Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00210/23.2BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/22/2024
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:MARIA CLARA ALVES AMBROSIO
Descritores:ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL DO TRIBUNAL;
ARTº 613.º DO CPC; PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO;
DECISÃO SURPRESA; NULIDADE PROCESSUAL;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Administrativa, subsecção de Contratos Públicos, do Tribunal Central Administrativo Norte,

I. RELATÓRIO
Banco 1....A. – Sucursal em Portugal apresentou requerimento de injunção junto do BNI contra o Centro Hospitalar ..., peticionando o pagamento de quantia global de € 406 075,80, correspondendo € 369 101,25 ao capital e € 28 985,05 a juros de mora, €7760,00 a outras quantias e € 229,50, a título de taxa de justiça, respeitante a créditos decorrentes de faturas emitidas por fornecedores do R. que adquiriu através de contratos de cessão de créditos.
Face à oposição à injunção, foi o processo remetido ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que, por despacho de 19/6/2023, determinou a notificação das partes para “aperfeiçoarem as suas peças processuais, de forma a adequá-las à acção administrativa, prevista e regulada no CPTA (cf. o artigo 17.º, n.º 3, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro)”.
A A. apresentou petição inicial aperfeiçoada, na qual terminou requerendo o seguinte: “(…) se digne admitir nos autos o presente aperfeiçoamento da petição inicial, bem como os 55 (cinquenta e cinco) documentos que se juntam à mesma, condenando o Réu como peticionado no pagamento de 405 846,30 € (quatrocentos e cinco mil oitocentos e quarenta e seis euros e trinta cêntimos), mais devendo o Réu ser condenado no pagamento das custas processuais e de parte devidas”.
Mais referiu a A. na mesma petição inicial que “junta: 24 (vinte e quatro) documentos e substabelecimento sem reserva” e que “Protesta juntar: 214 (duzentos e catorze) documentos
O R. contestou a acção, na qual suscitou a ineptidão da petição inicial “por falta de causa de pedir, o que conduz à nulidade de todo o processado, com a consequente absolvição do Réu da instância, nos termos do disposto artigo 186º-1-2-a), 196.º, 576.º-2, 577º-b), do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 1.º do CPTA, e artigos 3.º-1 e 17.º-1 do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09”.
O R., após apresentação de petição inicial aperfeiçoada, apresentou nova contestação na qual concluiu que deve “a) Ser julgada procedente, por provada, a exceção perentória do pagamento pelo R. à A. da quantia de € 369.101,25 (trezentos e sessenta e nove mil, cento e um euros e vinte e cinco cêntimos), relativa ao capital peticionado nestes autos, e, em consequência, ser o R. absolvido dessa parte do pedido. b) Ser a ação julgada totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se o Réu dos demais pedidos contra si formulados pela A.”.
A A., por requerimento apresentado nos autos em 17/11/2023, requereu que: “seja declarada a inutilidade superveniente parcial da lide, por referência ao capital titulado pelas facturas reclamadas e identificadas como pagas imputável ao Réu, com as legais consequências, bem como se requer a condenação do Réu no demais peticionado”.
O Tribunal a quo, em despacho de 24/1/2024, notificado aos Ilustres Mandatários das partes por ofício datado de 25/1/2024, determinou a notificação da A. “para indicar aos autos precisamente quais as facturas e notas de crédito cujo pagamento se encontra em falta, e cujos juros considera devidos pelas facturas que entretanto foram pagas pelo R. Mais deve remeter ao Tribunal e ao R. a folha de cálculo /o documento Excel de suporte que eventualmente haja produzido e que resuma os valores que considere ser devidos.”
A 26.01.2024 e a 29.01.2024, os Mandatários das partes requereram que fosse admitida a sua intervenção na diligência agendada para o dia 28-02-2024 (audiência prévia), através de meios de comunicação à distância, designadamente através da aplicação.
Em 29/1/2024 o Tribunal recorrido proferiu despacho saneador – sentença, na qual julgou a acção improcedente, com fundamento na ausência de factos estruturantes da causa de pedir que não permitiam perceber qual a raiz factual da pretensão do Autor.
Extrai-se da fundamentação da decisão recorrida o seguinte:
A A. alega factos concretos – a cessão de créditos, a emissão de facturas, o seu recebimento, o não pagamento. A questão não é que não se perceba o que a A. pretende, a questão é que a dar-se como provado tudo o que a A. alega, ainda assim a acção haverá de soçobrar. Trata-se de inconcludência do pedido, que ocorre quando a causa de pedir não produza o efeito jurídico pretendido pela A. Esta origina uma decisão de improcedência, e não de absolvição da instância ou de nulidade processual. Afigura-se-nos esta a solução jurídica mais razoável e consentânea com a situação dos presentes autos – neste caso nem sequer poderíamos falar de um convite ao aperfeiçoamento nos termos do art. 590.º/3 do CPC, uma vez que a A. já teve oportunidade de apresentar uma petição inicial aperfeiçoada e afigura-se um acto inútil (art. 130.º do CPC) convidar a aperfeiçoar uma petição aperfeiçoada. No caso em apreço, verifica-se que a A. não indicou qualquer facto em que radique a sua relação com o R. Invoca a cessão de créditos, mas não os contratos nos quais se veio a substituir aos cedentes e que são a fonte das obrigações de pagamento que o R. (eventualmente) terá perante si. Não há por isso fonte de obrigação de pagamento, pelo que a acção deve improceder”.
*
Inconformada com a decisão proferida, a A. interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes Conclusões:
“a) O presente recurso tem por objeto o saneador sentença por meio do qual foi julgada improcedente a acção e absolvida a aqui Recorrida do pedido, com base numa pretensa inconcludência do pedido.
b) Ora, entende a Recorrente que com a decisão recorrida, o douto Tribunal a quo: i) Incorre em violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, que acarreta a inexistência da decisão; ii) Incorre em violação das normas que regulam o poder de dispensa da audiência prévia, que determinam a nulidade da decisão; iii) Incorre em ambiguidade e obscuridade que torna a decisão ininteligível e deixa de se pronunciar sobre questões que devia apreciar, no que respeita à matéria de facto dada como provada, tudo quanto importa a nulidade da decisão; iv) Incorre em erro de julgamento e procedimental no que respeita à matéria de facto dada como não provada; v) Incorre em erro de julgamento da matéria de direito e das normas legais aplicáveis
Vejamos,
c) A aqui Recorrente deu entrada requerimento de injunção no qual veio requerer que a Entidade Demandada fosse condenada a pagar-lhe o valor de 369 101,25 € a título de capital - decorrentes de faturas emitidas e aí identificadas, cujos créditos foram adquiridos pela Recorrente -, o montante de 28 985,05 € a título de juros de mora vencidos sobre o referido capital em dívida até à entrada da injunção e os vincendos até integral pagamento, e o montante de 7 760,00 € a título de outras quantias, mormente relativo ao pagamento da indemnização prevista no artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio e correspondente aos juros de mora calculados sobre o valor da indeminização não paga atempadamente, por cada uma dessas faturas.
d) Após a dedução de oposição, e distribuição, foram as partes no]ficadas para aperfeiçoarem os respectivos articulados, convite esse acolhido por ambas as partes, sendo que, após a apresentação da petição aperfeiçoada (na qual a Recorrente juntou a documentação que já tinha na sua posse e protestou juntar a restante), a Recorrida apresentou requerimento, a 05.07.2023, reconhecendo que com a petição aperfeiçoada “a A. veio identificar, de forma clara e completa, as faturas e Notas de Crédito que são objeto da presente ação”, apresentando ainda, em 19.10.2023 nova contestação aperfeiçoada, iden]ficando todas as faturas em causa na acção e alegando ter procedido ao pagamento da totalidade do capital peticionado na acção, correspondente àquele que era titulado pelas faturas identificadas na petição inicial, invocando, em consequência, a respectiva excepção de pagamento e juntando documentação alegadamente comprovativa dos pagamentos, onde constavam os números, datas e montantes das faturas que teria liquidado.
e) A 24.01.2024, o douto Tribunal a quo proferiu o despacho que passa a reproduzir – que foi no]ficado às partes no dia seguinte: “No]fique a A. para indicar aos autos precisamente quais as facturas e notas de crédito cujo pagamento se encontra em falta, e cujos juros considera devidos pelas facturas que entretanto foram pagas pelo R. Mais deve remeter ao Tribunal e ao R. a folha de cálculo /o documento Excel de suporte que eventualmente haja produzido e que resuma os valores que considere ser devidos. Partindo do pressuposto que a junção da referida documentação, propõe-se, para a realização da audiência prévia, tendo em vista as finalidades previstas nas alíneas a) a g) do nº 1 do ar]go 87ºA do CPTA (incluindo a apreciação dos requerimentos probatórios e eventuais alterações aos mesmos), o dia 28-02-2024, às 14h0.”,
f) O Tribunal, não tendo chegado a proferir qualquer despacho sobre a documentação protestada juntar, nem sobre os requerimentos das partes de 26.01.2024 e 29.01.2024, a requerer a intervenção das Ils. Mandatárias das partes na audiência prévia através de meios de comunicação à distância, veio a proferir a 29.01.2024 a douta sentença recorrida, afirmando que “[m]melhor vistos os autos, afigura-se que estes já contêm os elementos necessários à prolação de decisão final”, decidindo dispensar a “audiência prévia, nos termos do art. 87.º-B/1 e 2 do CPTA” e proferir saneador sentença, por meio da qual foi a acção julgada improcedente, como se referiu supra.
g) Ora, esta última decisão (a recorrida) viola sem sombra de dúvida o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, ver]do no artigo 613.º do Código de Processo Civil, mormente nos respectivos n.ºs 1 e 3, (aplicável ex vi art. 1.º e 35.º, n.º 1, ambos do CPTA), onde se refere que “[proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, que se aplica, “com as necessárias adaptações aos despachos”.
h) Na verdade, depois de ter proferido o despacho de 24.01.2024 estava o Tribunal a quo impedido de decidir de modo diferente, dispensando a audiência prévia que convocou (ademais com finalidades específicas que concretizou), sendo manifesto que a nova decisão não corresponde a rectificação de erros materiais, suprimento de nulidades ou reforma admissível da sentença.
i) Ora, como se refere no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.02.2023, Proc. 10693/14.6T8LSB.L1-8 (consultável em www.dgsi.pt), o “princípio do esgotamento do poder jurisdicional, que encontra abrigo no art.º 613º, nº 1, do CPC, consubstancia-se na impossibilidade de o juiz alterar o que decidiu, quer a decisão propriamente dita, quer os fundamentos que a sustentam e que com ela formam um todo incindível.”, sendo que a “decisão que em ofensa deste princípio altere no todo, ou em parte, o que anteriormente foi decidido, é inexistente.”
j) Assim sendo, deve ser verificada a inexistência da decisão recorrida, devendo valer a primeira decisão proferida pelo Tribunal.
k) Sem conceder, sempre se diria que, mesmo que assim não fosse, a decisão sempre seria nula – nulidade essa que expressamente se deixa invocada - porque “[a] não realização de audiência prévia quando a mesma não podia ser dispensada constitui nulidade processual, visto que se trata da omissão de um ato que a lei prescreve e que pode influir no exame e na decisão da causa (artigo 195.º, n.º1 do CPC)” .
l) E na medida em que, tendo sido reconhecido que a audiência prévia deveria ser convocada com as finalidades previstas nas alíneas a) a g) do nº 1 do artigo 87º-A do CPTA “(incluindo a apreciação dos requerimentos probatórios e eventuais alterações aos mesmos)”, a mesma não poderia ter sido dispensada, mormente nos termos do disposto no art. 87.º-B, n.ºs 1 e 2 do CPTA, normativo invocado na decisão recorrida, já que, nem era claro, (nem tal aconteceu, sendo que, tal apenas poderia importar a absolvição da instância e não do pedido – cfr. art. 89.º, n.º 2 do CPTA) que o processo devesse findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória (n.º 1 do 87.º-B), nem a audiência prévia se destinava apenas ao fim previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 87.º-A (n.º 3 do mesmo art. 87.º-B) – ainda para mais sem contraditório.
m) Além da referida nulidade, entende a Recorrente verificarem-se também as nulidades previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC porquanto, se incorre em ambiguidade e obscuridade que a torna ininteligível no que respeita à matéria de facto dada como provada, e se deixa de pronunciar sobre questões que na sentença se devia apreciar.
n) De facto, na douta decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
“1. No âmbito da sua actividade, a Autora adquiriu, por contratos de cessão de créditos celebrados com as sociedades: a. [SCom01...], UNIPESSOAL, LDA., em 16.12.2020, notificado ao Réu na mesma data (Doc. n.º 004550539 e 004550540 do SITAF); b. [SCom02...], em 09.06.2020, notificado ao Réu na mesma data (Doc. n.º 004550541 e 004550542 do SITAF); c. [SCom03...], S.A., em 27.09.2021, notificado ao Réu na mesma data (Doc.n.º 004550543 e 004550544 do SITAF); d. [SCom04...], LDA., 16.09.2020, notificado ao Réu na mesma data (Doc.n.º 004550547 e 004550548 do SITAF); e. [SCom05...], S.A., em 27.05.2021, notificado ao Réu na mesma data (Doc.n.º 004550549 e 004550550 do SITAF); f. [SCom06...], S.A., em 28.09.2021, notificado ao Réu na mesma data (Doc.n.º 004550551 e 004550552 do SITAF); g. PMH [SCom07...] S.A., em 21.09.2022, notificado ao Réu na mesma data (Doc. n.º 004550553 e 004550554 do SITAF); h. [SCom08...] LDA em 26/11/2020, notificado ao Réu na mesma data (Doc.n.º 004550555 e 004550556 do SITAF); i. [SCom09...] SL, em 29/06/2022, notificado na mesma data ao Réu (Doc. n.º 004550557 e 004550558); j. [SCom10...] UNIPESSOAL LDA., em 15.12.2022, notificado ao Réu na mesma data (Doc. 004550561 e 004550562 do SITAF)”.
o) No entanto, embora se refira que a Autora (aqui Recorrente) “adquiriu”, por contratos de cessão de créditos celebrados com as referidas sociedades, não se refere o quê, tornando-se a decisão incompreensível.
p) De facto, para apreciar o mérito da acção, impunha-se que fosse identificado na decisão que créditos foram adquiridos, mormente se os peticionados nos autos, o que não ocorreu, nem sequer por meio de qualquer remissão ou menção ainda que genérica.
q) É que, a Recorrente alegou precisamente que, por meio dos contratos de cessão, adquiriu os créditos consubstanciados nas faturas cujo pagamento peticionava naqueles autos.
r) No entanto, na decisão recorrida, deixa-se a dúvida sobre se o douto Tribunal a quo entendeu que a Recorrente adquiriu os créditos peticionados na acção incluídos naqueles contratos de cessão, ou se entendeu apenas que foram adquiridos créditos indeterminados.
s) Partindo do pressuposto de que, considerando o contexto geral da matéria fáctica em causa e tendo em atenção que apenas interessará julgar a matéria controvertida relevante para a decisão dos autos, se poderia presumir que o douto Tribunal a quo considerou provada a aquisição dos créditos peticionados nos autos – único caso em que não se incorreria na violação do disposto na al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC – a decisão tornar-se-ia ininteligível na medida em que se refere que foi omitida a alegação de factos relativos ao crédito cedido, colocando-se em causa que tenham sido fornecidos bens ou prestados serviços pelas sociedades cedentes à Recorrida, e se refere que a Recorrente não indicou qualquer facto em que radique a sua relação com a Recorrida.
t) De facto, em termos lógicos, para se apurar que foram adquiridos determinados créditos, necessariamente se terá de recorrer a prévia identificação e delimitação desses mesmos créditos.
u) Assim, nunca poderia colocar-se a questão de existir uma total omissão de factos relativos aos créditos em causa nos presentes autos, que motivasse a inconcludência do pedido e a absolvição do pedido.
v) Sendo a decisão manifestamente ininteligível, ou, assim não se entendendo, deixa de se pronunciar sobre matéria relativamente à qual se impunha que se pronunciasse (quais os créditos adquiridos através dos contratos de cessão).
w) Mesmo que não se verificassem a inexistência e invalidades referidas, e sem sobre tal conceder, sempre se diria que se verifica erro no julgamento da matéria de facto não provada, atenta a alegada “ausência de documentação e a natureza dos factos em causa, que requerem prova documental por natureza (a notificação dos contratos de cessão a que se refere o ponto 17 e a emissão de facturas)” porquanto, foi considerada não provada a seguinte factulidade: i) as alegações quanto a todos os créditos espelhados nas faturas emitidas pelos cedentes, conforme invocado e discriminado pela Recorrente na petição inicial, e confirmados pela Recorrida; ii) a celebração dos contratos de cessão de crédito celebrados com [SCom11...], UNIPESSOAL LDA., [SCom12...] LDA, [SCom13...]) S.A., [SCom14...] UNIPESSOAL LDA, S.M.I.C. - [SCom15...] S.A. e [SCom16...], LDA., e a sua notificação à Recorrida.
x) Desde logo, nos termos conjugados dos artigos 578º, n.º 1, 875º a contrario e 219º, todos do CC, o contrato de cessão de créditos que tem por base uma compra e venda não está sujeito a forma, pelo que a prova dos factos relativos a esta celebração não estariam sujeitos apenas a prova documental, devendo o Tribunal, caso entendesse necessário, permitir à Recorrente produzir a prova que requereu.
y) Acresce que, quanto ao contrato celebrado com [SCom16...], LDA foi junta a notificação enviada à Recorrida, e o documento junto aos autos contém também uma extração de parte do contrato, e tal devia ser admitido pelo menos como princípio de prova (cfr. doc. ref.ª SITAF 004550559) e no que respeita ao celebrado com a [SCom12...] LDA., consta dos docs. ref.ªs SITAF 004550545 e 004550546 a notificação com as partes relevantes do contrato de cessão celebrado e o registo postal de envio da notificação, que impunham que fosse considerado provada a celebração do contrato.
z) E quanto aos restantes, a Recorrente protestou juntar os mesmos, que estavam devidamente identificados na petição aperfeiçoada, tudo sem prejuízo de poder juntar prova documental ao longo do processo, até 20 dias antes da data designada para a audiência final, nos termos do disposto no art. 423.º do CPC, aplicável subsidiariamente.
aa) Ora, a Recorrente entende que o douto Tribunal a quo estaria vinculado a convidar a Recorrente ou conceder-lhe prazo para junção dos documentos que havia protestado juntar.
bb) Nesse mesmo sentido, veja-se o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Processo: 59/09.5BELRS, Secção: CT, de 25.02.2021 (consultável em www.dgsi.pt), onde se refere, a propósito de documentação protestada juntar: “(...) impunha-se que antes de proferida a sentença fosse dirigido à parte o convite à sua apresentação atento o princípio do inquisitório que impõe o dever de, tanto quanto possível, aferir a veracidade desses factos.”
cc) E ainda o sumário do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: 007896, de 10.04.1997 onde se pode ler que, “Tendo a parte-ré na acção protestado juntar documentos atinentes a factos relevantes alegados na contestação e não tendo procedido a essa junção, não pode o julgador partir para a elaboração de saneador-sentença sem, pelo menos, convidar o réu a juntar esses documentos, notificando-o para esse fim, pois só dessa forma estará na posse da globalidade dos elementos que melhor suportarão o juízo de oportunidade da decisão quanto ao mérito da acção na fase do saneador, evitando-se a "decisão-surpresa"” (consultável em www.dgsi.pt).
dd) Na realidade, tanto o princípio do inquisitório previsto no art. 411.º do CPC, aplicável ex vi art. 1.º do CPTA como o dever de gestão processual (n.º 2 do art. 7.º-A do CPTA), impunham que o Tribunal a quo convidasse à junção do documento protestado juntar, especialmente considerando que o Tribunal pretendia, sem dar de tal contraditório, dispensar a audiência prévia e proferir saneador sentença.
ee) Resultando que o julgamento da matéria de facto foi feito considerando a ausência de prova, prova que era ainda possível realizar e que o Tribunal impediu, constituindo a decisão recorrida uma decisão-surpresa e violadora do princípio do inquisitório e da descoberta material da verdade.
ff) Tudo visto, e considerando em especial o enquadramento processual dos autos, não poderia ser proferida a decisão recorrida sem que tivesse sido concedida a possibilidade de a Recorrente juntar os documentos que havia protestado juntar, violando-se assim o disposto nomeadamente o disposto no art. 411.º do CPC aplicável ex vi 1º do CPTA e o art. n.º 2 do art. 7.º-A do CPTA.
gg) Tal vale também quanto à matéria de facto relacionada com as faturas emitidas pelos cedentes, que corporizam os créditos peticionados nos autos, relativamente ao que deveria também ter sido convidada a Recorrente a juntar aos autos as faturas protestadas juntar.
hh) Além do mais, mesmo que assim não fosse e não fosse de considerar provada a emissão das faturas (por se entender requerer prova documental), sempre seria, pelo menos, possível julgar provada a existência dos créditos que as mesmas espelhavam.
ii) Na verdade, “na ação declarativa que siga a forma de processo comum, (...) a não junção da fatura correspondente aos serviços prestados não constitui pressuposto processual (...)”, sendo que, a “fatura é um mero documento contabilístico e não existe qualquer regra específica no direito comercial que liberte o vendedor/prestador do serviço, do ónus probatório dos factos constitutivos do seu direito, podendo prová-los por qualquer meio de prova, designadamente através de prova testemunhal e/ou documental”.
jj) O que significa que, mesmo não se dando como provada a emissão das faturas alegadas, era ainda possível considerar provada a existência dos créditos peticionados nos autos.
kk) Acrescendo que, resultava alegado pela Recorrente e reconhecido pela Recorrida, - que ademais juntou comprovativos de pagamento respeitantes a tais faturas – a identificação (número), data e valor dos créditos.
ll) Pelo que, os factos relevantes relativos aos créditos - a existência, datas e montantes correspondentes aos serviços prestados/ bens fornecidos pelos cedentes, depois adquiridos pela Recorrente, podiam e deviam ter sido considerados provados, nomeadamente por admitidos por ambas as partes.
mm) De facto, conforme referido, o crédito poderia ser provado por qualquer meio, incluindo prova testemunhal, e os factos correspondentes podem ser confessados, sendo que, a Recorrida confessa a existência, o montante e a exigibilidade (ainda que sujeita a compensação com notas de créditos em alguns casos) dos créditos peticionados, podendo ver-se, a título exemplificativo o art. 2.º da contestação aperfeiçoada e o doc. 1 aí referido, junto com a contestação.
nn) De resto, a própria Recorrida invoca ter efectuado o pagamento dos referidos créditos, ou melhor, da parte dos créditos respeitantes a capital, o que se traduz forçosamente no reconhecimento da existência e exigibilidade dos créditos.
oo) Conforme se pode ler no sumário do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.09.2014, Processo 1655/10.3TBVNO.C1, consultável em www.dgsi.pt: “I - Nas decisões que conheçam do mérito da causa, proferidas em sede de despacho saneador, uma vez que ainda não houve lugar a um juízo sobre a demonstração da veracidade dos factos alegados que se encontram controvertidos, por não ter havido oportunidade de produzir prova sobre eles, não é possível indicar-se os factos que não se provaram. II - A possibilidade de proferir uma decisão de mérito nessa fase baseia-se na circunstância da matéria de facto relevante para a decisão da causa já se encontrar definida ao findar a fase de apresentação de articulados, pelo que, nesses casos, para que a fundamentação de facto esteja completa, é suficiente indicar-se os factos que integram essa matéria. III - Na altura do despacho saneador os factos que podem ser considerados na decisão de mérito, além dos factos notórios e daqueles que o juiz tem conhecimento em virtude das suas funções, são aqueles que resultam de confissão judicial, de acordo expresso ou tácito das partes nos articulados, do funcionamento de presunção legal inilidível, ou de documento com força probatória bastante. IV – A demonstração desses factos não resulta do exercício da livre apreciação da prova pelo julgador, mas sim do funcionamento de disposições legais que constituem um justificado resíduo do sistema da prova legal, pelo que nesta fase não tem lugar uma análise crítica das provas produzidas, nem a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, uma vez que a prova não resulta da formação de uma convicção, mas da aplicação de disposições legais, podendo apenas ser útil para a verificação da correcção da sua aplicação ao caso a indicação donde resultou a prova da matéria de facto que fundamentou a decisão de mérito”.
pp) Assim, o douto Tribunal a quo pelo menos deveria ter considerado provada a existência dos créditos, com identificação dos números, dos montantes e datas reconhecidos por ambas as partes.
qq) Quanto à fundamentação de direito da sentença recorrida, incorre em lapso o Tribunal a quo ao invocar na fundamentação que a Recorrida invocou a omissão da causa de pedir e a excepção de ineptidão da petição inicial, já que tal apenas foi invocado em sede da primeira contestação apresentada pela Recorrida, e que era anterior à apresentação pela Recorrente da petição aperfeiçoada.
rr) De facto, na sequência da notificação da petição aperfeiçoada, a 05.07.2023, por meio de requerimento, a Recorrida reconheceu que “na petição inicial aperfeiçoada, a A. veio identificar, de forma clara e completa, as faturas e Notas de Crédito que são objeto da presente ação”, sendo que, posteriormente apresentou uma nova contestação na qual não mantém nem invoca qualquer excepção ou defesa que não seja a do alegado pagamento.
ss) Sendo que, é manifesto que será esta última contestação que deverá valer, resultando claramente que a eventual insuficiência ou imprecisão fáctica constante do requerimento de injunção foi sanada pela Recorrente com a petição aperfeiçoada e a causa de pedir integralmente compreendida pela Recorrida.
tt) Cumpre ainda apontar não ser correcto que na petição não tenha sido invocado que os créditos derivavam de prestações de serviços e fornecimento de bens pelos cedentes à Recorrida, e quais os referidos serviços/ bens, porquanto, no art. 2.º, parte final, da petição aperfeiçoada, a aqui Recorrente invocou que, por meio dos contratos de cessão de créditos que identificou, adquiriu “os créditos decorrentes de faturas emitidas pelas referidas Sociedades Cedentes ao Réu, referentes a fornecimentos efetuados pelas mesmas a este, dos bens e serviços que das mesmas constam (...)”, o que significa que se alegou expressamente que os créditos peticionados derivavam de fornecimentos de bens e serviços pelos cedentes à Recorrida, e que por remissão para a descrição constante das respectivas faturas se alegaram também os concretos fornecimentos em causa, o que é perfeitamente admissível.
uu) Além do mais, as faturas em causa contêm, entre outros, a identificação concreta do bem fornecido ou serviço prestado, designadamente no que concerne à sua descrição qualitativa e quantitativa.
vv) De acordo com a decisão recorrida, “a questão é que a dar-se como provado tudo o que a A. alega, ainda assim a acção haverá de soçobrar” já que a Recorrente “não indicou qualquer facto em que radique a sua relação com o R. Invoca a cessão de créditos, mas não os contratos nos quais se veio a substituir aos cedentes e que são a fonte das obrigações de pagamento que o R. (eventualmente) terá perante si”, sendo que, “[n]ão há por isso fonte de obrigação de pagamento, pelo que a acção deve improceder.”
ww) Sem prejuízo de se poder aceitar que no tipo de acção em causa, a causa de pedir deva compreender alegação de factos relativos à relação subjacente, importa ter presente que a Recorrente não era parte nos contratos/ acordos de fornecimento/ prestação de serviços (sendo que, o contrato de cessão de créditos não se confunde com o contrato de cessão da posição contratual).
xx) Nessa medida, a (in)existência, (in)validade, (in)eficácia dos contratos públicos que suportaram o fornecimento de bens e/ou serviços em causa prestados à Entidade Recorrida, celebrados entre esta e as Entidades Cedentes – e nos quais a Recorrente não foi parte – não constitui matéria de alegação que componha a causa de pedir e que incumba à Recorrente.
yy) De qualquer modo, e especialmente considerando que não era parte nos referidos contratos, não se pode afirmar que a Recorrente não tenha, ainda que genericamente, invocado a relação contratual subjacente aos créditos.
zz) Ademais, nas faturas para as quais se remeteu, constavam não só os concretos tipos de serviços/ fornecimentos de saúde prestados por cada um dos cedentes à Entidade Demandada mas também os períodos em causa e proveniência da dívida (encomenda/ compromisso, orçamento, etc), o objecto de cada fornecimento (quantidades e descrição dos bens fornecidos/ serviços prestados), o preço (unitário e global) e condições aplicáveis, designadamente prazo de pagamento, tendo ficado patente que a Recorrida tinha perfeito conhecimento das relações subjacentes em causa, demonstrando compreender integralmente a causa de pedir, tendo reconhecido perfeitamente as faturas cujo pagamento era peticionado, tendo vindo até informar ter alegadamente procedido ao respectivo pagamento.
aaa) Tanto assim era que a Recorrida em momento algum colocou em causa a existência e/ou a validade dos contratos públicos de fornecimentos de bens e/ou serviços que celebrou com as sociedades cedentes no âmbito dos quais se formaram os direitos de crédito cedidos à Recorrente, e que os créditos em causa têm a sua origem nos referidos contratos, antes pelo contrário, invocou ter efectuado o pagamento do capital respeitante a tais faturas, o que implica o reconhecimento da conformidade das faturas / créditos peticionados com a respectiva relação subjacente e a sua exigibilidade.
bbb) Ora, se a Recorrida entendeu serem suficientes para compreender a causa de pedir os factos invocados em sede de petição aperfeiçoada, não podia o Tribunal considerar insuficiente a causa de pedir, o que fez, nem sequer em substituição da parte interessada, mas, verdadeiramente, em total contradição com a posição da mesma.
ccc) Nomeadamente, não podia reputar de inconcludente (o pedido) o que não o foi para a Recorrida!
ddd) Tendo sido ignorada toda a factualidade aduzida e que esta permitia que fosse decidido o mérito da demanda (sendo irrelevante para esse efeito o facto de não estarem alegados os dados do contrato/ instrumento de contratação em causa, já que os restantes elementos, como sendo datas, objecto, preço e restantes condições foram alegados por remissão para as faturas), e que a a Recorrida compreendeu na íntegra, e reputou de suficiente para compreender o pedido, o vertido na petição aperfeiçoada, a decisão ora recorrida é errada, no sentido em que não reconhece o mínimo de suficiência às alegações e não pondera o facto de a Recorrida ter percecionado na íntegra a causa de pedir e não ter impugnado qualquer elemento integrante da mesma, eee) e acaba por violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva (abordado no art. 2.º, n.º 1 do CPTA), no sentido de que a Recorrente tinha o direito de obter, mediante um processo equitativo, uma decisão judicial que verdadeiramente apreciasse a pretensão regularmente deduzida em juízo, e ainda a norma contida no art. 7.º do CPTA, que determina que as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.
fff) Na realidade, tomando em consideração o universo global dos factos adquiridos para os autos, e aquelas que foram as posições das partes sobre o litígio, apenas se poderia concluir que os elementos alegadamente em falta - que, em rigor, poderiam apenas ser a data do contrato, preço (mas que consta das faturas e foi assim alegado), objecto (correspondente às prestações que as cedentes se obrigaram a realizar nos contratos, que foram alegadas por remissão para as faturas) e condições aplicáveis (de relevo, condições de pagamento/ vencimento da dívida, que foram alegadas por remissão para as faturas), - não tinham qualquer relevância para os autos, nem qualquer influência na apreciação judicial da demanda porque não eram úteis ou relevantes para determinar se a acção deveria ser (total ou parcialmente) ou não ser procedente.
ggg) De facto, apenas não seria possível proceder desse modo caso a não tivesse sido possível à Recorrida determinar qual a origem do crédito e a relação subjacente, ou caso esta impugnasse o teor dos factos alegados quanto aos créditos e condições aplicáveis, mormente por desrespeito ou desconformidade das regras estabelecidas no contrato poderiam eventualmente ter utilidade ou relevância tais elementos.
hhh) Assim, e contrariamente ao entendimento do douto Tribunal a quo entende a Recorrente que se fossem provados todos os factos constantes dos autos (os alegados na petição aperfeiçoada mas não só), sem que fossem provados outros factos extintivos, modificativos ou impeditivos, designadamente pagamentos, desconformidade do serviço prestado / bem fornecido ou do correspondente preço/ condições de pagamento com o acordado entre cedente e Recorrida, a decisão teria forçosamente de ser de julgar procedente a acção, com a condenação da Recorrida no pagamento à Autora dos valores peticionados.
iii) Sem prejuízo de tudo o que foi exposto, a Recorrente entende que alegou de forma minimamente suficiente (especialmente considerando não ter sido na mesma parte) os factos essenciais da causa de pedir, nomedamente no que diz respeito à descrição dos serviços / bens prestados na origem dos créditos reclamados.
jjj) De facto, conforme consta no sumário do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo: 10416/18.0T8PRT.L1.S1, de 14.01.2021, consultável em www.dgsi.pt: “[f]actos essenciais, cuja alegação compete às partes, são aqueles que permitem percepcionar a realidade que se pretende invocar, em ordem a identificar ou individualizar o direito em causa, e que podem ser posteriormente objecto de uma maior concretização.”
kkk) E como se exemplifica aí, “[a]legado que alguém tem conhecimento aprofundado do funcionamento do mercado valores mobiliários é facto complementar dessa alegação o conhecimento que essa pessoa tem da origem de uma concreta emissão obrigacionista”.
lll) Da mesma forma, o facto essencial de prestação de um serviço de saúde num determinado período por uma entidade a outra, e que deu origem a uma fatura, pode ser complementado posteriormente com o facto respeitante ao concreto tipo de serviço realizado por respeito a cada fatura.
mmm) Como também se diz no mesmo Acórdão: “Às partes cabe, segundo o nº 1 do art.º 5º do CPC, alegarem, de forma sintética, «sem a tradicional e excessiva descrição de todos os pormenores circunstanciais ou instrumentais (…) desde que permitam percepcionar a realidade que se pretende invocar e possam ser posteriormente objecto de uma maior concretização» (ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / LUIS FILIPE DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª ed., 2020, pg. 28) os factos essenciais (os que identificam ou individualizam o direito/excepção em causa). Para além desses, cabe ainda ao juiz, oficiosamente e sem prejuízo do contraditório, considerar os factos complementares (os que não desempenhando a função de identificar ou individualizar o direito ou excepção em causa, concretizam os factos essenciais, revelando-se imprescindíveis enquanto constitutivos/modificativos/impeditivos do direito invocado) e os factos instrumentais (os que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito/excepção em causa) resultantes da instrução da causa (art.º 5º, nº 2, als. a) e b), do CPC).”
nnn) Assim sendo, e sem prejuízo de poder vir a verificar-se a necessidade de obter-se no processo factos complementares, não se verifica na opinião da Recorrente a falta de alegação de factos essenciais da causa de pedir, no que se refere à identificação da proveniência dos créditos.
ooo) De resto, a hipotética insuficiência não poderia ser valorada decisivamente já que, a existir, sempre teria ficado sanada, na medida em que, conforme referido, a Entidade Demandada, aqui Recorrida, compreendeu integralmente e sem reservas a alegação, reconhecendo todas as faturas e invocando ter realizado o pagamento do respectivo capital.
ppp) Ora, se se prevê que a ineptidão da petição inicial, que corresponde a um grau mais grave de incompletude do articulado da petição, fique sanada com se verifica que o Réu interpreta convenientemente a petição, nos termos do n.º 3 do art. 186.º do CPC, por maioria de razão, deve considerar-se sanada a mera insuficiência ou imperfeição da causa de pedir alegada quando se verifica que o Réu claramente interpretou convenientemente a petição.
qqq) A Sentença recorrida padece de vício formal, decorrente de erro de actividade e/ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal, tendo o Meritíssimo Juiz a quo violado o disposto no Artigo 5.º do CPC, ex vi do Artigo 1.º do CPTA, ao erradamente substituir-se à Entidade Recorrida na alegação de matéria que constitui ónus de impugnação ou excepção que incumbe à Entidade Demandada.
rrr) Mais, o Tribunal, ao agir da forma descrita, não respeitou os princípios aplicáveis ao processo e à emissão de decisões, nomeadamente do dispositivo, e da prossecução pela justiça do objectivo de obter decisões de mérito que correspondam à justa composição do litígio, com base na verdade material dos factos, interpretando também erradamente o disposto no art. 78.º, n.º, f) do CPTA e violando o disposto no n.º 3 do art. 186.º do CPC e art. 7.º-A, n.º 1 do CPTA.
sss)Não sendo verificada a inexistência ou determinada a nulidade da sentença, deverá este douto Tribunal revogar e substituir a decisão recorrida por outra que declare não verificada a “inconcludência do pedido”, determinando o normal prosseguimento dos autos, com os seus posteriores termos, com o que farão V. Exas. a tão esperada e costumada JUSTIÇA!
ttt) Considerando que a acção tem valor superior a 275.000,00 €, requer ainda a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, porquanto não se verificou, nos presentes autos, nenhum dos fatores de especial complexidade das acções, tais como definidos no artº. 530.º, n.º 7 do CPC, o desenvolvimento da lide decorreu de forma normal e nada há a apontar à conduta processual das partes no decorrer do processo, visto que a mesma foi normal, não tendo sido utilizados quaisquer meios artificiosos ou dilatórios por nenhuma das partes.
uuu) Ademais, a acção não representa diferença alguma face a outras acções e recursos apresentados de decisões proferidas pelo douto Tribunal a quo em acções intentadas pela aqui Recorrente em moldes semelhantes, que não seja o valor da acção. Nestes termos e nos melhores de direito, e com o mui douto suprimentos de V. Exas. deverá ser concedido provimento ao presente recurso, considerando-se inexistente e revogando-se a decisão recorrida. Caso assim não se entenda, deverão ainda assim ser julgadas verificadas as nulidades previstas no art. 195.º, n.º 1 do CPC e 615.º, n.º 1, als. c) e d) do CPC, aplicáveis subsidiariamente, de que padece a decisão recorrida, com as legais consequências. Novamente caso assim não se entenda, e sem conceder, sempre deverá ser revogada a decisão no que respeita à matéria de facto dada como não provada, e substituída por outra que julgue provados os factos na decisão dados como não provados, ou permita fazer prova adicional, e convidar à junção dos documentos protestados juntar na petição inicial. Sem prejuízo, deverá ainda a decisão ser revogada e substituída por outra que não julgue verificada a pretensa inconcludência do pedido. Mais requer seja dispensada a Recorrente do pagamento da taxa de justiça remanescente, nos termos do disposto no art. 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais. Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”
*
O R. apresentou contra-alegações, formulando as seguintes Conclusões:
1. O recurso interposto pela Autora não tem qualquer fundamento.
2. Alega a recorrente que o despacho proferido pelo Tribunal a quo em 24/01/2024, não podia ser alterado, por força do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, o que acarreta a inexistência e/ou nulidade da decisão recorrida.
3. A intangibilidade, para o juiz, da decisão que proferiu, é, naturalmente limitada pelo objeto dela: a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às questões sobre que incidiu a decisão, nada obstando a que resolva todas as questões que não tenham com o objeto da decisão proferida uma relação de identidade ou ao menos de prejudicialidade, e, portanto, que não exerçam qualquer influência da decisão que emitiu, relativamente à qual o seu poder jurisdicional se extinguiu e se esgotou.
4. No caso aqui em apreço, o despacho proferido pelo Tribunal a quo em 24/01/2024 designou a data para a realização da audiência prévia.
5. Na decisão recorrida, o Tribunal a quo começa por referir o seguinte:
“Melhor vistos os autos, afigura-se que estes já contêm os elementos necessários à prolação da decisão final, pelo se se dispensa a audiência prévia, nos termos do art. 87.º-B/1 e 2 do CPTA.”, passando, de seguida, a conhecer do mérito da ação, proferindo saneador sentença (decisão final).
6. Portanto, a decisão recorrida (saneador sentença) limitou-se a dispensar a audiência prévia nos termos do art. 87.º-B/1 e 2 do CPTA, cuja data havia sido designada através do despacho proferido em 24/01/2024.
7. Aliás, sendo certo que uma das finalidades da audiência prévia designada nestes autos era a prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 87.º-A (“proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do art. 88.º”), nada impedia o Tribunal a quo de, no âmbito dessa diligência, proferir despacho saneador destinado a conhecer total ou parcialmente do mérito da causa, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 88.º do CPTA.
8. Ora, o que sucedeu in casu, foi que o Tribunal a quo decidiu dispensar a realização da audiência prévia nos termos do art. 87.º-B/1 e 2 do CPTA, antecipando a prolação do despacho saneador, com a finalidade prevista alínea b), do n.º 1, do artigo 88.º do CPTA.
9. Assim, o Tribunal a quo não violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, nem, tão pouco, violou as normas que regulam o poder de dispensa da audiência prévia, sendo forçoso concluir que a decisão recorrida não padece inexistência jurídica, nem de qualquer nulidade.
10. A decisão recorrida não padece das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC, porque a decisão é perfeitamente inteligível e não padece de omissão de pronúncia, senão vejamos,
11. Na presente ação a Autora pede a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 405.846,00, alegado, para tanto, que “adquiriu, por contratos de cessão de créditos celebrados com diversas sociedades, os créditos decorrentes de faturas emitidas pelas referidas sociedades Cedentes ao Réu, referentes a fornecimentos efetuados pelas mesmas a este, de bens e serviços que das mesmas constam, identificando faturas, alegadamente emitidas pelas ditas sociedades” (cf. artigo 2.º da petição inicial aperfeiçoada).
12. Contudo, na petição inicial aperfeiçoada a A./Recorrente não alegou um único facto atinente aos contratos celebrados entre o Réu e as sociedades comerciais (cedentes) e que são a fonte da obrigação de pagamento dos créditos reclamados nestes autos pela Cessionária (Autora).
13. Quando a causa de pedir se reporta a um contrato de cessão de créditos, constituem factos essenciais nucleares principais os que respeitam aos próprios contratos de cessão de créditos – porquanto constituem o núcleo primacial da causa de pedir ou da exceção, desempenhando uma função identificadora ou individualizadora do tipo legal – e constituem factos essenciais complementares os respeitantes aos contratos que servem de base à cessão financeira – na medida em que se mostram necessários para a procedência das pretensões deduzidas (daí serem essenciais), embora não cumpram a função identificadora ou individualizadora da previsão normativa convocada (cf. artigo 5.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do CPC).
14. Frise-se, ainda, nesta ordem de ideias, que uma fatura não é, só por si, fundamento (causa de pedir) duma pretensão pecuniária, uma vez que a causa de pedir está no concreto negócio/contrato celebrado, que a fatura se limita a documentar para fins contabilísticos e fiscais. É dizer, a mera remissão para faturas emitidas e juntas é insuficiente (principalmente, quando as mesmas se ficam por uma determinação vaga e genérica), uma vez que a causa de pedir é constituída pelos concretos negócios/contratos celebrados e não pelas faturas, que não passam de documentos para fins contabilísticos e fiscais (cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20-05-20214, proc. 61682/12.7YIPRT.C1, e de 15-10- 2013, proc. n.º 2445/05.0TBLRA.C1).
15. Por último, mas não menos importante, é mister assinalar que toda a tessitura jurídica evocada tem plena justificação teleológica. Por um lado, do ponto de vista processual geral, o ónus de alegação tem fundamento no estruturante princípio do dispositivo, com o que também acautela o princípio da proibição da indefesa propiciada pela alegação deficiente de factos essenciais da causa de pedir (cf. artigo 3.º, n.º 1, do CPC e artigo 20.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, do ponto de vista substantivo especifico, tem sentido que, não intervindo no contrato de cessão, o devedor não veja a sua posição jurídica afetada, pelo que não pode ser prejudicado pela modificação subjetiva do lado ativo da relação jurídica, devendo, por isso poder – e ter a correspondente oportunidade processual de – opor ao cessionário os mesmos meios de defesa que podia opor ao cedente (cf. artigos 406.º, n.º 2 e 585.º do Código Civil).
16. Aqui chegados, no caso vertente, embora tenham sido alegados factos essenciais nucleares concernentes aos contratos de cessão de créditos alegadamente celebrados entre a Autora/Recorrente (factora) e as sociedades facturizadas, não foram alegados factos essenciais complementares ou concretizadores referentes aos alegados contratos celebrados entre as sociedades facturizadas e o Réu/Recorrido-cedido na petição inicial perfeiçoada apresentada pela Autora/Recorrente, após ter sido convidada para o efeito.
17. Por conseguinte, ante o exposto, bem andou a decisão recorrida ao concluir pela absolvição do pedido, por inconcludência.
18. O Juiz a quo pronunciou-se sobre todas as questões que devia conhecer e decidiu pela improcedência do pedido, por este ser inconcludente, uma vez que não foram alegados pela A./Recorrente factos essenciais complementares.
19. Da decisão recorrida constam 17 factos dados como não provados, sendo que os factos não provados vertidos nos pontos 1 a 16 são atinentes à emissão de faturas por dezasseis (16) sociedades comerciais ali identificadas e o facto vertido no ponto 17 respeita aos contratos de cessão de créditos celebrados com seis sociedades comerciais ali identificadas.
20. A Recorrente, nas conclusões de recurso, limita-se a indicar, de forma genérica, a sua discordância com todos os factos dados como não provados pela decisão recorrida e pede que os mesmos sejam dados como provados com base em alguns documentos juntos aos autos e com base em documentos que protestou juntar aos autos, mas que não chegou a juntar!
21. A reapreciação da matéria de facto por parte do Tribunal ad quem, tendo que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição [cfr. Ac. STJ de 24/092013, in www.dgsi.pt] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão dada, exigindo antes da parte que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos, sem limitar porém o segundo grau de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção – não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPCivil [cfr. Ac. STJ de 28/05/2009, in www.dgsi.pt].
22. Do exposto resulta, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação que se analisa, não se satisfazendo como se disse com a mera indicação genérica da prova que na perspectiva da recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, impõe que o mesmo concretize quer os pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância quer, ainda, que especifique quais as provas produzidas que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, sendo que, quando esse for o meio de prova, se torna também necessário que indique “com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição”.
23. A Recorrente, nas suas extensas alegações, não cumpriu o ónus, que sobre si recaía, de indicar quais os concretos factos não provados sobre os quais incide a sua discordância em relação ao decidido pelo Tribunal a quo, nem, quais os meios de prova constantes do processo que impunham decisão diversa, conforme lhe impõe as alíneas a) e b), do n.º 1 do citado artigo 640.º (aqui aplicável ex vi do artigo 140.º, n.º 3 do CPTA), o que leva a que o recurso, nessa parte, deva ser rejeitado.
24. A decisão recorrida, na motivação da matéria de facto, refere, e bem, o seguinte: “Os factos julgados provados foram-no tendo em conta a documentação indicada; os factos não provados, foram-no tendo em conta a ausência de documentação e a natureza dos factos, que requerem prova documental por natureza (a notificação dos contratos de cessão a que se refere o ponto 17 e a emissão de facturas). Quanto ao ponto 17.f), notamos que o documento n.º 004550559 do SITAF não contém qualquer cessão de créditos, mas apenas uma notificação.”
25. Quanto aos factos corretamente alegados que respeitam a alguns contratos de cessão de créditos, a Autora/Recorrente falhou na correspetiva prova (cf. factos não provados). Ou seja, apesar de ter cumprido o onus allegandi quanto a tais factos essenciais nucleares, não satisfez o onus probandi que sobre si impendia quanto a esses factos.
26. É, pois, forçoso concluir que a sentença recorrida não padece de qualquer dos vícios que a recorrente lhe imputa, estando correta e suficientemente fundamentada, quer de facto, quer de direito. 27. Em suma, a sentença recorrida não padece de inexistência e/ou nulidade, nem incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nem em erro de julgamento de direito, devendo, por isso, ser totalmente confirmada pelo venerando Tribunal ad quem. Termos em que, e nos melhores de direito, deve ser negado provimento ao presente recurso e, por consequência, integralmente confirmada a sentença recorrida. Assim decidindo, farão V. Exas. Venerandos Desembargadores, A habitual e sã, JUSTIÇA!”.
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Proferido despacho que admitiu o recurso interpostos, foram os autos remetidos a este Tribunal Central Administrativo Norte.
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O Ministério Público foi notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º do CPTA, não tendo emitido parecer.
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Cumpre entrar na análise dos fundamentos do recurso jurisdicional, circunscrevendo-se as questões a apreciar às que integram o objecto do recurso tal como foi delimitado pela recorrente nas suas alegações, à luz das disposições conjugadas dos artigos 144º nº 2, do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA.
Assim, as questões a apreciar e decidir reconduzem-se a saber se a sentença recorrida: i) Incorre em violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, que acarreta a inexistência da decisão; ii) Incorre em violação das normas que regulam o poder de dispensa da audiência prévia, que determinam a nulidade da decisão; iii) Incorre em ambiguidade e obscuridade que torna a decisão ininteligível e deixa de se pronunciar sobre questões que devia apreciar, no que respeita à matéria de facto dada como provada, o que gera a nulidade da decisão; iv) Incorre em erro de julgamento e procedimental no que respeita à matéria de facto dada como não provada; v) Incorre em erro de julgamento da matéria de direito e das normas legais aplicáveis.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1- DE FACTO
Para conhecimento, por agora, da questão relativa à violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional bem assim como da prolação de decisão surpresa, a factualidade relevante é a que consta do relatório supra exposto.
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II. 2. DE DIREITO
Sustenta a recorrente a este propósito, que “e) A 24.01.2024, o douto Tribunal a quo proferiu o despacho que passa a reproduzir – que foi notificado às partes no dia seguinte: “Notifique a A. para indicar aos autos precisamente quais as facturas e notas de crédito cujo pagamento se encontra em falta, e cujos juros considera devidos pelas facturas que entretanto foram pagas pelo R. Mais deve remeter ao Tribunal e ao R. a folha de cálculo /o documento Excel de suporte que eventualmente haja produzido e que resuma os valores que considere ser devidos. Partindo do pressuposto que a junção da referida documentação, propõe-se, para a realização da audiência prévia, tendo em vista as finalidades previstas nas alíneas a) a g) do nº 1 do artigo 87ºA do CPTA (incluindo a apreciação dos requerimentos probatórios e eventuais alterações aos mesmos), o dia 28-02-2024, às 14h0.”, f) O Tribunal, não tendo chegado a proferir qualquer despacho sobre a documentação protestada juntar, nem sobre os requerimentos das partes de 26.01.2024 e 29.01.2024, a requerer a intervenção das Ils. Mandatárias das partes na audiência prévia através de meios de comunicação à distância, veio a proferir a 29.01.2024 a douta sentença recorrida, afirmando que “[m]elhor vistos os autos, afigura-se que estes já contêm os elementos necessários à prolação de decisão final”, decidindo dispensar a “audiência prévia, nos termos do art. 87.º-B/1 e 2 do CPTA” e proferir saneador sentença, por meio da qual foi a acção julgada improcedente, como se referiu supra. g) Ora, esta última decisão (a recorrida) viola sem sombra de dúvida o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, vertido no artigo 613.º do Código de Processo Civil, mormente nos respectivos n.ºs 1 e 3, (aplicável ex vi art. 1.º e 35.º, n.º 1, ambos do CPTA), onde se refere que “[p]roferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, que se aplica, “com as necessárias adaptações aos despachos”. h) Na verdade, depois de ter proferido o despacho de 24.01.2024 estava o Tribunal a quo impedido de decidir de modo diferente, dispensando a audiência prévia que convocou (ademais com finalidades específicas que concretizou), sendo manifesto que a nova decisão não corresponde a retificação de erros materiais, suprimento de nulidades ou reforma admissível da sentença.”
Para o recorrente, o Tribunal a quo depois de ter proferido despacho a convidar a A. a juntar determinada documentação e a marcar data para a realização de audiência prévia, não podia ter ignorado o que decidiu quer no que respeita ao convite efectuado quer quanto à audiência prévia e que, ao fazê-lo, violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional
No caso em apreciação o Juiz a quo, proferiu despacho (datado de 24/1/2024), notificado aos Ilustres Mandatários das partes por ofício datado de 25/1/2024). convidando a A. a indicar quais as facturas e as notas de crédito cujo pagamento se encontravam em falta, e cujos juros considerava devidos pelas facturas que, entretanto, foram pagas pelo R e, ainda, a remeter ao Tribunal e ao R. folha de cálculo/documento Excel de suporte que eventualmente haja produzido e que resuma os valores que considere serem devidos.
Mais se determinou no referido despacho e, no pressuposto da junção da documentação solicitada: “para a realização da audiência prévia, tendo em vista as finalidades previstas nas alíneas a) a g) do nº 1 do artigo 87º-A do CPTA (incluindo a apreciação dos requerimentos probatórios e eventuais alterações aos mesmos), o dia 28-02-2024, às 14h00”.
A 26.01.2024 e a 29.01.2024, os Mandatários das partes requereram que fosse admitida a sua intervenção na diligência agendada para o dia 28-02-2024 (audiência prévia), através de meios de comunicação à distância, designadamente através da aplicação.
O Tribunal a quo, em 29/1/2024, proferiu despacho prévio que antecede o despacho saneador-sentença, do seguinte teor: “Melhor vistos os autos, afigura-se que estes já contêm os elementos necessários à prolação de decisão final, pelo que se dispensa a audiência prévia, nos termos do art. 87.º-B/1 e 2 do CPTA”, julgando, em seguida, a acção improcedente por “completa ausência de factos estruturantes da causa de pedir de tal ordem que não se perceba qual a raiz factual da pretensão do Autor e não da falta de alegação de um ou vários elementos que sejam necessários à procedência da acção”.
Entende o recorrente que a última decisão é juridicamente inexistente, por ter sido proferida após o esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal consagrado no artigo 613.º do Código de Processo Civil; que tendo o Tribunal proferido e notificado as partes de despacho a convidar à junção de documentação para a justa composição do litígio e convocado a realização de audiência prévia com as finalidades previstas nas alíneas a) a g) do nº 1 do artigo 87º-A do CPTA (incluindo a apreciação dos requerimentos probatórios e eventuais alterações aos mesmos) estava o Tribunal a quo impedido de proferir decisão surpresa sobre a mesma matéria inversa àquela que tinha proferido.
Trata-se, desde logo, de saber se após ter sido proposto o agendamento da realização de audiência prévia para uma data em concreto, não podia o Tribunal a quo, por se ter esgotado o poder jurisdicional, dispensar a sua realização, proferindo-se, em seguida, despacho-saneador-sentença.
Estabelece o artigo 613.º do CPC, sob a epígrafe “Extinção do poder jurisdicional e suas limitações
1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
3 - O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.”
“O princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias. Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...). Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha a ser interposto. (…) A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão” - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/3/2023, processo 120724/15.0YIPRT.1.G1-A.
No caso dos autos, o despacho que agendou a realização de audiência prévia não apreciou qualquer questão, pelo que, não estava impedido o Tribunal a quo de proferir despacho de sentido contrário, com a consequente não realização de audiência prévia, quando se apurou (de acordo com a segunda apreciação feita pelo Juiz a quo) que, afinal, a diligência processual já não seria necessária, com fundamento em que os autos já continham os elementos necessários à prolação de decisão final.
Nessa medida, não ocorre qualquer violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional.
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Vejamos agora se oferece razão ao recorrente quando considera que a decisão proferida constitui uma decisão surpresa, porquanto, tendo o Tribunal proferido e notificado as partes de despacho a convidar à junção de documentação para a justa composição do litígio e convocado a realização de audiência prévia com as finalidades previstas nas alíneas a) a g) do nº 1 do artigo 87º-A do CPTA (incluindo a apreciação dos requerimentos probatórios e eventuais alterações aos mesmos) estava o Tribunal a quo impedido de proferir decisão surpresa sobre a mesma matéria inversa àquela que tinha proferido.
Como resulta do relatório inicial da presente decisão, o Tribunal a quo, em despacho de 24/1/2024, notificado por ofício datado de 25/1/2024 aos Ilustres Mandatários das partes, determinou a notificação da A. “para indicar aos autos precisamente quais as facturas e notas de crédito cujo pagamento se encontra em falta, e cujos juros considera devidos pelas facturas que entretanto foram pagas pelo R. Mais deve remeter ao Tribunal e ao R. a folha de cálculo /o documento Excel de suporte que eventualmente haja produzido e que resuma os valores que considere ser devidos”, tendo o Tribunal recorrido em 29/1/2024 proferido despacho saneador – sentença, no qual julgou a acção improcedente, com fundamento na ausência de factos estruturantes da causa de pedir que não permitiam perceber qual a raiz factual da pretensão do Autor.
Ora, compulsado o despacho de 24/1/2024, constata-se que do mesmo não consta qualquer prazo para cumprimento do aí determinado, valendo em tal caso, o prazo-regra supletivo para a prática de atos processuais das partes de 10 dias estabelecido no artº 29º, nº1 do CPTA.
Assim sendo, ainda que como vimos, não estivesse o Tribunal a quo impedido de, melhor ponderados os autos e em despacho fundamentado, concluir no sentido da desnecessidade de realização de audiência prévia, certo é que, na data em que o fez, não tinha sequer decorrido o prazo para cumprimento do despacho proferido em 24/1/2024, notificado por ofício datado de 25/1/2024 aos Ilustres Mandatários das partes que determinou à A. que indicasse as facturas e notas de crédito cujo pagamento se encontravam em falta, bem assim como a apresentação de folha de cálculo /documento Excel de suporte que resumisse os valores que a A. considerasse serem devidos, tendo o Tribunal a quo de forma abrupta e não explicada encurtado um prazo de pronúncia que se encontrava em curso, encaminhando o processo para a uma tomada de decisão final que veio, afinal, a materializar-se numa improcedência da acção, por ausência de factos estruturantes da causa de pedir.
Nessa medida, não se pode deixar de concluir no sentido de que se oferece razão ao recorrente quando alega que, depois do convite que lhe foi dirigido nos termos em que o foi, não era previsível que o Tribunal, naquela data, e sem mais, decidisse o processo, constituindo, a decisão recorrida, uma verdadeira decisão surpresa, na medida em que se traduz em solução dada ao processo que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela A. que não tinha de modo algum obrigação de a prever, em violação do princípio do contraditório e da proibição da decisão-surpresa, que decorre do nº 3 do artº 3º do CPC, de acordo com o qual “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
A este propósito pode ler-se em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2/12/2019, processo 14227/19.8T8PRT.P1, “Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem (…). O dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão. São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar. Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio. Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal. Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração (…). Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (…). Há decisão surpresa se o juiz de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos (…), só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade. Quer se trate de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, casos existem em que as mesmas tinham obrigação de prever que o tribunal as podia decidir em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que, se as não suscitaram e não cuidaram de as discutir no processo, sib imputet, não se podendo, de modo equilibrado e razoável, considerar que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configura uma decisão-surpresa. Esta pressupõe que a parte seja apanhada em falta por uma decisão, embora juridicamente possível, não estivesse sido prevista nem configurada por aquela (…). Se a decisão tomada pelo tribunal é emanação dos factos alegados e debatidos pelas partes e o tribunal se cingiu a esses factos, sem recurso novos, não alegados, como o enquadramento jurídico feito pelo tribunal consubstancia algo que aquelas previram ou, pelo menos, tinham a obrigação legal de prever, como possível, nenhuma decisão surpresa existe.”
Aqui chegados, perante a prática nos autos de decisão que se veio a traduzir numa decisão surpresa, importa apurar qual o vício que afecta a decisão recorrida.
Seguindo de perto o supracitado Acórdão da Relação do Porto, o incumprimento do Tribunal do princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa “constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”. Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa). Sendo decorrência do referido princípio a proibição de decisões-surpresa, isto é, decisões baseadas em fundamento não previamente considerado pelas partes, tais decisões, a serem proferidas, incluem-se nas referidas nulidades”.
Assim, procedendo o recurso interposto com fundamento na prática de decisão surpresa, não pode a decisão recorrida ser mantida, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões do recurso interposto.
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IV. DECISÃO
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Administrativa, Subsecção de Contratos Públicos, do Tribunal Central Administrativo Norte, em:
a) Conceder provimento ao recurso interposto e, consequentemente, anular a decisão recorrida e determinar a baixa dos autos de modo a sanar-se a nulidade processual prosseguindo os autos, se a tal nada obstar.
b) Julgar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto.
Custas a cargo do recorrido - artº 527º, nºs 1 e 2 do CPC.
Notifique.

Porto, 22 de Novembro de 2024.

Maria Clara Ambrósio
Tiago Afonso Lopes de Miranda
Ricardo de Oliveira e Sousa