Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02106/21.3BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/25/2022
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PROVA TESTEMUNHAL; FACTOS; ARTIGO 341º DO CÓDIGO CIVIL; EXERCÍCIO DA ACTIVIDADE DE NOTÁRIO; LIMITE DE IDADE;
ALÍNEA B) DO ARTIGO 41º E NO N.º 1 DO ARTIGO 43º, DO ESTATUTO DO NOTARIADO; INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:1. Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 143º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, os recursos interpostos de decisões respeitantes a processos cautelares e respectivos incidentes têm efeito meramente devolutivo, não prevendo a lei que seja fixado efeito suspensivo ao recurso na hipótese de o efeito devolutivo causar prejuízos ou situação de facto consumado à parte que decaiu, mas apenas à parte vencedora.

2. Tendo havido decretamento provisório da providência cautelar e depois decisão final de indeferimento da providência, caso se atribuísse efeito suspensivo ao recurso desta decisão final, o recorrente obteria, pela simples interposição do recurso, a manutenção do decretamento provisório contra o qual o requerido nem sequer teve a possibilidade de reagir – n.º4 do artigo 131º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o que se traduziria num tratamento desigual das partes.

3. Face ao disposto no artigo 341º do Código Civil, apenas os factos são susceptíveis de prova, pelo que a “evolução do estatuto do Notariado” e o circunstancialismo em que se encontra envolto o exercício da profissão de Notário” não podem ser objecto de prova testemunhal, pois não são factos, mas antes apreciações jurídicas.

4. A norma constante do artigo 6º, nº 2, do Estatuto do Notariado, que fixa um limite de notários em atividade por distrito, com um total nacional de 543 notários, e que não se aplica nem aos advogados nem aos solicitadores, justifica objectivamente a norma que fixa os 70 anos como limite de idade para exercício da profissão de notário, constante da alínea b) do artigo 41º e no n.º 1 do artigo 43º, do Estatuto do Notariado e que não se aplica também aos advogados e solicitadores: se não existisse limite de idade para o exercício da função de notário, a possibilidade de exercer essa actividade por parte de quem quisesse ingressar ficaria dependente não da sua vontade e mérito, mas apenas da vontade de os que excederam os 70 anos quererem cessar a actividade; ou morrerem.

5. Pelo que tal norma não viola qualquer norma ou princípio constitucionais, como o princípio da liberdade de iniciativa privada, da concorrência ou da igualdade.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar para Abstenção duma Conduta (CPTA) - Recurso jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

M... veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, de 05.01.2021, pela qual foi julgada (totalmente) improcedente a providência cautelar que intentou contra a Ordem dos Notários para autorização provisória para prosseguir o exercício da profissão de notária para além do limite de idade dos 70 anos, ou caso não se entenda, intimação para abstenção de uma conduta por parte da administração, a proibição de exercer a sua profissão além daquele limite de idade que já ultrapassou.

Solicitou a fixação de efeito suspensivo ao recurso face aos prejuízos consideráveis que decorrem para a Recorrente em virtude do levantamento da providência decretada provisoriamente.

Quanto ao recurso em si invocou, em síntese, que: a sentença é nula por preterição da prova testemunhal e por falta de fundamentação de facto e de direito e que, em todo o caso, errou na apreciação do caso concreto.

A Recorrida contra-alegou defendendo a manutenção da decisão recorrida.

O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer, também no sentido da improcedência do recurso.

A Recorrente pronunciou-se sobre este parecer, mantendo no essencial o teor das suas alegações.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

I. Encontrando-nos no âmbito de um processo cautelar, e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 143.º do CPTA, o efeito do recurso ora interposto é, à partida, meramente devolutivo.

II. Não obstante o exposto, prevê igualmente o n.º 4 do artigo 143.º do CPTA a possibilidade de o Tribunal, “Quando a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso possa ser causadora de danos (…) determinar a adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos e impor a prestação, pelo interessado, de garantia destinada a responder pelos mesmos” (realce nosso).

III. No caso concreto, os prejuízos consideráveis para a Recorrente em virtude do levantamento da providência decretada provisoriamente decorrem, desde logo e de forma límpida, de tudo quanto se expendeu a propósito da verificação do requisito do periculum in mora, requisito a propósito do qual o Tribunal a quo não se pronunciou, considerado prejudicado o seu conhecimento em virtude do alegado não preenchimento do requisito do fumus boni iuris.

IV. Tomando em consideração a factualidade carreada, e conforme se havia já referido, é por demais evidente que o efeito útil da decisão que venha a ser proferida em sede de causa principal só será acautelado pelo decretamento da providência requerida.

V. O propósito subjacente ao pedido de decretamento provisório da providência cautelar de autorização provisória para prosseguir o exercício da profissão de Notária era precisamente o de, mais do que acautelar o efeito útil da decisão que venha a ser proferida na causa principal, garantir a utilidade também do processo cautelar em causa.

VI. Aqui chegados, e atendendo à decisão de indeferimento da providência cautelar – da qual se recorre –, apenas a atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso – ou a adoção de providências que permitam igualmente evitar ou minorar os danos na esfera da Recorrente – permitirá a manutenção do propósito alcançado pelo decretamento provisório da providência, sendo certo, de todo o modo, que à Recorrente dificilmente será possível recuperar dos prejuízos já incorridos, decorrentes da decisão de indeferimento, pelo Tribunal a quo, da providência requerida.

VII. Considerando o propósito da Recorrente, e todo o circunstancialismo fáctico que se lhe encontra adstrito, da mesma forma que a sua pretensão não se compadece da delonga na prolação de decisão definitiva em sede de causa principal – a qual poderá só vir a ser proferida no prazo de 6 a 10 anos, o mesmo se dirá da atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso ora interposto, na medida em que impedirá a Recorrente de se manter no exercício da profissão na pendência da causa principal, com todas as consequências daí advenientes.

VIII. A perfunctoriedade inerente ao juízo a formular em sede cautelar, e em que o Tribunal a quo se escuda para justificar a superficialidade – que é coisa distinta, e perigosa – com que se debruçou sobre a questão sub judice não poderá comportar, naturalmente, os prejuízos que inelutavelmente se verificarão na esfera da Recorrente no caso de não (i) não ser atribuído ao recurso interposto efeito suspensivo – ou não serem adotadas as providências adequadas –, que permitam a manutenção da produção de efeitos da decisão de decretamento provisório e (ii) de ser negado provimento ao recurso ora interposto.

IX. Enquanto não seja proferida decisão sobre o recurso ora apresentado, relevará, aprioristicamente, garantir que as lesões sofridas pela Recorrente não se avultam e tornam irreversíveis, motivo pelo qual, reitera-se, deverá ser àquele atribuído efeito suspensivo, ou, subsidiariamente, adotadas as providências adequadas a obviar a produção de danos avultados e irreversíveis para a Recorrente.

X. Isto porque, permitindo-se que à Recorrente seja imposto o limite de idade para o exercício da profissão na pendência do processo cautelar – acarretando a inibição de desenvolvimento da mesma –, a mesma redundará, inelutavelmente, na constituição de uma situação de facto consumado, da qual a Recorrente não poderá, de forma alguma, recuperar.

XI. No caso concreto, mais do que fundado receio, há absoluta certeza de que, não sendo atribuído efeito suspensivo ao recurso interposto – nem adotadas as providências adequadas a salvaguardar os direitos e interesses da Recorrente, ou decretada a providência cautelar requerida –, a Recorrente se verá afastada da profissão que vem exercendo ao longo dos últimos 16 anos sem que para tanto haja qualquer fundamento razoável ou atendível, atendendo à parca bondade da imposição do limite de idade sindicado.

XII. A manter-se o efeito meramente devolutivo do presente recurso, pressupondo-se que a decisão proferida no seu âmbito será favorável à Recorrente, a mesma ver-se-á, contudo, e, no mínimo, até ao trânsito em julgado daquela decisão, impedida de exercer a profissão de Notária.

XIII. Até esse momento, a Recorrente deverá manter o seu cartório desmantelado – tendo-lhe já sido imposta essa determinação –, com a inerente cessação dos vínculos laborais dos seus colaboradores, a impossibilidade de acesso ao seu arquivo e a perda de clientela – tudo consequências naturais e evidentes da cessação coativa da atividade, mas nem por isso menos gravosas.

XIV. Por outro lado, numa hipotética situação em que a Recorrente reiniciasse as suas funções apenas após a proferição de decisão favorável em sede cautelar – não se equacionando sequer, neste âmbito, os prazos estimados para a obtenção de uma decisão definitiva em sede de causa principal – decerto aquela deparar-se-ia com a ausência de clientela, outrora fidelizada, que entretanto, e em face das necessidades sentidas, já terá procurado a prestação dos serviços outrora assegurados pela Recorrente por parte de outro Notário, ficando a credibilidade e bom nome da Recorrente comprometidos, já que sempre existiria o sentimento de desconfiança face ao seu afastamento compulsivo.

XV. Desconsiderando, por ora, os efeitos económicos advenientes do impedimento de continuação do exercício da profissão de Notária, os efeitos psicológicos e mentais assumem, para a Recorrente, proporções inestimáveis, prefigurando-se, a este ensejo, como essencial para a reversão da situação emocional e anímica da Recorrente, a permissão para a continuação do exercício da profissão, lograda através da atribuição de efeito suspensivo ao recurso ora interposto.

XVI. É já claro que a não atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso – ou a não adoção das providências necessárias à continuação do exercício da profissão de Notária na pendência do Recurso – impedirá a Recorrente de exercer funções como Notária – situação que se verifica já, sendo evidentes os danos já sofridos –, mantendo-se a mesma numa situação de incerteza e indefinição quanto ao seu futuro profissional enquanto aguarda a proferição de uma decisão judicial, com as consequências naturalmente daí advenientes, para si e para aqueles que dependem da sua prestação de serviços.

XVII. Pelo que, nesta perspetiva, em face das concretas circunstâncias do caso, dúvidas não restam de que, in casu, se encontra demonstrada a necessidade imperiosa de atribuição de efeito suspensivo ao recurso ou, no limite, a essencialidade da adoção de providências adequadas a acautelar a evitar ou minorar os danos decorrentes da atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso interposto.

XVIII. Sendo certo, de todo o modo, que empreendida uma análise ao nível da ponderação de interesses em análise, não se perscruta qualquer prejuízo para a Recorrida que obste à atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso.

B. ENQUADRAMENTO E OBJETO DO RECURSO

XIX. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, notificada à Recorrente em 10.01.2022, que julgou improcedente o presente processo cautelar, absolvendo a Recorrida do pedido.

XX. Cumpre, em face do sobredito, recordar que a Recorrente lançou mão da presente ação cautelar com vista a obter autorização provisória para prosseguir o exercício da profissão de Notário depois de ultrapassado o limite de idade de 70 anos previsto na alínea b) do artigo 41.º e no artigo 43.º do Estatuto do Notariado (EN), ou, caso assim não se entendesse, a intimação para abstenção de condutas por parte da Recorrida, concretamente das diligências tendentes à cessação da atividade notarial por parte da Recorrente.

XXI. Para o efeito, invocou a Recorrente a violação, com a fixação do limite de idade para o exercício da profissão de Notário a que acima se fez referência, de princípios e normas constitucionais, designadamente o princípio da igualdade, da liberdade de escolha de profissão, da iniciativa económica privada e da equilibrada concorrência entre empresas, previstos, respetivamente, nos artigos 13.º, 47.º, n.º 1, 61.º, n.º 1 e 81.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa (CRP), ademais demonstrando que o decretamento da providência requerida se afigurava como indispensável para assegurar os seus direitos e interesses constitucionalmente garantidos.

XXII. Não obstante ter decretado provisoriamente a providência requerida, o Tribunal a quo indeferiu a pretensão cautelar da Recorrente, na medida em que “mostrando-se claudicada a argumentação da Requerente, e inobservado o preenchimento do fumus boni iuris, deve a presente ação cautelar ser julgada totalmente improcedente”.

C. DA NULIDADE DA SENTENÇA POR PRETERIÇÃO DA PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL.

XXIII. Com o fito de demonstrar os factos alegados no seu Requerimento Inicial, a Recorrente juntou com o seu articulado sete documentos, arrolando três testemunhas que, ao longo das últimas décadas, têm acompanhado de perto a evolução do estatuto do Notariado: Dr. A..., R… e o Dr. L….

XXIV. Sucede, porém, e conforme decorre da sentença recorrida, que não obstante referir que a Recorrente havia requerido a produção de prova testemunhal, o Tribunal a quo entendeu que “Os elementos constantes dos autos, designadamente o acervo documental, considerando a causa de pedir e o pedido tal como estes vêm configurados, são suficientes para a prolação de decisão (de acordo com as plausíveis soluções de direito), sendo desnecessária a realização de mais diligências de prova”.

XXV. Bem sem intui que o julgador não fundamentou a decisão de dispensa da produção de prova testemunhal, não demonstrando que a mesma seria meramente dilatória nem logrando fundamentar de forma expressa a decisão de indeferimento do requerimento de prova testemunhal apresentado pela Recorrente, ao invés decidindo, desde logo e sem mais, que se encontrava na disposição de elementos suficientes para a decisão da causa.

XXVI. A prova testemunhal requerida destinava-se a demonstrar, entre outros, os factos relativos à comprovação do requisito do periculum in mora, considerando-se outrossim imprescindível para a melhor compreensão do estatuto do Notariado e da sua evolução, sendo que o depoimento das testemunhas arroladas se revestiria, a ser admitido, de preponderância fundamental para o esclarecimento do Tribunal a quo a propósito do circunstancialismo em que se encontra envolto o exercício da profissão de Notário.
XXVII. Analisado o teor da sentença recorrida, e atenta a insuficiência dos fundamentos carreados pelo julgador e a incompreensão patente no que respeita à apreensão e assimilação do caso sub judice, claro que torna que a produção de prova testemunhal se revelava, mesmo em sede cautelar, de destacada importância.

XXVIII. O facto de o processo cautelar ser um processo de cognição sumária não obsta, per se, à admissibilidade e admissão da produção de prova testemunhal requerida pela Recorrente, o mesmo se dizendo a propósito dos objetivos da celeridade e eficácia da providência a que o Tribunal a quo faz referência.

XXIX. Em bom rigor, o preciso propósito de garantir a eficácia da providência clamava, como se tornou depois mais claro em face do teor da decisão recorrida, a produção da prova testemunhal requerida.

XXX. A preterição da produção da prova testemunhal requerida consubstancia assim uma nulidade do processo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 195.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, devendo a mesma ser declarada por violação das regras substantivas de direito probatório.

D. DA NULIDADE DA SENTENÇA NOS TERMOS DO DISPOSTO NA ALÍNEA B) DO N.º 1 DO ARTIGO 615.º DO CPC.

XXXI. A sentença proferida é também ela nula por aplicação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

XXXII. A leitura harmonizada deste preceito e do n.º 4 do artigo 607.º do CPC – o qual estatui que o juiz deve, na fundamentação da sentença, entre outras imposições, analisar criticamente a prova e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção – resulta claro que o julgador incumpriu o dever de fundamentação que sobre si recaía, dando causa à nulidade da sentença em virtude de não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam o sentido decisório nela ínsito.

XXXIII. In casu, são vários e manifestos os casos de completa ausência da especificação dos fundamentos de facto e de direito subjacentes à decisão proferida, a qual ora se sindica.

XXXIV. O julgador estriba-se em juízos abstratos, considerações genéricas sobre o princípio da igualdade e uma análise acrítica da nota preambular do Estatuto do Notariado para motivar a sua decisão sem, contudo, procurar densificar minimamente – ou especificar, se se preferir – os fundamentos que subjazem àquela.

XXXV. Partindo de uma interpretação e aplicação equivocada da normação relevante – que se densificará infra –, o Tribunal a quo furta-se à especificação dos fundamentos que justificam a decisão por detrás da exigência de perfuntoriedade do juízo a formular em sede cautelar.

XXXVI. Dito de outro modo, e concretizando, nunca bastaria, para fundamentar a decisão proferida, alegar, sem mais, que “não parece que haja violação deste princípio, uma vez que, não se está perante uma profissão liberal no sentido propriamente dito”, particularmente porque o Tribunal a quo não cura de esclarecer o que entende por “profissão liberal no sentido propriamente dito” nem o porquê de a profissão de Notário não se integrar naquela categoria, como não esclarece, em momento imediatamente posterior, por que motivo são “substancialmente desiguais” as profissões de Notário e, por outro lado, de advogado e solicitador, demonstrando ausência de reflexão crítica sobre a questão sub judice e impedindo a Recorrente de ter acesso a todos os elementos que determinaram o sentido da decisão.

XXXVII. O referido a propósito da invocada violação do princípio da igualdade torna-se tão ou mais evidente ao atentar-se no trecho decisório respeitante à violação do direito à iniciativa económica privada e da equilibrada concorrência entre empresas.

XXXVIII. Procurando demonstrar – de forma pouco convincente – que “não se antevê, práticas de distorção concorrencial até porque alguns atos só podem ser praticados pelos Notários”, o Tribunal a quo assevera que “a imposição de idade não viola nenhum princípio constitucional, pois, é uma medida, que é objetiva e razoavelmente justificada, no quadro do direito nacional, por um objetivo legítimo relativo à política de emprego e ao mercado de trabalho, e o meios utilizados para realizar esse objetivo de interesse geral não são inapropriados e desnecessários para esse efeito”.

XXXIX. Refere o Tribunal a quo que a medida – de imposição de um limite de idade ao exercício da profissão de Notário – é “objetiva e razoavelmente justificada” sem, contudo, especificar os motivos de assim o considerar.

XL. Faz ainda referência a um qualquer “objetivo legítimo relativo à política de emprego e ao mercado de trabalho”, não curando, contudo, de esclarecer qual é o objetivo legítimo em causa e, em bom rigor, a política de emprego e os interesses relativos ao mercado de trabalho que poderiam fundamentar tal decisão.

XLI. Termina referindo que “os meios utilizados para realizar esse objetivo [não especificado] de interesse geral não são inapropriados e desnecessários para esse efeito”, não concretizando em que medida o não são.

XLII. O excerto em apreço é paradigmático da ausência de qualquer especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida, na medida em que não passa da transposição crua e descontextualizada de uma passagem do aresto do TJUE a que o Tribunal a quo havia feito referência em momento prévio.

XLIII. Malgrado o dever que sobre si recaía, o julgador não densificou os critérios a que fez referência, uma vez mais demonstrando a ausência de reflexão crítica sobre a matéria de facto e de direito dos autos que se lhe impunha.

XLIV. Demonstrou-se à saciedade, aliás, que a decisão recorrida é caracterizada, em geral, pela ausência de qualquer densificação dos alegados fundamentos apresentados pelo Tribunal a quo, denotando, como já se referiu, completa ausência de exame crítico, quer sobre a matéria de facto, quer sobre a matéria de direito.

XLV. Os chavões de que o Tribunal a quo se vale para dar roupagem à decisão proferida deixam, contudo, a nu a evidente ausência de especificação dos fundamentos – não cabendo à Recorrente, nesta sede, densificá-los –, pelo que, em face do exposto, evidencia-se uma situação de nulidade da sentença, em virtude de o Tribunal a quo não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, a qual deverá ser declarada, com todos os legais efeitos.

E. DO ERRO DE JULGAMENTO.

XLVI. No que à violação do princípio da igualdade, tal qual se encontra consagrado no artigo 13.º da CRP, diz respeito, assenta a mesma, nos termos que foram alvo de detida e cuidada análise em sede de Requerimento Inicial, no facto de aos Notários – enquanto profissionais liberais ao abrigo do EN – ser dispensado tratamento distinto daquele que é assegurado a outros profissionais liberais aos quais é permitida a prática de atos notariais inicialmente cometidos, em exclusividade, àqueles primeiros.

XLVII. O Tribunal a quo formulou, como resulta claro da decisão sindicada, um juízo a propósito de uma situação concreta com base em pressupostos manifestamente abstratos, demonstrando assim a ausência da reflexão devida que nem a perfunctoriedade inerente ao juízo cautelar poderá justificar, dessa transposição abrupta do plano abstrato para o plano concreto resultando evidentes consequências, mormente a incompreensão da dinâmica inerente à profissão de Notário e à sua posição no mercado de prestação de serviços notariais.

XLVIII. Dedicando quatro breves parágrafos à análise da violação do princípio da igualdade invocada pela Recorrente, o Tribunal a quo parece ancorar – como seria de esperar – a parca fundamentação subjacente à decisão proferida na natureza perfuntória da análise a realizar.

XLIX. Mas o facto de o juízo a formular ser necessariamente perfuntório não significa – nem legitima – que a fundamentação da sentença prolatada em sede cautelar seja lacónica.

L. Partindo, como o fez o Tribunal a quo, da análise do preâmbulo do EN, resulta claro do segundo parágrafo que o Governo elegeu a “privatização do notariado (…) como uma das reformas mais relevantes na área da Administração Pública (…)” (realce nosso),aí mesmo se referindo que “Na verdade, é a primeira vez que no nosso país uma profissão muda completamente o seu estatuto, passando do regime da função pública para o regime de profissão liberal” (realce nosso).

LI. Reforçando o entendimento subjacente aos excertos transcritos, e ainda no âmbito na nota preambular do diploma que operou a reforma do Notariado, é explicado que, até à reforma “Portugal constitui-se como excepção relativamente aos demais países da União Europeia que integram o sistema de notariado latino; o notário português outorga a fé pública por delegação do Estado e na sua subordinação hierárquica, enquanto no sistema latino o notário exerce a mesma função no quadro de uma profissão liberal” (realce nosso), imediatamente a seguir se explicando que “tanto a fisionomia que a actual Constituição Portuguesa confere à primeira como a raiz romano-germânica do segundo impõem a consagração entre nós do modelo do notariado latino” (realce nosso), pelo que, mediante simples exercício indutivo, se conclui que o Notário português deixou de outorgar a “fé pública por delegação do Estado e na sua subordinação hierárquica” e passou a fazê-lo no “quadro de uma profissão liberal”.

LII. O Notariado trata-se, como é bom de ver, de uma profissão liberal – assim o quis o legislador –, não correspondendo a natureza de oficial público a qualquer qualificação jurídico-laboral que permita determinar, sem mais, o estatuto daquele.

LIII. É este aspeto que o Tribunal a quo falha em compreender, atendo-se à assimilação do teor do EN de forma estática e anacrónica – tal qual este havia sido introduzido em 2004, olvidando, contudo, as providências legislativas adotadas em momento posterior e ao abrigo das quais foi sendo aberto o âmbito de exercício de funções notariais a outros profissionais liberais, como advogados e solicitadores.

LIV. Passando a ser permitido, em virtude de sucessivas alterações e inovações legislativas, a profissionais liberais como advogados e solicitadores praticar atos primitivamente notariais, sendo aos atos praticados por aqueles conferida “a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial” (realce nosso), vai implícita a equiparação da atuação de uns e outros, sem que, contudo, uns e outros se encontrem submetidos ao mesmo controlo estadual, a que faz referência o EN, nem, como se demonstrou já à saciedade, aos mesmos limites de idade no que tange com o exercício da profissão.

LV. Quaisquer que sejam as prerrogativas que o Tribunal a quo considera terem sido atribuídas aos Notários – apenas porque lhes é feita referência no preâmbulo do EN –, foram as mesmas, ao longo dos anos, prolongadas a advogados e solicitadores, sendo a estes permitido o exercício de funções notariais sem, contudo, lhes serem impostas as limitações previstas para os Notários.

LVI. Não procederá o entendimento de que se trata de “profissões que são substancialmente desiguais”, na medida em que é precisamente no âmbito substancial que as profissões, por um lado, de Notário e, por outro, de advogado e solicitador, se assimilam, em virtude da atribuição a estas de competências que, inicialmente, se encontravam exclusivamente cometidas àqueles primeiros, não se admitindo que os Notários, enquanto profissionais liberais, sejam submetidos a restrições ao exercício da profissão que não se encontram previstas, quer no Estatuto da Ordem dos Advogados, quer no Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, mormente o limite de idade de 70 anos.

LVII. Torna-se, evidente, ante o exposto, que a previsão normativa constante da alínea b) do artigo 41.º e do artigo 43.º do EN é manifestamente arbitrária, quando cotejada quando o regime previsto para o exercício de outras profissões liberais às quais são concedidas prerrogativas para a prática de atos anteriormente próprios da atividade notarial, sendo clara a violação do artigo 13.º da CRP, nos termos da exposição realizada, decorrente da imposição de um limite de idade à profissão de Notário conforme previsto na alínea b) do artigo 41.º e no artigo 43.º do EN, pelo que deverão os preceitos referidos, com base nos argumentos expostos, ser julgados materialmente inconstitucionais.

LVIII. No âmbito da alegação de violação da liberdade de escolha de profissão da Recorrente, inicia o Tribunal a quo o seu discurso fundamentador referindo, com base, uma vez mais, no artigo 1.º do EN, que “pela norma transcrita a natureza pública e privada da função notarial é incindível, o que quer dizer que o notário é um oficial público que confere autenticidade aos documentos mas atua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados como um profissional liberal”.

LIX. Escudando-se, uma vez mais, na alegada superficialidade do juízo a tecer em sede cautelar, o Tribunal a quo assevera que “não é por existir um limite de idade para o exercício da profissão de Notário, que existe violação do respetivo princípio”.

LX. O Tribunal a quo incorre no flagrante erro de assimilar a profissão de Notário – com base, presume-se, na referência feita no EN ao conceito de oficial público – aos “demais trabalhadores em funções públicas (…) o que não parece ser materialmente inconstitucional”.

LXI. Sucede, porém que a profissão de Notário não tem natureza pública, ao invés do que assevera o Tribunal a quo, não sendo o Notário, como tal, funcionário público, não podendo o Tribunal a quo, como tal, fundamentar a pretensa constitucionalidade do limite de idade para o exercício da profissão de Notário com base no facto de ser este um funcionário público.

LXII. Em maior ou menor medida, a verdade é que também as profissões de advogado e solicitador estão, nos termos da Lei n.º 2/2013, submetidas a controlo do Estado, ainda que por intermédio de entidades públicas de estrutura associativa, pelo que o argumento esgrimido na sentença recorrida é impreciso, não permitindo, per se, a fundamentação da consideração da imposição do limite de idade ao exercício da profissão de Notário como conforme à CRP.

LXIII. No demais, a decisão recorrida estriba-se numa questão de pura semântica para abalar o valor da referência feita pela Recorrente ao Estatuto do Administrador Judicial, da qual se pretendia extrair, única e precisamente, que, sem prejuízo de ser um misto de profissional liberal e de funcionário público, servidor da justiça e do direito, o Administrador Judicial não se encontra submetido ao limite de idade previsto para o exercício da profissão de Notário, o que causa tanto mais perplexidade se se considerar que os motivos subjacentes à previsão daquele limite de idade para o exercício da profissão de Notário resulta, alegadamente, da necessidade de controlo por parte do Estado do exercício de uma função intimamente ligada à justiça e ao direito, exigindo-se, como tal, e em face da sensibilidade e preponderância dos interesses em presença, que àqueles seja imposto um limite de idade para o exercício da profissão.

LXIV. Do mesmo passo contudo, e sem prejuízo de serem considerados também servidores da justiça e do direito, aos Administradores Judiciais é permitido iniciar o exercício das correspondentes funções depois de completados 70 anos de idade.

LXV. Dando aqui como integralmente reproduzidas as considerações tecidas no capítulo que antecede, dir-se-á que, se num primeiro momento esta imposição restritiva assente na idade pudesse, eventualmente, reputar-se de legítima, porque necessária e adequada à prossecução dos interesses públicos que já individualizámos e constam, aliás, do proémio do Decreto-Lei n.º 26/2004, tal propósito esvaziou-se por completo de sentido e conteúdo com as decisões político-legislativas tomadas no pós-reforma do notariado, através das quais as portas da função notarial foram sendo abertas a outros profissionais liberais – e a serviços estatais – até se encontrarem, por fim, completamente escancaradas.

LXVI. Perde, nestes termos, qualquer sentido a imposição de um limite de idade ao exercício da profissão – indelevelmente configurado como limitação à liberdade de escolha de profissão –, cujo intento primacial seria, cremos, o de permitir a sucessiva renovação dos profissionais que integram a classe notarial, pois que aquele não acautela qualquer interesse público que não tenha sido já desvirtuado e esvaziado em face das sucessivas decisões político-legislativas tomadas.

LXVII. Em face de tudo quanto até aqui se expôs, dúvidas não restam de que a previsão do limite de idade ao exercício da profissão de Notário constitui manifesta violação da liberdade de escolha de trabalho da Recorrente, não se encontrando ancorada em qualquer fundamento jus-constitucional que a legitime, impedindo a continuação do exercício de uma profissão liberal como o notariado em defesa de interesses que já previamente haviam sido postergados.

LXVIII. É precisamente a completa ausência da consideração e apreensão atualista da profissão de Notário – e do respetivo Estatuto – que macula a decisão recorrida, sendo evidente – como se havia já referido supra – que a imposição de um limite de idade ao exercício da profissão de Notário não encontra, desde há muito, respaldo em qualquer interesse digno de tutela.

LXIX. O teor da sentença sindicada denota a ausência de qualquer preocupação de contextualização político-social da profissão de Notário e do respetivo estatuto e, necessariamente, da pretensão da Recorrente, mal andando o Tribunal a quo ao decidir que a alínea b) do artigo 41.º e o artigo 43.º do EN não são inconstitucionais.

LXX. Sendo inequívocos os termos em que os mesmos configuram uma restrição inconstitucional, irrazoável, infundada e desnecessária, à liberdade de profissão da Recorrente, deverão a alínea b) do artigo 41.º e o artigo 43.º do EN ser, em consequência, julgados materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 47.º da CRP.

LXXI. Partindo-se do pressuposto axiomático de que a profissão de Notário é, ao contrário do propalado pelo Tribunal a quo, uma verdadeira profissão liberal em regime privado, caberá, agora, refutar os termos da decisão recorrida no que tange com a invocada violação do direito à iniciativa e económica privada e da equilibrada concorrência entre empresas, tal qual se encontram previstos no n.º 1 do artigo 61.º, na alínea f) do artigo 81.º e nas alíneas a) e c) do artigo 99.º, todos da CRP.

LXXII. Se bem se compreende, considera o Tribunal a quo que não se verificam quaisquer das práticas de distorção concorrencial a que a Recorrente faz referência no seu Requerimento Inicial pelo simples motivo de aos Notários ser reservado, sem prejuízo da abertura do volume mais significativo da função notarial a outras profissões liberais e a serviços estatais, o exercício de determinados atos, os quais elenca.

LXXIII. A admissão, pelo Tribunal a quo, de que determinados atos notariais passaram a poder ser praticados por outros agentes económicos, é o pressuposto fundamental para a compreensão da violação do direito à iniciativa económica privada e da equilibrada concorrência entre empresas.

LXXIV. O facto de determinados atos permanecerem circunscritos ao âmbito de exclusividade da profissão de Notário não permite, per se, concluir pela inexistência de práticas de distorção comercial, sendo o raciocínio lógico realizado na sentença recorrida desprovido de qualquer sentido.

LXXV. O Tribunal a quo refere os testamentos, as justificações notariais, as habilitações de herdeiros e os processos de inventário – funções reservadas exclusivamente a Notários –, omitindo, contudo, a elaboração e autenticação de todos os contratos que só os Notários outorgavam, designadamente compras e vendas, doações, partilhas, empréstimos, hipotecas, dações em cumprimento, divisões de coisa comum, permutas, cessões de quotas, aumentos de capital, constituições de sociedades e os demais contratos que, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, passaram a poder ser realizados por advogados e solicitadores, sendo conferida aos respetivos atos “a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial” (realce nosso).

LXXVI. Atenta a factualidade referida, restam como atos da exclusiva competência dos Notários os testamentos, os quais, nos últimos dez anos, representam 1,5% da totalidade dos atos notariais praticados a nível nacional.

LXXVII. A partir do momento em que estes atos, previamente competência exclusiva dos Notários, passaram a poder ser realizados por outros profissionais liberais e assegurados por serviços estatais, em condições manifestamente mais favoráveis do que aquelas permitidas aos Notários, evidente se tornou a existência de práticas de distorção concorrencial, de que é mero exemplo a imposição de um limite de idade ao exercício da profissão.

LXXVIII. A violação do direito à iniciativa económica privada da Recorrente e da equilibrada concorrência entre empresas decorre do entendimento do notariado como profissão liberal, em regime de privatização, surgindo como consequência da desconsideração do estatuto liberal da profissão notarial e da inflexão da estratégia assumida no pós-reforma.

LXXIX. A imposição de um limite de idade ao exercício da profissão notarial configura, atentas as condições em que operam os demais agentes do mercado, limitação à iniciativa económica privada dos Notários, não tendo o Estado, outrossim – desconsiderando as suas incumbências prioritárias – revelado qualquer preocupação em assegurar um clima concorrencial salutar no que respeita à prática de atos de índole notarial.

LXXX. Reincidindo num erro transversal a toda a decisão recorrida, o Tribunal a quo assevera que “As normas legais vigentes impedem que a Requerente continue o exercício da sua profissão quando atinja 70 anos, não parecendo tal inconstitucional tendo em conta a natureza também pública da profissão”, não se verificando, assim, “de uma forma perfunctória”, a inconstitucionalidade da alínea b) do artigo 41.º e o artigo 43.º do EN.

LXXXI. O Notariado trata-se, contudo, de uma profissão liberal, exercida em regime privado, sendo os Notários profissionais liberais e não funcionários públicos, conforme decorre de forma cristalina, desde logo, do próprio EN; pública é, exclusivamente, a função notarial, a qual não é exercida somente pelos Notários, mas também por todos os profissionais liberais e os serviços estatais habilitados à prática de atos notariais.

LXXXII. À medida que foi paulatinamente absorvendo e, simultaneamente, redistribuindo a competência para a concretização de atos inicialmente cometidos exclusivamente à classe notarial, o Estado não só atingiu o âmago do notariado ao integrá-lo – contra vontade – num mercado “concorrencial” com outros profissionais liberais não sujeitos ao mesmo escrutínio funcional, às restrições impostas ao exercício da sua atividade, e até aos mesmos impostos, como se assumiu, ele próprio, como entidade concorrente ao, adotando um conjunto de atos normativos e administrativos inseridos no âmbito de concretização de uma política de desburocratização e modernização da Administração Pública – o Programa SIMPLEX – passar a prestar serviços realizados por Notários privados em condições mais vantajosas – até a nível de não pagamento de impostos (IVA que não cobra) – e anunciadas como tal, assim criando uma desigualdade gritante e injusta, concretizada, entre outras medidas, na não sujeição ao pagamento de IVA dos atos notariais praticados nas Conservatórias dos Registos Predial, Comercial e Civil, imposto este a que os Notários sempre estiveram e estão sujeitos, permitindo, logo à cabeça, que se venha manifestando uma desigualdade de custos entre os atos praticados por estas entidades e os praticados pelos notários.

LXXXIII. Com o que, sem necessidade de ulteriores considerações, se evidencia o emprego de práticas de distorção concorrencial por parte do Estado, as quais consubstanciam, sem que haja margem para dúvidas, violação, não só da alínea f) do artigo 81.º, mas também das alíneas a) e c) do artigo 99.º da CRP.

LXXXIV. A imposição de um limite de idade ao exercício da profissão de Notário configura apenas mais restrição à iniciativa económica privada e à livre e equilibrada concorrência entre agentes económicos, sendo outrossim sintoma e refração semiautonomizável da violação do princípio da igualdade, assim se violando, de um só golpe, o direito à iniciativa económica privada e da equilibrada concorrência entre empresas.

LXXXV. Pelo que fenecerá também a este propósito a decisão proferida pelo Tribunal a quo, devendo a alínea b) do artigo 41.º e o artigo 43.º do EN ser julgados materialmente inconstitucionais por violação do direito à iniciativa económica privada e à equilibrada concorrência entre empresas, previstos no n.º 1 do artigo 61.º, na alínea f) do artigo 81.º e nas alíneas a) e c) do artigo 99.º, todos da CRP.

LXXXVI. Comprovado que fica o preenchimento do requisito fumus boni iuris, e demonstrados que haviam ficado, em sede de Requerimento Inicial, os requisitos de periculum in mora e de ponderação de interesses, deverá a sentença recorrida ser revogada e a providência cautelar requerida pela Recorrente ser decretada.


Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão de não decretamento da providência requerida.

Assim se fazendo Justiça!
*

II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como indiciariamente provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1. A Requerente é Notária, encontrando-se inscrita na Ordem dos Notários com o número de membro 47, tendo tomado posse no dia 08.03.2005 - cfr. documento 1 junto com a petição inicial (página 84 do SITAF), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

2. Foi atribuída à Requerente licença de instalação de Cartório Notarial no concelho de Braga - cfr. aviso publicado no Diário da República junto como documento 2 com a petição inicial (página 85 do SITAF), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

3. A Requerente dirigiu requerimento, datado de 15.07.2021, ao Bastonário da Ordem dos Notários, peticionando, em conjunto com outros dezanove membros da classe notarial, a desaplicação da alínea b) do artigo 41.º e do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 26/2004, de 04.02, que aprova o Estatuto do Notariado - cfr. documento 6 junto com a petição inicial (página 95 do SITAF), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

4. A Requerente atingiu a idade de 70 anos em 19.11.2021 –cfr. documento 5 junto com a petição inicial (página 94 do SITAF), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

5. Em 21.10.2021, a Requerente enviou e-mail para o endereço geral@notarios.pt, dirigido ao Bastonário da Ordem dos Notários com o seguinte teor:

“Exmo. Sr. Bastonário da Ordem dos Notários,
Dr. A…
Como já é do conhecimento da Ordem a que preside, a sociedade P…, RL, por mim devidamente mandatada, em 15-07-2021 via e-mail, e em 16-07- 2021 via postal, comunicou que no dia 19-11-2021 completo 70 anos de idade.

Agradeço por isso, orientações relativamente ao arquivo do Cartório.

Com os melhores cumprimentos, M… – Notária”.

- Cfr. documento 7 junto com a petição inicial (página 115 do SITAF), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
*
III - Enquadramento jurídico.

1. Questão prévia: o efeito do recurso (conclusões I a XVIII).

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 143º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, os recursos interpostos de decisões respeitantes a processos cautelares e respectivos incidentes têm efeito meramente devolutivo.

Não prevendo a lei que seja fixado efeito suspensivo ao recurso na hipótese de o efeito devolutivo causar prejuízos ou situação de facto consumado à parte que decaiu, mas apenas à parte vencedora.

O que se compreende, de forma a permitir não prejudicar o vencimento da acção com efeitos negativos.

No caso concreto, de resto, a justificação apresentada pela Recorrente para a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, serviria precisamente para o recusar, caso essa hipótese fosse permitida por lei: os prejuízos consideráveis que, alegadamente, decorrem para a Recorrente em virtude do levantamento da providência decretada provisoriamente.

Caso se atribuísse efeito suspensivo ao presente recurso a Recorrente obteria, pela simples interposição do recurso, a manutenção do decretamento provisório contra o qual a Requerida nem sequer teve a possibilidade de reagir – n.º4 do artigo 131º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Solução que seria claramente iníqua, desigual.

E que deixaria a porta aberta a eventuais abusos na interposição do recurso.

Termos em que se mantém o efeito meramente devolutivo fixado ao recurso pelo Tribunal recorrido.

2. A nulidade da sentença por preterição da prova testemunhal; a falta de fundamentação; a nulidade processual (conclusões XXIII a XXX).
Antes de mais importa referir que não estamos perante qualquer hipótese de nulidade da sentença, prevista em qualquer das alíneas do n.º1 do artigo 615º do Código de Processo Civil

Nem a Recorrente a indica; acaba, de resto por reconhecer que se trata de uma nulidade processual nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Mas para ser uma nulidade deveria repercutir-se no exame ou decisão da causa, nos termos do mesmo preceito.

O que não sucede.

Desde logo, a decisão de dispensar a prova testemunhal tem, ao contrário do que defende a Recorrente, clara e suficiente fundamentação:

“(…)

Estamos no âmbito de um processo cautelar podendo o juiz ordenar as diligências de prova que considere necessárias (artigo 118.º, n.º 3 do CPTA).

Quando está em causa uma providência cautelar, refere Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Volume III, Almedina, 4ª edição, que “deve estar sempre presente o objetivo da celeridade e da eficácia da providência, de forma a impedir que se transfira para a instância cautelar a atividade probatória que deve ser objeto de apreciação na ação principal.”

Os elementos constantes dos autos, designadamente o acervo documental, considerando a causa de pedir e o pedido tal como estes vêm configurados, são suficientes para a prolação de decisão (de acordo com as plausíveis soluções de direito), sendo desnecessária a realização de mais diligências de prova.

Em face do que antecede, considerando que o processo cautelar é um processo de cognição sumária, e uma vez que os documentos juntos aos autos permitem apurar indiciariamente, todos os factos relevantes para a decisão da presente providência cautelar, dispenso a produção de prova testemunhal por não se mostrar necessária à decisão a proferir, nos termos do artigo 118.º, n.º 1, in fine, do CPTA.

(…).

E mostra-se acertada.

Só será necessário, em providência cautelar, produzir prova testemunhal que, pela sua natureza, torna mais demorado o processo, se for de todo indispensável para um juízo meramente perfunctório sobre factos essenciais para a decisão cautelar.

De acordo, de resto, com o disposto no n.º2 do artigo 393º do Código Civil, direito substantivo probatório:

“Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena”.

No caso nem sequer a Recorrente indica qualquer facto que tivesse de ser provado por prova testemunhal.

E apenas os factos são susceptíveis de prova, não, como é evidente, as normas ou as conclusões jurídicas.

Como dispõe o artigo 341º do Código Civil, direito probatório substantivo:

“As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”.

Ora a Recorrente indicou como objecto pretendido da prova testemunhal oferecida, em primeiro lugar, “a evolução do estatuto do Notariado” (conclusão XXIII) e a “melhor compreensão” e o “esclarecimento do Tribunal a quo a propósito do circunstancialismo em que se encontra envolto o exercício da profissão de Notário” (conclusão XXVI).

O que não são factos. São matéria de enquadramento jurídico.

A sede própria para ajuda ao esclarecimento do Tribunal de matérias jurídicas são os articulados e as alegações.

Quanto ao “periculum in mora”, é invocado em abstracto, como pressuposto para o decretamento da providência, o que também é matéria jurídica. Factos em concreto apenas susceptíveis de prova testemunhal, a Recorrente não indica nenhum.

Termos em que se impõe também manter a decisão de indeferimento da prova testemunhal.

3. A nulidade da sentença por falta de fundamentação (conclusões XXXI a XLV).

É entendimento pacífico o de que apenas padece de nulidade a sentença que careça, em absoluto, de fundamentação de facto ou de direito; a simples deficiência, mediocridade ou erro de fundamentação afecta o valor doutrinal da decisão que, por isso, poderá ser revogada ou alterada, mas não produz nulidade, face ao disposto no artigo 615º, n.º1, al. b), do Código de Processo Civil (Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão), página 140; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11.9.2007, recurso 059/07).

No caso a sentença alinhou todos os factos necessários e suficientes para a decisão, meramente sumária ou perfuntória que se exigia, sendo certo que nenhum facto é referido em concreto pela Recorrente que devesse ter ficado sumariamente provado.

Assim como faz um abundante enquadramento jurídico, tendo em conta que estamos perante uma decisão cautelar. Mesmo no processo principal a profundidade com que foram tratadas as questões jurídicas seria aceitável.

E não estamos perante uma sentença em processo principal; menos ainda em face de um trabalho académico.

Não se verifica, pois, esta (ou qualquer outra) nulidade.

4. O erro de julgamento (conclusões XLVI a LXXXVI)

Este é o enquadramento jurídico da sentença recorrida:

“(…)

Vejamos em primeiro lugar, o requisito do fumus boni iuris.

No caso em apreço, a Requerente alega que o Notário é um profissional liberal e que não devia haver a imposição do limite de idade de 70 anos para exercer a profissão. Invoca a inconstitucionalidade da alínea b) do artigo 41.º e do artigo 43.º do Estatuto do Notariado porquanto existe (i) a violação do princípio da igualdade; (ii) a violação da liberdade de escolha de profissão; e a (iii) violação do direito à iniciativa económica privada e da equilibrada concorrência entre empresas.

A Entidade Requerida pugna pela inexistência deste requisito.

Cumpre, então, apreciar se existe uma séria probabilidade de a ação principal vir a ser julgada procedente.

Tendo em vista esse desiderato, incumbe ao julgador avaliar, ainda que sumária e provisoriamente, a probabilidade da procedência da ação principal, isto é, a probabilidade de existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que ele diz existir (vide, J.C. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 15.ª edição, Almedina, 2016, p. 322).

É, naturalmente, sobre o requerente que impende o ónus de alegar e provar, ainda que perfunctoriamente, o bem fundado da pretensão deduzida, ou a deduzir no processo principal, atento o preceituado no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.

A apreciação do fumus boni iuris deve, contudo, ser efetuada em termos de summario cognitio, isto é, tendo por base juízos de verosimilhança, perfunctórios ou probabilísticos, de modo a não substituir ou contender com a liberdade de julgamento no processo principal, dado que é nessa sede que as ilegalidades apontadas deverão ser apreciadas com o devido pormenor (em sentido convergente, vide os Acórdãos do STA, de 11.09.2019, proc. 049/19.0BALSB, e do TCA-Sul, de v22.08.2019, proc. 580/18.4BEBJA).

Posto isto, vejamos.

Inconstitucionalidade da alínea b) do artigo 41.º e do artigo 43.º do Estatuto do Notariado

A Requerente invoca a inconstitucionalidade dos artigos 41.º, alínea b) e 43.º do EN.

Postulam os normativos indicados o seguinte:

Artigo 41.º
Enumeração
O notário cessa a atividade nos seguintes casos:
a) Exoneração;
b) Limite de idade;
c) Incapacidade;
d) Morte;
e) Interdição definitiva do exercício da atividade.

Artigo 43.º
Limite de idade
1 - O limite de idade para o exercício da função notarial é de 70 anos.
2 - O notário deve informar a Ordem dos Notários da data em que atinge o limite de idade para o exercício da sua função com a antecedência mínima de 90 dias.

(i) Violação do princípio da igualdade

Sustenta a Requerente a inconstitucionalidade dos normativos atrás citados pois é evidente a violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) decorrente da distinção de tratamento dispensado aos Notários e aos profissionais liberais com os quais concorrem porque os Estatutos destas profissões liberais não contém normas semelhantes. Aduz que aos advogados e solicitadores é concedida total liberdade para a prática dos atos próprios da profissão, e, bem assim, de atos que deixaram de ser próprios da função notarial, sem imposição de limitações temporais e geográficas, em regime de profissão liberal remunerada.

Por sua vez, a Entidade Requerida advoga que os Notários não são apenas profissionais liberais.

Vejamos.

O princípio da igualdade vem previsto no artigo 13.º da CRP que dispõe que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (n.º 1) e que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual (n.º 2).

Este princípio estabelece que se deve tratar de forma idêntica os cidadãos, ou seja, não se pode privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de sua ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Tendo em conta o dito anteriormente, este princípio proíbe assim práticas discriminatórias, ou seja, perante duas situações iguais não se deve tratar nenhuma delas diferenciadamente, e deve-se também evitar com que alguém trate de forma desigual o que deve ser igual.
~
A igualdade não é, no entanto, sempre absoluta, devendo-se aceitar um tratamento desigual para situações que sejam diferentes, ou seja, as chamadas discriminações positivas das quais um exemplo que pode ser dado é a proteção dos mais desfavorecidos.

Ou como se escreve no Ac. do STA de 23.05.2002, proferido no proc. n.º 0716/02, cujo sumário se transcreve:

“I - O princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global.
II - Trata-se, aqui, de um princípio de conteúdo pluridimensional, que postula várias exigências, designadamente a de obrigar a um tratamento igual de situações de facto iguais e a um tratamento desigual de situações de facto desiguais, não autorizando o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual de situações desiguais.
III - Temos, assim, que tal princípio não pode ser entendido como um obstáculo ao estabelecimento pelo legislador de disciplinas diferentes, quando diversas forem as situações que as normas pretendam regular.
IV - No fundo, o que se pretende evitar é o arbítrio legislativo, mediante uma diferenciação de tratamento irrazoável, a que falte inequivocamente apoio material e constitucional objectivo, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo do limite externo de conformação da iniciativa do Legislador.”.

Destarte, colhe-se do preâmbulo do Estatuto do Notariado o seguinte:

“Como princípios fundamentais da reforma consagraram-se o numerus clausus e a delimitação territorial da função. Foram razões de certeza e segurança jurídicas que a função notarial prossegue que levou a optar-se por tal solução. Com efeito, no novo sistema, a par dos restantes países membros do notariado latino, o notário exercerá a sua função no quadro de uma profissão liberal, mas são-lhe atribuídas prerrogativas que o farão participar da autoridade pública, devendo, por isso, o Estado controlar o exercício da actividade notarial, a fim de garantir a realização dos valores servidos pela fé pública, que ficariam necessariamente afectados caso se consagrasse um sistema de livre acesso à função. Por outro lado, só por esta via se assegura a implantação em todo o território nacional de serviços notariais, ao determinar o número de notários existentes e respectiva localização e delimitação territorial da competência, assegurando em contrapartida uma remuneração mínima aos notários que, pela sua localização, não produzam rendimentos suficientes para suportarem os encargos do cartório, comparticipações essas realizadas através do fundo de compensação inserido no âmbito da Ordem dos Notários.”.

Depreende-se do transcrito que o notário exercerá uma função no quadro de uma profissão liberal, mas são-lhe atribuídas prerrogativas que o farão participar da autoridade pública, sendo que, o Estado controlará esse exercício da atividade notarial.

Ora, numa análise perfunctória, não parece que haja violação deste princípio, uma vez que, não se está perante uma profissão liberal no sentido propriamente dito.

Com efeito, o Notário é um oficial público e ao mesmo tempo é um profissional liberal porque atua de forma independente (artigo 1.º, n.º 2 do EN).

Portanto, não se pode tratar de forma igual profissões que são substancialmente desiguais, logo não se verifica a inconstitucionalidade dos artigos 41.º, alínea b) e 43.º do EN por violação do princípio da igualdade.

(ii) violação da liberdade de escolha de profissão

Entende a Requerente que os artigos 41.º, alínea b) e 43.º do EN são inconstitucionais porque violam a liberdade de escolha da profissão prevista no artigo 47.º, n.º 1 da CRP. Refere que o limite de idade ao exercício da profissão de Notário constitui manifesta violação da liberdade de escolha de trabalho – na vertente de liberdade de exercício – da Requerente, impedindo o livre exercício de uma profissão liberal como o notariado em defesa de interesses que já previamente haviam sido postergados. Conclui que a alínea b) do artigo 41.º e o artigo 43.º do EN configuram uma restrição inconstitucional, por irrazoável e infundada – para além de desnecessária – da liberdade de profissão da Requerente, devendo aqueles, em consequência, ser jugados materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 47.º da CRP, devendo à Requerente, em consequência, ser permitido o exercício da profissão notarial para além dos 70 anos de idade.

Em posição diametralmente oposta, a Requerida aduz que não se verifica a violação de tal princípio.

Apreciemos.

Antes do mais, postula o artigo 47.º da CRP o seguinte:

Artigo 47.º

Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública

1. Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade.

2. Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.

Por outro lado, importa trazer à colação as seguintes normas do EN:

Artigo 1.º

Natureza

1 - O notário é o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública.

2 - O notário é, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que atua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados.

3 - A natureza pública e privada da função notarial é incindível.

Como se depreende, pela norma transcrita a natureza pública e privada da função notarial é incindível, o que quer dizer que o notário é um oficial público que confere autenticidade aos documentos mas atua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados como um profissional liberal.

Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, em comentário ao artigo 47.º da CRP: “I. A liberdade de escolha de profissão (epígrafe e n° 1) é um direito fundamental complexo, comportando vários componentes. Enquanto direito de defesa a liberdade de profissão significa duas coisas: (íi) não ser forçado a escolher (e a exercer) uma determinada profissão; (ib) não ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para a qual se tenham os necessários requisitos, bem como de obter estes mesmos requisitos.

Mas o direito de escolha livre da profissão apresenta também uma dimensão positiva, conexionada com o direito ao trabalho e com o direito ao ensino, e que consiste designadamente em: (a) direito à obtenção dos requisitos legalmente exigidos para o exercício de determinada profissão, nomeadamente as habilitações escolares e profissionais; (b) direito a obter as condições de acesso em condições de igualdade a cada profissão.

Em algumas profissões a dimensão negativa pode ainda exigir, em princípio, a protecção do segredo profissional (médicos, advogados, sacerdotes, assistentes sociais).

A liberdade de profissão é uma componente da liberdade de trabalho, que, embora, sem estar explicitamente consagrada de forma autónoma na Constituição, decorre indiscutivelmente do princípio do Estado de direito democrático (cfr. AcsTC nos 328/94 e 187/01). A liberdade de trabalho inclui obviamente a liberdade de escolha do género de trabalho expressamente consagrada no n° 1, não se esgotando, todavia, aí (liberdade de não trabalhar, proibição de trabalho forçado, etc.).

A liberdade de profissão pode também ser uma garantia de outros direitos fundamentais: por ex., a profissão de jornalista, em relação à liberdade de comunicação social; a profissão de professor, em relação à liberdade de ensino; a liberdade de ministro de uma religião, em relação à liberdade religiosa; as profissões médicas, em relação ao direito à saúde.”.

Claro que muito mais há a dizer sobre este princípio, mas de uma forma sucinta, porque estamos no âmbito de uma providência cautelar, constata-se que não é por existir um limite de idade para o exercício da profissão de Notário, que existe violação do referido princípio. Aliás, ao ter natureza pública poderá ser aplicável um limite de idade para o exercício de função, como ocorre com os demais trabalhadores em funções públicas por força do artigo 292.º, n.º 1 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, o que não parece ser materialmente inconstitucional.

A Requerente escolheu a profissão de Notário e exerceu essa profissão de Notário. Sucede que, esta profissão de Notário tem um limite de idade. E este limite de idade não viola o princípio em análise.

A Requerente ancora-se, comparando a profissão de Notário com a dos advogados e solicitadores, mas estas profissões têm caráter totalmente privado. Os advogados e solicitadores inscrevem-se numa Ordem e têm que realizar o estágio segundo as regras existentes nos estatutos.

Para exercer a profissão de Notário, a pessoa tem que concorrer através de um concurso público, sob a alçada do Estado, tendo regras próprias e fiscalização de caráter público, ao contrário dos advogados e solicitadores.

A Requerente invoca, ainda, a profissão de administrador judicial em concorrência com a de Notário, mas a natureza do administrador judicial é equivalente à de agente de execução. De facto, o administrador judicial é a pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos atos integrantes do processo especial de revitalização, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência (artigo 2.º do Estatuto do Administrador Judicial) e nada mais.

Não é uma “profissão” na aceção ampla da palavra; em síntese, é uma pessoa que fiscaliza e orienta atos que ocorrem em processos de insolvência e especiais de revitalização para os quais é nomeado pelo Juiz, de entre uma lista oficial que existe para o efeito e é fiscalizado pelo Juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações e esclarecimentos sobre quaisquer assuntos e a sua remuneração é considerada dívida da massa insolvente gozando de prioridade de pagamento face aos créditos sobre a insolvência.

Não se pode comparar com a profissão de Notário, ao contrário do alegado pela Requerente.

Concluindo, a Requerente, por sua iniciativa e liberdade de escolha submeteu-se a concurso público aberto por aviso do Ministério da Justiça (cf. artigos 31.º e ss. do Estatuto do Notariado), sabendo de antemão, as normas a que ficaria sujeita.

Acresce referir que o Tribunal de Justiça da União Europeia, quando confrontado com caso semelhante de imposição de limite de idade para cessação de funções decidiu: “A proibição de toda e qualquer discriminação baseada na idade, como aplicada pela Directiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, segundo a qual são consideradas válidas as cláusulas de reforma obrigatória que constam das convenções colectivas e que exigem, como únicas condições, que o trabalhador tenha atingido o limite de idade para a reforma, fixado em 65 anos pela legislação nacional, e que preencha os outros critérios em matéria de segurança social para ter direito a uma pensão de reforma no regime contributivo, desde que a referida medida, embora baseada na idade, seja objectiva e razoavelmente justificada, no quadro do direito nacional, por um objectivo legítimo relativo à política de emprego e ao mercado de trabalho, e os meios utilizados para realizar esse objectivo de interesse geral não sejam inapropriados e desnecessários para esse efeito (...)”, cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de outubro de 2007, in processo C-411/05, disponível em http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=FC47C78BEA049B26D9B072D63F37842F?t ext=&docid=70359&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=25939 38.

Não se concebe, assim, de uma forma perfunctória, que os normativos 41.º, alínea b) e 43.º do EN, são inconstitucionais por violarem este princípio.

(iii) violação do direito à iniciativa económica privada e da equilibrada concorrência entre empresas Advoga a Requerente que, a imposição de um limite de idade ao exercício da profissão notarial configura, atentas as condições em que operam os demais agentes do mercado, limitação à iniciativa económica privada dos Notários, violando, assim, o artigo 61.º, n.º 1 da CRP. Afirma, ainda, que o emprego de práticas de distorção concorrencial por parte do Estado, consubstanciam, sem que haja margem para dúvidas, violação, não só da alínea f) do artigo 81.º, mas também das alíneas a) e c) do artigo 99.º da CRP.

De outra banda, refere a Requerida que não existe qualquer violação deste princípio.

Analisemos.

Os artigos 61.º, n.º 1, 81.º, alínea f) e 99.º, alíneas a) e c) da CRP estatuem:

Artigo 61.º
Iniciativa privada, cooperativa e autogestionária

1. A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.
2. (…)
3. (…)
4. (…)
5. (…)

Artigo 81.º
Incumbências prioritárias do Estado

Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social:
(…)
f) Assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral;
(…)
Artigo 99.º
Objetivos da política comercial

São objetivos da política comercial:
a) A concorrência salutar dos agentes mercantis;
b) A racionalização dos circuitos de distribuição;
c) O combate às atividades especulativas e às práticas comerciais restritivas;
d) O desenvolvimento e a diversificação das relações económicas externas;
e) A proteção dos consumidores.

Feito o enquadramento jurídico, vejamos.
Antes do mais, reitera-se tudo o que já acima foi dito.

Com efeito, a função de Notário tem prerrogativas próprias que não existem noutras profissões, assim como, exerce competências em regime de exclusividade, comparativamente às profissões de advogado, solicitador, administrador de insolvência, tais como, testamentos, justificações notariais, habilitações de herdeiros e, mais recentemente, a tramitação e decisão no âmbito de processos de inventário. Documentos, estes, essenciais para as pessoas, que, relativamente a alguns se vêm obrigadas a realizar, mormente a habilitação de herdeiros. Portanto, não se antevê, práticas de distorção concorrencial até porque alguns atos só podem ser praticados pelos Notários, apesar de outros poderem ser praticados por outros agentes económicos.

Portanto, o limite de idade de 70 anos não viola o direito à iniciativa económica privada. O Notário exerceu a sua profissão até àquela idade. Como atrás já se adiantou, a imposição de idade não viola nenhum princípio constitucional pois, é uma medida, que é objetiva e razoavelmente justificada, no quadro do direito nacional, por um objetivo legítimo relativo à política de emprego e ao mercado de trabalho, e os meios utilizados para realizar esse objetivo de interesse geral não são inapropriados e desnecessários para esse efeito (vide acórdão transcrito do TJUE).

Aliás, o Estatuto da Ordem dos Notários prevê o cancelamento pela Direção da Ordem da inscrição do Notário quando atinja o limite da idade [artigo 70.º, n.º 8, alínea c)].

As normas legais vigentes impedem que a Requerente continue o exercício da sua profissão quando atinja 70 anos, não parecendo tal inconstitucional tendo em conta a natureza também pública da profissão.

Não se verifica, assim, de uma forma perfunctória, que os normativos 41.º, alínea b) e 43.º do EN, são inconstitucionais por violarem este princípio.

Assim, a matéria alegada, no âmbito do requerimento inicial, mormente quanto à verificação do requisito do fumus boni iuris, não é de modo a que, de uma análise perfunctória, seja provável que a pretensão formulada pela Requerente no processo principal seja procedente.

E, na medida em que, como antes referido, os pressupostos de que depende a concessão da providência cautelar são cumulativos, a falta de algum deles conduz à negação do pedido. Por isso, considerando-se que não está demonstrado o fumus boni iuris, fica prejudicado o conhecimento dos restantes pressupostos, nomeadamente, o periculum in mora e a ponderação de interesses públicos e privados em presença, não podendo concluir-se que a pretensão da Requerente é digna de proteção em sede cautelar.

Acresce referir que o pedido subsidiário que a Requerente formulou para intimar a Requerida de abster-se das condutas tendentes à cessação coativa do exercício de funções por parte da Requerente, com o afastamento do limite de idade, também não colhe, pelos mesmos motivos acima narrados.
*

Mostrando-se claudicada a argumentação da Requerente, e inobservado o preenchimento do requisito do fumus boni iuris, deve a presente ação cautelar ser julgada totalmente improcedente.

*
(…)”

Enquadramento jurídico que não merece qualquer censura.

Toda a argumentação da Recorrente assenta num equívoco. Numa petição de princípio.

A Recorrente imputa ao limite de idade para os notários, 70 anos, fixado na alínea b) do artigo 41º e no n.º 1 do artigo 43º, do Estatuto do Notariado, inconstitucionalidade material partindo de um pressuposto: o de que a actividade de notário é estritamente liberal, nos seus termos uma “verdadeira profissão liberal em regime privado”, como a de advogado e a de solicitador (conclusão LVI).

A Recorrente invoca o que deveria demonstrar, mas não demonstra nem podia demonstrar porque a lei determina diferente.

Em concreto, ao estabelecer o limite de idade para o exercício da profissão de notário o legislador quis diferenciar a actividade de notário da actividade de advogado e de solicitador.

No exercício da sua liberdade de conformação legislativa.

Transcrevemos aqui o essencial do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 02.07.2009, no processo 942/08, citado pela Recorrida e com o qual se concorda integralmente:

“(…)

1. O XV Governo Constitucional decidiu empreender uma significativa reforma do notariado requerendo para o efeito autorização à Assembleia da República, o que provocou um esclarecedor debate parlamentar sobre o conteúdo e o alcance da função notarial onde se confrontaram duas visões diferentes sobre a matéria. A que prevaleceu - cujos princípios vieram a enformar o DL 26/2004 - que manteve a obrigatoriedade de celebração de escritura como forma de transmissão de imóveis, e a defendida pelo Grupo Parlamentar do PS onde se sustentava a desnecessidade daquele acto notarial e “que só o registo seria obrigatório sem prejuízo, naturalmente, de as partes, querendo, por sua livre e exclusiva vontade, poderem reforçar a segurança, contratando serviços notariais, desde logo, para os actos não sujeitos a registo.” Vd. ponto 9.º da matéria de facto.

Todavia, e independentemente dessa divergência, aquele diploma consagrou a ideia, consensual, de uma nova figura de notário a quem foi atribuída uma dupla função “a de oficial, enquanto depositário de fé pública delegada pelo Estado, e a de profissional liberal, que exerce a sua actividade num quadro independente” Vd. o respectivo preâmbulo e n.º 2 do art.º 1.º do citado DL. pelo que, a partir daí, o notário, muito embora pudesse exercer a sua actividade como profissional liberal, ficou a deter prerrogativas de ordem pública e, nessa medida, dependente do Ministério da Justiça em tudo o que respeitasse à fiscalização e disciplina da sua actividade revestida de fé pública. Para além disso - e com vista a evitar perturbações desnecessárias - o legislador quis que a introdução daquela reforma fosse gradual estabelecendo, por isso, um período transitório de dois anos, durante o qual coexistiriam “notários públicos e privados, na dupla condição de oficial público e profissional liberal, no termo do qual só este último sistema vigorará. Durante este período transitório, os notários terão de optar pelo modelo privado ou, em alternativa, manter o vínculo à função pública, sendo, neste caso, integrados em conservatórias dos registos.” Idem. Permitindo-se-lhes que a sua transferência para o regime de profissão liberal fosse feita ao abrigo de uma licença sem vencimento com a duração de cinco anos, com garantia do direito à sua reintegração no termo desse período. – vd. seu art.º 107.º.

E, porque assim, uma significativa maioria dos notários transitou da função pública para a profissão liberal, abrindo os seus próprios cartórios e suportando as despesas que essa transição obrigou.

1. 1. Porém, o Governo que aprovou o DL 26/2004 foi substituído e o novo Executivo prosseguiu aquela reforma fazendo publicar um conjunto de diplomas que vieram afectar o exercício da profissão de notário. Entre eles se conta o DL 263-A/2007, de 23/07, que instituiu um procedimento especial para transmissão, oneração e registo de imóveis, onde se prevê a possibilidade das operações e actos necessários a esse comércio jurídico ser feita num único balcão perante um único atendimento, eliminando-se desta forma a necessidade da mesma ser feita através de escritura pública Para alem destes foram publicados os DL.s n.º 125/2006, de 29/06, relativo à constituição on line de sociedades comerciais e civis sob a forma comercial, n.º 8/2007, de 17/01, que admitiu a possibilidade de, para além dos notários, outras entidades poderem certificar documentos e n.º 40/2007, de 24/08, que consagra um regime especial de constituição de associações..

“Com o procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis que agora se aprova os cidadãos ou empresas interessadas passam a poder realizar um vasto conjunto de actos em atendimento presencial único, que antes implicavam várias deslocações a diferentes entidades. Passa a ser possível, num único atendimento, por exemplo, a celebração do contrato de alienação ou oneração do imóvel perante um oficial público, o pagamento dos impostos devidos, como o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), a obtenção da realização imediata de todos os registos, a solicitação da alteração da morada fiscal e da isenção do imposto municipal sobre imóveis (IMI).” – Vd. o respectivo preâmbulo.

Ora, é esse aprofundamento desformalizador e desburocratizador dos procedimentos relativos à transmissão e oneração de imóveis levado a efeito pelo DL 263-A/2007 - que acarretou uma importante diminuição dos actos que os notários eram, obrigatoriamente, chamados a realizar, com a natural diminuição dos seus rendimentos - que a Autora aqui ataca por duas vias:

- Por um lado, sustentando que as medidas nele previstas se traduziam na violação do princípio da protecção da confiança uma vez que defraudavam as legítimas expectativas na manutenção do anterior quadro legislativo e na obrigatoriedade da prática dos actos notariais nele previstos. O que era agravado pelo facto do Estado ter estimulado os notários a exercer a sua função como profissionais liberais e, depois de obtido esse objectivo, de forma inesperada e radical, ter esvaziado o conteúdo das suas funções ao ponto de pôr em causa a própria subsistência da profissão.

- E, por outro, sustentando que os novos procedimentos constituíam uma violação do princípio da concorrência porquanto (1) obrigavam os notários a cobrarem pelos seus actos preços superiores aos praticados pelo Estado, situação que não podia ser ultrapassada visto os seus preços estarem tabelados por lei; (2) obrigavam os notários a ter uma licenciatura, exigência que não era feita aos funcionários das conservatórias; (3) previam o pagamento de um preço pelo acesso à informação do Ministério da Justiça, do Arquivo Público e de outros Serviços Públicos; (4) não impunham que Estado cobrasse o IVA; (5) impedia-os de oferecer os pacotes que o Governo oferecia por causa das burocracias (e seus custos) inerentes aos serviços prestados e, no fim de tudo, (6) sujeitava os seus actos ao controlo do conservador.

Vejamos se ao assim litigar a Recorrente tem razão, começando-se por analisar se os procedimentos previstos no citado DL 263-A/2007 se traduzem numa violação do princípio da confiança.

2. O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que o Estado de Direito democrático consagrado no art.º 2° da CRP envolve "uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas", razão pela qual "a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica". – Acórdão n.º 556/03, de 12/11/2003, proferido no processo n.º 188/03.

O apontado normativo constitui, assim, um limite à liberdade do legislador visto fazer depender a constitucionalidade das normas que o mesmo faça publicar da sua conformidade com o princípio nele postulado, o que quer dizer que as leis que se traduzam numa afectação inadmissível, arbitrária, demasiado opressiva ou excessivamente onerosa de expectativas jurídicas criadas aos cidadãos serão inconstitucionais. O que quer dizer que nem sempre a violação das expectativas legítimas determinará a inconstitucionalidade da lei visto que essa violação só é apta a produzir este efeito:

“a) quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dele constantes não possam contar; e ainda,

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.° 2 do artigo 18° da Constituição, desde a 1.ª revisão) " - Acórdão n.° 287/90 do Tribunal Constitucional.

Acentuando a necessidade de "proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado (...)" aquele Tribunal tem dito que:

“Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será alcançado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar.

Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas "que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável" (cfr. Acórdão n.° 365/91 no DR, 2.ª Série, de 27/08/1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a cabida protecção em nome do primado do Estado de direito democrático. " – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 156/95 Diário da República, II Série, de 8 de Junho de 1995

O que quer dizer que “não é suficiente que se demonstre que um novo regime legal vem afectar expectativas dos seus destinatários para que, automaticamente, se conclua pela sua inconstitucionalidade por violação do referido princípio da confiança jurídica. Essencial é ainda que essas expectativas sejam consistentes de modo a justificar a protecção da confiança e, por outro, que na ponderação dos interesses público e particular em confronto, aquele tenha de ceder perante o interesse individual sacrificado, o que acontecerá sempre que as alterações não forem motivadas por interesse público suficientemente relevante face à Constituição (cf. art° 18°, n.° 2 e 3), caso em que deve considerar-se arbitrário o sacrifício excessivo da frustração de expectativas". – Vd. o já citado Acórdão n.º 556/03, de 12/11/2003 No mesmo sentido podem, ainda, ver-se os Acórdãos n.º 625/98, de 3-11-98, proferido no processo n.º 816/96, n.º 684/98, de 15-12-98, proferido no processo n.º 638/97; n.º 160/00, de 22-3-2000, proferido no processo n.º 843/98; n.º 109/02, de 5-3-2002, proferido no processo n.º 381/01; n.º 128/02, de 14-3-2002, proferido no processo n.º 382/01..

Nesta conformidade, pode afirmar-se que, muito embora seja certo que “o legislador tem um dever de boa fé perante os destinatários das normas que edite e estes o direito de verem salvaguardadas as expectativas que aquelas tenham provocado” Prof. Jorge Miranda no douto Parecer junto aos autos., também o é que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional que aqui se acolhe, só pode haver violação desse direito quando a alteração introduzida se tenha traduzido numa mudança radical, inesperada, excessivamente onerosa e violadora de expectativas legítimas, consolidadas e consistentes dos cidadãos afectados. De resto, importa ainda ressaltar que, nas alterações destinadas a valer apenas nas situações futuras, o legislador tem uma liberdade conformativa quase total sendo certo que o mesmo, por outro lado, está vinculado à prossecução do interesse público e este pode exigir o sacrifício dos interesses e expectativas, ainda que legítimas, dos particulares.

3. Fixado o sentido e o alcance do princípio da protecção da confiança, importa responder concretamente à questão que nos foi posta pelo TAF de Braga qual seja a de saber se os procedimentos previstos no DL 263-A/2007 introduzidos, a título experimental, em algumas Conservatórias do Registo Predial, designadamente nas 1.ª e 2.ª Conservatórias daquela cidade, pelo art.º 15.º da Portaria 794-B/2007 produziu uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária ou demasiado onerosa, violadora das legítimas expectativas dos notários que trocaram o exercício da sua actividade na esfera pública pelo exercício da mesma actividade como profissionais liberais e se, nessa medida, tal alteração se configura como uma violação do disposto no art.º 2.º da CRP.

A CRP não contém nenhuma referência à profissão de notário ou, tão pouco, ao que se deve entender por acto notarial o que quer dizer que a substância da sua actividade não se encontra constitucionalmente balizada e, correspondentemente, que as únicas limitações com que o legislador ordinário se confronta quando tem de legislar sobre essa profissão ou actividade são as que resultam dos princípios fundamentais constantes daquele Texto. E, se assim é, só se poderia concluir pela inconstitucionalidade dos actos em que a reforma operada por aqueles diplomas se consubstanciou se os mesmos violassem algum desses princípios fundamentais, maxime o da protecção da confiança.

E, porque assim, não se poderá censurar o legislador se este ao proceder à reforma do notariado lhe retirou a importância que ele tinha, pois que essa censura só seria legítima se, como se referiu, essa reforma envolvesse a violação arbitrária, desproporcional e intolerável de expectativas legítimas, consistentes e consolidadas que haviam sido criadas ou estimuladas pelo Estado àqueles profissionais. Sendo certo que “nesta avaliação devem ser devidamente tidos em conta dados como o merecimento e dignidade objectiva da protecção da confiança que o particular depositava no sentido da inalterabilidade de um quadro legislativo que o favorecia, o peso relativo do interesse público que conduziu à alteração legislativa, a relevância dos interesses dos particulares e a intensidade da sua afectação e, não menos importante, a própria margem de livre conformação que deve ser deixada ao legislador democrático do Estado de Direito.” Jorge Reis Novais in “Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa” pg. 263.

Ora, podemos desde já antecipar, que o legislador dos apontados diplomas não cometeu a ilegalidade que se lhe imputa.

3. 1. O DL 263-A/2007, de 23/07 - vulgarmente designado por Casa Pronta - pôs em prática os princípios defendidos pelo Grupo Parlamentar do PS aquando do debate que teve lugar no Parlamento a propósito da aprovação do DL 26/2004, desburocratizando e simplificando de forma significativa os procedimentos destinados à transmissão de imóveis, designadamente através da supressão da necessidade de escritura pública e da consequente dispensa da intervenção do notário nesse procedimento. O que leva a Autora a sustentar que tais alterações se traduziram no esvaziamento das funções notariais e, por via disso, na violação das legítimas e consistentes expectativas que os notários tinham na manutenção do quadro legislativo anterior. O que, agravado pelo estímulo recebido do Estado para exercerem a sua actividade como profissionais liberais, se traduzia na violação do princípio da protecção da confiança.

Todavia, sem razão.

Com efeito, e desde logo, o DL 263-A/2007 não buliu na substância da função notarial visto o notário continuar a ser considerado como um oficial público em que é depositada fé pública com competência para praticar os actos que, anteriormente, eram indispensáveis na transmissão e oneração de imóveis.

Depois, este diploma ao aprofundar a desburocratização e a simplificação dos procedimentos relativos àquela transmissão não impediu que ela pudesse continuar a ser feita através de escritura - desde que fosse esse o desejo dos interessados - nem desvalorizou a importância da intervenção notarial já que, tendo a mesma lugar, fica dispensado o controlo substancial da sua legalidade aquando da realização do respectivo registo, o qual ficará remetido a aspectos meramente formais.

Acresce que, tendo em conta o ocorrido no mencionado debate parlamentar, as alterações introduzidos pelo identificado diploma não só não se apresentaram como imprevisíveis e inesperadas (vd. pontos 7 a 14 do probatório) como também não se pode considerar que elas sejam inadmissíveis, arbitrárias ou demasiado onerosas e que se apresentam como violadoras das legítimas expectativas dos notários. O que, dito de outra forma, quer significar que aquele DL mais não fez do que introduzir alterações que um notário atento, previdente e cauteloso poderia antecipar, as quais por não terem sido radicais, inesperadas ou intoleráveis não se traduziram na violação do princípio da protecção da confiança.

Finalmente, ainda se dirá que a lei estabeleceu um período transitório durante o qual os notários poderiam fazer a sua opção pelo modelo público ou pelo exercício da função como profissional liberal e permitiu-lhes que a sua transferência para este último regime fosse feita ao abrigo de uma licença sem vencimento com a duração de cinco anos, com garantia do direito à sua reintegração no termo desse período, o que quer dizer que, por um lado, o legislador se preocupou com a segurança e a sobrevivência futura daqueles que optassem pelo modelo privado e, por outro, que essa possibilidade afastava as incertezas e os riscos inesperados e desfavoráveis que se pudessem verificar.

A não se entender assim estar-se-ia a contrair de forma intolerável a liberdade conformadora do legislador e, dessa forma, impedir que um Governo democraticamente eleito pudesse aplicar o seu programa eleitoral e fazer as reformas que os eleitores sufragaram.

Acompanham-se, assim, as razões expostas pelo Prof. Vieira de Andrade no seu Parecer, as quais, pelo seu acerto e concisão, se transcrevem:

“Desde logo, não existiu nenhuma garantia formal, por parte do legislador, de manutenção do contexto jurídico em que se desenvolve a actividade notarial, designadamente no que respeita ao elenco de actos sujeito a escritura pública no novo regime.

Depois, o contexto histórico também não era de molde a alimentar expectativas nesse plano, tendo em conta as propostas apresentadas pelo maior partido da oposição -. e, portanto, eventual futuro governo - no âmbito do processo legislativo, que correspondem fundamentalmente às específicas alterações em curso, orientadas no sentido da eliminação e simplificação dos actos notariais e registais.

Além disso, trata-se de uma alteração do elenco de actos sujeitos a escritura pública, na sequência de uma política de simplificação, e não de uma alteração paradigmática do regime do notariado latino, ainda que possa ter, na prática, efeitos significativos sobre a atractividade da profissão e suscite a incerteza sobre a própria viabilidade financeira dos cartórios notariais.

Por fim, a própria previsão legal de um período de transição e de medidas provisórias - designadamente da faculdade concedida aos notários e funcionários de reponderação, durante 5 anos, da opção feita pelo notariado privado, em detrimento da integração nos serviços oficiais - indicia, ela própria, a existência de uma incerteza e de um risco, que incluem a previsibilidade de alterações desfavoráveis.

Não se pode, assim, falar de um inaceitável efeito-surpresa, em termos que possam pôr em causa a liberdade de conformação do legislador e a consequente validade das respectivas opções políticas.

E não há, por isso, também por esta via, uma violação intolerável de uma expectativa juridicamente garantida, que tome ilegítima a referida opção do legislador.

Na realidade, na falta de uma garantia supra-legislativa de uma instituição ou do núcleo de um regime legal, não se pode afirmar, em geral, o direito das pessoas à manutenção dos regimes jurídicos normativos aplicáveis às relações duradouras - o carácter normativo de um regime implica a sua modificabilidade objectiva pelos órgãos competentes, sem prejuízo da eventual constituição de direitos individualmente adquiridos, quando se verifiquem os respectivos pressupostos.

A confiança depositada na estabilização do objecto da actividade notarial por parte dos profissionais que apostaram na privatização, a comprovar-se suficientemente consistente para ser digna de protecção jurídica, não seria, pois, na ausência de uma garantia constitucional, só por si, suficiente, para excluir a legitimidade do legislador para eliminar a obrigatoriedade da celebração de escrituras públicas, no desenvolvimento da política de simplificação de processos de transmissão de bens imóveis.

Num conflito assim desenhado entre os princípios, terá de prevalecer o princípio da liberdade constitutiva do legislador, cuja função possui, como sempre têm sublinhado a doutrina e a jurisprudência, a característica da autorevisibilidade, permitindo, em princípio, a alteração para o futuro dos regimes estabelecidos, em face da mudança das circunstâncias ou das opções democraticamente legitimadas.”

Está, assim, respondida a primeira das questões que nos foram colocadas.

4. O TAF de Braga quer, também, saber se aplicação daqueles procedimentos viola o princípio da concorrência visto a Autora defender que a intervenção do Instituto de Registos e Notariado (doravante IRN) na transmissão de imóveis se traduz numa actividade de “prestação de serviços de registos e notariados, de forma separada ou combinada, mediante remuneração”, onde assume a veste “de operador económico que se encontra a prestar serviços no mercado. Mais ainda, sendo parte dos serviços que o IRN presta serviços que os notários privados também prestam (ou que deixaram de poder fazê-lo em consequência da legislação discriminatória entretanto adoptada) terão, necessariamente, de ser assim também entendidos como actividades económicas quando prestados pelo IRN.” Sendo assim, e sendo que, “em razão da lei, o IRN detém o exclusivo para prestar serviços de registo e, em particular, para prestar os três pacotes combinados, nomeadamente a «Empresa da Hora», «Casa Pronta» e «Balcão Herança e Sucessões»” aquele Instituto funciona como uma empresa pública e a sua actividade, por lhe terem sido concedidos direitos exclusivos, viola a Lei da Concorrência.

A alegação da Autora parte, assim, do pressuposto de que o IRN é uma empresa pública que desenvolve uma actividade económica concorrencial da actividade notarial e que ao fazê-lo viola o princípio da concorrência já que ela, ao invés daquele, se encontra obrigada (1) a cobrar pelos seus actos preços superiores aos praticados pelo IRN; (2) a ter habilitações académicas (licenciatura) não exigidas aos funcionários das conservatórias; (3) a pagar um preço pelo acesso à informação do Ministério da Justiça, do Arquivo Público e de outros Serviços Públicos; (4) a cobrar IVA; (5) impedida, por causa das burocracias e dos custos inerentes, de oferecer os pacotes que o Governo pode oferecer e, no fim de tudo, (6) a ver os seus actos sujeitos ao controlo do conservador.

Será que ao assim litigar lhe assiste razão?

A resposta, como se verá, é negativa.

4. 1. O princípio da concorrência - constitucionalmente consagrado nos art.ºs 81/e) Cujo teor é o seguinte: “Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos da posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”. e 99.º/a) e c) Que têm a seguinte redacção: “São objectivos da política comercial: a) a concorrência salutar dos agentes mercantis; c) o combate às actividades especulativas e às práticas comerciais restritivas.” da CRP - destina-se a promover a defesa e promoção da concorrência e a assegurar, através do correcto funcionamento dos mercados e da garantia de uma concorrência equilibrada, o estabelecimento de uma competição séria e justa entre todos aqueles que produzem e/ou comercializem os mesmos produtos.

O princípio da concorrência visa, assim, colocar em condições de igualdade todos aqueles que se encontrem no comércio a desenvolver a mesma actividade e, desse modo, contribuir para que o mercado funcione de forma justa e proporcione aos consumidores os melhores preços e a melhor qualidade dos produtos. E, por ser assim, é que os referidos normativos proíbem as práticas restritivas da concorrência e reprimem os abusos da posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral.

Daí que a tese sustentada pela Autora parta do pressuposto de que o IRN é uma empresa pública que desenvolve, mediante remuneração, uma actividade de natureza empresarial no domínio dos serviços de registo e do notariado em condições privilegiadas em relação àqueles com quem tem de concorrer no mercado, designadamente com os notários, violando desta forma o princípio da concorrência. Isto é, a Autora defende que o IRN presta os mesmos serviços que a Autora presta e que ao fazê-lo, atentas as regalias de que goza, viola o princípio da concorrência.

Todavia, esta alegação carece de fundamento.

Desde logo, porque o pressuposto em que Autora funda a sua tese não é verdadeiro já que, contrariamente ao alegado, o IRN não é nem funciona como uma empresa destinada a prestar serviços remunerados em concorrência desleal com os notários mas, ao invés, é um instituto público integrado na administração indirecta do Estado, dotado de autonomia administrativa e património próprio, destinado a prosseguir as atribuições do Ministério da Justiça sob a tutela e superintendência do respectivo Ministro. Por isso é que, muito embora entre essas atribuições se conte a de “dirigir, coordenar, apoiar, avaliar e fiscalizar a actividade das conservatórias e proceder à uniformização de normas e técnicas relativas à actividade registral, assegurando o respectivo cumprimento” (art.ºs 1.º/1 e 2 e 3.º/2/b) do DL 129/2007, de 27/04) não se pode afirmar que o mesmo é uma empresa pública ou que desenvolva uma actividade empresarial em concorrência com a actividade notarial.

Depois, porque uma tal tese só teria valimento se aquele Instituto pudesse ser considerado uma “organização em que se combinam o capital fornecido por pessoas colectivas de direito público com a técnica e o trabalho, para produzir bens ou serviços destinados a oferta no mercado mediante um preço que cubra os custos e permita o financiamento normal do empreendimento” M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., vol. I, pg. 378., o que não acontece visto a sua estrutura e organização serem diferentes de uma empresa como diversas são as finalidades que lhe cumpre desenvolver. De resto, o conceito de empresa está associado ao exercício de uma actividade económica empresarial destinada à oferta de bens ou serviços num determinado mercado com a finalidade de obter proventos (art.º 2.º da Lei 18/2003, de 11/06) e, como resulta de forma evidente dos art.ºs 1.º e 3.º do DL 129/2007, a actividade do IRN não tem essas características.

Acresce que a função das conservatórias de registo predial – que são quem, na qualidade de serviços desconcentrados daquele Instituto, pratica os actos que a Autora considera violadores do princípio ora em causa – consiste primordialmente em inscrever os factos jurídicos indicados no art.º 2.º do CRP em nome do respectivo titular com vista a publicitar a sua situação jurídica e, desse modo, promover a segurança no comércio jurídico imobiliário (seu art.º 1.º) e uma tal actividade não pode ser confundida com uma actividade económica, ainda que a mesma seja remunerada. As funções desempenhadas pelo IRN integram-se, assim, nas funções do Estado e são exercidas ao abrigo de normas de direito público e, porque desenvolvidas a coberto de prerrogativas de poder público, são insusceptíveis de ser confundidas com uma actividade de natureza económica sujeita ao comércio jurídico e às regras da concorrência.

Finalmente, as actividades desenvolvidas pelos notários não se confundem nem se sobrepõem com as funções legalmente atribuídas ao IRN como se pode ver se confrontarmos as competências que o art.º 4.º do Estatuto do Notariado Aprovado pelo DL 26/2004, de 4/02. atribuiu aos notários com as funções do IRN fixadas pelo art.º 3.º do DL 129/2007. Aliás, a Autora reconhece que assim é quando afirma que “o IRN detém o exclusivo para prestar serviços de registo e, em particular, para prestar os três pacotes combinados, nomeadamente «Empresa da Hora», «Casa Pronta» e «Balcão Heranças e Sucessões»”, competência essa que, indiscutivelmente, que os notários não dispõem. E, se assim é, e se a actividade do IRN é fundamentalmente uma actividade registral e se a função notarial é destituída do poder de fazer registos não se pode afirmar que a actividade do IRN é concorrencial com a actividade dos notários.

Resta, pois, concluir que a reforma do notariado prosseguida pelo DL 263-A/2007, nomeadamente a respeitante à simplificação dos procedimentos relativos às transmissões e onerações de imóveis, não significou a violação do princípio da concorrência. E isto porque a dispensa de muitos dos actos que eram necessários a essas operações – maxime, a obrigatoriedade das mesmas se fazerem através de escritura pública - e a possibilidade de se concentrar num único balcão todas as operações e actos relativos a essa transmissão e ao seu registo, não pode ser vista como uma violação daquele princípio atenta a substancial diferença entre os serviços prestados pelos notários e os serviços prestados pelo IRN.

É certo que essa desformalização e desburocratização acarretou uma diminuição da actividade notarial com as correspondentes perdas financeiras mas essa consequência, que era inevitável, não pode fundamentar o juízo da Autora.

Está, assim, resolvida a segunda das questões que o Sr. Presidente do TAF de Braga colocou à nossa consideração.

Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em declarar que os procedimentos criados pelo DL 263-A/2007, de 23/07, não são violadores dos princípio da protecção da confiança e da concorrência.”

Também o princípio da igualdade não sai beliscado com o limite de idade para o exercício de funções de notário e que não se impõe nem ao advogado nem ao solicitador.

Existe uma norma aplicável aos notários que não se aplica nem aos advogados nem aos solicitadores: a constante do artigo 6º, nº 2, do Estatuto do Notariado, que fixa um limite de notários em atividade por distrito, com um total nacional de 543 notários.

Esta norma cuja constitucionalidade material a Recorrente certamente não questiona porque limita a concorrência num sentido que lhe é favorável tem precisamente como contraponto a norma do limite de idade.

Se não existisse limite de idade para o exercício da função de notário, a possibilidade de exercer essa actividade por parte de quem quisesse ingressar ficaria dependente não da sua vontade e mérito, mas apenas da vontade de os que excederam os 70 anos quererem cessar a actividade. Ou morrerem.

Existe, portanto, uma justificação objectiva e razoável para impor aos notários este limite de idade para o exercício de funções.

Pelo que é improvável o êxito da acção, o que determina, por si só, a improcedência dos pedidos cautelares.

Tal como decidido.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantêm a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.
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Porto, 25.03.2022


Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre