lesão especialmente avultada do interesse público pelo que deverá ser mantido o efeito suspensivo automático do acto impugnado.
11. Assim, deve confirmar-se "in tottum" a mui douta Decisão recorrida.
Termos em que, e nos melhores de direito, e como sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., confirmando a mui douta Decisão recorrida,
V. Exas. farão como sempre a
costumada
JUSTIÇA.»

II- Delimitação do objecto do recurso
A - Conforme jurisprudência pacífica, o âmbito do recurso é delimitado pelo objecto das conclusões das alegações, interpretadas em função daquilo que se pretende sintetizar, isto é, o corpo das alegações.

Posto isto, as questões que a Recorrente pretende ver apreciadas em apelação são as seguintes:

1ª Questão
A perícia admitida é desnecessária e dilatória porque o seu objecto já está provado nos autos, pois:
Em conformidade com o decidido no acórdão deste TCAN, proferido no processo nº 2162/21.4BEPRT em 10/3/23 e confirmado pelo acórdão de 7/9/23 do STA, foi realizada, ante o júri do concurso, em 22/2/2024, uma nova demonstração das soluções informáticas da proposta da recorrente e das demais admitidas, relativamente a cada um dos requisitos funcionais constantes do programa do concurso, tendo o júri concluído que a Autora não logrou demonstrar satisfatoriamente que a sua solução cumprisse todos os requisitos, ou, pelo menos, que cumprisse em moldes que justificassem uma pontuação mais elevada do que a que antes lhe fora atribuída, tudo conforme acta nº 12 e o relatório anexo à mesma?
De todo o modo, qualquer aspecto do seu objecto sempre poderia ser apreciado mediante a prova testemunhal?

2ª Questão
A perícia admitida é legalmente inadmissível, porque tem por objecto apreciações que são exclusiva atribuição da Ré, mediante o júri, no exercício da discricionariedade técnica?
A perícia serviria para o tribunal violar a separação de poderes, permitindo-se apreciar a proposta em substituição da Administração.
A realização da perícia desconsideraria elementos avaliativos preponderantes, invocados pelo júri no relatório anexo à acta nº 12.

3ª Questão
A aceitar-se a admissibilidade e a utilidade de uma perícia, a separação de poderes apernas permitiria uma perícia com o objecto de saber se a Recorrida logrou demonstrar, perante o júri, em, 22.2.24, que a sua proposta satisfazia todos os requisitos funcionais, o que é impossível fazer pois a demonstração já ocorreu?

4ª Questão
O despacho recorrido, ao determinar a perícia, viola o principio da imutabilidade das propostas?

III - Apreciação do objecto do recurso
Destaca-se, para a apreciação do mérito da parte recorrida do despacho em crise, os seguintes factos e ocorrências processuais:
1
Do programa do concurso acima referido constava, entre o mais, o seguinte:
“(…)
1. Só serão aceites e sujeitas a avaliação as propostas que satisfaçam todos os requisitos obrigatórios especificados no caderno de encargo.
2. A adjudicação do fornecimento será efectuada de acordo com o critério da proposta economicamente mais vantajosa, determinada pela modalidade de melhor relação qualidade-preço, sendo os seguintes os factores que densificam o critério de adjudicação:
a) Mérito técnico (MT) – 70%; (MT=Mérito Técnico resultante da verificação do cumprimento dos requisitos funcionais infra identificados (subfactores) e de acordo com o ficheiro excel (Anexo B) com a matriz de avaliação que faz parte integrante do caderno de encargos).
As respostas serão pontuadas de acordo com as regras seguintes: 0 pontos para nível de implementação/resposta AUSENTE, 3 pontos para nível de implementação/resposta PARCIAL e 5 pontos com nível de implementação/resposta TOTAL
NOTA: Em caso de dúvidas o júri em sede de avaliação de propostas poderá chamar os concorrentes para aferir em sede de demonstração das funcionalidades dos requisitos funcionais.
A pontuação no factor Mérito Técnico (MT) (até um máximo de 10) será obtida de acordo com a seguinte fórmula de cálculo:
(…)
– cf. ficheiro designado “Programa Concurso + Caderno de encargos.pdf”, pasta nº 3 do processo administrativo;
2
No dia 22/10/24, no âmbito do procedimento concursal acima referido, foi levada a efeito, perante o júri, uma sessão de demonstração, pelos ainda concorrentes, de que o objecto das respectivas propostas satisfazia as exigências dos 26 requisitos funcionais exigidos pelo programa do concurso, tudo conforme acta nº 12 das reuniões do Júri.
3
Nessa mesma data o júri emitiu o relatório anexo àquela acta, cujo teor no Processo administrativo aqui se dá como reproduzido.
4
Mediante a homologação deste relatório, a Recorrente adjudicou o contrato objecto do procedimento à contra-interessada, “[SCom01...] Lda”.
5
Em 14/5/2024 a Recorrida e Autora [SCom02...], LDA, apresentou no TAF de Coimbra a petição inicial da acção 292/24.0BECBR, cujo teor, naquele processo, aqui se dá por reproduzido, pedindo a anulação daquela adjudicação e requerendo, entre os mais meios de prova, a efectuação de uma perícia individual com o objecto de “saber se a solução informática apresentada pela Autora no presente concurso permite atingir plena e integralmente os 26 Requisitos Funcionais exigidos, com nível de implementação/resposta total, e presentes na Matriz de avaliação do Factor Mérito Técnico e constantes do Anexo B, do Caderno de Encargos, do Concurso Público em causa”.
6
Em 7/10/2024 a Mª Juiz a qua proferiu o despacho saneador, de cujo teor, por recorrida, se destaca a seguinte parte:
«Prova pericial
A Autora requereu a realização de perícia à solução informática que propôs em sede do concurso público, tendo enunciado a questão de facto que pretende ver esclarecida através da referida diligência.
Notificados para se pronunciar, querendo, sobre a perícia requerida pela Autora, a Ré e a Contra-interessada pugnaram pelo indeferimento da prova pericial requerida, tendo a Contra-interessada requerido, caso venha a ser determinada a realização de prova pericial, que o objecto da perícia seja corrigido, passando a abranger a lista de questões de facto por si elencadas.
Segundo o artigo 388.° do Código Civil, “a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem”.
Por sua vez, dispõe o artigo 410.° do CPC dispõe que “a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova’.
Cumpre apreciar e decidir.
No caso em apreço, de acordo com o programa do concurso (documento n.° 2 junto com a petição inicial e constante do PA), o critério de adjudicação é o da proposta economicamente mais vantajosa, sendo os seguintes os factores que densificam o critério de adjudicação:
i) Preço - 30%;
ii) Mérito Técnico — 70% (resultante da verificação do cumprimento de 26 requisitos funcionais, constantes do Anexo B que faz parte integrante do caderno de encargos, sendo as respostas pontuadas com 0 pontos para nível de implementação/resposta AUSENTE; 3 pontos para nível de implementação/resposta PARCIAL; e 5 pontos para o nível de implementação/resposta TOTAL), podendo o júri, em caso de dúvidas, chamar os concorrentes para aferir em sede de demonstração das funcionalidades dos requisitos funcionais, não existindo qualquer cotação autónoma para a demonstração em si.
Desde logo, cumpre salientar que, ao contrário do que defende a Ré, saber se uma aplicação informática preenche ou não os requisitos funcionais previstos no caderno de encargos, ainda que seja uma actividade que efectivamente pressupõe conhecimentos técnicos específicos, não se insere no âmbito da actividade discricionária da administração, sendo o alegado erro sobre os pressupostos de facto relativamente à avaliação das funcionalidades da aplicação proposta pela Autora sindicável judicialmente.
Acresce que, a perícia informática consubstancia um meio de prova idóneo à demonstração se a aplicação cumpre ou não as funcionalidades técnicas exigidas no concurso público em causa nos autos, tanto mais, num caso em que o mesmo júri, num primeiro momento, considerou que a aplicação informática proposta pela Autora cumpria plenamente todas as funcionalidades exigidas, tendo atribuído a cotação máxima de 10 valores ao mérito técnico dessa proposta e, num segundo momento, considerou que alegadamente a mesma proposta não permitia cumprir plenamente aquelas funcionalidades, avaliando o mérito técnico da proposta em 3,77 valores.
Atendendo a que a perícia em causa é necessária para efeitos de apreciação do invocado erro sobre os pressupostos de facto relativamente à avaliação das funcionalidades da aplicação proposta pela Autora, e considerando que o júri do concurso já considerou que a aplicação em causa cumpre integralmente os requisitos funcionais n.°s 8, 9,11,12 e 14, considera-se impertinente e dilatório que a perícia tenha por objecto a questão de saber se a aplicação proposta cumpre ou não as funcionalidades previstas nesses requisitos.
No que diz respeito aos demais requisitos funcionais, atenta a matéria alegada pelas partes e a documentação junta aos autos, entende-se que a realização da perícia não se mostra impertinente, nem dilatória, pelo que é a mesma admitida, em moldes singulares (artigo 467.°, n.° 1, do CPC, ex vi artigo 90.°, n.° 2, e 102.°, n.° 1, do CPTA).
Relativamente ao objecto da perícia, considerando a proposta da Autora e da Contra-interessada, à luz da matéria que se encontra controvertida nos autos, é o mesmo composto pelas seguintes questões:
Requisito 1)
A aplicação proposta pela Autora possibilita ou não a validação de um registo por dois dias quando os registos de entrada e saída ocorram em dias diferentes? Essa validação é automática?
Requisito 2)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não validar o registo biométrico dos trabalhadores afectos às equipas que realizam produção adicional interna, nos termos do regulamento para a realização de produção adicional?
Requisito 3)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não gerar alertas aos utilizadores em caso de ausência de registo biométrico e de incoerências nos planos de férias e de trabalho em consonância com a organização das estruturas de gestão e respectivas responsabilidades, nos termos do regulamento interno?
Requisito 4)
A aplicação proposta pela Autora tem ou não a capacidade de gerar alertas aos validantes que na data X do mês posterior (a parametrizar) ainda não tenham submetido a assiduidade dos seus trabalhadores?
A aplicação é ou não capaz de enviar emails automáticos para os validantes que ainda não tenham submetido a assiduidade de acordo com o parametrizado?
Requisito 5)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não elaborar planos de férias e gerir eventuais alterações a esse plano? A referida aplicação permite ou não visualizar férias pedidas, aceites e pendentes?
Requisito 6)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não validar a aprovação do trabalho suplementar (previsto vs. realizado) em consonância com os “workflow” das estruturas de gestão?
Requisito 7)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não consultar, editar, eliminar, criar novos dados e a visualização imediata ou consequente actualização até um máximo de 24 horas?
Requisito 10)
A aplicação proposta pela Autora possibilita ou não a gestão da escala de forma dinâmica relativamente ao gestor da escala / local de exercício / grupo profissional?
Requisito 13)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não que as escalas estejam visíveis entre si e apresentar consequentemente as indisponibilidades de cada trabalhador afecto a escalas distintas?
Requisito 15)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não a opção de transferência de trabalhadores entre equipas/serviços/outros?
Requisito 16)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não planear horários de trabalho (previsto vs. realizado) com respectiva simulação de custos (PNT (período normal de trabalho) + Trabalho suplementar)?
Requisito 17)
A aplicação proposta pela Autora tem ou não a capacidade de alertar para excedente de “plafond” de horas de trabalho suplementar por profissional e período de tempo, com acesso a parametrizar?
Requisito 18)
A aplicação proposta pela Autora incorpora ou não um plano de indisponibilidades? A referida aplicação permite ou não ao colaborador o registo de preferências de horário?
Requisito 19)
A aplicação proposta pela Autora gera ou não relatórios sobre saldo de horas, trabalho suplementar, prevenção, produção adicional, ausências (por tipo), de escalas para acertos relativos aos dias de trabalho efectivos? Esses relatórios podem ser exportados directamente em PDF e Excel?
Requisito 20)
A aplicação proposta pela Autora apoia ou não o sistema de validações do trabalho executado pelo SGRH (nomeadamente, com mapa de folhas de assiduidade por submeter e/ou submetidos com data de submissão; registos de assiduidade em folhas submetidas e/ou por submeter (incoerências); folhas submetidas com respectivas justificações por tipo de ausência (1,2,3); visualização das ausências por tipo (1,2,3) em simultâneo; cálculo de férias; gestão de férias; pesquisa imediata da folha de assiduidade mensal por colaborador e imprimível; contabilização dos tempos prestados em escala, nos termos da legislação em vigor/acordos colectivos de trabalho celebrados/regras institucionais; validação dos ficheiros de trabalho suplementar, a exportar para o RHV, em formato Excel e permitir comparar a média dos meses anteriores; integração de todo o trabalho programado, não extraordinário, no ficheiro relativo a complementos legais de forma a possibilitar ao RHV seleccionar os períodos que dão, ou não, direito a pagamento)?
Requisito 21)
A aplicação proposta pela Autora possui ou não um portal do colaborador, plataforma de comunicação interna, e bilateral, entre o colaborador e a hierarquia e/ou com o SGRH em ambiente web, para efeitos de consultas e pedidos?
A aplicação proposta pela Autora permite ou não um campo para observações registadas pelo trabalhador?
Requisito 22)
A solução proposta pela Autora disponibiliza ou não uma aplicação profissional com informação sobre horário mensal, trocas, disponibilidade de turnos pela chefia, submissão de faltas imprevistas, planos de férias, presenças, notificações, disponibilização de informação geral de Recursos Humanos (ex: documentação, legislação, FAQ - organizada por pastas especificas)?
Requisito 23)
A aplicação proposta pela Autora tem ou não uma funcionalidade que permite a consulta, afixação e arquivo de todas as notificações enviadas através da plataforma?
Requisito 24)
A aplicação proposta pela Autora possui ou não uma “interface” centralizada que reúne todas as tarefas pendentes, acessível logo após o início de sessão com atalhos directos para resolução das mesmas?
Requisito 25)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não diferenciar validações de escalas por serviço/equipa, podendo indicar se são críticas ou apenas alertas? A referida aplicação permite ou não definir regras para a validação das escalas, podendo gerar alertas quando incumpridas as referidas regras?
Requisito 26)
A aplicação proposta pela Autora permite ou não sincronizar a escala com o calendário?
Pelo exposto, nos termos do artigo 476.° do CPC, aplicável ex vi artigos 90.°, n.° 2, e 102.°, n.° 1, do CPTA, determina-se a realização de perícia singular, a qual tem por objecto as questões de facto acima enunciadas, não se admitindo as restantes questões indicadas pela contra-interessada e a questão elencada pela Autora, no que concerne aos requisitos funcionais n.°s 8, 9,11,12 e 14, por as mesmas se afigurarem irrelevantes para o apuramento da verdade, considerando os factos relevantes que permanecem controvertidos e os concretos requisitos funcionais previstos no caderno de encargos.
*
Considerando a especificidade da matéria em causa na perícia singular acima determinada, oficie à Ordem dos Engenheiros — Região Centro, solicitando-lhe, com a máxima brevidade possível, a indicação de engenheiro informático disponível para a realização da referida perícia.
Para melhor esclarecimento das questões a analisar, junte, para além do presente despacho, cópia da petição inicial e das contestações, bem como dos documentos juntos com a petição inicial e da atá n.° 11 constante do PA, a fls. 813 e 1008 do SITAF.
**
Audiência final:
Oportunamente, aquando da finalização da perícia determinada, designar-se-á data para a realização da audiência final.»

Posto isto, enfrentemos as questões acima expostas.

1ª Questão
A perícia admitida é desnecessária e dilatória porque o seu objecto já está provado nos autos, pois:
Em conformidade com o decidido no acórdão deste TCAN, proferido no processo nº 2162/21.4BEPRT em 10/3/23 e confirmando pelo acórdão de 7/9/23 do STA, foi realizada, ante o júri do concurso, em 22/2/2024, uma nova demonstração das soluções informáticas da proposta da recorrente e das demais admitidas, relativamente a cada um dos requisitos funcionais constantes do programa do concurso, tendo o júri concluído que a Autora não logrou demonstrar satisfatoriamente que a sua solução cumprisse todos os requisitos, ou, pelo menos, que cumprisse em moldes que justificassem uma pontuação mais elevada do que a que antes lhe fora atribuída, tudo conforme acta nº 12 e o relatório anexo à mesma?
De todo o modo, qualquer aspecto do seu objecto sempre poderia ser apreciado mediante a prova testemunhal?


Cumpre começar por esclarecer que não foi exactamente em cumprimento do determinado por este TCAN, no invocado acórdão, que o júri convocou os concorrentes para a demonstração mencionada. O acórdão apenas determinou a elaboração de novo relatório devidamente fundamentado. Para a elaboração desse relatório é que o júri deliberou, tal como lhe assistia fazer segundo o programa do concurso, proceder a tal diligência.
Posto isto:
Na primeira fundamentação que aduz para a alegação que subjaz a esta questão a recorrente parte do pressuposto mediato de que o critério para admissão e graduação das propostas consiste em ter ou não o concorrente logrado demonstrar que a sua proposta atende a todos os vinte e seis requisitos formulados no caderno de encargos.
Porém, não era, essa demonstração, parte integrante dos critérios da admissão nem dos da adjudicação. Na verdade, não é isso que consta do caderno de encargos, nem podia constar, porque a apreciação das propostas, quer quanto à sua admissão, quer quanto à sua graduação, é imperativamente uma atribuição do júri, enquanto órgão da entidade adjudicante: não pode ser deixada ao “dispositivo” dos concorrentes. Com isto não queremos dizer que estivesse vedado à entidade adjudicante preconizar essa sessão de demonstração da satisfação, por cada proposta, de todos os requisitos funcionais especificados no caderno de encargos. O que julgamos é que não é concebível, atento aquele poder/dever do Júri, deixar aos concorrentes o ónus de convencerem o Júri de que a sua proposta os satisfazia.
Se o critério, quer da admissão, quer da graduação reside na proposta em si mesma, isto é, em ela satisfazer objectivamente a condições e termos especificados no caderno de encargos, e não na capacidade do concorrente para “convencer” o júri de que assim é, então não é inútil nem dilatória, antes se pode revelar decisiva, a diligência de prova pericial cujo objecto resida em se apurar se determinada proposta satisfaz os termos e ou as condições constitutivas do objecto do concurso.
Como assim, quanto a esta primeira via de fundamentação da alegação correspondente, a resposta a esta questão é negativa.
Mas a recorrente alega ainda que a perícia é inútil porque as testemunhas indicadas, atentos os seus conhecimentos e habilitações científicas, poderão, em audiência, esclarecer as questões indigitadas.
Tão pouco aqui pode dar-se razão à Recorrente. Se as questões de facto que se colocam são de natureza científica e ou técnica, nenhuma prova se não a pericial pode ser produzida sobre elas. A prática corrente de se aproveitar os conhecimentos especializados de uma testemunha para produzir prova sobre factos cujo conhecimento os requer não pode ser acalentada, pois viola o artigo 388º do CC.
Pelo exposto, é negativa a resposta a esta primeira questão.

2ª questão
A perícia admitida é legalmente inadmissível, porque tem por objecto apreciações que são exclusiva atribuição da Ré, mediante o júri, no exercício da discricionariedade técnica?

Segundo a Recorrente, a perícia serviria para o Tribunal violar a separação de poderes, permitindo-se apreciar a proposta em substituição da Administração. Além disso, a realização da perícia desconsideraria elementos avaliativos preponderantes, invocados pelo júri no relatório anexo à acta nº 12.
Ao formular a alegação subjacente a esta questão, a recorrente parece não distinguir entre a avaliação das propostas, por um lado, e a sua apreciação no sentido de serem admitidas ou excluídas. Parece, também, não distinguir os pressupostos de facto de uma apreciação com a mesma decisão.
Na verdade, se julgamos irrebatível que a avaliação da proposta admitida é atribuição inalienável do júri, melhor, da entidade adjudicante, na qual, na medida em que relevar de alguma indeterminação, o Tribunal não se pode imiscuir, sob pela de usurpação de poder, já a apreciação dos termos da proposta, no sentido de se saber se esta corresponde ao preconizado objecto do contrato adjudicando, bem como a verificação dos pressupostos de facto, quer da admissão, quer da avaliação das propostas, tem de ser sindicável pelo Tribunal, enquanto matéria de facto que é.
O contrario resultaria em poder a Administração ou a entidade adjudicante inibir a impugnação judicial das suas decisões no procedimento, por fraudulentas que pudessem ser, mediante o impedindo da discussão dos seus pressupostos de facto.
Assim, na medida em que se referir a factos integrantes da proposta, designadamente os factos em que se analise ela atender ou não atender a todos ou determinados requisitos funcionais exigidos pelo programa do concurso, a determinação da perícia não interfere com a separação de poderes nem como as atribuições da Recorrente enquanto entidade adjudicante.
Precisamente porque não se destina a responder sobre a avaliação das propostas, mas apendas sobre os factos de que depende a proposta ser admitida ou excluída e avaliada, a perícia tão pouco pode resultar em desconsideração elementos avaliativos invocados pelo júri no relatório. Independentemente de a correcção de um pressuposto de facto poder revelar um consequente erro na avaliação, objecto da perícia é apenas o facto, não a avaliação que dele possa ter feito o júri.
É negativa, portanto, a resposta a esta segunda questão.

3ª questão
A admitir-se a utilidade de uma perícia in casu, a separação de poderes apernas permitiria uma perícia com o objecto de saber se a Recorrida logrou demonstrar, perante o júri, em, 22.2.24, que a sua proposta satisfazia todos os 26 requisitos funcionais, o que é impossível fazer pois a demonstração já ocorreu.
A recorrente não explicita qualquer fundamentação para a alegação que subjaz a esta questão.
De qualquer maneira ela refuta-se a si mesma, pois se se admite que tal perícia seria impossível, então não tem sentido alegar a sua admissibilidade, ou requerer a sua efectuação.
É negativa, portanto, a resposta a esta questão.

4ª Questão
O despacho recorrido, ao determinar a perícia, viola o principio da imutabilidade das propostas?
Embora integre as conclusões do recurso, esta questão não vem, nem nelas nem no corpo das alegações, explicitamente fundamentada.
Como assim, não carece de ser abordada: não se trata, verdadeiramente de uma questão.
O Tribunal, portanto, não se pronuncia sobre ela.


Conclusão
Do exposto resulta que o despacho que deferiu o pedido de produção de prova pericial não padece das ilegalidades que lhe aponta a Recorrente, pelo que o recurso improcede totalmente, indo confirmado o despacho recorrido.

Custas
As custas hão-de ficar a cargo da Recorrente, atento o seu total decaimento (artigo 527º do CPC).
Dispositivo
Assim, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal em negar provimento ao recurso.
Custas: pela Recorrente.
Porto, 10/1/2025

Tiago Afonso Lopes de Miranda
Maria Clara Alves Ambrósio
Ricardo Jorge Pinho Mourinho de Oliveira e Sousa