Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02843/18.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/06/2025
Tribunal:TAF do Porto
Relator:PAULO FERREIRA DE MAGALHÃES
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; INFRACÇÃO DISCIPLINAR;
APLICABILIDADE DA LEI N.º 38-A/2023, DE 02 DE AGOSTO;
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE; EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA.
Sumário:
1 - Da amnistia de infrações disciplinares prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, decorre o efeito essencial e típico de qualquer amnistia – impedir que o agente agraciado sofra a sanção que lhe poderia vir a ser [ou que já lhe foi] aplicada pela prática de uma infração –, pelo que a conformação concreta dos respetivos efeitos fica dependente das regras estatuídas no regime jurídico disciplinar aplicável, enquanto legislação subsidiária ou complementar.

2 - Tratando os autos de infracção disciplinar praticada em 03 de janeiro de 2018, consubstanciada na violação do dever de obediência, é manifesto que a mesma se subsume no âmbito do disposto nos artigos 2.º, n.º 2, alínea b) e 6.º, ambos da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, por não se dilucidar dos autos nem do Processo Administrativo que esteja em causa ilícito disciplinar que constitua simultaneamente ilícito criminal, ou que a Autora seja reincidente no cometimento de infracções disciplinares.

3 - Neste pressuposto, a amnistia deve ser apreciada por este TCA Norte, enquanto instância de julgamento em sede de recurso jurisdicional ora em apreço, declarando amnistiada a pena de multa aplicada à Autora ora Recorrente, no valor de €200,00 [Cfr. artigo 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto], e declarando a inutilidade superveniente da lide [Cfr. artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA], na parte em que a amnistia abarca todos os efeitos da pena aplicada, tornando-se assim inútil a continuação da lide.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Declarada a extinção da instância.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I - RELATÓRIO


«AA» [devidamente identificada nos autos] Autora na acção que intentou contra o Centro Hospitalar .../[SCom01...], EPE [também devidamente identificada nos autos], e no âmbito da qual visou a impugnação da deliberação do respectivo Conselho de Administração, datada de 19 de julho de 2018, que lhe aplicou uma pena de multa, graduada em € 200,00, pedindo a sua anulação, inconformada com a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, pela qual foi a ação julgada improcedente, e absolvida a Ré do pedido contra si formulado, veio interpor recurso de Apelação.

*
No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
CONCLUSÕES:
I – Das declarações prestadas pela Recorrente em sede de declarações de parte (depoimento gravado de 00:01:35 até 00:41:10 e, especificamente, nos trechos que se encontram de 00:15:37 a 00:19:05 e de 00:19:48 a 00:21:43), pela testemunha «BB» (depoimento gravado de 00:42:10 até 01:26:00 e, especificamente, nos trechos que se encontram de 00:47:42 a 00:57:19 e de 01:02:36 a 01:06:36), pela testemunha «CC» (depoimento gravado de 01:26:40 até 01:56:20 e, especificamente, no trecho que se encontra de 01:34:19 a 01:39:16) e pela testemunha «DD» (depoimento gravado de 01:57:23 até 02:35:17 e, especificamente, no trecho que 02:26:28 a 02:35:10), resulta, sem margem para dúvidas, que: (i) em ordem à transferência de doentes do Serviço de Urgência para o Serviço de Pneumologia, é necessário que o doente a transferir conste do S-Clinic; (ii) na noite em questão, mais concretamente durante o turno da noite, o doente a transferir não surgiu no S-Clinic (o que, aliás, consta, na sentença recorrida, do ponto 22 dos factos provados); (iii) Por não ter surgido qualquer doente no S-Clinic, a unidade não foi desinfectada, tanto mais que essa operação, a essa hora, iria desestabilizar os outros doentes;
II - Nessa medida, em face da prova produzida, deveria ter-se considerado provado, tal como alegado em 36.º a 38.º da petição inicial, o seguinte facto:
- Não tendo surgido qualquer doente a transferir no S-Clinic, a unidade não foi desinfectada, uma vez que essa operação iria desestabilizar os outros doentes; III – Por não considerar provado o referido facto – cuja prova resulta, claramente, dos aludidos depoimentos - incorre a sentença recorrida em erro de julgamento quanto à matéria de facto, violando, nessa medida, o disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC; IV - O facto a que vem de se fazer referência revela-se absolutamente essencial à boa decisão da causa, sobretudo porque o juízo que na sentença recorrida se faz sobre a conduta da Recorrente parte, justamente, da desconsideração do mesmo, o que possibilita que se afirme - e, por aí, se sustente a improcedência da acção – que logo que o serviço acalmou deveria ter providenciado pela desinfecção da unidade;
V – Estando assente que o Réu dispõe de um sistema informático designado S-Clinic, o qual, entre o mais, se destina à transferência de doentes entre serviços, que o doente em questão não apareceu no dito S-Clinic durante todo o turno da noite, que no início desse turno da noite o Serviço de Pneumologia recebeu dois doentes transferidos do serviço de urgência - um com risco de fuga e outro em fase terminal -, e tendo em conta que a desinfecção da unidade de isolamento durante a madrugada seria susceptível de desestabilizar outros doentes – como o Tribunal a quo deveria ter considerado provado -, designadamente os dois que, no início do turno da noite, foram transferidos do serviço de urgência, não se vislumbra por que razão tinha a Recorrente de determinar a dita desinfecção, quando não constava do sistema SClinic nenhum doente para transferir e, portanto, essa operação poderia ser realizada, sem óbices, durante a manhã;
VI - A Recorrente, enquanto Enfermeira, e à luz do que decorre do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, tem o dever de proteger a vida humana em todas as circunstâncias - artigo 103.º, alínea a) – e o dever de se corresponsabilizar pelo atendimento do indivíduo em tempo útil, de forma a não haver atrasos no diagnóstico da doença e respectivo tratamento – artigo 104.º, alínea a). Para além disso, por força do disposto no artigo 8.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 248/2009, de 22 de Setembro, tem ainda o dever de contribuir para a defesa dos interesses do utente no âmbito da organização das unidades e serviços;
VII - Na ponderação entre a ordem dada para desinfectar uma unidade de isolamento, quando não havia, de acordo com o sistema S-Clinic, nenhum doente a transferir para a mesma, e a necessidade de salvaguardar o descanso, durante a noite, dos demais doentes, relevam, indubitavelmente, os referidos “interesses do utente”;
VIII – Deveria ter-se considerado na sentença recorrida que foi no estrito cumprimento dos deveres a que está adstrita enquanto enfermeira que a Recorrente não acatou a ordem que, indirectamente, lhe foi transmitida, quer no momento em que a mesma lhe foi comunicada quer posteriormente, durante o turno da noite;
IX - Tendo em conta que, de acordo com o disposto no artigo 190.º, n.º 1, alínea e) da LTFP, são circunstâncias dirimentes da responsabilidade disciplinar o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, tinha o Tribunal a quo de ter considerado que a conduta da Recorrente não foi ilícita e que, por essa razão, não estão preenchidos os elementos constitutivos da infracção disciplinar;
X - Aliás, atendendo a que toda a questão que está na génese do processo disciplinar resulta da transferência de um doente, que para que uma tal transferência se efective é necessário que o doente surja no S-Clinic e que, durante todo o turno da noite, isso não aconteceu, entende-se, inclusivamente, que não era exigida à Recorrente conduta diversa da que teve, o que, igualmente, consubstancia circunstância dirimente da responsabilidade disciplinar, nos termos do disposto no artigo 190.º, n.º 1, alínea d) da LTFP.
XI – Por assim não ter considerado, enferma a sentença recorrida de um erro de julgamento, violando o artigo 190.º, n.º 1, alíneas d) e e) da LTFP.
Termos em que,
Considerando procedente o presente recurso e revogando, consequentemente, a sentença recorrida, farão V. Exas JUSTIÇA!
[…]”

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A Recorrida não apresentou Contra Alegações.

*

O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos.

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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional, que o foi, em suma, no sentido da confirmação da sentença recorrida, e assim, pela improcedência do recurso deduzido.

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Na sequência do nosso despacho datado de 16 de julho de 2024, a Recorrente e a Recorrida vieram a apresentar pronúncias visando a oportunidade da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide – Cfr. fls. 226, 231 e 235 dos autos, SITAF].

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Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.

***

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Depois de corridos termos neste Tribunal de recurso, cumpre apreciar e decidir uma questão prévia, atenta a superveniência da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, e que contende com saber se a infracção disciplinar cometida pela Autora ora Recorrente, e que esteve na origem do procedimento disciplinar que lhe foi instaurado, está amnistiada, e assim, se tal é fundamento da extinção da instância, por inutilidade superverveniente da lide, como assim julgamos decorrer do sustentado pelos requerimentos entretanto apresentados nos autos pela Recorrente e pela Recorrida.

Na eventualidade de assim não vir a ser julgado, e nesse patamar, devendo os autos prosseguir termos, cumprirá então apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA, sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que venha a declarar a sua nulidade, sempre tem de decidir [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA] “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.”, reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas, o que, em face do teor das conclusões das Alegações de recurso apresentadas, passa por saber se o Tribunal a quo errou no julgamento por si prosseguido em sede de matéria de facto e também de direito.

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III - FUNDAMENTOS IIIi - DE FACTO
No âmbito da factualidade considerada pelo Tribunal recorrido em sede da Sentença proferida, dela consta o que por facilidade, para aqui se extrai como segue:

“[…]
II.1 – Factos provados:
É a seguinte a matéria de facto provada com relevância para a decisão da causa, por ordem lógica e cronológica:
1 - A Autora exerce as funções de Enfermeira no serviço da Entidade Demandada, em regime de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado;
2 - Por deliberação do Conselho de Administração da Entidade Demandada de 10.01.2018, foi instaurado procedimento disciplinar contra Autora, no âmbito do qual foi deduzida acusação, em 24.04.2018, com o seguinte teor:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cf. cópia da acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
3. No âmbito do mesmo procedimento disciplinar, em 25.06.2018, foi elaborado relatório final, no qual foi proposto a aplicação da sanção de multa no valor de € 200,00, nos termos dos art.ºs 185º, e 181º, n.º 2, da Lei Geral do Trabalho em
Funções Públicas – cf. relatório, a fls. 12 a 14 do processo físico;
4. O Relatório Final referido no ponto anterior tem o seguinte teor:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

[
- cf. cópia de relatório, a fls. 12 a 14 do processo físico;
5. Sobre a proposta referida no ponto 3), o Conselho de Administração da Entidade Demandada deliberou, em 19.07.2018, concordar com a mesma e aplicar a multa – cf. relatório, a fls. 14/verso do processo físico; Mais se provou que:
6. No dia 3.01.2018, no turno da noite, das 20,00h às 8.30h, a Autora encontrava-se a prestar serviço no internamento do Serviço de Pneumologia, como Enfermeira Responsável de Turno, juntamente com as enfermeiras «BB» e «CC» e a assistente operacional «EE» – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
7. Nesse dia 3.01.2018, pelas 20,30h, a enfermeira «FF», a exercer funções no serviço de Urgência contactou o internamento do Serviço de Pneumologia no sentido de efetuar a transferência de um doente para aquele serviço – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
8. A Autora recusou receber o doente naquele turno, alegando que tinham de efetuar a desinfeção e só uma auxiliar se encontra ao serviço – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
9. Tal facto foi comunicado ao Diretor Clínico que, por sua vez, contactou a Enfermeira Diretora da recusa em receber o doente – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
10. A Enfermeira Diretora contactou a médica em serviço no Serviço de Pneumologia que confirmou a existência de vaga, mas que da parte da enfermagem não havia possibilidade de receber o doente – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
11. Nessa sequência, às 21,30h, a Enfermeira Diretora contactou, via telefone, o Serviço de Pneumologia para falar com a Autora, tendo a enfermeira «CC» informado que a Autora não podia atender a chamada por se encontrar a prestar cuidados a um doente instável e em fase terminal, mais informando que assim que pudesse a Autora retribuía a chamada – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
12. A Enfermeira Diretora respondeu, dizendo que não era preciso retribuir a chamada e que deveriam desinfetar a unidade e comunicar ao Serviço de Urgência para mandarem o doente para o Serviço de Pneumologia – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
13. A Autora não diligenciou pela desinfeção da unidade – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico;
14. O serviço de Urgência encontrava-se lotado, com trinta e sete doentes internados a aguardar transferência – cf. acusação, a fls. 32 e 33 do processo físico; Provou-se ainda que:
15. O Serviço de Pneumologia tem vinte e sete camas;
16. No dia 3.01.2018, no início do turno da noite, estavam internados vinte e quatro doentes;
17. Um dos quartos de isolamento estava ocupado com material de armazém;
18. Após as 20,00h foi dada alta a um doente;
19. Nesse dia o Serviço de Pneumologia, pelas 8,30h, recebeu dois doentes do Serviço de Urgência, um com risco de fuga e o outro em fase terminal;
20. Por regra, o Serviço de Pneumologia encontra-se com a totalidade das camas ocupadas;
21. Aquando da passagem para o turno da noite, a Autora foi informada pelas colegas que havia mais um doente a ser transferido do Serviço de Urgência;
22. O doente a transferir não constou no Sclinic durante o turno da noite;
23. O doente em questão foi transferido no turno seguinte;
24. O procedimento de transferência de doentes entre os serviços da Entidade Demandada é iniciado com um telefonema do serviço de origem, que remete o doente após o serviço recetor informar telefonicamente que a unidade está pronta para o receber;
25. Nos serviços da Entidade Demandada existe um sistema informático onde, entre o mais, se procede ao registo das transferências dos doentes entre os vários serviços - Sclinic;
26. Com frequência semanal os doentes deixam o Serviço de Pneumologia no início da noite e com frequência mensal procede-se à desinfeção das camas no turno da noite.
*
II.2 – Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos para além dos supra referidos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente, o seguinte:
a) A Autora contactou o Serviço de Urgência, pelas 2,00h a questionar se o doente vinha transferido, tendo-lhe sido respondido que não.
*
II.3 - Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção através da análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, conforme acima indicado em relação aos pontos do elenco dos factos provados, bem como da posição das partes relativamente aos factos constantes dos articulados por elas apresentados.
No que se refere à factualidade relativa à situação do Serviço de Pneumologia no turno em questão, o Tribunal estribou-se nas declarações Autora e no depoimento das testemunhas «BB» e «CC», enfermeiras ao serviço no turno, prestados de forma serena e espontânea, assim como quanto aos procedimentos adotados para a transferência de doentes, tendo esta última confirmado o teor da ordem dada via telefone pela Enfermeira Diretora.
Já a testemunha «DD», Enfermeiro-Chefe do Serviço de Pneumologia, com um depoimento igualmente sereno e espontâneo, auxiliou o Tribunal a dar por provada a factualidade relativa ao procedimento de transferência de doentes utilizado nos serviços da Entidade Demandada, assim como, quanto à frequência da realização de desinfeções durante o turno da noite.
Quanto ao facto não provado, o Tribunal ponderou a circunstância de existir um doente a transferir do serviço de urgência, que veio a ser transferido no turno seguinte, assim como a inverosimilhança de ter sido efetuado o telefonema sem que a desinfeção prévia estivesse realizada.
[…]”

**

IIIii - DE DIREITO

Como assim decorre do processado nos autos, está em causa a decisão que aplicou à Autora ora Recorrente a pena disciplinar de multa no valor de €200,00, pelo cometimento de infracção disciplinar integrativa da violação do dever de obediência, sendo que, tendo a Sentença recorrida sido proferida em 29 de maio de 2020, no dia 16 de julho de 2024 o Relator proferiu o despacho que para aqui ora transcrevemos, como segue:

Início da transcrição
“[…]
1 - Conforme assim deflui dos autos, está em causa a deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar .../[SCom01...], EPE, datada de 19 de julho de 2018, que aplicou à Autora ora Recorrente a pena disciplinar de multa no valor de €200,00.

No dia 02 de agosto de 2023, foi publicada a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, pela qual, em suma, foi estabelecido um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Nos termos da alínea b) do número 2 do artigo 2.º, e do artigo 6.º daquela Lei n.º 38A/2023, de 02 de agosto, são amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares, praticadas até às 00,00 horas do dia 19 de junho de 2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.
Da concatenação dos referidos normativos, e tendo presente o objecto da acção e do recurso interposto, pode vir a resultar a formação de um julgamento no sentido da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Atentos os pressupostos deixamos enunciados supra, e tendo subjacente o disposto no artigo 6.º do CPTA e no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, e sob cominação do disposto no artigo 417.º, n.ºs 1 e 2 do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA, determino a notificação das partes para que, venham aos autos, no prazo de 10 [dez] dias, emitir pronúncia efectiva em torno daquela nossa motivação.
[…]”
Fim da transcrição

Como assim enunciado supra, e em conformidade com o que se extrai das pronúncias emitidas pela Autora ora Recorrente, a mesma veio referir “[…] que entende, igualmente, que deve aplicar-se, no caso, a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, com todas as consequências daí decorrentes, por estarem reunidos os pressupostos legais para o efeito, mais informando, para os efeitos do disposto no artigo 11.º daquele diploma, que não se recusa à aplicação da amnistia.”, sendo que, por parte da Ré ora Recorrida, o que se extrai da sua pronúncia é que “[…] acolhe a posição perfilhada […], sobre a eventual aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, com todas as consequências decorrentes da amnistia.”

Cumpre então apreciar e decidir.

Conforme assim dimana da instrução dos autos, na sua pendência junto desta instância de recurso, e precedendo despacho do Relator datado de 16 de julho de 2024, e do que extraímos da pronúncia da Recorrente em face daquele despacho, é que por estar em apreço nos autos uma situação disciplinar enquadrável na recente Lei da Amnistia, a que se reporta a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, que pretende que lhe seja aplicado o respectivo regime jurídico, no sentido de ser amnistiada com todas as consequências daí decorrentes, o que assim também veio a sustentar a Recorrida no requerimento por si apresentado, e nesse conspecto, que os autos deviam seguir os seus ulteriores termos.

Aqui chegados.

A sanção disciplinar em apreço nos autos é relativa a 1 [uma] multa no valor de €200,00, que está a coberto da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, em face do disposto nos seus artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º, sendo por isso passível de ser amnistiada por ter sido cometida até às 00,00 horas de 19 de junho de 2023, pelo que assim julgamos que nada determina a continuação dos autos em ordem a conhecer do recurso interposto pela Autora visando a apreciação do mérito da Sentença recorrida.

Efectivamente, em torno da não continuação dos autos para efeitos de ver apreciada a legalidade do acto que aplicou à Autora a pena disciplinar de multa, reconduzida ao valor global de €200,00, tal ocorre por vontade da Recorrente e sem oposição da Recorrida.

Atento o teor das posições deixadas vertidas nos requerimentos apresentados já neste Tribunal de recurso, julgamos que a Autora ora Recorrente é titular de um concreto interesse em agir, mas que não passa já pela continuação dos autos tendo em vista a apreciação dos imputados erros de julgamento à Sentença recorrida, onde a final e em suma foi julgado pela improcedência do pedido formulado a final da Petição inicial, e que passou entre o mais, pela apreciação e decisão em torno da invalidade do acto administrativo por via do qual lhe foi aplicada a identificada multa, no valor global de €200,00.

Em conformidade com o julgamento prosseguido pelo STA no Acórdão proferido no Processo n.º 03008/14.5BELSB, datado de 29 de fevereiro de 2024 [acessível em www.itij.pt], em torno de a amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, ser de aplicação imediata, e que deve preceder o conhecimento de qualquer outra questão que se tenha suscitado no âmbito da ação administrativa de impugnação de actos administrativos de aplicação de sanções disciplinares, e de que a sua aplicação, podendo conduzir à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, torna a discussão inútil se se tornar inaplicável a sanção disciplinar, julgamos que esta jurisprudência é aplicável à situação dos autos.

Como assim julgamos, a inutilidade superveniente na lide ocorre, porque em face do que assim resulta da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, não constituindo os factos imputados à arguida, infração disciplinar ou infração disciplinar militar, simultaneamente ilícito penal não amnistiado pela Lei e cuja sanção aplicável, e em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar, e tendo sido impugnada a decisão que aplicou a pena, sempre a infracção deve ser amnistiada pela instância de julgamento. Efectivamente, só quando o demandante pretenda a continuação dos autos, seja para efeitos de ser efectuado julgamento em torno de que não cometeu qualquer infracção, seja para efeitos de serem restaurados na sua esfera jurídica os efeitos já produzidos pela pena aplicada [será o caso da pena de suspensão, que implica a perda de vencimento], nessa eventualidade, e assim querendo o interessado, a lide não pode ser extinta por manter a sua utilidade, no que seja remanescente.

Enfatizamos porém, que naquelas situações, o cidadão a quem foi aplicada pena disciplinar pode ter por certo que a infracção pode ser amnistiada de forma imediata e se assim for sua vontade, ser determinada a extinção da instância, desaparecendo da ordem jurídica por pressuposto dela, os efeitos que ainda não tenham sido produzidos, e nesse patamar, não mais se sabendo se os termos e os pressupostos em que a Administração se ancorou para lhe imputar o cometimento da infracção disciplinar eram válidos, isto é, se sempre ocorrerem e pelos termos e pressupostos fixados na decisão administrativa condenatória, ou então, pode prosseguir na apreciação do mérito da impugnação judicial do acto administrativo, sendo certo que, na eventualidade de vir a ser julgado da validade do acto administrativo, e de assim vir a ficar patenteado numa Sentença proferida por um Tribunal, pese embora sempre a infracção disciplinar se ter por amnistiada, passa a ficar certo e firmado em sede da relação jurídica administrativa controvertida, que atenta a ilicitude da acção assacada ao arguido, que a actuação da Administração se tem por correcta, por isenta de qualquer crítica e a final de invalidade que seja determinante da sua nulidade ou anulação, com as legais consequências.

Sendo sempre uma opção de quem demanda, é este que tem de fazer o balanceamento entre os resultados possíveis, e em que medida, um ou outro melhor se compaginam com a sua perspectiva hedonística da realidade.

Tratando os autos, de infracção disciplinar praticada em 03 de janeiro de 2018, consubstanciada, em suma, na violação do dever de obediência, é manifesto que se subsume no âmbito do disposto nos artigos 2.º, n.º 2, alínea b) e 6.º, ambos da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, pois não se dilucida dos autos nem do PA que estejam em causa ilícitos disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos criminais, ou que a Autora seja reincidente no cometimento de infracções disciplinares.

Neste pressuposto, a amnistia deve ser aplicada por este TCA Norte, enquanto instância de julgamento em sede do recurso jurisdicional ora em apreço, como assim faremos consignar em sede do dispositivo, declarando amnistiada a pena disciplinar de multa aplicada à Autora [Cfr. artigo 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto], e declarando a inutilidade superveniente da lide [Cfr. artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA], na parte em que a amnistia abarca todos os efeitos da pena aplicada.

Ou seja, dada a superveniência de um diploma legal que por si é determinante da amnistia da pena disciplinar aplicada, na situação concreta dos autos, extinguiu-se a responsabilidade disciplinar da arguida, o que reveste aptidão para que, em face do patenteado nos autos e na Lei, ser declarada a amnistia da infracção, tornando-se assim inútil a continuação da lide, o que é fundamento determinante da extinção da instância.

Tendo cessado a responsabilidade disciplinar da Autora, por vontade, ou graça do legislador, e assim a pena de multa que lhe foi aplicada e que a Autora quis ver sindicada judicialmente por via da impugnação judicial do acto administrativo que a fixou, quanto aos efeitos que a mesma visava atingir, e tendo esses sido já neutralizados, deixaram por isso de ter qualquer valor ou eficácia, impõe-se a reposição da condição jurídica ao tempo em que não lhe tinha sido aplicada a pena, ou melhor, ainda antes de lhe ter sido instaurado o processo disciplinar.

Como assim julgamos, assiste à Autora ora Recorrente, enquanto arguida no processo disciplinar, e também enquanto demandante, o direito a que a pretensão por si deduzida na impugnação judicial da decisão punitiva seja /possa ser apreciada no seu mérito potencial, quando subjacente à sua motivação estiver, designadamente, o pressuposto de que não cometeu a infracção disciplinar por que foi punida, ou de outro modo, que a sua actuação não poderia ser entendida em termos de poder/dever ser sancionada e reprimida do ponto de vista disciplinar.

Tendo sido por si requerido já nesta instância de recurso, que lhe deve/pode ser aplicada a Lei da amnistia, porque a apontada infracção disciplinar ocorreu em data anterior a 19 de junho de 2023, com as legais consequências, tal demanda a extinção da instância, por ocorrência da inutilidade superveniente da lide.

Deste modo, fica assim absolutamente prejudicada a apreciação do mérito da pretensão recursiva deduzida pela Recorrente.

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E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:


DESCRITORES: Processo disciplinar; Infracção disciplinar; Aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto; Inutilidade superveniente da lide; Extinção da instância. 1 - Da amnistia de infrações disciplinares prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, decorre o efeito essencial e típico de qualquer amnistia – impedir que o agente agraciado sofra a sanção que lhe poderia vir a ser [ou que já lhe foi] aplicada pela prática de uma infração –, pelo que a conformação concreta dos respetivos efeitos fica dependente das regras estatuídas no regime jurídico disciplinar aplicável, enquanto legislação subsidiária ou complementar.

2 - Tratando os autos de infracção disciplinar praticada em 03 de janeiro de 2018, consubstanciada na violação do dever de obediência, é manifesto que a mesma se subsume no âmbito do disposto nos artigos 2.º, n.º 2, alínea b) e 6.º, ambos da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, por não se dilucidar dos autos nem do Processo Administrativo que esteja em causa ilícito disciplinar que constitua simultaneamente ilícito criminal, ou que a Autora seja reincidente no cometimento de infracções disciplinares.

3 - Neste pressuposto, a amnistia deve ser apreciada por este TCA Norte, enquanto instância de julgamento em sede de recurso jurisdicional ora em apreço, declarando amnistiada a pena de multa aplicada à Autora ora Recorrente, no valor de €200,00 [Cfr. artigo 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto], e declarando a inutilidade superveniente da lide [Cfr. artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA], na parte em que a amnistia abarca todos os efeitos da pena aplicada, tornando-se assim inútil a continuação da lide.

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IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Social da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência:

A) em declarar amnistiada a pena disciplinar de multa aplicada à Autora, ora Recorrente;
B) em declarar a inutilidade superveniente da lide, e assim, pela extinção da instancia.

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Custas a cargo da Recorrente e da Recorrida, em partes iguais - Cfr. artigo 536.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do CPC.

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Notifique.

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Porto, 06 de junho de 2025.


Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Fernanda Brandão
Isabel Costa