Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00132/17.6BECBR-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/30/2018
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:João Beato Oliveira Sousa
Descritores:ABUSO DO DIREITO; LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ; ADMISSIBILIDADE DE RÉPLICA
Sumário:
1. Nos termos do Artigo 85.º-A, nº1, do CPTA “É admissível réplica para o autor responder, por forma articulada, às exceções deduzidas na contestação…”
O abuso de direito é classificado pela doutrina e pela jurisprudência como uma excepção peremptória imprópria.
Assim, invocado o abuso de direito na contestação, os Autores tinham direito de responder em réplica.
2. E, havendo lugar à réplica, compreende-se que aí se inserisse também a resposta à questão da litigância de má-fé, pois seria destituído de sentido útil exigir um articulado específico para o efeito.*
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:CAMS
Recorrido 1:Município de M….
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar o despacho recorrido
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Norte:
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RELATÓRIO
CAMS e GMSA vieram interpor recurso do despacho do TAF de Coimbra de 05-07-2017 que não admitiu a réplica apresentada na presente acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual instaurada contra o Município de M….
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Conclusões dos Recorrentes:
1 - Como decorre do art. 85.º- A, n.º 1, do CPTA, o autor pode replicar, ou responder, às excepções deduzidas na contestação, permitindo-se, pois, ao autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção, no caso de a esta haver lugar, e responder às excepções deduzidas na contestação: quer às excepções dilatórias, que podem conduzir à absolvição da instância (cfr. art. 89.º, n.º 2 do CPTA), quer às excepções peremptórias, que importam a absolvição total ou parcial do pedido (cfr. art. 89.º, n.º 3 do CPTA) – v. neste sentido, Mário Aroso de Almeida, Comentário ao Código do Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, Almedina, 2017, p. 645.
2 - E, dito isto, temos que, no caso vertente, o Réu Município invocou abuso de direito e concorrência de culpas, mais tendo pedido a condenação dos Recorrentes como litigantes de má-fé.
3 - Ora, no que toca ao abuso de direito, dúvidas não podem existir em como a sua invocação consubstancia uma excepção peremptória, que assim mais não visa senão impedir o efeito jurídico dos factos articulados pelos AA. - cfr. art. 89.º, n.º 3, do CPTA e, na doutrina, Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, 2009, pp. 25 e ss.
4 - De facto, o abuso de direito é classificado pela doutrina e pela jurisprudência como uma excepção peremptória imprópria, reconduzível às exceptiones facti, assim consistente na invocação de um facto que demonstra que, no momento da propositura da acção, o autor já não era titular da pretensão que alega – ou seja, trata-se de um instituto que funciona como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas - cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 2012, pp. 89 e ss. e, na jurisprudência e ilustrativamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/02/2005 (proc. n.º 04B4671).
5 - Seguidamente, e assim no que toca à invocada concorrência de culpas arguida pelo Município Recorrido, não vemos como é que ela não corporiza também uma excepção peremptória, como de facto corporiza - isto é, uma circunstância modificativa ou mesmo impeditiva do direito à indeminização de que se arrogam titulares os AA. - e tudo como a doutrina e a jurisprudência assinalam (cfr. Marco Caldeira, A culpa é do lesado in Regime da responsabilidade extracontratual civil do estado e demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência, coord. Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, 1ª edição, Lisboa, AAFDL, 2017, p. 331 e, também designadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01/06/2006, prolatado que foi no processo n.º 01186/05).
6 - Logo, o douto despacho recorrido, ao ter determinado o desentranhamento da réplica apresentada pelos AA., incorreu em erro de julgamento, assente na afronta ao disposto nos arts. 85.º- A, n.º 1 e 89.º do CPTA e do art. 3.º do CPC.
7 - Mas não só: com efeito, e como se referiu oportunamente, vimos já que o Município peticionou a condenação dos AA. como litigantes de má-fé.
8 - E, como é bom de ver, os Recorrentes têm todo o direito a pronunciar-se a este respeito, posto que assim o postulam os princípios do contraditório, da igualdade de armas e do princípio da tutela efetiva dos direitos e interesses dos particulares (cfr. art. 3.º do CPC, aplicado ex vi do art. 1.º do CPTA, art. 2.º do CPTA e arts. 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
9 - Valendo isto por dizer que, mesmo que não tivessem sido deduzidas excepções (hipótese meramente académica), sempre o articulado apresentado pelos AA. deveria ser admitido, tanto mais que não pode haver lugar a uma lícita decisão de condenação por litigância de má-fé sem contraditório, tendo aquele, como os AA., que vê contra si deduzido tal pedido a possibilidade de dizer de sua justiça, sob pena de violação, desde logo, do princípio do contraditório, na sua vertente da proibição da indefesa (que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito) – sobre esta matéria, v .GOMES CANOTILHO, J. J./VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa: anotada, volume I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 164.
10 - E tudo, aliás, como também é jurisprudência pacífica que dispensaria citação - cfr., entre tantos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 289/02 e 440/94, bem como o Acórdão do STA de 05/06/2000, prolatado no âmbito do processo n.º 44462 e o Acórdão de 30/01/2002 do STA prolatado no âmbito do processo n.º 47301, todos eles perfilhando o entendimento uniforme que uma “ (...) interpretação de acordo com a CRP exige a audição prévia do litigante de má-fé, de modo a que ele possa alegar o que tiver por conveniente”.
11 - E daí que, mas entre o mais, o legislador estatua a admissibilidade de recurso das decisões que condenem em litigância de má-fé independentemente do valor da causa e da sucumbência, em um grau (cfr. art. 542.º, n.º 3, do CPC aplicado ex vi dos arts. 1.º e 142.º, n.º 3 do CPTA).
12 - Por outras palavras, face aos princípios do contraditório, da tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses dos particulares e da igualdade de armas, os AA. tinham, no mínimo, inequívoco direito a pronunciar-se acerca do pedido de litigância de má-fé.
13 - Pelo que sempre o douto despacho recorrido incorre em erro de julgamento por afronta aos princípios do contraditório, na sua vertente da proibição da indefesa (cfr. art. 3.º, n.º 3 do CPC, aplicado ex vi do art. 1.º do CPTA), da tutela jurisdicional efectiva, no qual está aquele ínsito (art. art. 2.º do CPTA, 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP), bem como da igualdade de armas das partes (art. 3.º, n.º 1 do CPC, aplicado ex vi do art. 1.º do CPTA).
14 - Em suma, deve o douto despacho recorrido ser revogado, uma vez que ele enferma de erro de julgamento assente na afronta ao disposto nos arts. 85.º- A, n.º 1 e 89.º do CPTA, 3.º do CPC, 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP devendo, assim, o articulado apresentado pelos AA. em 22/05/2017 ser admitido.
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INCIDÊNCIAS PROCESSUAIS
Num caso destes autos não há propriamente factos a destacar, uma vez que a questão se resolve perante os articulados e o despacho recorrido, que se transcreve na parte impugnada:
«Despacho
O articulado, dito de réplica, dos Autores junto em 22/5 não está previsto na tramitação da acção administrativa prevista nos Artigos 78º e sgs do CPTA actual (o aplicável) nem na fonte subsidiária que é o CPC (artigos 552º e sgs).
Como assim, determino o desentranhamento do requerimento acima referido e a sua devolução ao ilustre apresentante.
Quanto ao documento junto, ficará nos Autos, atento o princípio da aquisição processual.
Custas do incidente anómalo pelos Autores, pelo mínimo da tabela respectiva.»
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DIREITO
As conclusões dos Recorrentes poderiam eficazmente limitar-se à nº2.
Há que indagar se os ditos meios de defesa (abuso do direito, concorrência de culpas e litigância de má fé) foram invocados na contestação do Réu e se a réplica apresentada serviu para lhes dar resposta.
Constata-se que assim sucede.
Na contestação, artigos 137º a 149º, sob a epígrafe “Do Abuso de Direito”, o Réu invoca e caracteriza o alegado abuso de direito imputado aos Autores.
Seguidamente, nos artigos 163º e seguintes, sob epígrafe “Da Concorrência de Culpas”, o Réu alega, v.g., que “a actuação culposa dos AA. Concorreu para a formação do ilícito e consequente produção dos alegados danos, de acordo com o preceituado no art. 570º do CC.» Concretizando, além do mais, que “a actuação culposa da projectista contratada pelos AA é tida como própria dos AA, que desta forma concorreram – rectius determinaram – para a má avaliação do projecto e ilícita aprovação”.
Finalmente, a culminar a contestação é pedida a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, em multa e em indemnização ao Réu.
Por seu turno em réplica os Autores dizem, por exemplo, “que não há culpa da projectista que contrataram…”; que “abusivo, isso sim, é este Município…” e que “má-fé, isso sim, é tentar negociar com os AA uma indemnização, aceitando assim os prejuízos, e depois vir a juízo dizer que eles inexistem”. E a concluir a que:
“a) devem as excepções suscitadas naufragar;
b) deve a requerida litigância de má-fé ser totalmente julgada improcedente;
c) deve o Réu ser condenado como litigante de má-fé…»
O passo seguinte da indagação é de ordem normativa, saber se é possível aos autores defenderem-se em réplica contra tais situações de, digamos, “contra-ataque”.
E a resposta é claramente afirmativa. Veja-se no CPTA:
«Artigo 85.º-A
Réplica e tréplica
1 - É admissível réplica para o autor responder, por forma articulada, às exceções deduzidas na contestação (…)
Artigo 89.º
Exceções
1 - As exceções são dilatórias ou perentórias.
2 - As exceções dilatórias são de conhecimento oficioso e obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.
3 - As exceções perentórias consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, são de conhecimento oficioso quando a lei não faz depender a sua invocação da vontade do interessado e importam a absolvição total ou parcial do pedido.»
Por outro lado, o pedido de condenação como litigante de má-fé ultrapassa também o conceito puro de defesa, traduzindo-se no enxerto de um pedido do Réu contra os Autores, aos quais, nessa circunstância, deve ser facultado o direito de defesa, em face do princípio do contraditório, previsto no artigo 3º/3 do CPC.
A jurisprudência é claríssima no sentido de que a invocação de abuso do direito ou de concorrência de culpas constituem excepções. Por exemplo:
Acórdão do STJ de 01-07-2004, Proc. 04B4671:
«O abuso do direito, excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, envolve situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo.
Acórdão do STA de 01-06-2006, Proc. 01186/05:
«III - Assim, se a questão é de concorrência de culpas, equiparável à situação do art. 570º do C.C. - na medida em que a falta de recurso contencioso aliado a outros meios contenciosos, como a suspensão de eficácia e a execução de sentença, pode representar uma concausa na produção do dano - então estamos perante circunstâncias que servem de impedimento ou de limitação dos efeitos jurídicos dos factos articulados pelo A.
IV - Ao R. cumpre alegar e provar a culpa do A. na produção dos danos, porque a matéria é de defesa por excepção (arts. 487º, nº2, 2ªparte, 493º, nº2 e 3 e 496º do CPC).»
Finalmente, havendo na prática lugar à réplica, compreende-se que aí deva inserir-se a resposta à questão da litigância de má-fé, pois seria destituído de sentido útil multiplicar o número de articulados quando todas as questões podem ser respondidas no mesmo. Assim:
Acórdão do TRC de 03-05-2005, Proc. 569/05
«Requerendo a autora, na réplica, a condenação da ré como litigante de má-fé, tem esta, face ao princípio do contraditório – consagrado no artº 3º, nº 3, do C.P.Civil e que a jurisprudência constitucional tem considerado ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais previsto no artº 20º da C.R.P. -, direito a pronunciar-se acerca de tal pedido.
Sendo admissível tréplica, poderá fazê-lo neste articulado.
Não sendo admissível tréplica, pode pronunciar-se em requerimento autónomo.»
Em suma. Assiste razão aos Autores, ora Recorrentes, devendo ser revogado o despacho que determinou o desentranhamento da réplica.
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DECISÃO
Pelo exposto acordam em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida.
Sem custas porque o Réu não requereu o desentranhamento da réplica nem contra alegou no presente recurso.
Porto, 30 de Maio de 2018
Ass. João Beato
Ass. Hélder Vieira
Ass. Rogério Martins