Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
| Processo: | 00181/23.5BEAVR |
| Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
| Data do Acordão: | 06/20/2025 |
| Tribunal: | TAF de Aveiro |
| Relator: | PAULO FERREIRA DE MAGALHÃES |
| Descritores: | ORDEM DOS MÉDICOS; PROCESSO DISCIPLINAR; PENA DISCIPLINAR DE CENSURA; APLICABILIDADE DA LEI N.º 38-A/2023, DE 02 DE AGOSTO; EMISSÃO DE ATESTADO FALSO; EXCEPÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI DE AMNISTIA; |
| Sumário: | 1 - Conforme se extrai do corpo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, e em torno da amnistia de infracções disciplinares, o legislador dispôs que a mesma deve ser aplicada se as infracções disciplinares, em suma, tiverem sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, se não constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei, e caso a sanção aplicável não seja superior a suspensão [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º do referido diploma legal]. 2 – Sendo certo que o Tribunal a quo podia aplicar a Lei da Amnistia como assim constante dos artigos 11.º e 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, na medida em que sempre essa aplicação tem de ser casuística, com ponderação dos termos e pressupostos de que depende a sua aplicação, temos que na situação em apreço nos autos, errou o Tribunal a quo no julgamento por si prosseguido, ao julgar que a factualidade imputada ao Autora ora Recorrido não é passível de ser subsumida em termos criminais e por pena superior a 1 ano ou multa até 120 dias, quando a actuação do Autor é/seria passível de procedimento criminal cuja pena abstractamente considerada é de prisão até 2 anos, ou de multa até 240 dias. 3 – Tendo subjacente o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, na medida em que que estamos perante uma infracção disciplinar que constituía simultaneamente um ilícito penal, e cuja moldura penal abstractamente considerada é de pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, e porque em face do cicunstancialismo apurado, a aplicação da Lei da Amnistia está excepcionada pelo legislador nesta situações, errou o Tribunal a quo no julgamento por si prosseguido, quando veio a julgar extinta a instância por julgar ocorrer uma inutilidade superveniente da lide. 4 – A instância não podia ser julgada extinta porquanto inexistia fundamento de tanto determinante, já que concorrente com a infracção disciplinar concretamente considerada, que foi determinante da aplicação da pena disciplinar de censura, está o ilícito criminal tipificado no artigo 260.º do Código Penal, devendo os autos prosseguir termos, que a final passará por saber se o acto administrativo deve ser expurgado da ordem jurídica, por via do conhecimento do mérito do pedido na sua vertente anulatória.* * Sumário elaborado pelo relator (art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil) |
| Votação: | Unanimidade |
| Meio Processual: | Acção Administrativa Comum |
| Decisão: | Conceder provimento ao recurso. |
| Aditamento: |
| Parecer Ministério Publico: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: I - RELATÓRIO ORDEM DOS MÉDICOS [devidamente identificada nos autos] Ré na acção que contra si foi intentada por «AA» [também devidamente identificado nos autos], inconformada com a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, por via da qual o Tribunal a quo, tendo julgado verificados os pressupostos previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto e, em consequência, declarou amnistiadas as infrações imputadas no âmbito do processo disciplinar n.º ...21, com a consequente extinção da responsabilidade disciplinar do Autor e cessação da execução da sanção aplicada e seus efeitos, e a final, julgou pela existência de uma situação de inutilidade superveniente da lide que conduz à extinção da instância, veio interpor recurso de Apelação. * No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem: “[…] CONCLUSÕES: I. Resulta da sentença de que se recorre que “(…) Nesta conformidade, consideram-se verificados os pressupostos previstos na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto e, em consequência, declara-se o A. amnistiado das infrações imputadas pela entidade demandada no âmbito do processo disciplinar nº ...21, com a extinção da responsabilidade disciplinar do autor e cessação da execução da sanção aplicada e seus efeitos (cfr. arts. 127º, nº 1 e 128º, nº 2 do Código Penal, mais tendo determinado a “(…) existência de uma situação de inutilidade superveniente da lide, que conduz à extinção da instância, ao abrigo do disposto no artigo 277º, al. e), do CPC (ex vi artigo 1º do CPTA).”. II. Sucede, que os pressupostos previstos na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, não estão verificados. III. O Recorrido, na qualidade de médico, foi condenado numa sanção de censura pela prática dos seguintes atos (cfr. fls. 23 a 26 e 54 a 69 do Processo Administrativo): a. Atestou um estado de doença não verificado durante a prestação de qualquer ato médico; b. Não fez constar do documento que o mesmo foi emitido a pedido do interessado; c. Declarou a existência de doença que desconhecia se tinha ou não existido; d. Atestou factos não constantes de qualquer registo existente na sua posse ou na posse da clínica; e. Emitiu um atestado de complacência. IV. A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto (Lei), estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1.º da Lei). V. No n.º 2, do artigo 2.º da Lei determina-se que “Estão igualmente abrangidas pela presente lei as: Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º. VI. Por seu turno, determina o artigo 6.º que “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”. VII. Ora, de acordo com o artigo 4.º da referida Lei “São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.”. (negrito e sublinhado da nossa autoria). VIII. No caso em apreço, a conduta do Recorrido é subsumível no crime de atestado falso, previsto e punido no artigo 260.º do Código Penal, com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, logo, constitui uma infração penal não amnistiada pela presente Lei. IX. Por esse motivo, ainda que a infração tenha sido praticada até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, e a sanção aplicada não seja superior a suspensão, esta (a infração disciplinar) constitui simultaneamente uma infração penal não amnistiada pela presente Lei, pelo que não estão verificados os pressupostos do artigo 6.º da Lei. X. Em virtude do exposto, a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não incorre em erro sobre os pressupostos de direito (mormente os pressupostos previstos na Lei para a amnistia da infração disciplinar praticada pelo Recorrido), motivo pelo qual, deverá a mesma ser revogada, determinando-se o prosseguimento dos autos. Nestes termos e nos demais de Direito, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a sentença proferida e determinando-se o prosseguimento dos autos. Assim se fazendo JUSTIÇA! […]” ** O Recorrido não apresentou Contra Alegações. * O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos. ** O Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional. *** Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir. *** II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que venha a declarar a sua nulidade, sempre tem de decidir [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA] “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.”, reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas. Assim, as questões suscitadas pela Recorrente e patenteadas nas conclusões apresentadas consistem, em suma e a final, em apreciar e decidir sobre se a Sentença recorrida padece de erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito. ** III - FUNDAMENTOS IIIi - DE FACTO No âmbito da factualidade considerada pelo Tribunal recorrido em sede da Sentença proferida, dela consta o que por facilidade, para aqui se extrai como segue: “[…] Cumpre, desde já, apreciar e decidir, considerando-se para o efeito a seguinte factualidade (com base nos documentos constantes dos autos e do PA remetido pela Entidade Demandada): A) Por decisão da Sra. Presidente do Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos, em 26/02/2021, na sequência de participação efetuada, foi aberto um processo disciplinar ao aqui autor, ao qual foi atribuído o n.º ...21 (Cfr. fls. 4 do processo administrativo); B) Em 10/05/2021, foi deduzida Acusação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e do qual se extrai a imputação de factos que se reportam a 30/12/2020, relacionados com a atividade de médico, e que consubstanciaram a violação dos deveres deontológicos consagrados nos artigos 44.º, n.ºs 1, 2 e 3, 45.º, n.ºs 1 e 2 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, atuação punível com a pena disciplinar de censura, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, al. b), e n.º3, e 16.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos (Cfr. fls. 24 a 26 do processo administrativo); C) Em 13/09/2021, o Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos, no âmbito do Processo Disciplinar n.º ...21, proferiu o acórdão, pelo qual deliberou aplicar ao aqui A. a pena disciplinar de censura, por violação dos deveres consagrados nos artigos 44.º e 45.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (Cfr. fls. 54 a 69 do processo administrativo); D) Em 24/06/2021, o A. apresentou recurso da decisão disciplinar identificada na alínea anterior, para o Conselho Superior (Cfr. fls. 85 a 89 do processo administrativo); E) Em 31/01/2023, o Conselho Superior da Ordem dos Médicos, deliberou negar provimento ao recurso interposto pelo A., mantendo a sanção disciplinar de censura decretada pelo Conselho Disciplinar Regional do Norte, no âmbito do Processo Disciplinar n.º ...21 (Cfr. fls. 108 a 134 do processo administrativo). […]” * Tendo subjacente o disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, procedemos à densificação das alíneas B), C) e E) do probatório, como segue: Ba) O “despacho de acusação” foi proferido pelo Relator em 10 de maio de 2021, do qual para aqui se extrai parte, como segue: “[…] DESPACHO DE ACUSAÇÃO Contra o Exmo. Senhor Dr. «AA», médico com a especialidade de Medicina Geral e Familiar, titular da Cédula profissional nº ...96, devidamente identificado nos autos, é deduzida acusação nos termos e com os fundamentos seguintes: 1. No dia 30/12/2020 o Exmo. Senhor Dr. «AA» escreveu e subscreveu o seguinte documento: “Atestado Após consultar o processo nesta clínica, informo que «BB», andou doente e impossibilitado de comparecer ao local de trabalho, nos seguintes dias: 22, 23, 24 e 25 de Setembro de 2020 02, 03, 04, 05 e 6, 27 de novembro de 2020 Por ser verdade, dato e assino” 2. O documento em causa foi escrito em papel timbrado da Clínica ... em [SCom01...] Lda.”, com sede na Avenida ..., em .... 3. No processo clínico da Clínica encontram-se registadas três consultas: a primeira em 16/10/2020, realizada por médico não identificado, a segunda e a terceira em 21/10/2020 e 30/12/2020, respetivamente, realizadas pelo aqui arguido, Senhor Dr. «AA». 4. Em nenhuma destas consultas está descrito relato clínico apto a sustentar qualquer situação de doença nas datas referidas no atestado de 30/12/2020, transcrito no n.º 1 supra. 5. Na consulta de 30/12/2020, o arguido registou mesmo ter sido o beneficiário do atestado a comunicar-lhe ter andando doente nas datas indicadas, mais tendo registado que o recurso à consulta se destinou precisamente a solicitar a emissão do atestado. […]” Ca) Do Relatório final em que se apoiou o Conselho Disciplinar para proferir o Acórdão de 13 de setembro de 2021, para aqui se extrai parte, como segue: “[…] [Imagem que aqui se dá por reproduzida] […]” Cb) Com amparo naquele Relatório final, o Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos proferiu o seguinte Acórdão: “[…] [Imagem que aqui se dá por reproduzida] […]” Ea) No dia 31 de janeiro de 2023, o Conselheiro-Relator do Conselho Superior da Ordem dos Médicos elaborou o relatório em que se apoiou esse órgão para prolacção do Acórdão de 31 de janeiro de 2023, do qual opara a qui se extrai parte, como segue: “[…] [Imagem que aqui se dá por reproduzida] […] […]” Eb) Com amparo naquele Relatório final, o Conselho Superior da Ordem dos Médicos proferiu o seguinte Acórdão: “[…] [Imagem que aqui se dá por reproduzida] […]” ** IIIii - DE DIREITO Está em causa a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, prolatada precedendo a audiência das partes, tendo subjacente o despacho datado de 15 de setembro de 2023. Por julgarmos com interesse para a decisão a proferir, para aqui extraímos esse despacho proferido pelo Mm.º Juiz de Direito, como segue: Início da transcrição “[…] A Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Conforme decorre do artigo 2º, nº 2, al. b), no seu âmbito de aplicação integram-se as sanções relativas a infrações disciplinares praticadas até às 00H00 de 19/06/2023, nos termos definidos no artigo 6º do presente diploma, o qual prescreve o seguinte: "São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar". Entendeu, assim, o legislador amnistiar, sem dependência da idade do infrator, todas infrações disciplinares praticadas até às 00H00 de 19/06/2023 que, por um lado, não constituam crime e, por outro, não sejam puníveis com sanção superior à da suspensão. Será este o caso dos autos, pelo que, afigurando-se-nos, deste modo, que a infração disciplinar sancionada pelo ato ora impugnado deverá considerar-se amnistiada, nos termos do disposto no artigo 6º da Lei nº 38-A/2023.Nesta conformidade, notifique as partes para se pronunciarem, no prazo de dez dias, quanto à aplicação do artigo 6º da Lei nº 38-A/2023 ao caso dos autos, bem como, quanto à (in)utilidade do prosseguimento da lide. […]” Fim da transcrição Notificados deste despacho, a Ré ora Recorrente nada disse, sendo que, por sua vez, o Autor ora Recorrido veio apresentar pronúncia, pela qual, em suma, declarou aderir ao nele expendido pelo Tribunal a quo, e que deviam os autos (judiciais e administrativos) extinguir-se por virtude da aplicação da indicada medida de graça. Como assim deflui da Sentença recorrida, o Tribunal a quo não conheceu do mérito do pedido formulado pelo Autor, por ter julgado, em suma, nada se opor/justificar à aplicação da amnistia prevista naquele diploma legal, ocorrendo dessa forma a cessação da pena e os seus efeitos, o que tornou assim inútil o prosseguimento da lide, para efeitos de discutir a legalidade da pena disciplinar aplicada no contexto do procedimento disciplinar. Neste conspecto, para aqui extraímos a essencialidade da fundamentação de direito que veio a ser aportada pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida, como segue: Início da transcrição “[…] O autor veio instaurar a presente ação administrativa com vista a obter a anulação da decisão de aplicação de sanção disciplinar de censura, no âmbito do processo disciplinar contra si instaurado em fevereiro de 2021. Todavia, já na pendência destes autos, foi publicada (e entrou em vigor) a Lei nº 38A/2023, de 2 de agosto, que veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Conforme decorre do artigo 2º, nº 2, al. b), no seu âmbito de aplicação integram-se as sanções relativas a infrações disciplinares praticadas até às 00H00 de 19/06/2023, nos termos definidos no artigo 6º do presente diploma, o qual prescreve o seguinte: "São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar". Entendeu, assim, o legislador amnistiar, sem dependência da idade do infrator, todas infrações disciplinares praticadas até às 00H00 de 19/06/2023 que, por um lado, não constituam ilícito penal não amnistiado pela citada Lei e, por outro, não sejam puníveis com sanção superior à da suspensão. Ora, no caso em apreço, é imputado ao A., pela Ordem dos Médicos, a prática de infrações disciplinares por violação de deveres profissionais em 2021, à qual corresponde a sanção máxima de censura. E, compulsado o teor do artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, afigura-se-nos que as infrações imputadas não foram enquadradas como sendo passíveis, em simultâneo, de constituir qualquer ilícito penal não amnistiado. Por outro lado, as infrações imputadas terão sido praticadas pelo A. até às 00H00 de 19/06/2023 e sem que seja aplicável o limite de idade, expressamente previsto apenas para as situações elencadas no nº 1 do artigo 2º da citada Lei. Por fim, a sanção aplicável, atento, desde logo, o enquadramento dado pela entidade demandada na decisão impugnada, não é superior à sanção de suspensão ou à de prisão disciplinar ou expulsão. Ademais, o A. aceitou expressamente a amnistia. Nesta conformidade, consideram-se verificados os pressupostos previstos na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto e, em consequência, declara-se o A. amnistiado das infrações imputadas pela entidade demandada no âmbito do processo disciplinar nº ...21, com a extinção da responsabilidade disciplinar do autor e cessação da execução da sanção aplicada e seus efeitos (cfr. arts. 127º, nº 1 e 128º, nº 2 do Código Penal). Face ao que, se conclui pela existência de uma situação de inutilidade superveniente da lide, que conduz à extinção da instância, ao abrigo do disposto no artigo 277º, al. e), do CPC (ex vi artigo 1º do CPTA). […]” Fim da transcrição Neste patamar. Da Sentença proferida vem interposto recurso de Apelação pela Recorrente, vindo referido, em suma, que os pressupostos previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, não estão verificados, porque a conduta do Recorrido é subsumível no crime de atestado falso, previsto e punido no artigo 260.º do Código Penal, com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, constituindo por isso uma infração penal não amnistiada pela referida Lei, e que por essa razão, ainda que a infração tenha sido praticada até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, e a sanção aplicada não seja superior a suspensão, que pro constituir a infração disciplinar simultaneamente uma infração penal não amnistiada por aquela Lei, que não estão verificados os pressupostos do artigo 6.º desse diploma legal, e assim, que o Tribunal a quo incorreu em erro sobre os pressupostos de direito previstos na Lei para a aplicação da amnistia da infração disciplinar praticada pelo Recorrido, e que deverá a mesma ser revogada, determinando-se o prosseguimento dos autos. Cotejadas as conclusões das Alegações de recurso apresentados pelo Recorrente, delas se extrai que o mesmo ancora o cerne da sua pretensão recursiva, no sentido de que a fundamentação de direito aportada pelo Tribunal a quo enferma de erro de julgamento em matéria de direito, em suma, porque não estavam reunidos os pressupostos que por si eram determinantes para efeitos de ser determinada a inutilidade superveniente da lide, e deste modo, a extinção da instância. Cumpre então apreciar e decidir. Em face do que está patenteado sob as conclusões das respectivas Alegações de recurso, e tendo presente a factualidade dada por assente nos autos, julgamos que assiste total razão à Recorrente. Vejamos pois, por que termos e pressupostos. Cotejada a Sentença recorrida, dela se extrai que em face dos perspectivados factos ilícitos imputados ao Autor ora Recorrido por parte da Ré ora Recorrente, e que foram objecto de processo disciplinar que correu termos no seio da Recorrente, que findou, em suma, pela aplicação da pena disciplinar de censura, o Tribunal a quo veio a delimitar, de forma simples, os termos pelos quais, como assim julgou, eram os suficientes para efeitos de encontrar uma solução jurídica que aqui fosse plausível, por consentânea com o direito por si convocado, e que se centrava, a final, na aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, e de outro modo, que em face do disposto no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, que as infrações imputadas ao Autor não foram enquadradas como sendo passíveis, em simultâneo, de constituir qualquer ilícito penal não amnistiado. Na base do seu julgamento estiveram os factos apurados no processo disciplinar, assim como a natureza da infracção disciplinar aplicada ao Autor ora Recorrido, e a final, a apreciação de que inexistia nos autos indício da concorrência de ilícito penal, na definição de base do seu âmbito objectivo e subjectivo de aplicação. Nessa medida, tendo por pressuposto que a infracção disciplinar patenteada nos autos não constituía simultaneamente ilícito penal, o Tribunal a quo julgou pela inutilidade da lide, por ter julgado não existir qualquer interesse no prosseguimento da acção, julgando assim extinta a instância, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC. Aqui chegados. Sendo a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, uma lei de amnistia, que não pode deixar de ser considerada uma providência de excepção, a mesma deve ser interpretada e aplicada nos seus precisos termos, sem que dela se possam fazer ampliações ou restrições que nela não venham expressas, não sendo admitida por isso o recurso a interpretação extensiva, restritiva ou analógica. Como se retira, sem esforço interpretativo adicional, do disposto no referido artigo 11.º, a Lei é imediatamente aplicável [Cfr. artigo 14.º] à amnistia de infracções disciplinares, por assim o ter dito de forma expressa o legislador, o que deriva a final em que a amnistia de infracções disciplinares, nos termos expressamente fixados pelo legislador é de aplicação imediata [reunidos que sejam os devidos requisitos], sem dependência de manifestação de vontade do visado, o que não significa, de todo o modo, que a lide deixe de ter utilidade e que a instância deva ser extinta. Conforme se extrai do corpo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, e em torno da amnistia de infracções disciplinares, o legislador dispôs que a mesma deve ser aplicada se as infracções disciplinares, em suma, tiverem sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, se não constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei, e ainda, que a sanção aplicável não seja superior a suspensão [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º do referido diploma legal], e não esteja prevista excepção em torno da sua aplicação. Em conformidade com o que assim resulta do probatório, incluindo o fixado por interposição deste Tribunal de recurso, na situação em apreço nos presentes autos resulta claro que tendo por referencial o tempo da imputada prática da infracção disciplinar [v.g., as datas em que ocorreram os factos, como assim patenteados no “atestado” emitido pelo Autor ora Recorrido em 30 de dezembro de 2020], por aí estaria a mesma a coberto da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto. Porém, dispôs ainda o legislador em torno da necessidade de perscrutar da existência de qualquer situação de exclusão da aplicação da amnistia [Cfr. artigos 4.º, 6.º e 7.º da referida Lei]. Nessa medida, a pena de censura aplicada ao Autor ora Recorrido, estaria efectivamente amnistiada, se os factos que lhe foram imputados e que foram objecto de instrução no processo disciplinar, não fossem eles também passíveis de enquadramento num tipo legal de crime, cuja pena aplicável não fosse superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa. Como assim decorre do patenteado nos autos, e assim levado ao probatório, o Autor ora Recorrido violou o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, assim como o Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos, pois que emitiu um atestado [como assim por si foi definido] que não tem correspondência com a realidade atestada. Como assim resulta do probatório, o Recorrido, enquanto médico e nessa qualidade, não actuou conforme assim lhe era legalmente imposto pelos artigos 44.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 45.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, assim como os artigos 14.º, n.ºs 1, alínea b), 3, e 16.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Médicos. A emissão do “atestado” por parte do Autor ora Recorrido, no exercício das suas funções de médico, constituiu assim um acto ilícito, cuja prática, em desconformidade com o respectivo regime jurídico, é violadora do ordenamento jurídico, e muito para além dos seus deveres profissionais e deontológicos, sendo passível de punição nos termos gerais de direito. Efectivamente, revertendo ao que se aprecia nestes autos, a factualidade apreciada e decidida pelo Recorrido em sede do processo disciplinar é também ela passível de ser subsumida no disposto no artigo 260.º do Código Penal, cuja epigrafe é atinente a Atestado falso. Neste patamar, em face do que vem patenteado no processo disciplinar, estando em apreço a prática de factos que não têm correspondência com a realidade, visando o estado de saúde de um outro cidadão e a pedido deste, julgamos que sendo a moldura penal abstractamente aplicável de pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias [Cfr. artigo 260.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal], pese embora os factos se reportarem a data anterior a 19 de junho de 2023, não cabe a situação na previsão do artigo 4.º, ex vi artigo 2.º, n.º 1 daquela Lei, e assim, não pode a infracção ser declarada amnistiada, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1 e 6.º, ambos da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto. Em suma, sendo certo que o Tribunal a quo podia aplicar a Lei da Amnistia como assim constante dos artigos 11.º e 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, na medida em que sempre essa aplicação tem de ser casuística, com ponderação dos termos e pressupostos de que depende a sua aplicação, temos que na situação em apreço nos autos, errou o Tribunal a quo no julgamento por si prosseguido, ao julgar que a infracção disciplinar em causa, pese embora ter sido disciplinarmente punida com a pena de censura, portanto, inferior à de suspensão, que não constituía ilícito penal não amnistiado pela citada Lei. Tendo subjacente o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, na medida em que que estamos perante uma infracção disciplinar que constituía simultaneamente um ilícito penal, e cuja moldura penal abstractamente considerada é de pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, e porque em face do circunstancialismo apurado, a aplicação da Lei da Amnistia está excepcionada pelo legislador nesta situações, errou o Tribunal a quo no julgamento por si prosseguido, quando veio a julgar extinta a instância por julgar ocorrer uma inutilidade superveniente da lide. Com efeito, a instância não podia ser julgada extinta porquanto inexistia fundamento de tanto determinante, já que concorrente com a infracção disciplinar concretamente considerada, que foi determinante da aplicação de pena disciplinar de censura, está o ilícito criminal tipificado no artigo 260.º do Código Penal, razão pela qual devem os autos prosseguir termos, que a final passará por saber se o acto administrativo deve ser expurgado da ordem jurídica, por via do conhecimento do mérito do pedido na sua vertente anulatória conforme peticionado a final da Petição inicial. De modo que, face ao que deixamos expendido supra, a pretensão recursiva do Recorrente tem assim de ser julgada procedente, devendo os autos baixar ao TAF de Aveiro para efeitos de ser conhecido do mérito dos autos, tendo subjacente a causa de pedir imanente ao pedido deduzido a final a Petição inicial, e no fundo, apreciar e decidir se padece a decisão impugnada de invalidade determinante da sua nulidade/anulabilidade. * E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO: DESCRITORES: Ordem dos Médicos; Processo disciplinar; Pena disciplinar de censura; Aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto; Emissão de atestado falso; Excepção de aplicação da Lei de Amnistia. 1 - Conforme se extrai do corpo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, e em torno da amnistia de infracções disciplinares, o legislador dispôs que a mesma deve ser aplicada se as infracções disciplinares, em suma, tiverem sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, se não constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei, e caso a sanção aplicável não seja superior a suspensão [Cfr. artigos 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 7.º do referido diploma legal]. 2 – Sendo certo que o Tribunal a quo podia aplicar a Lei da Amnistia como assim constante dos artigos 11.º e 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, na medida em que sempre essa aplicação tem de ser casuística, com ponderação dos termos e pressupostos de que depende a sua aplicação, temos que na situação em apreço nos autos, errou o Tribunal a quo no julgamento por si prosseguido, ao julgar que a factualidade imputada ao Autora ora Recorrido não é passível de ser subsumida em termos criminais e por pena superior a 1 ano ou multa até 120 dias, quando a actuação do Autor é/seria passível de procedimento criminal cuja pena abstractamente considerada é de prisão até 2 anos, ou de multa até 240 dias. 3 – Tendo subjacente o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, na medida em que que estamos perante uma infracção disciplinar que constituía simultaneamente um ilícito penal, e cuja moldura penal abstractamente considerada é de pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, e porque em face do cicunstancialismo apurado, a aplicação da Lei da Amnistia está excepcionada pelo legislador nesta situações, errou o Tribunal a quo no julgamento por si prosseguido, quando veio a julgar extinta a instância por julgar ocorrer uma inutilidade superveniente da lide. 4 – A instância não podia ser julgada extinta porquanto inexistia fundamento de tanto determinante, já que concorrente com a infracção disciplinar concretamente considerada, que foi determinante da aplicação da pena disciplinar de censura, está o ilícito criminal tipificado no artigo 260.º do Código Penal, devendo os autos prosseguir termos, que a final passará por saber se o acto administrativo deve ser expurgado da ordem jurídica, por via do conhecimento do mérito do pedido na sua vertente anulatória. *** IV – DECISÃO Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Social da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência: A) em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso de Apelação deduzido pela Recorrente Ordem dos Médicos; B) em revogar a Sentença recorrida; C) em determinar a baixa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância, para efeitos de aí serem prosseguidos os termos de processo que se mostrem devidos, em ordem a ser apreciada as invalidades apontadas à decisão impugnada atinente ao acto administrativo que determinou a aplicação ao Autor da sanção disicplinar de censura, se nada mais a tanto obstar. * Custas a cargo do Recorrido - Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC. ** Notifique. * Porto, 20 de junho de 2025. Paulo Ferreira de Magalhães, relator Isabel Costa Fernanda Brandão |