Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00104/11.4BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/26/2025
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:PAULO MOURA
Descritores:IRC;
PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA;
Sumário:
I – O n.º 1 do artigo 58.º do Código do IRC, impõe uma obrigação ao sujeito passivo de realizar operações segundo o princípio da plena concorrência, de tal forma, que impendem obrigações declarativas sobre o contribuinte quando realize este tipo de operações, conforme determinam os nos. 6 e 7 do artigo 58.º do CIRC.
II – O não cumprimento destas obrigações declarativas, significa que, para efeitos de preços e transferência, o contribuinte deixa de ter a seu favor a presunção de veracidade das suas declarações fiscais; precisamente por não ter apresentado as declarações a que estava obrigado.
III - O ónus que recai sobre a Administração Tributária para invocar o regime dos preços de transferência, decorre do disposto no artigo 58.º do CIRC (na redação vigente à data dos factos) e do n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, na redação dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.
IV – Cumprido esse ónus, passa a impender sobre o contribuinte o ónus de demonstrar que a operação está de acordo com o princípio da plena concorrência.
V – Não logrando o contribuinte provar o preço efetivo de mercado ou se se quiser, não logrando demonstrar que as operações em causa obedeceram ao princípio da plena concorrência, a impugnação tem de improceder.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

A FAZENDA PÚBLICA interpõe recurso da sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por «[SCom01...], Unipessoal, Lda.» (anteriormente designada como «[SCom02...], Lda.»), contra as liquidações adicionais de IRC dos anos de 2007 e 2008, por entender que a decisão incorre em erro de julgamento que resulta de incorreta interpretação e aplicação da lei.

Formula nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem:
a) Incide o presente recurso sobre a douta sentença, que julgou procedente a presente impugnação, com a consequente anulação das liquidações de IRC e respectivos JC, dos anos de 2007 e 2008, com fundamento em a Administração Fiscal (doravante AF) não ter cumprido, ao omitir os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, o ónus que sobre si impendia de provar todos os pressupostos da aplicação do art.º 58.º, n.º 1 do CIRC;
b) Ressalvado o devido respeito, que é muito, entende a Fazenda Pública que a douta sentença recorrida ao considerar, como considerou, que a AF omitiu “os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias”, violou o disposto no art.º
77.º, n.º 3 da LGT, na redacção à data aplicável;
c) Atente-se que, no caso sob apreciação, estão em causa liquidações de IRC dos exercícios de 2007 e 2008 (cfr. n.º 7 dos factos assentes), pelo que se lhes aplica a redacção do art.º 77.º, n.º 3 da LGT, dada pela lei n.º 30-G/2000, de
29/12;
d) Ora, diversamente do que previa a alínea b) o n.º 3 do art.º 77.º da LGT, na redacção anterior à da Lei n.º 30-G/2000, de 29.12, estando perante relações especiais, a AF não tem de descrever os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre entidades independentes em operações comparáveis, posto que tal exigência de fundamentação não foi transposta para a nova redacção introduzida pela citada Lei, motivo pelo qual, tendo tal requisito sido eliminado da previsão legal, não poderia o julgador, como o fez, exigir à AF o seu preenchimento;
e) Assim, a sentença ora sindicada, ao trazer à colação um quadro legal que não tinha aplicação no caso, quando o que era aplicável era o da redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 31/12, que não foi o interpretado e aplicado pela Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, padece de erro de interpretação e aplicação de lei, mormente o disposto no art.º 77, n.º 3 da LGT, na redacção dada pela citada lei;
f) Sendo que, na situação sob apreço, salvo melhor douta opinião, a AF cumpriu cabalmente todos requisitos de fundamentação legalmente exigidos (obrigatoriedade de descrever as relações especiais, indicar quais as obrigações que não foram cumpridas pelo sujeito passivo, aplicar os métodos de correcção previstos na lei e quantificar os respectivos efeitos) para poder levar a cabo correcções à matéria tributável em sede de preços de transferência;
g) Ademais, ao considerar a sentença recorrida que a AF não cumpriu o ónus que sobre si impendia, não provando todos os pressupostos de aplicação do art.º 58.º, n.º 1 do CIRC, fez uma incorrecta aplicação das regras do ónus da prova, decorrente de deficiente valoração dos factos dados como provados;
h) Com efeito, face à prova produzida, entende a Fazenda Pública que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo devia ter considerado que, no caso em apreciação, ocorreu inversão do ónus da prova, pelo que, ao assim não o ter interpretado, incorreu em violação do ínsito no art.º 74.º da LGT;
i) Como refere Elisabete Louro Martins, in “O Ónus da Prova no Direito Fiscal”, Coimbra Editora, 1º Edição, pág. 40,Em suma, a lei fiscal exige que na contratação entre entidades relacionadas sejam utilizados os termos e condições que em abstracto seriam contratados entre entidades independentes. Neste sentido, a lei Fiscal atribui ao Sujeito Passivo um conjunto de deveres de cooperação, traduzidos em deveres de declaração e de documentação, que permitem ao Sujeito Passivo provar que aplicou o método de determinação do preço de mercado adequado e cumpriu a obrigação legal de aplicação do principio de plena concorrência”, sendo que tais deveres de documentação e de declaração estão plasmados, respectivamente, nos números 6 e 7 do, à data aplicável, art.º 58.º do CIRC;
j) Ora, sempre que o sujeito passivo cumpra as condições estabelecida no art.º 58.º do CIRC, as declarações que o mesmo apresente nos termos previstos na lei, conforme dispõe o art.º 75.º da LGT, gozam da presunção de veracidade e de boa-fé, pelo que, nos termos gerais da lei (art.º 74.º da LGT) impende sobre a AF, para as infirmar, o ónus de invocar e demonstrar os fundamentos que a levam a desconsiderar os elementos declarados pelo sujeitos;
k) Todavia, o não cumprimento por parte do sujeito passivo de tais condições, tem como resultado a inversão do ónus da prova, ou seja, a AF não precisa de provar a violação do disposto no art.º 58.º, n.º 1 do CIRC, podendo proceder às necessárias correcções à matéria colectável, lançando mão do critério legalmente mais adequado para a determinação do preço de plena concorrência, incumbindo, então, ao sujeito passivo demonstrar que o preço que praticou, nas operações vinculadas, obedecia aos respectivos pressupostos legais;
l) Sucede que, como consta dos factos dados como provados, a impugnante não cumpriu com a sua obrigação declarativa designadamente o preenchimento do anexo H da IES, no que respeita aos valores das operações vinculadas praticadas com [SCom02...], S.L., assim como o método utilizado na determinação dos preços de transferência (cfr. n.º 5 do probatório, fls. 8 da sentença recorrida);
m) Sendo que esta factualidade (incumprimento do dever declarativo por parte da impugnante) não foi correcta nem devidamente ponderada pelo julgador, posto que, se o tivesse convenientemente valorado, teria concluído que existiria fundamento para, no caso concreto, se operar a inversão do ónus da prova;
n) Pois, atenta à função essencialmente probatória da observância do principio da plena concorrência que o dever de declaração desempenha, face ao incumprimento da obrigação declarativa estabelecida no n.º 7 do art.º 58.º do CIRC por parte da impugnante, verifica-se que o ónus de demonstrar que o preço praticado nos serviços prestados à empresa especialmente relacionada, [SCom02...], S.L., respeitava os pressupostos legais plasmados no art.º 58.º, n.º 1 do CIRC, competia à impugnante, que não, como erroneamente entendeu a douta sentença sob recurso, à AF (cfr neste sentido Decisão do CAAD de
09.05.2019, Processo n.º 274/2018-T);
o) Assim, ressalvado o devido respeito e salvo melhor entendimento, a sentença sindicada, ao considerar que ónus da prova dos pressupostos de aplicação do art.º 58.º, n.º 1 do CIRC impendia sobre a AF, padece de erro de julgamento resultante, não só da incorrecta valoração da prova, como também da errónea interpretação e aplicação das regras do ónus da prova ínsitas no art.º 74.º da LGT, ao não considerar invertido o ónus da prova em virtude da falta de cumprimento do aludido dever de declaração;
p) Sendo que, no caso em apreciação, salvo melhor douta opinião, entende a Fazenda Pública que a AF logrou, fundadamente, demonstrar, socorrendo-se do método que considerou mais apropriado para esse efeito, que as entidades relacionadas em causa estabeleceram termos e condições diferentes, nas suas operações vinculadas, das que seriam normalmente acordadas entre empresas independentes em operações idênticas;
q) Atente-se que, na situação em concreto, tendo em conta as características especificas das operações vinculadas prestadas (corte de peças de tecido destinadas ao revestimento interior de automóveis), o inspector tributário, após ter feito todo o percurso da comparabilidade possível (cfr. n.º 5 do probatório, fls. 9 e 10 da sentença recorrida), verificou e concluiu que não existiam informações disponíveis no mercado aberto que permitissem à AF encontrar o preço comparável daquelas prestações de forma directa, pelo que recorreu, fundadamente, ao único método que considerou o mais adequado a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade em operações idênticas;
r) Com efeito, a AF entendeu que o método que legalmente adoptou (mormente o dos preços unitários praticados pela impugnante, no ano de 2008, que constam da factura n.º 56, de 31.12.2018) era o mais apto para o fim em causa, tanto mais que, como bem referiu a douta sentença, os preços que constam de tal factura são iguais aos preços que constam de outras facturas do ano de 2008, cuja veracidade não foi sequer contestada pela impugnante (cfr. fls.
20 da sentença);
s) Em suma, a douta sentença recorrida incorre em erro de julgamento que resulta não só da incorrecta valoração da factualidade assente, como também da errónea interpretação e aplicação da lei, mormente o disposto nos referidos art.º 77.º, n.º 3 e 74.º, ambos da LGT.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, ordenando-se, em consequência, a revogação da decisão judicial recorrida, devendo, em substituição, o Venerando Tribunal conhecer do outro vício articulado de violação de lei e julgar a impugnação improcedente, com as legais consequências.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram dispensados os vistos legais, nos termos do n.º 4 do artigo 657.º do Código de Processo Civil, com a concordância da Exma. Desembargadora Adjunta e do Exmo. Desembargador Adjunto, atenta a disponibilidade do processo na plataforma SITAF (Sistema de Informação dos Tribunais
Administrativos e Fiscais).
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Delimitação do Objeto do Recurso – Questões a Decidir.
As questões suscitadas pela Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respetivas conclusões [vide artigos 635.º, n.º 4 e 639.º CPC, ex vi alínea e) do artigo 2.º, e artigo 281.º do CPPT] são as de saber se a sentença aplicou um quadro legal que não era aplicável à data dos factos; se incorreu em violação do art.º 74.º e 77.º, n.º 3 da LGT, ao considerar que o ónus da prova dos pressupostos de aplicação do art.º 58.º, n.º 1 do CIRC, impendia sobre a AT; e se o método adotado era o mais adequado a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade em operações idênticas.

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Relativamente à matéria de facto, o tribunal, deu por assente o seguinte:
3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1. Com interesse para a decisão a proferir, julgam-se provados os seguintes factos:
1. A impugnante, à data dos factos, estava coletada para o exercício da atividade de Fabricação de Tecidos Têxteis Confecionados (CAE 13920), estando enquadrada no regime geral de tributação, em IRC, e, em sede de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral em 2007 e mensal em 2008. – cfr. fls. 78 do processo administrativo apenso.
2. Com base nas Ordens de Serviço n.º OI20......49, de 03.07.2009 e n.º OI20......34, de 28.08.2009, a impugnante foi objeto de uma ação inspetiva externa de âmbito geral, que incidiu sobre os anos de 2007 e 2008, teve início em 21.10.2009 e fim em 11.12.2009. – cfr. fls. 78 do processo administrativo apenso.
3. Através dos ofícios n.ºs ...90 e ...91, de 15.12.2009 foi a impugnante notificada do projeto de relatório e respetivos anexos bem como para, querendo, exercer o direito de audição. – cfr. fls. 265 e ss. do SITAF.
4. A impugnante exerceu o direito de audição. – cfr. fls. 287 e ss. do SITAF.
5. Em 31.12.2009 foi elaborado o relatório que consta de fls. 73/92 do processo administrativo apenso, que se dão por reproduzidas, e do qual consta, entre o mais, o seguinte:

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]



6. As conclusões do relatório de inspeção tributária foram sancionadas superiormente. – cfr. fls. 73/74 do processo administrativo apenso.
7. Na sequência da ação inspetiva, foram emitidas pela Administração Fiscal as seguintes liquidações adicionais de IRC:
- n.º ...56, referente ao ano de 2007, inserta na nota de compensação n.º ...81, com saldo a pagar de 30.408,12. – cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;
- n.º ...74, referente ao ano de 2008, inserta na nota de compensação n.º ...09, com saldo a pagar de 140.016,57 €. - cfr. doc. 2 junto com a petição inicial;
8. Em 21.04.2010, a impugnante procedeu ao pagamento das liquidações a que alude o ponto anterior. – cfr. doc. 3 junto com a petição inicial.
9. A impugnante, não se conformando, em 21.06.2010 deduziu reclamação graciosa das liquidações nos termos e com os fundamentos de fls. 2 e ss. do processo administrativo apenso.
10. Foi emitida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças ... a informação de fls. 104/113, cujo teor se tem por reproduzido.
11. Em 14.01.2011, foi emitido o projeto de despacho de indeferimento pelo Chefe de Divisão. – cfr. fls. 114 do processo administrativo apenso.
12. Através do ofício n.º ...70, de 14.01.2011, remetido por carta registada, foi a impugnante notificada, na pessoa do seu mandatário judicial, para exercer o direito de audição prévia sobre o projeto de decisão referido no ponto anterior. – cfr. fls. 117/118 do processo administrativo apenso.
13. Em 27.01.2011 foi remetido à Direção de Finanças via faxe o requerimento de fls. 119 do processo administrativo apenso.
14. Em 31.01.2011, foi elaborada a informação de fls. 122 do processo administrativo apenso.
15. Por despacho datado de 31.01.2011, o Sr. Chefe de Divisão indeferiu a reclamação graciosa. – cfr. fls. 123 do processo administrativo apenso.
16. Em 16.02.2011 a impugnante remeteu para o Serviço de Finanças ... a petição inicial que deu origem aos presentes autos de impugnação. – cfr. carimbo aposto na folha de rosto da petição inicial.
Mais se provou que:
17. A impugnante, nos anos de 2006 e 2007, prestava serviços de corte e confeção de tecidos para revestimento do interior de automóveis.
18. A negociação dos contratos era efetuada pela empresa-mãe a “[SCom02...], SL”, localizada em Barcelona, Espanha.
19. A “[SCom02...], SL” entrou em dificuldades financeiras no ano de 2008, tendo sido declarada insolvente em 16.04.2009. – cfr. fls. 297 e ss. do SITAF.

3.2. Factos não provados:
Para além dos factos referidos, não foram provados outros com relevância para a decisão da causa, designadamente os elencados sob os pontos 18, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 68, 72, 73 e 76.

Motivação da matéria de facto:
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica do teor dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo apenso, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
Relativamente à matéria de facto não provada, as testemunhas arroladas pela impugnante não lograram provar a versão dos factos sustentada na petição inicial. Na verdade, os depoimentos das testemunhas apresentadas pela impugnante revelaram-se parciais e comprometidos com a versão dos factos apresentada pela impugnante.
Em concreto, o Tribunal não relevou o depoimento prestado por «AA» e «BB», trabalhadoras na área de controlo da qualidade do produto e que sobre os factos em causa nos presentes autos nada sabiam.
A impugnante não logrou desde logo provar que as peças destinadas à [SCom03...]
... eram apenas de corte, pois várias testemunhas, designadamente «CC», responsável de armazém, afirmaram que para a [SCom03...] havia corte e costura decorativa.
Também não logrou provar que a fatura junta como doc. 5 com a petição inicial é fictícia e que apenas foi elaborada, adulterando-se os preços praticados, de modo a ficar a zero a dívida que a Impugnante tinha com a empresa-mãe.
Em primeiro lugar, alguns dos preços que constam no doc. 5 são iguais a preços que constam de outras faturas cuja veracidade não foi contestada pela impugnante (vide os preços de 0,4000 € por serviços prestados à [SCom04...] e de 0,7400 € por serviços prestados à [SCom05...], que são iguais aos das faturas de doc. 6, doc. 7, doc. 8). Com efeito, o Sr. «DD» afirmou perentoriamente que todas as faturas são reais exceto a do doc. 5.
A versão segundo a qual o doc. 5 é uma fatura fictícia nunca foi avançada no decurso do procedimento inspetivo, nem no âmbito do exercício do direito de audição. E mesmo na petição inicial, não é alegada com clareza Ponto 82 da petição inicial: “Os preços constantes da factura no 56 de 31-12-2008 não correspondem aos preços de mercado e foram ali colocados para corresponder a um procedimento de neutralização do crédito existente antes disso a favor do fornecedor e quotista “[SCom02...] SL” de Espanha.”. .
Não ficou igualmente provado que os custos de transporte ficavam a cargo da empresa-mãe e não da impugnante, na medida em que segundo «EE», inspetor na direção de Finanças ... que levou a cabo a ação inspetiva, foram encontradas na contabilidade da impugnante várias faturas de transportadoras afirmando ainda que nada indiciava que os custos do transporte das peças não ficavam a cargo da impugnante.

** Apreciação jurídica do recurso.

Alega a Recorrente, Fazenda Pública, que a sentença ao considerar que a AT omitiu os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, violou o disposto no art.º 77.º, n.º 3 da LGT, sendo que, este preceito, obriga a descrever as relações especiais, a indicar quais as obrigações que não foram cumpridas pelo sujeito passivo, a aplicar os métodos de correção previstos na lei e quantificar os respetivos efeitos; aplicando a sentença a redação anterior deste preceito.
Alega, ainda, a Recorrente, que a AT cumpriu todos requisitos de fundamentação legalmente exigidos para poder levar a cabo correções à matéria tributável em sede de preços de transferência, pois foram descritas as relações especiais (facto não controvertido), foram indicadas as obrigações que não foram cumpridas pelo sujeito passivo e foi aplicado e fundamentado o método de correção previsto na lei e quantificado os respetivos efeitos.
Diz, igualmente, a Recorrente, que a AT cumpriu os pressupostos de aplicação do n.º 1 do art.º 58.º do CIRC, tendo ocorrido a inversão do ónus da prova, uma vez que, não obstante a Impugnante estar dispensada da apresentação do dossier dos preços de transferência, não cumpriu com as suas obrigações declarativas, designadamente, o preenchimento do anexo H da IES, por força do n.º 7 do artigo 58.º do CIRC, no que respeita aos valores das operações vinculadas praticadas, assim como o método utilizado na determinação dos preços de transferência, pelo que o não cumprimento por parte do sujeito passivo de tais condições, tem como resultado a inversão do ónus da prova, situação que não foi corretamente ponderada na sentença.
Alega, por fim, a Recorrente, que a AT aplicou o método mais apropriado, que foi o da comparabilidade em operações idênticas, aplicando dos preços unitários praticados pela Impugnante no ano de 2008, por ser o único que tinha ao seu dispor, para determinar o valor de mercado das prestações de serviço em causa.

A sentença recorrida, entendeu que cabia à AT provar, que a prestação de serviços efetuada, havia sido em condições diferentes das normalmente acordadas entre pessoas independentes, referindo que a AT se limitou a ser conclusiva de que a Impugnante não aplicou o princípio da plena concorrência nas operações vinculadas, por isso não cumpriu o ónus que sobre si impendia não provando todos os pressupostos de aplicação do artigo 58.º, n.º 1 do CIRC.

Apreciando.
Para melhor apreensão da matéria em apreço, transcrevem-se os preceitos ao caso aplicáveis, como sejam o artigo 58.º do Código do IRC
(redação à data dos factos) e o artigo 77.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Artigo 58.º (Preços de transferência)
1 - Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.
2 - O sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes das empresas envolvidas, as funções por elas desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco.
3 - Os métodos utilizados devem ser:
a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;
b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.
(…)
6 - O sujeito passivo deve manter organizada, nos termos estatuídos para o processo de documentação fiscal a que se refere o artigo 121.º, a documentação respeitante à política adoptada em matéria de preços de transferência, incluindo as directrizes ou instruções relativas à sua aplicação, os contratos e outros actos jurídicos celebrados com entidades que com ele estão em situação de relações especiais, com as modificações que ocorram e com informação sobre o respectivo cumprimento, a documentação e informação relativa àquelas entidades e bem assim às empresas e aos bens ou serviços usados como termo de comparação, as análises funcionais e financeiras e os dados sectoriais, e demais informação e elementos que tomou em consideração para a determinação dos termos e condições normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes e para a selecção do método ou métodos utilizados.
7 - O sujeito passivo deve indicar, na declaração anual de informação contabilística e fiscal a que se refere o artigo 113.º, a existência ou inexistência, no exercício a que aquela respeita, de operações com entidades com as quais está em situação de relações especiais, devendo ainda, no caso de declarar a sua existência:
a) Identificar as entidades em causa;
b) Identificar e declarar o montante das operações realizadas com cada uma;
c) Declarar se organizou, ao tempo em que as operações tiveram lugar, e mantém, a documentação relativa aos preços de transferência praticados.
8 - Sempre que as regras enunciadas no n.º 1 não sejam observadas, relativamente a operações com entidades não residentes, deve o sujeito passivo efectuar, na declaração a que se refere o artigo 112.º, as necessárias correcções positivas na determinação do lucro tributável, pelo montante correspondente aos efeitos fiscais imputáveis a essa inobservância.
9 - Nas operações realizadas entre entidade não residente e um seu estabelecimento estável situado em território português, ou entre este e outros estabelecimentos estáveis daquela situados fora deste território, aplicam-se as regras constantes dos números anteriores.
10 - O disposto nos números anteriores aplica-se igualmente às pessoas que exerçam simultaneamente actividades sujeitas e não sujeitas ao regime geral de IRC.
11 - Quando a Direcção-Geral dos Impostos proceda a correcções necessárias para a determinação do lucro tributável por virtude de relações especiais com outro sujeito passivo do IRC ou do IRS, na determinação do lucro tributável deste último devem ser efectuados os ajustamentos adequados que sejam reflexo das correcções feitas na determinação do lucro tributável do primeiro.
12 - Pode a Direcção-Geral dos Impostos proceder igualmente ao ajustamento correlativo referido no número anterior quando tal resulte de convenções internacionais celebradas por Portugal e nos termos e condições nas mesmas previstos.
13 - A aplicação dos métodos de determinação dos preços de transferência, quer a operações individualizadas, quer a séries de operações, o tipo, a natureza e o conteúdo da documentação referida no n.º 6 e os procedimentos aplicáveis aos ajustamentos correlativos são regulamentados por portaria do Ministro das Finanças.

Artigo 77.º (Fundamentação e eficácia)
1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.
2 - A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.
3 - Em caso de existência de operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, ou de operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo de imposto sobre o rendimento e qualquer outra entidade, sujeita ou não a imposto sobre o rendimento, com a qual aquele esteja em situação de relações especiais, e sempre que haja incumprimento de qualquer obrigação estatuída na lei para essa situação, a fundamentação da determinação da matéria tributável corrigida dos efeitos das relações especiais deve observar os seguintes requisitos:
a) Descrição das relações especiais;
b) Indicação das obrigações incumpridas pelo sujeito passivo;
c) Aplicação dos métodos previstos na lei, podendo a Direcção-Geral dos Impostos utilizar quaisquer elementos de que disponha e considerando-se o seu dever de fundamentação dos elementos de comparação adequadamente observado ainda que de tais elementos sejam expurgados os dados susceptíveis de identificar as entidades a quem dizem respeito;
d) Quantificação dos respectivos efeitos.
(…)

Alega a Recorrente que a sentença aplicou a redação inicial do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, que obrigava a AT a descrever as operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, sendo que na redação conferida a este artigo pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, deixou de existir aquela obrigação, impendendo sobre a AT descrever as relações especiais, a indicar quais as obrigações que não foram cumpridas pelo sujeito passivo, a aplicar os métodos de correção previstos na lei e quantificar os respetivos efeitos.
Ora, não obstante a sentença transcrever a redação correta do n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, acaba por citar três Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, os quais foram proferidos com base na redação anterior deste preceito, conforme se pode ver pelo teor dos mesmos, pois referiam-se ao IRC de 1991, 1995, 1996 e 1997, pelo que o STA, aplicou a legislação então vigente e não a nova redação do n.º 3 do artigo 77.º da LGT. Daí o STA exigisse a demonstração dos termos em que normalmente decorrem as operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, que era o exigido na anterior alínea b) do n.º 3 do artigo 77.º da LGT. Desta forma, o raciocínio expendido na sentença acabou por ser viciado em função dos Acórdãos que cita, os quais, não estão conforme a nova redação do n.º 3 do artigo 77.º da LGT.
Não obstante a referida alteração legislativa, não deixa de ser necessário à AT fundamentar o âmbito da sua atuação, embora já não precise de descrever as operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias.
Vejamos, então, o que é necessário à AT fazer para poder aplicar o regime dos preços de transferência.
O artigo 58.º do Código do IRC (atual artigo 63.º), não prevê como é que a Administração Tributária deve fundamentar a aplicação das correções ou ajustamentos, apenas lhe conferindo esses poderes.
Por isso, a necessidade de aplicação do disposto nos artigos 74.º e 77.º da Lei Geral Tributária.
Em primeiro lugar, compete referir que o artigo 58.º do Código do IRC impõe uma obrigação ao sujeito passivo de, nas operações que realize nas situações de relações especiais para que os valores contratados ou praticados sejam substancialmente idênticos aos que normalmente seriam realizados entre entidades independentes em situações comparáveis.
Portanto, o ónus de praticar preços idênticos, é imposto sobre o sujeito passivo, ficando este obrigado à sua observação. De tal forma, que impendem obrigações declarativas sobre o contribuinte quando realize este tipo de operações, conforme determinam os nos. 6 e 7 do artigo 58.º do CIRC, sendo que a obrigação de manter organizado um processo fiscal (prevista no n.º 6), apenas existe caso o sujeito passivo tenha atingido um valor anual de vendas líquidas e outros proveitos superior a três milhões de euros (vide n.º 3 do artigo 13.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro).
No entanto, o n.º 7 do artigo 53.º do CIRC, obriga o contribuinte a apresentar na declaração anual de informação contabilística e fiscal (também designada por IES - Informação Empresarial Simplificada), as operações sujeitas ao regime dos preços transferência, independentemente dos valores que estejam em causa.
Conforme referido no RIT, a Impugnante não cumpriu esta obrigação declarativa – vide RIT transcrito no ponto 5 do probatório (pág. 8 da sentença). O que significa que, para efeitos de preços e transferência, deixa de ter a seu favor a presunção de veracidade das suas declarações, estabelecida no artigo 75.º da LGT, na medida em que não apresentou a declaração que lhe concedia essa presunção de veracidade. No caso, a veracidade sobre os preços praticados com a casa mãe (a empresa que detinha 98% da Impugnante), como correspondendo aos preços de plena concorrência.
Ora, segundo o n.º 1 do artigo 74.º da Lei Geral Tributária, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos, recaia sobre quem os invoque.
Na situação em apreço, o ónus que recai sobre a Administração Tributária para invocar o regime dos preços de transferência, decorre do disposto no n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, para além de que as operações realizadas não estão conformes o princípio da plena concorrência. Estabelece o n.º 3 do artigo 77.º da LGT, que a realização de operações, entre entidades em situação de relações especiais, quando haja incumprimento de qualquer obrigação estatuída na lei, a fundamentação para determinar a correção da matéria tributável, observa os seguintes requisitos:
a) Descrição das relações especiais;
b) Indicação das obrigações incumpridas pelo sujeito passivo;
c) Aplicação dos métodos previstos na lei, podendo a Direcção-Geral dos Impostos utilizar quaisquer elementos de que disponha e considerando-se o seu dever de fundamentação dos elementos de comparação adequadamente observado ainda que de tais elementos sejam expurgados os dados suscetíveis de identificar as entidades a quem dizem respeito; d) Quantificação dos respetivos efeitos.

Conforme se pode ler no RIT, a Impugnante forneceu peças cortadas (tecido para automóvel), à empresa que a detinha a 98%, pelo que está satisfeito o primeiro requisito, que é o da descrição das relações especiais. Aliás, situação que a Impugnante não coloca em causa.
Depois, conforme já acima referido, a Impugnante não declarou a realização de operações sujeitas a preços e transferência – vide RIT transcrito no ponto 5 do probatório (pág. 8 da sentença), pelo que a AT cumpriu o ónus de indicar o incumprimento da obrigação legal imposta ao sujeito passivo; desta forma estando satisfeito o segundo requisito.
De seguida, é necessário que a AT aplique os métodos previstos na lei, neste caso, serão os previstos no artigo 58.º do CIRC, complementado com os estabelecidos na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.
O RIT, mencionou o disposto no n.º 2 do artigo 1.º desta Portaria, ou seja, fez uma análise individualizada das operações (no caso, corte de tecido para automóveis), com base no fornecimento o contínuo que considerou ser o que estava a ser efetuado; e que não está colocado em causa pela Impugnante. Depois, referindo que não foi aplicado o princípio da plena concorrência, passou a averiguar qual seria o método mais adequado a fornecer a mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente praticados numa situação de plena concorrência, nos termos dos artigos 4.º e 6.º da dita Portaria. Analisada a situação em concreto, o RIT concluiu não poder verificar situações substancialmente idênticas no mercado, por isso utilizou método alternativo, admitido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º da Portaria, considerado apropriado às características específicas destas operações. Para o efeito, não tendo sido apresentadas fichas de produção, ficou-se sem saber determinados elementos para o cálculo da margem do custo, por isso foi utilizado o método dos preços praticados no ano de 2008, pela própria Impugnante, com preços diferentes, consoante o cliente e quantidades de peças, servindo de suporte às correções, a faturação dos serviços prestados nos meses de abril a dezembro, com base na fatura n.º 56, de 31/12/2008.
Conforme se pode ver por este resumo, a AT explicou o método aplicado, fazendo referência aos requisitos que a Portaria mencionava, como os mais apropriados para determinar o método aplicável à operação.
Para além disso, com a verificação de que a Impugnante praticava preços diferentes para as operações vincularas (prestação de serviços para a sociedade dominante) e para as operações não vinculadas (prestações e serviços para terceiros), a AT demonstra que as operações vinculadas se afastam do preço de mercado, ou seja, dos preços que ocorrem em situação de plena concorrência.
Desta forma, a AT satisfez o terceiro requisito estabelecido no n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, assim como o requisito de demostrar que as operações se afastam do princípio da plena concorrência, nos termos do artigo 58.º do Código do IRC.
Por fim, a AT deve quantificar os respetivos efeitos, ou seja, os métodos aplicados devem ser suscetíveis de poderem quantificar a matéria tributável corrigida. Conforme se pode verificar pelo RIT, foram efetuadas correções aos exercícios de 2007 e 2008, constando para cada um destes anos, os respetivos cálculos, com indicação das peças costadas, o preço de venda, a correção efetuada a esse preço e o valor final corrigido, assim como a determinação da matéria coletável, em função destas correções.
Assim, a AT também cumpriu o quarto e último requisito previsto no n.º 3 do artigo 77.º da Lei Gral Tributária.
Em face do exposto, verifica-se que a AT satisfez os requisitos de fundamentação previstos no n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, pelo que passou a impender sobre o contribuinte o ónus de demonstrar que a operação está de acordo com o princípio da plena concorrência.
A AT também logrou demostrar que as operações se afastam do princípio da plena concorrência, nos termos do artigo 58.º do Código do IRC, com recurso aos elementos da própria Impugnante.
Considerando que a matéria de facto não se encontra impugnada, a mesma mostra-se estabilizada, em termos de factos provados e de factos não provados.
Ora, seria, precisamente, nos factos não provados, que poderia estar em apreço saber se a Impugnante lograva, ou não, demostrar que as operações em causa estavam conformes o princípio da plena concorrência. Atendendo a que a sentença considerou não provadas as alegações da Impugnante no sentido de infirmarem as conclusões Relatório de Inspeção, designadamente, quanto ao método utilizado, concluiu-se que a Impugnante não logra demonstrar que as operações estiveram sujeitas ao princípio da plena concorrência.
Assim, por remissão para os itens da Petição Inicial, a sentença considerou não provada a alegação da Impugnante relativa ao preço efetivamente remunerado pelo corte de cada peça e que o preço estivesse de acordo com o disposto no artigo 58.º do Código do IRC, designadamente, foi dado como não provado, que o preço praticado, era o preço normal para um serviço de corte, como o que foi realizado. Da mesma forma, foi dado como não provada a alegação da Impugnante de que o critério utilizado, com base na fatura identificada no RIT, não tinha aderência à realidade (uma vez que, segundo a Impugnante se tratava de uma fatura de regularização/acerto formal das contas internas nas relações dos financiadores da sociedade (alegação dada como não provada). Também foi dado como não provado que a sociedade mãe (que também era a cliente da Impugnante) pagou os serviços prestados pelo triplo do seu valor de mercado, conforme tinha sido alegado na Petição Inicial. Em face do exposto, temos de concluir que a AT realizou a prova que lhe competia, não logrando, por sua vez, a Impugnante provar o preço efetivo de mercado ou se se quiser, não logrou demonstrar que as operações em causa obedeceram ao princípio da plena concorrência.
Relativamente a esta matéria e respetivo ónus probatório, veja-se a jurisprudência que vai no sentido do que acima ficou referido, como por exemplo o Acórdão do TCA Sul de 19/02/2015, proferido no processo n.º
07049/13 (disponível em www.dgsi.pt), cujo sumário contém o seguinte teor:
1) A correcção em causa nos autos depende do preenchimento do requisito de relações vinculadas e da demonstração do preço comparável aplicável ao caso. O discurso de suporte da mesma tem em vista o preenchimento de cada um dos requisitos, fazendo a respectiva análise circunstanciada, de forma que se oferece acessível a um destinatário médio, colocado na posição da impugnante.
2) No sentido de evitar transferências de resultados em operações efectuadas entre entidades que mantém entre si relações especiais através de subfacturação ou sobrefacturação de forma a diminuir os proveitos e a aumentar os custos, foram estabelecidos métodos relativos aos preços de transferência.
3) A determinação de preços de livre concorrência deve ser efectuada de acordo com uma metodologia específica, cujo critério fundamental é o da comparabilidade, ao mais elevado grau, com operações substancialmente análogas realizadas entre partes independentes.
4) A AF observou o ónus de fundamentação da correcção em causa, seja através da análise topográfica das relações vinculadas em referência, seja através da justificação da escolha do método de comparação, pelo que recai sobre o contribuinte o ónus de demonstração do erro ou excesso na quantificação (artigo 74.º/3, da LGT). O qual não foi observado.

Veja-se, ainda, o Acórdão do TCA Sul de 16/12/2020, proferido no proc. n.º
1882/14.4BESNT (em www.dgsi.pt), o qual, a dado passo, refere o seguinte:
O processo de documentação fiscal, referido no nº 6 do artigo 58º CIRC, encontra-se regulado nos artigos 13º a 16º da citada Portaria n.º 1446-C/2001.
Com efeito, e como se refere no preambulo da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro: considerando que a eficiente aplicação das regras sobre preços de transferência requer um elevado grau de colaboração entre os contribuintes e a administração tributária, é dado particular relevo às obrigações relativas à informação e documentação que o sujeito passivo deve obter, produzir e manter para justificar a política adotada em matéria de preços de transferência. Todavia, a lista elaborada sobre informação e documentação relevante não é exaustiva, sendo legítima a expectativa, por parte da administração tributária, que o contribuinte possua, e possa fornecer para análise, os elementos que, perante os factos e circunstâncias concretas que caracterizam a sua atividade e num quadro de boas práticas comerciais e financeiras, deveria razoavelmente deter para determinar e comprovar a conduta adotada na fixação dos preços de transferência, sem que, no entanto, seja obrigado a incorrer em custos de observância desproporcionados.
E é precisamente aqui que a sentença recorrida claudica, porquanto o não cumprimento pelo contribuinte das obrigações acessórias, relativas à manutenção de um processo de documentação fiscal, se bem que não tenha como consequência a inversão do ónus da prova, dificulta a produção de prova por parte da Impugnante, ora Recorrida, quanto ao erro ou excesso de quantificação da matéria coletável.
Assim, e na senda do já referenciado acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul, no processo n° 07049/13, de 19.02.2015, autos nos quais a mesma contribuinte impugnou a liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício de 2005, consideramos que ao contrário do decidido na sentença sob recurso, a AF observou o ónus de fundamentação da correção em causa, seja através da análise topográfica das relações vinculadas em referência, seja através da justificação da escolha do método de comparação, pelo que recai sobre o contribuinte o ónus de demonstração do erro ou excesso na quantificação (artigo 74.º/3, da LGT). No cumprimento deste ónus, não aproveita ao impugnante uma atuação processual e, sobretudo, probatória, direcionada e orientada pelo, simplista e preguiçoso, objetivo de suscitar dúvida, ainda que fundada, sobre a quantificação do facto tributário. No caso, a recorrente não aduz factos concretos que permitam extrair a ilação de que os valores de compra apurados são errados e-ou excessivos, motivo porque se tem por incumprido o ónus referido.
Cabia, pois, à Impugnante, ora Recorrida, trazer ao processo elementos credíveis para afastar a escolha do método utilizado pela Autoridade Tributária e Aduaneira para efetuar as correções que deram origem ao ato de liquidação impugnado.
Na verdade, para efetuar as correções que estão na base da liquidação adicional impugnada, ao abrigo do regime dos preços de transferência, a Autoridade Tributária e Aduaneira, tinha apenas que comprovar os pressupostos constantes do artigo 58º CIRC, ou seja, a existência de relações especiais entre o sujeito passivo e as entidades envolvidas, o que fez, e a divergência dos valores de aquisição e alienação, quando realizadas entre a Impugnante, ora Recorrida, e o valor pelo qual entidades independentes estariam dispostas a contratar.
Ora, tendo as aquisições e alienações dos bens ocorrido no mesmo dia, por preços diferentes, e dada a situação de relações especiais que se verificava entre ela e as entidades envolvidas, era de mediana prudência que o Contribuinte se precavesse e motivasse a divergência de preços verificada, nomeadamente apresentando o processo de documentação fiscal, para justificar que as aquisições dos bens foram efetuadas ao valor de mercado, o que não fez.

Veja-se, ainda, o que sobre o assunto escreve a Prof.ª Glória Teixeira, no seu Manual de Direito Fiscal, 6.ª ed., Almedina, 2022, págs. 154 a 157, onde refere:
5.2.6. O problema do ónus da prova Sobre a distinção entre ónus de prova formal e material (note-se a relevância deste último na aplicação do regime de preços de transferência e medidas anti-abuso), ver Saldanha Sanches, O Ónus de Prova no Processo Fiscal, CTF, 151,1987. Ver ainda jurisprudência recente do STA sobre a matéria: Recurso 25 393 (L..J. Santos Caetano v. Fazenda Pública).

A questão do ónus da prova que fundamentalmente aparece regulada no artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT) assume uma importância significativa na aplicação do regime de preços de transferência. Evitando os dilemas que na prática este artigo suscita, tanto para a administração tributária como para o contribuinte, a questão poderá ser reconduzida ao delimitar do princípio do inquisitório (artigos 58º e 99º da LGT) face ao princípio do dispositivo, com a concomitante repartição do ónus da prova entre a administração tributária e o contribuinte (artigo 74º, nº1 e nº 2 da LGT).
A complexa e multifacetada questão da distribuição do ónus da prova no direito fiscal português é bem conhecida, mas o problema complica-se substancialmente no caso especial dos ‘preços de transferência’. Escolhendo o exemplo mais dilemático, pois implica desde logo uma interpretação conjunta das disposições do CIRC e do artigo 77º, nº 3 da LGT - podendo este último ser objeto de uma interpretação extensiva de modo a acolher o conceito de relações especiais -, suponhamos que se verificam os factos previstos no artigo 77º, nº 3 da LGT (por exemplo, relações entre o contribuinte e terceiras pessoas e condições diferentes das que se verificariam na ausência de tais relações) e a administração tributária efetua correções à matéria tributável do contribuinte.
Deixando de lado a difícil questão da prova da existência de relações especiais, será obrigação do contribuinte provar que a correção é incorreta ou competirá à administração fiscal provar e fundamentar os ajustamentos efetuados à matéria tributável do contribuinte? Assumindo um sistema de auto-avaliação, estaríamos inclinados, tal como acontece nos EUA ou no Reino Unido, a atribuir exclusivamente o ónus da prova ao contribuinte. No entanto, no sistema fiscal português a situação não é clara e os custos administrativos, tanto para a administração fiscal, como para o contribuinte, são elevados devido a esta imprecisão ou difícil repartição do ónus da prova ou ainda da delimitação precisa das fronteiras do princípio do dispositivo versus princípio do inquisitório.
À semelhança de outras experiências europeias, também a legislação fiscal portuguesa tem vindo progressivamente a atribuir mais responsabilidades ao contribuinte, nomeadamente expansão das suas obrigações acessórias e de documentação. Veja-se no caso particular dos preços de transferência em Portugal a obrigação que recai sobre o contribuinte de manter organizada a documentação respeitante à política adotada em matéria de preços de transferência, contratos, análises funcionais e financeiras, etc. Poder-se-á até questionar se não será exagerado exigir do contribuinte todo um rol de documentação, que em determinadas transações (por exemplo, intangíveis e situações monopolísticas de mercado - petróleo, fármacos, telecomunicações, alimentos, etc.), seriam dispensáveis ou de difícil identificação ou quantificação.
Do exposto resulta que a resposta à questão acima enunciada não é pacífica se utilizarmos como ponto de partida o art. 74º, nºs 1 e 2, que estatui uma repartição do ónus da prova entre a administração tributária e o contribuinte (aqui não só o pedido como a causa de pedir exercerão um papel determinante!), não esquecendo, todavia, o leque de obrigações acessórias a que está vinculado o contribuinte. Existe de facto uma tendência para deslocar, pelo menos em matéria de preços de transferência, o ónus da prova (entendido aqui em sentido lato ou material Para uma análise e correlação entre o princípio da prevalência da substância sob a forma, ónus da prova, delimitação do princípio do dispositivo vs. princípio do inquisitório e força probatória de documentos autênticos, ver Recurso 25.469, Fazenda Pública v. João António Carujo de Sousa Jordão e mulher, STA, 4/4/2001. ) da administração fiscal para o contribuinte.
Cumpre ainda, por último, referir que a existência de uma documentação organizada é um fator determinante para um eficaz cumprimento das obrigações do contribuinte (artigo 31º da LGT) e concomitante aceitação por parte da administração tributária. Em consonância com as orientações da OCDE IFA, Practical Experience with the OECD Transfer Guidelines, Kluwer, 1999. , os indispensáveis critérios de proporcionalidade e razoabilidade terão de ser prosseguidos nesta matéria, sob pena de sobrecarregar os contribuintes com procedimentos administrativos injustificados ou puramente burocráticos. A inclusão na LGT do princípio da colaboração (artigo 59º) é um dos exemplos da aplicabilidade prática dos critérios acima mencionados Ver ainda LGT, art. 84 aplicável no contexto da avaliação de rendimentos (critérios técnicos) e a obrigação que impende sobre o contribuinte de indicar os critérios utilizados bem como a sua aplicação na determinação dos rendimentos que declarou. .
5.2.7. Ónus da prova e o preço comparável de mercado
Ao nível dos trabalhos da OCDE e da União Europeia há que salientar a preferência pelo método comparável de mercado, a transferência do ónus da prova da administração tributária para o contribuinte, verificando-se, ao nível do direito fiscal comparado, um recurso crescente a bases de dados disponíveis nas mãos dos contribuintes. Ver, por exemplo, a experiência alemã e as alterações, introduzidas a 11 de abril de 2003, ao Código Geral de Impostos: as novas disposições atribuem o ónus da prova de indicar o preço de mercado ao contribuinte, podendo este utilizar não só bases de dados internas, mas também externas.
Também as disposições do CIRC e respetiva legislação complementar sobre preços de transferência impõem claramente ao contribuinte a obrigação de utilizar o método ou métodos suscetíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações, estando este ainda obrigado, ao abrigo deste regime, a apresentar à administração tributária todas as informações, incluindo bases de dados utilizadas e relevantes para a determinação do preço independente.
Atribui assim o legislador ao contribuinte a obrigação de demonstrar que o método utilizado é o mais razoável e adequado aos factos e circunstâncias apresentados.
Nos termos da LGT e das disposições do CIRC e respetiva legislação complementar pode e deve a administração tributária questionar não só a qualidade como a utilidade da informação ou documentação apresentada, justificativa do método selecionado e conducente à fixação do preço independente: veja-se o exemplo de utilização de informações já desatualizadas ou reportadas a anos anteriores, sem subsequente atualização.
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Em face do exposto, a sentença não se pode manter na ordem jurídica, devendo ser revogada e a impugnação ser julgada totalmente improcedente.
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No concerne às custas deste recurso, atenta a procedência do recurso, a revogação da sentença e ao facto de a Recorrida não ter contra-alegado, ficam as custas a cargo desta, sem prejuízo de não ser devida taxa de justiça nesta instância de recurso, por não ter contra-alegado – vide artigos 527.º, nos. 1 e 2 e 529.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e Acórdão deste TCA Norte de 30/09/2021, processo n.º 00378/06.2BECBR, disponível em www.dgsi.pt.
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Nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário:
I – O n.º 1 do artigo 58.º do Código do IRC, impõe uma obrigação ao sujeito passivo de realizar operações segundo o princípio da plena concorrência, de tal forma, que impendem obrigações declarativas sobre o contribuinte quando realize este tipo de operações, conforme determinam os nos. 6 e 7 do artigo 58.º do CIRC.
II – O não cumprimento destas obrigações declarativas, significa que, para efeitos de preços e transferência, o contribuinte deixa de ter a seu favor a presunção de veracidade das suas declarações fiscais; precisamente por não ter apresentado as declarações a que estava obrigado.
III - O ónus que recai sobre a Administração Tributária para invocar o regime dos preços de transferência, decorre do disposto no artigo 58.º do CIRC (na redação vigente à data dos factos) e do n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, na redação dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.
IV – Cumprido esse ónus, passa a impender sobre o contribuinte o ónus de demonstrar que a operação está de acordo com o princípio da plena concorrência.
V – Não logrando o contribuinte provar o preço efetivo de mercado ou se se quiser, não logrando demonstrar que as operações em causa obedeceram ao princípio da plena concorrência, a impugnação tem de improceder.
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Decisão
Termos em que, acordam em conferência, os juízes da Subsecção Tributária Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação improcedente.
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Custas a cargo da Recorrida, não sendo devida taxa de justiça nesta instância de recurso, por não ter contra-alegado.
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* Porto, 26 de junho de 2025.

Paulo Moura
Maria da Conceição Pereira Soares
Serafim José da Silva Fernandes Carneiro