Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00667/21.6BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/19/2024
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:ROGÉRIO PAULO DA COSTA MARTINS
Descritores:ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO; INTEMPESTIVIDADE;
PRAZO; ACTO NULO; ACTO ANULÁVEL; FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO;
DIREITO A CONSTITUIR FAMÍLIA;
Sumário:
1. É intempestiva a acção de impugnação interposta para além do prazo de três meses a que alude o n.º2 do artigo 59º do Código de Processo nos Tribunais Administrativo, se os vícios imputados são os de falta de fundamentação do acto e de violação do direito à assistência da família, no caso a prorrogação do prazo para a colocação a título excepcional de um agente da PSP em local que lhe permita a assistência à esposa, em situação de depressão pós-parto.

2. No que diz respeito à falta de fundamentação, é entendimento pacífico o de que se trata de vício conducente à mera anulabilidade, face à regra geral de invalidade dos actos administrativos, consagrada no n.º1 do artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo.

3. Não se vislumbra como pode o acto impugnado, de não prorrogar o prazo de colocação a título excepcional, afectar o direito a constituir família por parte do interessado, (artigos 36.º, n.º 1, e 67.º, da Constituição da República Portuguesa e artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do Código de Procedimento Administrativo), dado que a tem constituída e não deixou de a ter constituída pelo acto impugnado que não tem qualquer virtualidade de a dissolver, formal ou materialmente.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

«AA» veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, de 19.11.2023, pela qual foi julgada procedente a excepção de intempestividade para a prática de acto processual e, em consequência absolvida a Entidade Demandada da instância, na acção administrativa que moveu contra o Ministério da Administração Interna para a declaração de nulidade do despacho da Senhora Comandante Superintendente da Polícia de Segurança Pública, datado de 23.03.2021.

Invocou para tanto, em síntese, que ao contrário do decidido não se verifica a caducidade do direito de acção dado que o acto impugnado padece de vícios que conduzem à sua nulidade.

O Ministério da Administração Interna contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

I. O Tribunal recorrido entendeu pela existência de uma excepção dilatória de caducidade do direito de ação, nos termos do art.º 89º, n.º 4, alínea k) do CPTA.

II. Com a devida vénia, o recorrente entende que existe gravíssimo erro de apreciação dos factos e do direito alegados;

III. Em síntese, o Director Nacional da PSP aceitou, em 25-032019, o pedido do Recorrente de colocação a título excepcional no Comando Metropolitano do Porto, durante o período de 8 meses, uma vez que a sua companheira sofria de uma grave depressão e encontrava-se grávida.

IV. O Recorrente solicitou, em 20-09-2019, a prorrogação de colocação a título excepcional.

V. O Recorrente solicitou novamente, em 25-05-2020 a prorrogação de colocação a título excepcional, desta vez por um ano, uma vez que o quadro clínico da sua companheira se agravou de forma drástica com a morte do pai dela.

VI. Ou seja, o prazo do novo pedido de prorrogação de colocação a título excepcional terminava em 24 de Julho de 2021.

VII. Sucede que, no dia 25 de Março de 2021, o Recorrente foi notificado para se apresentar no seu comando de origem (COMETLIS), no dia 5 (cinco) de abril de 2021, pelas 09h00.

VIII. Essa notificação não tinha nenhum tipo de fundamentação.

IX. O ato administrativo de ordenar o regresso antecipado do recorrente ao comando de origem, antes de terminar o prazo de colocação a título excecional é nulo, por padece da falta de fundamentação legal exigida, em virtude de se tratar um direito fundamental do recorrente?

X. No caso em apreço, o acto de ordenar o regresso antecipado do recorrente ao comando de origem, restringe um direito do recorrente (cfr. a) do n.º1 do artigo 152º do CPA), mais concretamente o direito fundamental da família previsto nos artigos 36º e 67º da Constituição da República Portuguesa.

XI. Ao contrário do que é afirmado na douta sentença, o direito à família é um direito fundamental de qualquer cidadão à luz dos artigos 36º, 67º e 26º, nº 2 da Constituição.

XII. O Tribunal Constitucional tem concluído que do disposto nos artigos 36.º, n.º 1, e 67.º, da Constitucional, decorre um dever do legislador de não coarctar ou obstaculizar, de forma desrazoável, a liberdade dos cidadãos em constituir família, dando amparo a todo o género de unidades familiares.

XIII. O legislador ordinário tem a obrigação constitucional de assegurar os mecanismos de proteção de todas as unidades familiares.

XIV. Por essa razão, o legislador ordinário consagrou no artigo 102º do Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública a protecção à família.

XV. Deste modo, a Recorrida deveria ter fundamentado a decisão de ordenar o regresso antecipado ao Comando Metropolitano de Lisboa, uma vez que a colocação a título excepcional apenas terminaria em 24 de Julho de 2021, pelo que o recorrente tinha a legal expectativa de ficar no Comando Metropolitano do Porto até essa data, por forma a estar mais presente junto da sua esposa, que padecia (e padece) de graves problemas de saúde mental.

XVI. Assim podemos concluir que, o ato administrativo de 25/03/2021 é nulo, por inexistência de fundamentação, uma vez que limita um direito legalmente protegido, ofendendo o conteúdo essencial de um direito fundamental – o direito à família.

XVII. Ou seja, a fundamentação do ato era condição indispensável, uma vez que estamos perante uma questão de um direito fundamental.

XVIII. No caso em apreço, aplica-se a exceção dos vícios dos atos administrativos, isto é, O vício de falta de fundamentação é suscetível de inquinar o ato impugnado de nulidade por falta de um elemento essencial, nos termos do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA.

XIX. Podendo concluir que o prazo para impugnação do acto administrativo nulo não está sujeita a prazo, nos termos do artigo 58.º, n.º1, do CPTA

XX. Nesta conformidade, inexiste a caducidade do direito de ação, pelo que o Tribunal recorrido deveria ter-se pronunciado sobre o mérito da ação, pelo que deverá ser ordenado o regresso dos autos à primeira instância para o Tribunal se pronunciar sobre o mérito da causa.
*

II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

A. O Autor é agente da PSP estando efectivo no Comando Metropolitano de Lisboa – facto admitido por acordo.

B. Com data de 27/01/2019, o Autor requereu ao Diretor Nacional da PSP, a sua colocação a título excecional no Comando Metropolitano do Porto, com o seguinte fundamento: “a minha companheira encontra-se diagnosticada com gravidez de risco clínico por depressão que a mesma sofre.” – cfr. fls. 2 a 10 do 1.º Volume do P.A.;

C. Por despacho de 13/03/2019, foi deferida a colocação a título excecional do Requerente no Comando Metropolitano do Porto pelo período de 8 (oito) meses, com fundamento na situação de gravidez de risco da sua companheira – cfr. fls. 13 e 14 do 1.º Volume do P.A;

D. Na sequência do despacho referido na alínea antecedente, o Autor iniciou funções no Comando Metropolitano do Porto em 25/03/2019 – facto admitido por acordo;

E. O período de 8 meses referido na alínea C) terminou em 25/11/2019 – facto admitido por acordo;

F. O Autor e «BB» são pais de «CC», nascida no dia ../../2019 - cfr. documento a fls. 28 dos autos;

G. Com data de 20/09/2019, o Autor requereu ao Diretor Nacional da PSP, a prorrogação da sua colocação a título excecional no Comando Metropolitano do Porto, com o seguinte fundamento: “venho solicitar a prorrogação do meu título excepcional uma vez que a minha companheira ainda se encontra com uma depressão grave, tendo agora a agravante de termos um bebé com dois meses de idade. Algo que acarreta cuidados permanentes.” – cfr. fls. 4 a 15 do 2.º Volume do P.A.; doc. n.º ... da p.i.

H. Na sequência do pedido a que se alude na alínea antecedente, foi iniciado procedimento administrativo e elaborado o relatório social que consta a fls. 38 a 41 do 2.º Volume do P.A., cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido;

I. Com data de 19/05/2020, o Autor requereu ao Diretor Nacional da PSP, a prorrogação da sua colocação a título excecional no Comando Metropolitano do Porto, com o seguinte fundamento: “venho solicitar a prorrogação do meu título excecional uma vez que a minha companheira ainda se encontra com uma depressão grave, tendo agora a agravante de termos um bebé com 11 meses de idade. Algo que acarreta cuidados permanentes.” – cfr. fls. 55 a 68 do 2.º Volume do P.A.

J. Em 25/03/2021, o Autor foi notificado para se apresentar no seu comando de origem no dia 05 de abril de 2021, pelas 09H00, conforme despacho da Exma. Senhora 2° Comandante Superintendente ...25, «DD», datado de 23.03.2021. – cfr. documento n.º ... da p.i. ; facto não controvertido (cfr. art. 1.º da petição inicial).

K. A petição inicial que motiva os presentes autos foi deduzida em juízo em 13.10.2021, mediante submissão no sitaf – cfr. fls. 1 e ss do SITAF.


*
III - Enquadramento jurídico.

Este é o teor da decisão recorrida, na parte relevante:

“(…)

. Da alegada caducidade do direito de acção.

A Entidade Demandada, a este propósito, refere que os pedido de “prorrogação de colocação a título excepcional” formulados pelo Autor junto da Administração foram apresentados nos serviços em: (a) 20-9-2019 e (b) 19-05-2020. Aduz que, sendo computado o prazo para decidir os pedidos formulados pelo Autor desde então, nos termos do art. 87.º do CPA, verifica-se que os 90 dias terminaram no final dos dias (a) 19-12-2019 e (b) 19-10-2020 e contado o prazo de 1 ano para propositura da acção – cfr. art. 69.º do CPTA - constata-se que os mesmos terminaram no dia (a) 21-12-2020 e (b) 19-10-2021.

Vejamos.

Nesse domínio, até por força do princípio dispositivo, cabe ao Autor definir o objecto do litígio (através da dedução das suas pretensões/providências requeridas) e alegar os factos que integrem a causa de pedir.

Ora, a Entidade Demandada alude ao prazo de caducidade decorrente da aplicação do art. 69.º do CPTA, que prevê o prazo de caducidade para as pretensões reconduzíveis às acções de condenação à prática do acto devido.

Sucede que, como é óbvio, não vem deduzida nenhuma acção de condenação à prátic do acto devido, o que faz sucumbir a aplicação do art. 69.º do CPTA.

Contudo, ainda que não pelas razões invocadas pela Entidade Demandada, verifica-se a intempestividade da prática do acto processual, por força da aplicação do prazo contido no art. 58.º, n.º 1, al. b) do CPTA, estando em causa matéria exceptiva de conhecimento oficioso (intempestividade da prática do acto processual), sem que o Tribunal se mostre vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).

Por isso, apreciemos mais profundamente a referida matéria exceptiva.

Na presente acção, como se pode ler facilmente do petitório, vem apenas formulado o pedido de invalidade do despacho da Exma. Senhora Comandante Superintendente, datado de 23.03.2021, o qual foi notificado ao aqui Autor, como este confessou na petição inicial, em 25.03.2021, aplicando-se, o disposto no art. 58.º, n.º 1, al. b), do CPTA.

Nos termos do art. 58.º, n.º 1 do CPTA, “Salvo disposição legal em contrário, a impugnação de atos nulos não está sujeita a prazo e a de atos anuláveis tem lugar no prazo de:

a) Um ano, se promovida pelo Ministério Público;
b) Três meses, nos restantes casos.

E, os prazos estabelecidos no referido n.º 1, do artigo 58º do CPTA, “contam-se nos termos do artigo 279.º do Código Civil”, conforme estabelece o n.º 2 do mesmo normativo.

No âmbito das formas de invalidade do acto administrativo distingue-se entre nulidade e anulabilidade.

A nulidade é a forma mais grave da invalidade, assumindo a seguinte caracterização: o acto é totalmente ineficaz, não produzindo quaisquer efeitos desde o início; é insanável, seja pelo decurso do tempo, seja por ratificação, reforma ou conversão.

Diferentemente, o acto meramente anulável é juridicamente eficaz até ao momento em que venha a ser anulado; é sanável pelo decurso do tempo, quer por ratificação, reforma ou conversão; e somente pode ser impugnado contenciosamente dentro de certo prazo, estabelecido pela lei.

Para que estejamos perante um acto nulo é necessário, nos termos do artigo 161.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, que a lei comine expressamente, determinado acto, com essa forma de invalidade, ou então, que se verifique uma das situações previstas no n.º 2 do artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo.

No caso dos autos, o Autor, não obstante peticionar a declaração de nulidade do acto impugnado, não imputa ao mesmo qualquer ilegalidade à qual corresponda, como forma de invalidade, a nulidade, pelo que o prazo para propositura da acção é o previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 58º do CPTA, ou seja, três meses.

Com efeito, o Autor limita-se a invocar que o acto impugnado viola o disposto no artigo 102.º do Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública (doravante, EPPFPPSP) e os princípios da boa-fé e da confiança jurídica, sendo que matéria constituiu vícios de violação de lei e, como tal, geradores de mera anulabilidade.

E ainda que o Autor procure invocar, de forma absolutamente genérica e sem substanciação que é aniquilado o direito fundamental do Autor, consagrado no n.° 1 do artigo 67° da CRP, tal alegação não corresponde ao desvalor de nulidade.

Por referência ao disposto no art.º 161.º, n.º 2, al. d) do CPA, é fulminado de nulidade o acto administrativo que ofenda o conteúdo essencial de um direito fundamental.

A este respeito, J.M. Santos Botelho, A. Pires Esteves e J. Cândido de Pinho, sustentam, em sede de interpretação da expressão "conteúdo essencial de um direito fundamental", que se consagra uma formulação absoluta e restrita dos direitos fundamentais, sendo "absoluta na medida em que a sanção da nulidade afectará todos os actos administrativos" e " restrita já que não será qualquer lesão que será apta a gerar tal nulidade, mas, apenas, a que afecte o conteúdo essencial" (in: "Código do Procedimento Administrativo", 5.ª edição, pág. 799, nota 36).Caso a violação do direito fundamental não atinja o seu "conteúdo essencial" ou o seu "núcleo duro", então a sanção adequada será a anulabilidade.

Como referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (anotação I ao art. 67º, in “Constituição Portuguesa Anotada, artigo 1.º a 107.º, Coimbra Editora, pp. 856, 857, 858):

“I - Na redacção que lhe foi dada pela primeira revisão constitucional (LC N.º 1/82) este preceito reconhece a família, enquanto tal, isto é, enquanto instituição, como titular directo de um direito fundamental, se bem que o que esteja em causa seja a “realização pessoal dos seus membros (n.º 1, in fine), o que não permite qualquer leitura transpersonalista deste direito. No art. 36.º, a Constituição garante o direito das pessoas a constituir família; aqui garante o direito das próprias famílias à protecção da sociedade e do Estado e à realização das condições propiciadoras da realização pessoal dos seus membros. Trata-se de um típico “direito social”, ou seja, de um direito positivo que se analisa numa imposição constitucional de actividade ou de prestações por parte do Estado (cfr. n.º 2), que não gozam de exigibilidade directa, carecendo de implementação legislativa, cuja falta, porém, pode dar lugar a inconstitucionalidade por omissão.” – sublinhado nosso.

Conforme emana do Acórdão do STA, de 5/6/2007 (processo n.º 0275/07):
«VII - Já o conteúdo dos chamados “direitos sociais” e, sobretudo, os “direitos a prestações materiais”, não é determinado ao nível da Constituição, mas sim por opções do legislador ordinário, pelo que a violação desses direitos constitui, em regra, violação de lei, geradora de mera anulabilidade».

Conforme resulta do ora exposto, por regra, os direitos sociais, como o direito à família previsto no art. 67º da CRP, não atribuem aos cidadãos direitos subjetivos imediatamente exigíveis face ao Estado/Administração, sendo que as eventuais exigências serão aquelas que resultarem permitidas do que for intermediadamente estabelecido pelo legislador ordinário.

Ora, a colocação a título excepcional encontra regulação normativa infra constitucional no artigo 102.º do EPPFPPSP.

Nos termos do art.º 102.º do EPPFPPSP, a colocação a título excecional consiste na colocação temporária do polícia num comando territorial, para desempenho de funções na mesma categoria:

a) Por motivos de saúde do próprio, do cônjuge ou da pessoa com quem viva em união de facto ou economia comum, descendentes e ascendentes a cargo;

b) Por motivos de reagrupamento familiar, no caso de ambos os cônjuges serem polícias.

O n.º 3 do referido artigo estipula que a colocação a título excepcional é casuisticamente ponderada e pode ser concedida pelo director nacional, por períodos de três meses a um ano, extinguindo-se o direito à colocação com a cessação dos seus pressupostos.

E acrescenta o n.º 4 do mesmo artigo que a colocação a título excepcional pode ainda ocorrer por motivos cautelares e tem por finalidade retirar o polícia do local onde presta serviço, quando a sua permanência em funções ou o desempenho das respectivas funções acarreta risco manifesto para si ou para o seu agregado familiar ou prejuízo para o próprio, para a PSP ou para o cumprimento da missão.

Exposto o bloco normativo aplicável, facilmente se conclui que a decisão de colocação de um polícia a título excepcional constitui uma decisão administrativa amplamente discricionária.

Ora, a legalidade do acto administrativo como o dos autos – que determina a apresentação do Autor no seu comandado de origem – terá que ser aferida pela sua (in) conformidade legal (concretamente do referido art. 102.º), podendo, se for o caso, gerar vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto ou de direito, acarretando eventual anulabilidade do acto (e não a violação do art. 67.º da CRP).

Por outro lado, a alegação de que, durante vários meses a PSP ignorou os pedidos de colocação temporária no COMETPOR por parte do Autor, que vive na presente data um drama familiar (grave, em virtude da doença mental da sua companheira), não é capaz de gerar a violação do art. 67.º da CRP, mas quanto muito a violação do princípio da boa fé e da confiança jurídica (na senda do decidido no processo cautelar pelo douto Acórdão do TCA Norte), o que apenas gera a eventual anulabilidade do acto.

Nesta linha de entendimento, tanto a violação do art. 102.º do EPPFPPSP, como do princípio da boa fé e da confiança, constituem vícios de violação de lei, e portanto, ainda que fossem procedentes, redundam na mera anulabilidade do acto impugnado. Igualmente, a alegada falta de fundamentação apenas gera a mera anulabilidade do acto impugnado.

Importa salientar, na esteira da jurisprudência citada, que, na hipótese suscitada pelo Autor no que contende com a violação do art. 67.º da CRP, não estamos perante o confronto entre o acto impugnado e a norma (programática) constitucional referente ao direito social “à família”, mas sim perante o confronto entre o acto em causa e as normas legais que o legislador ordinário criou (seja ao nível das normas legais, seja mesmo ao nível dos princípios administrativos), o que contende apenas com a anulabilidade (e não a nulidade) do acto impugnado.

Conforme se escreveu, com grande proeficiência, no Ac. do STA, proferido no proc. 01846/17.6BEPRT, datado de 09.01.2020,

“22. Isto significa que poderá haver uma exigência jurisdicional face ao Estado, com base nas imposições das normas constitucionais, mas apenas no caso de omissão da sua tarefa concretizadora – fundamentada em inconstitucionalidade por omissão – ou no caso de inconstitucionalidade material por ação, na hipótese de concretização legislativa claramente ofensiva das normas programáticas constitucionais.

23. Sucede, porém, que a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão não é diretamente proporcionada aos cidadãos e o seu objetivo será apenas o de verificação da omissão e nunca uma condenação ao ato (legislativo) devido, considerando o princípio da separação de poderes; além de que sempre seria necessária uma diretriz constitucional minimamente vinculante – razão por que se afirma que o mecanismo da declaração de inconstitucionalidade por omissão se aplica às normas precetivas, sobretudo às não exequíveis por si mesmas, mas dificilmente às normas programáticas.

24.E, no caso dos direitos sociais, em sede do confronto entre o ato administrativo e as normas legais intermediadoras, criadas pelo legislador ordinário, apenas é possível, para além da alegação de violação de lei – como é o caso nos presentes autos (aqui, com fundamento em erro nos pressupostos de facto) -, a alegação de ofensa das normas constitucionais garantidoras daqueles direitos por parte daquelas normas legais intermediadoras: será o caso de arguição de inconstitucionalidade destas normas legais de intermediação face às normas constitucionais habilitantes. Como se expressava no já acima citado Acórdão do TC nº 806/93: «não pode, pois, um juízo de constitucionalidade incidir sobre as finalidades dessa política, mas tão-somente sobre o confronto dos normativos que a corporizam com os pertinentes preceitos constitucionais».

25. Efetivamente, não sendo os direitos sociais diretamente aplicáveis, não atribuindo direitos subjetivos, não são eles imediatamente sindicáveis pelos cidadãos, restando-lhes, sendo o caso, eventual arguição da inconstitucionalidade das normas legais que concretizam os direitos a prestações, imputando-lhes, acaso, ofensa do conteúdo mínimo dos direitos sociais, ou ofensa de arbítrio ou de desigualdade.

Por isso, nas palavras de Cristina Queiroz: «Em geral, o titular do direito [social, económico ou cultural] não poderá exigir “a priori” uma determinação da pretensão, mas unicamente esperar que a administração tome uma decisão que respeite não apenas uma correcta apreciação dos pressupostos de facto, mas ainda uma correcta apreciação dos pressupostos jurídicos da sua actuação, isto é, basicamente, os regulamentos e directrizes aplicáveis» (in “Direitos Fundamentais – Teoria Geral”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2010, p. 198).

26. Sendo certo que nem todas as situações de inconstitucionalidade material consubstanciarão ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental social («a inconstitucionalidade por violação de um direito fundamental não ocorre apenas quando se atinge o seu conteúdo essencial. Dá-se sempre que se afeta uma faculdade nele compreendida ou uma incumbência por ele imposta» - Jorge Miranda, ob. cit., p. 378) , é certo e seguro, por imperativo lógico, que todas as situações de ofensa legal do conteúdo essencial de um direito fundamental social terão de pressupor inconstitucionalidade material das normas concretamente aplicáveis.

27.Ora, retornando ao caso dos autos, não vemos que esteja em causa uma inconstitucionalidade das normas legais aplicáveis, designadamente as que preveem a não atribuição de habitação social, ou a cessação do respetivo direito de utilização, em situações de disponibilidade de uma habitação alternativa ou de não utilização permanente. Nem uma tal inconstitucionalidade vem arguida, sendo certo que as mencionadas regras sempre se afiguram justas e adequadas no âmbito da afetação de habitações sociais aos cidadãos mais delas carenciados, numa realidade em que a procura é, consabidamente, superior à oferta.

28. Afastada eventual inconstitucionalidade das normas legais aplicáveis – intermediadoras do direito fundamental social em questão (direito à habitação, tal como previsto e garantido programaticamente no art. 65º da CRP) -, inconstitucionalidade que nem sequer vem sugerida -, afastada está, inerentemente, por imposição lógica, qualquer ofensa ao conteúdo essencial desse direito social através de um ato administrativo aplicador de tais normas legais. Em causa permanece, tão só, eventual violação de lei, pelo(s) alegado(s) erro(s) nos pressupostos de facto, o que poderá acarretar, sendo o caso, a anulabilidade do ato impugnado.”

Reitere-se que, compulsada a alegação vertida na p.i, o Autor apenas impetra a desconformidade do acto que impugna face a normas legais e princípios legais ( o que poderá acarretar, sendo o caso, a anulabilidade do ato impugnado) e não qualquer desconformidade entre estas normas legais e aqueles preceitos constitucionais (programáticos – cfr. art. 67.º da CRP), donde não vem alegada, e muito menos circunstanciadas, qualquer violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, o que conduz a que o prazo de impugnação seja o de três meses.

Provando-se que o Autor foi notificado do despacho ora impugnado a 25.03.2021, dispunha até 25.06.221 para intentar a presente acção, contudo, apenas deduziu a mesma no dia 13.10.2021, ou seja, quando estava ultrapassado largamente o prazo previsto no art. 58.º, n.º 1, al. b) do CPTA.

A intempestividade da prática de acto processual obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa – cf. artigo 89.º, n.º 4, alínea k), do CPTA - e conduz à absolvição da Entidade Demandada da instância [cfr. artigo 89.º, n.º 2, do CPTA].

Restará, assim, concluir pela existência da excepção dilatória de intempestividade da prática do acto processual (cfr, art.º 89º, n.º4, alínea k) do CPTA), com a consequente, e necessária, absolvição da instância da Entidade Demandada, ficando prejudicado o conhecimento da demais matéria exceptiva (inimpugnabilidade) e, obviamente, do mérito da acção.

(…)”.

Mostra-se completamente acertada a decisão recorrida.

A questão que aqui se coloca é tão-só a de saber se os vícios imputados ao acto impugnado são, em abstracto, susceptíveis de conduzir à respectiva nulidade ou não.

Não cabe nesta sede, de apreciação da matéria de excepção na acção, neste caso da intempestividade para a prática de acto processual, apreciar se o acto é, em concreto, nulo, ou não, pois isso é já conhecimento de mérito da acção.

E, por outro lado, o Recorrente apenas imputa ao acto impugnado vícios que, no seu entender, conduzem à respectiva nulidade, aceitando assim que, sendo um acto meramente anulável, já se teria verificado a caducidade do direito de acção.

Quanto à falta de fundamentação do acto na respectiva notificação não se trata de um vício do acto porque a notificação é um acto posterior e externo ao acto impugnado.

Contende apenas com o prazo para impugnar o acto - n.º2 do artigo 59º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Caso exista prazo para impugnar, o que nos retorna à questão essencial dos autos: saber se o acto impugnado é susceptível de ser apenas anulado ou de ser declarado nulo.

No que diz respeito à falta de fundamentação, é entendimento pacífico o de que se trata de vício conducente à mera anulabilidade, face à regra geral de invalidade dos actos administrativos, consagrada no n.º1 do artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo.

Isto sendo certo que o vício de falta de fundamentação se distingue do vício de falta absoluta de forma legal – alínea g) do n.º2 do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo.

Como seria o caso de um acto praticado de forma oral fora dos casos excepcionais permitidos por lei – artigo 150º do Código de Procedimento Administrativo.

O que aqui não ocorre, porque o acto foi praticado por escrito.

Resta, pois, verificar se o acto impugnado é, em abstracto, susceptível de afectar o conteúdo essencial de um direito fundamental (artigos 36.º, n.º 1, e 67.º, da Constituição da República Portuguesa e artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do Código de Procedimento Administrativo).

Ora não se vislumbra sequer como pode o acto impugnado afectar o direito a constituir família por parte do Recorrente, dado que a tem constituída e não deixou de a ter constituída pelo acto impugnado que não tem qualquer virtualidade de a dissolver, formal ou materialmente.

Por outro lado, também não impede, o acto impugnado, de dar apoio à família pois esse apoio pode ser dado independentemente da proximidade física.

Não tão bem, mas não fica afastado em absoluto.

Termos em que se impõe manter a decisão recorrida.

*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

*

Porto, 19.04.2024


Rogério Martins
Paulo Ferreira de Magalhães
Isabel Costa