Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00021/23.5BCPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/09/2025
Tribunal:TAF do Porto
Relator:TIAGO MIRANDA
Descritores:DECISÃO ARBITRAL;
RECORRIBILIDADE;
RENÚNCIA PRÉVIA AO RECURSO;
Sumário:
I – Não é no teor da cláusula I-2 do Regulamento da Arbitragem, nem num suposto afastamento, por vontade das partes, de regime do direito a recorrer contido na Lei nº 31/86 de 29 de Agosto, cuja remanescência foi garantido pela norma transitória do artigo 4º nº 3 da Lei n.° 63/2011, que se encontra, segundo o despacho reclamado, o fundamento para a improcedência da pretensão da Reclamante, de ver admitido o recurso, mas sim na vontade negocial das partes, não vetada por qualquer lei imperativa, de qualquer dos dois regimes que se sucederam, no sentido da renúncia ao recurso.

II – Não é insusceptível de valer como declaração negocial de renúncia prévia ao recurso a remissão para um regulamento de arbitragem que exclui expressamente a possibilidade de recurso, constante do acordo escrito que aprovou o regulamento arbitral, outorgado pelos mandatários judiciais de todas as partes envolvidas.

III - A inovação normativa do nº 5 do artigo 476º do CCP introduzido pelo DL nº 111-B/2017 de 31 de Agosto tem apenas o sentido de fixar uma alçada especial para as decisões arbitrais em matéria de contratação pública, não contém disposição incompatível com qualquer norma da LAV nem com a autonomia da vontade das partes no sentido de afastarem a recorribilidade da decisão arbitral.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Outros despachos
Decisão:Indeferir a reclamação.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I - Relatório
[SCom01...] (Rua ..., ... 8...), demandada em acção arbitral perante o Tribunal arbitral constituído no Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa, em que foram demandantes os Municípios ..., 1..., 2..., 3..., 4... 5..., 6..., 7..., 8..., 9..., 10..., 11..., 12..., 13..., 14..., 15..., apresenta RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA da decisão sumária proferida pelo relator em 29/06/2023, que negou provimento à reclamação por si apresentada neste tribunal superior relativamente ao despacho do Tribunal Arbitral notificado à Reclamante em 14 de Abril de 2023, que não admitiu o recurso por si apresentado relativamente aos acórdãos arbitrais sobre a matéria de facto, de 9/6/22 e final, de 23/01/2023, com as rectificações introduzidas por despacho de 24 de Fevereiro seguinte.

Pede que “nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 652.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi art.º 1.º do CPTA, que sobre essa questão recaia acórdão” em que seja “revogado o Despacho que não admitiu o recurso interposto da decisão arbitral pela aqui Reclamante, sendo substituído por Acórdão que o admita e lhe fixe o efeito e a natureza, prosseguindo os autos o seu normal curso”.

As alegações da reclamação para a conferência vêm rematadas com as seguintes conclusões:
«F - CONCLUSÕES
I. Em 2000, quando foram celebradas as cláusulas compromissórias, a existência do direito ao recurso dispensava a declaração expressa das partes na cláusula compromissória, uma vez que esse direito estava consagrado na LAV/86, então em vigor;

II. O direito a recorrer da sentença não é um mero efeito ex lege; apesar de tal direito se encontrar consagrado numa norma legal (supletiva), a existência desse direito é, ainda assim, um efeito negocial, modelado pela convenção de arbitragem;

III. A renúncia ao direito ao recurso releva da substância e da dimensão da renúncia a direitos e não da forma adjectiva e é por isso que deve ser inequívoca, isto é, não pode ter outra significação; por outras palavras, é necessário que do acto se deduza necessariamente a renúncia;

IV. O direito ao recurso e a renúncia ao direito ao recurso não são "regras de processo a observar na arbitragem"; são, ao invés, o conteúdo do pacto atributivo da competência para a decisão do litígio, que pode ser voluntariamente limitado, de forma inequívoca, na medida em que, com a renúncia, as partes contratantes aceitam por antecipação o "que há de ser decidido" pelo Tribunal Arbitral;

V. O facto de assim ser coloca a renúncia ao direito ao recurso no plano da renúncia a direitos substantivos e não no da renúncia a direitos processuais, reforçando a necessidade da sua natureza expressa, inequívoca e uni-significante;

VI. A renúncia a um direito só é válida quando for encontrada uma vontade qualificada que represente e aceite o acervo de efeitos jurídico-negociais no caso concreto, a saber, a perda da situação jurídica objecto do acto de renúncia e a correspondente ineficácia da respectiva invocação inter partes ou relativamente a terceiros;

VII. Deve rejeitar-se a validade de um acto de renúncia puramente causal ou acidental, que não tenha sustentação bastante na vontade do declarante ou renunciante;

VIII. Não é possível identificar no texto do Regulamento do Tribunal Arbitral a representação e aceitação conscientes e esclarecidas, pelas partes, do acervo de efeitos jurídico-negociais no caso concreto, a saber, a perda da situação jurídica objecto do acto de renúncia e a correspondente ineficácia da respectiva invocação inter partes, designadamente da renúncia ao direito ao recurso;

IX. Sendo as regras processuais acordadas entre as partes o resultado de autênticas declarações de vontade, à sua interpretação aplicam-se os critérios prefigurados nos artigos 236.° a 238.° do Código Civil, mesmo que se considere que o estabelecido na parte final do n.° 2 da Cláusula I do Regulamento da Arbitragem é uma regra processual, definida consensualmente;

X. A interpretação em causa não se destina a aferir da vontade do declarante, antes relevando apenas e tão-só o sentido objectivo que o declaratário possa depreender do seu comportamento;

XI. Perante os elementos de prova, escritos, que constam [d]os autos, um declaratário normal, razoável e diligente, não poderia compreender a parte final do n.° 2 da Cláusula I do Regulamento da Arbitragem com o sentido de que, por ela, os declarantes pretenderam afastar a regra transitória prevista no artigo 4.°, n.° 3, da Lei n.° 63/2011, que lhes permitia manter o direito ao recurso que resultava da circunstância de a convenção de arbitragem ter sido celebrada ao abrigo da LAV/86 sem que as partes, então, tivessem renunciado ao direito ao recurso da decisão arbitral;

XII. As partes, longe de pretenderem afastar o benefício que resulta do artigo 4.°, n.° 3, da Lei n.° 63/2011, e assim renunciarem ao direito ao recurso, quiseram somente replicar a solução que já decorria do n.° 1 do artigo 4.° dessa lei; não por ociosidade, mas simplesmente para afastar potenciais dúvidas acerca do regime legal a que o processo arbitral se encontrava sujeito;

XIII. O texto do Regulamento do Tribunal Arbitral significa, pelo menos com carácter de enorme plausibilidade, que a remissão nele contida não foi feita, apenas, para a LAV/2011, como concluiu o Despacho (fls. 11), mas, antes, para a LAV/2011 e, também, para a Lei 63/2011, que a aprovou;

XIV. Ora, a única regra que releva, na Lei 63/2011 - como de resto o Despacho sublinha, a fls. 11, porque a remissão nada acrescentaria, se assim não fosse, ao disposto no art.° 4.°, n.° 1, dessa Lei -, é justamente a regra do art.° 4.°, n.° 3, que mantém o direito ao recurso se este já existisse antes da entrada em vigor da LAV/2011, que aprovou;

XV. Ademais, observar-se-á que o teor e a natureza da remissão para o Regulamento de 2008 do Centro de Arbitragem da ACL é subsidiária - "em tudo o que não constar do presente Regulamento" - significando, portanto, que a regra do n.° 32 da cláusula IV do Regulamento do Tribunal visa, apenas, suprir eventuais omissões deste e da convenção de arbitragem;

XVI. Ora, as cláusulas compromissórias contem, todas, a previsão da existência de direito ao recurso, decorrente da LAV/86, em vigor ao tempo da sua celebração e dispensando, por isso, referência expressa a esse direito, bastando-se com o seu não afastamento expresso;
XVII. Não é possível afirmar que a questão da (ir)recorribilidade da decisão arbitral é regulada pelo disposto no artigo 40.° do Regulamento de 2008 do Contro de Arbitragem da ACL, uma vez que falta um dos pressupostos de que depende a aplicabilidade desse preceito, e que se prende com a natureza subsidiária desse texto: a verificação de uma omissão regulativa no Regulamento da Arbitragem e na convenção de arbitragem;

XVIII. A lei, a doutrina e a jurisprudência é inequívoca, é unânime e é uniforme no sentido de que a renúncia ao direito ao recurso, quando revista a forma de renúncia antecipada - isto é, anterior à decisão, como teria sido o caso dos autos - deve ser expressa, o que não se verifica in casu

XIX. A jurisprudência que versa sobre o efeito renunciante ao direito ao recurso da remissão para certo Regulamento reporta-se a arbitragens institucionalizadas e não a arbitragens ad-hoc, como a dos autos, sendo por isso a remissão de que tratam tais arestos para o centro de arbitragem e não para um certo regulamento;

XX. Mesmo que se adoptasse a interpretação, contra legem, de que a renúncia ao recurso pode ser tácita, não se vislumbra em nenhum dos documentos dos autos tal declaração ou evidencia de factos ou actos de que se possa, razoavelmente, ser retirado tal sentido do comportamento das partes;

XXI. O art.° 476.°, n.° 4, do CCP, que o Despacho julgou incluir a arbitragem dos autos no seu campo objectivo de aplicação, o que se aceita, tem natureza processual e, destarte, aplicação imediata aos processos pendentes que decorre justamente dessa natureza;

XXII. O processo arbitral dos autos tem o valor de 5 milhões de euros;

XXIII. O art.° 476.°, n.° 5, do CCP tem como motivação a intenção do legislador de introduzir um controlo de legalidade sobre decisões arbitrais proferidas em processos de especial relevância económica que, desde Março de 2012, não existia, salvo acordo expresso das partes em contrário;

XXIV. O art.° 476.°, n.° 5, do CCP, aplicável desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 111- B/2017, de 31 de Agosto, criou um direito novo, antes inexistente, derrogando, quanto às arbitragens que tratem de litígios compreendidos na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos e que tenham um valor de litígio superior a 500 mil euros, como é o caso da arbitragem referenciada nestes autos, o regime da LAV/2011, vigente desde Março de 2012;

XXV. As partes nada disseram, a esse propósito, após a entrada em vigor do novo art.° 476.°, n.° 5, do CCP, aceitando, portanto, os seus efeitos.

XXVI. O acto de renúncia é apenas válido quando é praticado em momento posterior ao da aquisição do direito ou situação jurídica, como decidiu o STJ em Acórdão de 12 de Maio de 2011: "a validade de um concreto acto de renúncia parece ter de se aferir em relação a situações jurídicas já constituídas e, como tal, não puramente hipotéticas nem futuras";

XXVII. A admitir-se que houve renúncia ao direito ao recurso com a outorga, em 2004, do Regulamento do Tribunal Arbitral, tal renúncia não pode operar perante o novo direito ao recurso constituído ex novo em Janeiro de 2018, pelo art.° 476.°, n.° 5, do CCP, porque o direito a que se renuncia deve ser conhecido (ou cognoscível) no momento do acto de renúncia;
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. haverão de suprir, deve ser revogado o Despacho que não admitiu o recurso interposto da decisão arbitral pela aqui Reclamante, sendo substituído por Acórdão que o admita e lhe fixe o efeito e a natureza, prosseguindo os autos o seu normal curso».

Notificados, os Recorridos responderam à alegação, assim:
«Municípios ... e OUTROS, todos devidamente identificados nos autos onde são demandantes, tendo sido notificados do pedido apresentado pela demandada [SCom01...], SA, no sentido de que sobre a matéria do despacho recaia um Acórdão, vêm, muito respeitosamente, dizer o seguinte:
A matéria em discussão está, salvo o devido respeito e com toda a consideração devidamente dilucidada no presente processo, quer no acórdão proferido pelo Senhores Árbitros, quer na decisão que ora, por vontade da demandada, é trazida à Conferência.
Os demandantes, ora respondentes, pensaram ainda em remeter-se, sem mais, para tais peças processuais, todavia o muito respeito que se tem por V. Exas. obrigam, ainda que de forma sucinta, os ora requerentes a alegarem nos termos em que a seguir o fazem.
Não tem, salvo o devido respeito e com toda a consideração, qualquer razão a requerente quanto ao fundo do requerimento que apresenta.
Desde logo cumpre referir o que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu quanto à interpretação do artigo 632° do Código de Processo Civil.
Tal como se referiu em requerimento dos demandantes de Março de 2023 "a arguição de nulidade da sentença perante o tribunal que a proferiu constitui um facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer" (Abílio Neto, in anotação Art° 632° CPC).
Ora, proferido o dito acórdão pelo Tribunal Arbitral, a demandada veio de imediato arguir nulidades da sentença tais como "a falta de indicação da proporção do depoimento de parte, a omissão de pronuncia sobre as excepções invocadas pela demandante".
Deste modo, ao arguir as alegadas nulidades e ao interpor, como interpôs, o processo que corre termos nesse mesmo Venerando Tribunal Central Administrativo Norte com o n.° 20/23.7BCPRT, referência que muito bem é feita na decisão ora em análise, a demandada renunciou (caso tivesse esse direito, que não tem como adiante se verá) ao direito de recorrer da decisão.
Todavia, salvo o devido respeito a demandada, ora requerente, a [SCom01...], SA, não tem o direito ao recurso que pretende fazer valer.
A Convenção de Arbitragem que está na origem da disputa entre Demandantes e Demandada consta de Contratos celebrados em 2000, tendo o litígio surgido após a entrada em vigor da LAV/11.
O art° 4° da Lei 63/2011 não impede que as partes possam acordar na inexistência de recurso da decisão que vier a ser tomada pelo Tribunal Arbitral.
Como muito bem se diz no ponto bb) do ponto a) do ponto 12 da decisão de 14 de Abril de 2023 há duas possibilidades de as partes acordarem em não haver recurso da decisão que vier a ser tomada pelo Tribunal Arbitral e que são a celebração de um Acordo pelo qual se altere o texto da Convenção de Arbitragem ou a “remissão para um Regulamento de Arbitragem da qual constasse um regime de recurso da sentença arbitral diferente do que constava do art° 29°, n° 1 da LAV”.
Efectivamente, o art° 6° da LAV/11 refere expressamente:
Remissão para regulamentos de arbitragem
Todas as referências feitas na presente lei ao estipulado na convenção de arbitragem ou ao acordo entre as partes abrangem não apenas o que as partes aí regulem directamente, mas também o disposto em regulamentos de arbitragem para os quais as partes hajam remetido.”
Em Maio de 2015 foi outorgado o Regulamento do Tribunal Arbitral, sendo que este Regulamento foi expressamente aceite pelos Árbitros, por todos os Demandantes, pela Demandada e pelos respectivos advogados, tudo conforme se pode ver do doc. 3 junto pela Demandada.
Ora, como muito bem se refere na douta decisão
dd) Quando a não aplicação do art. 4.°, n.° 3, da Lei n° 63/2011 fosse materializada por via de uma remissão para um Regulamento de Arbitragem, que estatuísse em sentido diferente do art. 29.°, n.° 1, LAV, limitando-se, porém, a dizer que a sentença arbitral é irrecorrível, ou seja, silenciando a possibilidade de as partes, por acordo, afastarem este regime, fazia sentido que estas, sendo essa a sua vontade, previssem expressamente a existência de recurso. ee) Não tendo (amb)as partes acordado na não aplicação da norma do art. 4.°, n.° 3, da Lei n.° 63/2011 e, por conseguinte, ficando a arbitragem sujeita ao art. 29.°, n.° 1, LAV/86, caso lhes interessasse que a sentença arbitral fosse insusceptivel de recurso, poderiam acordar um de duas coisas:
aaa) alterar/rectificar o texto da convenção de arbitragem, fazendo dela constar a menção dessa insusceptibilidade, ou bbb) remeter para um Regulamento de Arbitragem (art. 6.°) que estatuísse nesse sentido.”
O Regulamento de Arbitragem dispõe, no seu n° 2 que:
“. . .devendo a referência, na cláusula 9.ª 4 desse Contrato, à Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto, ser entendida como visando a Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.° 63/2011, de 14 de Dezembro/’
Ao assinar o Regulamento de Arbitragem as partes quiseram, expressamente, alterar a Convenção de Arbitragem pois expressamente referem que no n° 4 da cláusula nona do Contrato de Recolha de Efluentes onde está uma referência à Lei 31/86 deve ser entendida como visando a Lei da Arbitragem Voluntária, a LAV/11.
E para que não houvesse dúvidas fizeram-no por escrito, em documento que foi assinado pelas partes litigantes, pelos seus advogados e pelos Árbitros.
Mas mais, no ponto 32 do Regulamento da Arbitragem as partes expressamente acordaram que “em tudo o que não consta do presente Regulamento, aplicar-se-á, sucessivamente, o Regulamento de Arbitragem referido no número anterior (o Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa - versão 2008) e a Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.° 63/2011 de 14 de Dezembro)” (carregado nosso).
Fica claro que não só foi referido no ponto 2 a expressa mudança para a nova Lei Arbitral como a expressa utilização do “sucessivamente’’ implica que só se recorra à Lei de Arbitragem no caso de o Regulamento do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa não resolver a questão.
Do Regulamento do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa, documento que consta do sitio https://www.centrodearbitragem.pt/pt/legislacao-e- jurisprudência/ e que, por comodidade se junta e se dá aqui como integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, consta o art° 40° onde sob a epigrafe "(irrecorribilidade da decisão)” "1. A decisão final do tribunal arbitrai não é susceptível de recurso” e o seu n° 2 diz: "A submissão do litigio ao Centro de Arbitragem Comercial envolve a renuncia aos recursos”.
A remissão que as partes fizeram para o Regulamento foi feito sem qualquer reserva pelo que bem andou o Tribunal Arbitral quando reconheceu no despacho em análise que não lugar a recurso por as partes terem a ele renunciado nos termos referidos.
Efectivamente,
No dia 4 de Julho de 2000 foi publicado o DL 121/2000 que cria o Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Alto Zêzere e Côa, para captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes dos municípios de 1..., 2..., ..., 4..., 6..., 8..., 9..., 10..., 12..., 13... e 14... e constitui a Sociedade [SCom02...] S.A., para gerir o referido sistema.
Nos termos do art° 3° do mencionado DL refere-se expressamente que:
“1 - É constituída a sociedade [SCom02...], S. A., adiante designada por sociedade.
2 - A sociedade rege-se pelo presente diploma, pelos seus estatutos e pela lei comercial.”
O que se discute no presente processo não é a alteração do contrato de concessão celebrado entre o Estado Português e a Demandada, nem a validade dos contratos de Recolha de Efluentes celebrados entre a Demandada e os Demandantes, mas sim a validade e as consequências de um acordo entre eles celebrado que visava igualizar à Demandada outros comportamentos que foram nos mesmos moldes acordados com outros Municípios, em outros Sistemas, concessionados e geridos por sociedades do Grupo Águas de Portugal, como é também a Demandada.
Em momento algum se referiu durante todo o processo estar-se perante a aplicação do Código dos Contratos Públicos, como agora vem a Demandante a referir, sendo que, tal conforme atrás se referiu, a sociedade Demandada rege-se pela Lei Comercial, daí que a sociedade, tal como estipula e impõe o art° 6° do Código das Sociedades Comerciais, seja responsável, pelos actos e/ou omissões dos membros dos seus órgãos directivos.
Quando um membro de um órgão de representação da sociedade age, ele actua nessa qualidade e vincula a sociedade. É o caso!
Contrariamente ao que é referido pela Demandada não existe qualquer documento em que se refira que o valor do litígio de qualquer um dos Demandantes é superior a quinhentos mil euros.
O que se refere é que o valor do litígio dos 16 Municípios é de cinco milhões de euros.
Alias, é manifestamente abusivo e violador do direito que a Demandada, que veio juntar aos autos os Contratos celebrados com cada um dos Municípios por entender que havia um litisconsórcio voluntario por parte dos Demandantes, venha, agora, dizer que o valor da petição que é a soma dos 16 litígios que os 16 Demandantes têm com a Demandada é um só litígio e um só contrato, como se não houvesse 16 Contratos.
Ou seja, a discussão do presente processo não visa a correcção, ou não, da corretã aplicação do Código dos Contratos Públicos e em momento algum se referiu ou se pode inferir que o valor do litígio de qualquer um dos 16 Municípios Demandantes com a Demandada - tendo, uns e outra, discutido e acordado na fixação de regras de molde a evitar os abusos por parte desta - é superior a quinhentos mil euros.
Termos em que se deve manter a douta decisão do Senhor Juiz Conselheiro Relator, como é de inteira justiça.»

Dispensados os vistos nos termos do artigo 656º nº 4 do CPC, cumpre apreciar e decidir.

II- Delimitação do objecto da reclamação
As questões que a Reclamante pretende ver apreciadas em apelação são as seguintes:

1ª Questão
A decisão reclamada erra no julgamento de direito ao fundar a irrecorribilidade dos acórdãos arbitrais na cláusula 40ª do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa, pois a renúncia prévia ao recurso é uma disposição de vontade sobre direitos substantivos, não apenas sobre direitos processuais, que se quer expressa, esclarecida e consciente, o que não ocorreu, pois não pode valer como tal a mera remissão convencional para os termos do referido Regulamento?

2ª Questão
A decisão reclamada erra no julgamento de direito ao fundar a irrecorribilidade dos acórdãos arbitrais na cláusula 40ª do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa pois, atento o valor do processo arbitral – €5 000 000 – a decisão arbitral é, agora, recorrível por força de norma inderrogável constituída pelo nº 5 do artigo 476º do CCP, introduzido pelo DL nº Decreto-Lei n.° 111- B/2017, de 31, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2018 e revogou tacitamente, na medida da incompatibilidade, o regime da LAV de 2011?

3ª Questão
A decisão reclamada erra no julgamento de direito ao fundar a irrecorribilidade dos acórdãos arbitrais na cláusula 40ª do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa pois, ao admitir-se que houve renúncia ao direito ao recurso com a outorga, em 2014, do Regulamento do Tribunal Arbitral, tal renúncia não pode operar perante um novo direito ao recurso constituído ex novo em Janeiro de 2018, pelo art.° 476.°, n.° 5, do CCP, porque o direito a que se renuncia deve ser conhecido (ou cognoscível) no momento do acto de renúncia?

III - Apreciação do objecto da reclamação
A decisão de Relator ora reclamada seleccionou, como relevantes, as seguintes ocorrências processuais, documentadas no processo:
«1°) - Por carta de 13 de Março de 2014, dirigida à [SCom01...] pelos Municípios de ..., 1..., 2..., 3..., 4..., 5..., 6..., 7..., 8..., 9..., 10..., 11..., 12..., 13..., 14... e 15..., foi requerida a constituição de Tribunal Arbitral para dirimir um litígio nela mais bem identificado, lembrando que entre todos e cada um dos Municípios e a [SCom02...], SA, foi celebrado contrato denominado Contrato de Recolha visando a recolha e tratamento de efluentes de todos e cada um dos Municípios.

2°) - Contrato(s), celebrado(s) em 2000, com seguinte cláusula (cláusula 9ª):
1. Em caso de desacordo ou litígio, relativamente à interpretação ou execução deste contrato, as partes diligenciarão no sentido de alcançar, por acordo amigável, uma solução adequada e equitativa.
2. No caso de não ser possível uma solução negociada e amigável nos termos previstos no número anterior, cada uma das partes poderá a todo o momento recorrer a arbitragem, nos termos dos números seguintes.
3. Ao tribunal arbitral poderão ser submetidas todas as questões relativas à interpretação ou execução deste contrato, com excepção das respeitantes à facturação emitida pela Sociedade e ao seu pagamento ou falta dele, casos em que o foro competente é o da 8....
4. A arbitragem será realizada por um tribunal arbitral constituído nos termos desta cláusula e de acordo com o estipulado na Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto.
5. O tribunal arbitral será composto por um só árbitro nomeado pelas partes em desacordo ou litígio. Na falta de acordo quanto à nomeação desse árbitro, o tribunal será então composto por três árbitros, dos quais um será nomeado pelo Município, outro pela Sociedade, e o terceiro, que exercerá as funções de presidente do tribunal, será cooptado por aqueles. Na falta de acordo, o terceiro árbitro será nomeado pelo Presidente da Relação de Coimbra.
6. O tribunal arbitrai funcionará na cidade ..., em local a escolher pelo árbitro único ou pelo presidente do tribunal, conforme o caso.

3°) - O Tribunal Arbitral veio a ser instalado em 12 de Junho de 2014, e adoptou o seu Regulamento - assinado pelos três Árbitros, bem como pela Demandada e pelos Demandantes, e ainda pelos respectivos Mandatários -, onde consta:
(...)
2 O processo arbitral é regulado pelo presente Regulamento e, em tudo quanto o não contrariar, pelas disposições fixadas no Contrato de Recolha de Efluentes, devendo a referência, na cláusula 9.ª, 4 desse Contrato, à Lei n.º 31 /86, de 29 de Agosto, ser entendida como visando a Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n." 63/2011, de 14 de Dezembro.
(...)
31 - Serão exercidas pelo Árbitro-Presidente do Tribunal as competências atribuídas ao Presidente do Centro de Arbitragem no Regulamento de Arbitragem (versão de 2008) do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa.
32 Em tudo o que não constar do presente Regulamento, aplicar-se-á, sucessivamente, o Regulamento de Arbitragem referido no número anterior e a Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n." 63/2011, de 14 de Dezembro).

4°) - O referido Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa (versão de 2008) prevê (previa):
Artigo 40.°
(Irrecorribilidade da decisão)
1 - A decisão final do tribunal arbitrai não é susceptível de recurso.
2 - A submissão do litígio ao Centro de Arbitragem Comercial envolve a renúncia aos recursos.

5°) - O Tribunal Arbitral veio também a definir:
“DESPACHO
DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO LITÍGIO
I. O Tribunal entende não dever conhecer da questão da invalidade do Contrato de Concessão, celebrado (ao abrigo do Decreto-Lei n.° 121/2000, de 4 de Julho) entre o Estado Português e “[SCom03...]." (hoje, “[SCom04...], S.A."), em 15 de Setembro de 2000 (questão suscitada pelos Demandantes, na sua Resposta às excepções invocadas pela Demandada, na Contestação).
a) Poder-se-ia, eventualmente, pensar que a solução haveria de ser outra se o Estado, vinculando-se à Convenção de Arbitragem em que o presente processo de baseia, nele interviesse.
b) Porém, mesmo em tal hipótese (sobre cuja verificação é legítimo ter as mais fundadas dúvidas), seria cabido que o Tribunal se auto-contivesse. Com efeito, estando em curso, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, o Processo n.° 450/11.7BECTB, no qual se discute a questão da invalidade do referido Contrato, sobreviria, no caso, uma situação de prejudicialidade. E isto, note-se, mesmo que, decidindo-se conhecer dessa questão, dela se conhecesse apenas a título incidental.
c) Os ensinamentos do Professor Manuel de Andrade são, (também) a este propósito, de grande préstimo (permitimo-nos citá-lo a partir de FRANCISCO M. L FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, vol. 1, Almedina, Coimbra, 2010, p. 587): “ Verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá (existirão) quando uma primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta última por via principal, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é reprodução, pura e simples, da primeira.” Isto dito, o Mestre de Coimbra não deixava, porém, de acrescentar: “Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, em ordem a abranger outros casos. Assim, será prejudicial em relação a outra em que se discute a titulo incidental uma dada questão, a causa em que a mesma questão é decidida a titulo principal'.
II. a) O Tribunal entende, outrossim, não dever conhecer da questão da invalidade do “Contrato que foi
denominado Contrato de Recolha visando a recolha e tratamento de efluentes de todos e cada um dos Municípios [Demandantes]” (cfr. carta remetida pelos Demandantes à Demandada, em 13 de Março de 2014 - doravante, “Notificação para Arbitragem”), o qual Contrato foi celebrado Com “[SCom02...], S.A." (Hoje, “[SCom04...]” (doravante, [SCom02...] e [SCom04...], respectivamente), na sequência do referido Contrato de Concessão. Esta questão, à semelhança da deste último contrato (cfr. supra, número I, alínea a), foi também suscitada pelos Demandantes, na sua Resposta às excepções invocadas pela Demandada.
b) É verdade que, nesse mesmo articulado, os Demandantes não deixaram de suscitar a questão da invalidade de outros contratos, também eles celebrados com a [SCom02...] (hoje, [SCom04...]) na sequência do Contrato de Concessão, e entre os quais avulta o que foi denominado “Contrato de Fornecimento [de água]”. Existem, porém, razões, das quais, a seu tempo, se dará conta (cfr. infra, número III), que depõem no sentido dc o Tribunal se achar impedido de conhecer directamente desses outros contratos, independentemente da natureza das questões que sobre eles foram suscitadas.
c) Voltando ao Contrato referido em II.a) (por comodidade de exposição, passaremos a designá-lo “Contrato de Recolha de Efluentes”), cabe explicitar as razões por que se entende não dever conhecer da questão da sua invalidade.
aa) O motivo aduzido pelos Demandantes para fundamentar a nulidade desse contrato foi a nulidade do próprio Contrato de Concessão. Tratar-se-ia, pois, dc urna nulidadae sequencial.
bb) Tendo o Tribunal entendido que, mesmo na hipótese de o Estado, vinculando-se à Convenção de Arbitragem em que o presente processo se baseia, nele interviesse, não deveria (o Tribunal, entenda-se) conhecer da questão da invalidade do Contrato de Concessão - e isto assim, note-se, ainda que esse conhecimento não fosse senão incidental, por isso que, ainda nesse caso, ocorreria a situação de prejudicial idade no sentido (amplo) defendido por Manuel de Andrade —, careceria de toda a lógica vir agora entender-se que estava ao seu alcance conhecer (não importa a que título) da questão da invalidade do Contrato dc Recolha dc Efluentes, sendo que, no quadro da argumentação dos Demandantes, esta questão sobreviria na sequência daquela outra.
cc) de resto, mesmo que os Demandantes tivessem invocado qualquer motivo autónomo de nulidade do Contrato de Recolha de Efluentes, o Tribunal continuaria a entender não dever conhecer dessa questão. Seria por outra razão, é certo. Mas só isso.
dd) Fizemos antes referência ao Processo n.° 450/11.7BECTB (cfr. número I.b)), dizendo que nele se discute a questão da invalidade do Contrato de Concessão. Cabe agora acrescentar que discutida, nesse mesmo Processo, é também a questão da invalidade do Contrato de Recolha de Efluentes (e de outros contratos, nomeadamente, do dc Fornecimento, em relação aos quais, com antes se disse, o Tribunal se acha impedido de deles conhecer directamente; cfr. infra, número III).
te) Consequentemente, a situação de prejudicialidade (em sentido amplo), a cuja luz o Tribunal fundamentaria o seu entendimento de não conhecer da questão da invalidade do Contrato de Concessão — na hipótese de o Estado, vinculando-se à Convenção de Arbitragem em que ele se baseia, nele interviesse (cfr. supra l.b) c c)) —, afirmar-se-ia, exactamente nos mesmos termos, relativamente ao conhecimento da questão da invalidade do Contrato dc Recolha de Efluentes.
III. A Notificação para Arbitragem (cfr. supra número II. a)) referindo o Contrato de Concessão, respeita exclusivamente ao Contrato de Recolha de Efluentes, celebrado, já o sabemos, na sequência daquele. Por ser este o único Contrato invocado, o presente Processo tem exclusivamente por base a Convenção de Arbitragem que dele consta, e cujo texto aqui se recorda: “Ao tribunal arbitrai poderão ser submetidas rodas as questões relativas à interpretação ou execução deste contrato, com excepção das respeitantes à facturação emitida pela Sociedade c ao pagamento ou falte dele, casos em que o foro competente é o da 8...”.
É à luz desta Convenção — e só dela — que cabe ao Tribunal decidir sobre a sua própria competência; para este efeito, não relevam, pois, quaisquer outras Convenções de Arbitragem, a que as Partes se hajam vinculada, no âmbito de outros contratos.
IV. Nestes termos, e tendo apenas cm vista o período por que vigorou o Contrato de Concessão, celebrado em 15 de Setembro de 2000,
a) cingindo-se o litígio à "interpretação ou execução" do Contrato de Recolha de Efluentes, cuja validade, pelas razões antes apontadas, aqui não se discute,
b) o Tribunal considera que o seu objecto respeita unicamente à questão de saber se as reuniões, realizadas em 5... (17 de Janeiro de 2012) c em 3... (8 de Março de Março de 2012), com a presença, na primeira, de representantes dos Municípios (Demandantes) e de representantes da Sociedade (Demandada) e, na segunda, também com representantes da sociedade-mãe dessa mesma Sociedade, culminaram, ou não, na celebração do acordo verbal, que é referido na Notificação para Arbitragem;
e) vindo a concluir-se no sentido da existência desse acordo, não poderá prescindir-se da averiguação das razões que a ele conduziram, bem como da sua (in)validade ou (in)eficácia, com o apuramento das respectivas consequências, o que pressupõe a dilucidação da natureza jurídica que deva ser-lhe atribuída;
d) no caso de se ter de concluir que o dito acordo não chegou a ser celebrado, e também no caso de se ter de concluir que essa celebração ocorreu, sem, contudo, se lhe poderem imputar os efeitos jurídicos a que tendia, sobrevirá a questão de saber se o “Contrato de Recolha de Efluentes”, de que as Partes foram signatárias, contém lacunas, mormente no que respeita ao modo como se apurariam as quantidades de efluentes cujo tratamento é da responsabilidade da Demandada, as quais lacunas (isto c, falhas contrárias ao plano das partes), haveriam de ser preenchidas nos termos do art. 239.° do Código Civil.
(...)”

6°) - Foi proferido Acórdão sobre a matéria de facto (9/6/2022).
7°) - Foi proferido Acórdão final sobre a matéria de facto (23/01/2023).
8°) - A ora reclamante apresentou recurso.
9°) - O qual mereceu despacho do Exm° Presidente do Tribunal Arbitrai, nos seguintes termos:
Tendo sido interposto recurso do Acórdão arbitral pela Demandada, notifiquem-se os Demandantes para apresentar, querendo, as suas contra-alegações.
Notifiquem-se, ainda, os Demandantes para, querendo, exercer o contraditório sobre o requerimento da Demandada de 28/02/2023.

10°) - O tribunal Arbitral veio a proferir despacho de 14-04-2023, ora reclamado, cujos termos aqui se têm presentes e se dão por reproduzidos, onde ajuizou que “o seu Acórdão em Matéria de Facto (de 9 de Junho de 2022) e o seu Acórdão em Matéria de Direito (de 23 de Janeiro de 2023) não são susceptíveis de recurso”, assim não admitindo o recurso da ora reclamante.

Posto isto, enfrentemos as questões acima expostas.

1ª Questão
A decisão reclamada erra no julgamento de direito ao fundar a irrecorribilidade dos acórdãos arbitrais na cláusula 40ª do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa, pois a renúncia prévia ao recurso é uma disposição de vontade sobre direitos substantivos, não apenas sobre direitos processuais, que se quer expressa, esclarecida e consciente, o que não ocorreu, pois não pode valer como tal a mera remissão convencional para os termos do referido Regulamento?

Em abono da resposta positiva a esta questão, a reclamante alega que perante os elementos de prova, escritos, que constam [d]os autos, um declaratário normal, razoável e diligente, não poderia compreender a parte final do n.° 2 da Cláusula I do Regulamento da Arbitragem com o sentido de que, por ela, os declarantes pretenderam afastar a regra transitória prevista no artigo 4.°, n.° 3 (disposição transitória) da Lei n.° 63/2011, que lhes permitia manter o direito ao recurso que resultava da circunstância de a convenção de arbitragem ter sido celebrada ao abrigo da LAV/86 sem que as partes, então, tivessem renunciado ao direito ao recurso da decisão arbitral; e a única regra que releva, na Lei 63/2011 - como de resto o Despacho sublinha, a fls. 11, porque a remissão nada acrescentaria, se assim não fosse, ao disposto no art.° 4.°, n.° 1, dessa Lei - , é justamente a regra do art.° 4.°, n.° 3, que mantém o direito ao recurso se este já existisse antes da entrada em vigor da LAV/2011.
Recordemos o teor da cláusula 2ª do Regulamento da Arbitragem:
O processo arbitral é regulado pelo presente regulamento e, em tudo quanto o não contrariar, pelas disposições fixadas no contrato de recolha de efluentes, devendo a referência, na cláusula 9ª nº 4 desse contrato, à Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, ser entendida como visando a lei de Arbitragem Voluntária, aprovada pela lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro”.
Por sua vez, a cláusula 9ª nº 4 do referido contrato, tinha o seguinte teor (cf. supra, artigo 2ª da selecção de factos relevantes:
“4. A arbitragem será realizada por um tribunal arbitral constituído nos termos desta cláusula e de acordo com o estipulado na Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto.”
Porém, não é no teor desta cláusula do Regulamento da arbitragem nem no contrato de recolhe de efluentes, nem num afastamento, por vontade das partes, de regime do direito a recorrer contido na Lei nº 31/86 de 29 de Agosto, cuja remanescência foi garantida pela norma transitória do artigo 4º nº 3 da Lei n.° 63/2011, que se encontra, segundo o despacho reclamado, o fundamento para a improcedência da pretensão da Reclamante, de ver admitido o recurso.
Fundamento para a não admissibilidade do recurso, segundo o despacho reclamado, é outrossim a vontade negocial das partes no sentido da renúncia ao recurso, inequivocamente expressa e não vetada por qualquer lei imperativa, designadamente de qualquer dos dois regimes que se sucederam..
No que releva para a sobredita questão, a fundamentação do despacho reclamado é redutível ao seguinte excerto:
«O advindo Regulamento da Arbitragem não se impõe por simples autonomia regulatória do Tribunal Arbitral. Outorgado, nele as partes verteram sua vontade e por ele quiseram ficar vinculadas aos seus comandos.
Previram que o processo arbitral fosse regulado pelo Regulamento e, em tudo, quanto o não contrariasse, pelas disposições fixadas no Contrato de Recolha de Efluentes, devendo a referência, na Cláusula 9.ª, 4, desse Contrato, à Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto, ser entendida como visando a Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.° 63/2011, de 14 de Dezembro.
Mas não se ficaram por uma simples “actualização” de referência normativa.
Fosse assim, mais não seria que iníqua Melius: “inócua”. perante o disposto em disposição transitória (art° 4°, n° 1 - Lei 63/11, de 14/12)
Introduziram na relação novidade.
Conferindo operacionalidade ao previsto no supra referido art.° 6° da actual LAV.
Fizeram de sua vontade que em tudo o que não constasse do Regulamento se aplicaria, sucessivamente, o Regulamento de Arbitragem (versão de 2008) do Centro de Arbitragem da Associação de Comercial de Lisboa - em cujo art. 40.° , n.° 1, se lê: “A decisão final do tribunal arbitrai não é susceptível de recurso” - e a nova LAV.
Remissão sem qualquer reserva, ou seja, sem afastar expressa ou mesmo tacitamente a aplicação do regime da irrecorribilidade da sentença arbitral.
Mesmo que por remissão configura convenção expressa, assumindo em bloco regime, dispensando explícita especificação dos seus particularizados aspectos.»
Sobre a insusceptiblidade de valer como renúncia prévia ao recurso esta outra remissão constante do acordo escrito que aprovou o regulamento arbitral – acordo das vontades de todas as partes e do Tribunal Arbitral, valer como declaração negocial consciente e deliberada – nada alega, a Reclamante, nem este colectivo vê que tal se possa julgar relativamente a um instrumento escrito outorgado por mandatários judiciais de todas as partes envolvidas, inclusive o da Reclamante.
Pelo exposto, é negativa a resposta a esta questão.

2ª Questão
A decisão reclamada erra no julgamento de direito ao fundar a irrecorribilidade dos acórdãos arbitrais na cláusula 40ª do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa pois, atento o valor do processo arbitral – €5 000 000 – a decisão arbitral é, agora, recorrível por força de norma inderrogável constituída pelo nº 5 do artigo 476º do CCP, introduzido pelo DL nº Decreto-Lei n.° 111- B/2017, de 31, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2018 e revogou tacitamente, na medida da incompatibilidade, o regime da LAV de 2011?

No que releva para esta questão, o despacho reclamado é redutível ao seguinte excerto:
« O art.° 476°, n.° 5, do CCP dispõe que “Nos litígios de valor superior a (euro) 500 000, da decisão arbitral cabe recurso para o tribunal administrativo competente, nos termos da lei, com efeito meramente devolutivo.”; mas esta previsão não tem o alcance que a reclamante lhe quer dar; [o] aditado pelo DL n.° 111-B/2017, de 31 de Agosto, não faz “renascer” um direito ao recurso; o elemento contextual de interpretação vinca que esta norma tem unicamente como escopo definir da i/recorribilidade da decisão arbitral (apenas) em função da alçada, acessoriamente fixando efeito ao recurso.
Em suma, segundo o despacho reclamado, esta inovação tem apenas o sentido de fixar uma alçada para os tribinais arbitrais quanto às decisões em matéria de contratação pública, não contém dispositivo incompatível com qualquer norma da LAV nem proscritivo da autonomia da vontade das partes no sentido de afastarem a recorribilidade da decisão arbitral.
Contra esta fundamentação, que o colectivo sufraga, nada alega a Reclamante.
Como assim, é negativa também a resposta à presente questão.

3ª Questão
A decisão reclamada erra no julgamento de direito ao fundar a irrecorribilidade dos acórdãos arbitrais na cláusula 40ª do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa pois, ao admitir-se que houve renúncia ao direito ao recurso com a outorga, em 2014, do Regulamento do Tribunal Arbitral, tal renúncia não pode operar perante o novo direito ao recurso constituído ex novo em Janeiro de 2018, pelo art.° 476.°, n.° 5, do CCP, porque o direito a que se renuncia deve ser conhecido (ou cognoscível) no momento do acto de renúncia;

O sentido desta questão fica prejudicado ante a fundamentação dada no despacho reclamado e ora sufragada por este tribunal na discussão da questão anterior.
Com efeito, se o sentido do nº 5 do artigo 476º do CCP introduzido pelo DL n.° 111-B/2017, de 31 de Agosto, não vai além de fixar uma alçada especial para os tribunais arbitrais em matéria de contratação pública, nada mais dispondo quanto ao regime de recorribilidade das suas decisões, designadamente em matéria de admissibilidade do renúncia ao recurso por vontade das partes, então esta inovação legislativa é indiferente para a validade da renúncia ao recurso mediante a adopção convencional do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa, na qual se fundamenta a decisão do Relator.
Como assim, também é negativa a resposta a esta terceira questão.

Conclusão
Do exposto quanto às sobreditas questões resulta que a reclamação improcede.

Custas
As custas hão-de ficar a cargo da reclamante, atento o total decaimento (artigo 527º do CPC) e bem assim o disposto no artigo 7º nº 4 e tabela II do RCP.

Dispositivo
Assim, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Administrativo (subsecção de contratos públicos) deste Tribunal Central Administrativo Norte, em indeferir a requerida reclamação, mantendo a decisão sumária reclamada.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em duas UCs – Cf. tabela II e artigo 7º nº 4 do RCP.
Porto, 9/5/2025

Tiago Afonso Lopes de Miranda
Ricardo Jorge Pinho Mourinho de Oliveira e Sousa
Maria Clara Alves Ambrósio