Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01497/06.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/22/2012
Tribunal:TCAN
Relator:Maria do Céu Dias Rosa das Neves
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
Sumário:I – Pese embora ter ficado provado que foi em consequência do parto efectuado pela parteira que assistiu da criança, que esta ficou com paralisia braquial do plexo braquial esquerdo, este facto, por si só, não pode ser considerado desgarrado dos demais, de onde resulta que (i) no decorrer da gravidez nada indiciava que justificasse a realização de uma cesariana, designadamente porque a parturiente já havia sido mãe de duas crianças com 3,600gr e 3,890gr, que nasceram de parto normal e que a bacia da mãe era adequada ao nascimento desta terceira filha, por parto eutócito, (ii) a parturiente esteve sempre monitorizada, sem que algo tivesse sucedido que justificasse outro tipo de intervenção e que após a ruptura de membranas [vulgo rebentamento das águas], o parto se desenrolou de forma rápida, tendo-lhe sido feita inclusivé uma episiotomia (uma incisão na região perineal destinada a facilitar a extracção fetal), (iii) que a criança nasceu com um Apgar 5 [dificuldade de grau moderado].
II – Deste modo, não resulta da matéria assente que as manobras efectuadas pela parteira que assistiu a A, designadamente a força utilizada para puxar a criança, depois da expulsão da cabeça, tenham sido praticadas em violação das boas práticas médicas, denominadas leges artis.
III – Já não pratica uma boa técnica, nem obedece às leges artis, o profissional de saúde que após o parto deixa ficar inadvertidamente vestígios do parto, os quais produziram fortes dores abdominais e obrigaram a A., passados quinze dias, após o parto, a ter de ser submetida a uma “raspagem”.*
*Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:07/05/2011
Recorrente:A ... e outros; Unidade Local de Matosinhos, EPE
Recorrido 1:Unidade Local de Matosinhos, EPE; A e outros
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Nega provimento a ambos os recursos
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1 – RELATÓRIO:
AS. …, VM. … e MS. … (representada pelos primeiros), residentes na …º, Águas Santas, interpuseram recurso jurisdicional da decisão do TAF do Porto proferida em 05 de Janeiro de 2011 que julgou parcialmente procedente a acção administrativa comum, sob forma ordinária, por eles intentada contra a UNIDADE DE SAÚDE DE MATOSINHOS, E.P.E. – HOSPITAL PEDRO HISPANO, com vista à efectivação de responsabilidade civil extra contratual, em que peticionavam o pagamento das seguintes quantias, assim discriminadas:
- 95.100,42€ à A/recorrente MS. …, a título de danos não patrimoniais, danos patrimoniais e danos patrimoniais futuros;
-13.293,02€ à A/recorrente AS. … a título de danos não patrimoniais, danos patrimoniais e danos patrimoniais futuros;
-5.000€ ao A/recorrente VM. …, a título de danos não patrimoniais.
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Formulam, para o efeito, as seguintes CONCLUSÕES, que aqui se reproduzem:
«1. Perante toda a factualidade dada como assente e após, dada como provada, o Tribunal “a quo” deveria ter considerado como ter havido, por parte dos serviços da Ré, um comportamento ilícito e culposo com conexão dos mesmos com os danos existentes, nomeadamente a paralisia permanente e irreversível do plexo braquial esquerdo de que padece a recorrente MS. ….
2. O Tribunal “a quo” considerou não ter havido por parte dos serviços da Ré, no que diz respeito aos acontecimentos verificados no momento do parto da MS. …, qualquer comportamento ilícito e culposo e conexão desses mesmos acontecimentos com os danos existentes, ou seja, a referida paralisia do plexo braquial esquerdo de que sofre a recorrente MS. ….
3. Assim foi decidido por considerar-se que a distocia de ombros caracteriza-se por uma complicação pouco frequente que ocorre em cerca de 1 entre 1000 apresentações cefálicas em que o ombro do feto está encaixado no osso púbico e fica preso no canal de parto. É pois um acontecimento raro e imprevisível e a sua ocorrência implica que o profissional que se encontra a dar assistência ao parto, neste caso uma enfermeira parteira, tenha de agir rapidamente, efectuando as manobras necessárias, nomeadamente rodar a cabeça do feto para que os ombros se soltem, num curto espaço de tempo e de forma precisa, atenta a falta de oxigenação do bebé. E uma vez que a parteira não possui qualquer visão do que se passa no canal de parto, tem de agir alicerçando-se nos conhecimentos científicos e preparação técnica que possui, naquilo que supõe que esteja a suceder no canal de parto, atento o desenrolar dos acontecimentos e ainda, eventualmente na sua experiência.
4. Segundo ainda o Tribunal “a quo”, afirmar-se que a lesão do plexo de que sofre a MS. … não resultou necessariamente de manobras mal executadas durante o parto não é suficiente nem significa que a existência de lesão implique aquela deficiente execução das mesmas. A ocorrência de lesão do plexo braquial não implica necessariamente que tenham sido violadas as “leges artis”, designadamente que a manobra desobstrutiva tenha sido mal executada. Simplesmente, essa lesão poderá, em alguns casos, felizmente raros, ser uma consequência da manobra executada, mesmo que de forma perfeita e exemplar.
5. Embora ficasse provado em RRRR) que a paralisia é atribuída como resultado do puxão forçado da cabeça e do pescoço durante a libertação dos ombros nos partos eutócitos, o Tribunal “a quo” considerou que, essa lesão poderá ser uma consequência da manobra executada, para desencravar o ombro de forma precisa, atenta a falta de oxigenação do bebé. E considerou que essa lesão poderá, embora raramente, acontecer mesmo que a referida manobra seja executada de forma perfeita e exemplar, quase como uma consequência necessária.
6. Não é possível aceitar estas considerações sem uma sensação de repulsa. Não é possível aceitar uma solução só porque pode ser “UMA” das possibilidades, sem sequer pôr em causa simplesmente que o referido puxão “forçado” contribuiu só por isso para a ocorrência da lesão verificada.
7. É que, como também considerou provado o Tribunal “a quo” em RRRR) este tipo de lesão de paralisia é atribuída como resultado do puxão forçado da cabeça e do pescoço durante a libertação dos ombros nos partos eutócitos. Ou seja, o lesado encontra-se “condenado” logo por si – prevê-se a possibilidade da lesão se verificar – mas mais vale isso do que prolongar o parto com consequências nefastas para o bebé. Se acontecer, o lesado tem que se conformar com isso, sem qualquer consequência para o profissional que executou o acto.
8. Em momento algum os recorrentes consideram que foi posta em causa a vida da recorrente MS. …. Apenas que a paralisia aconteceu em resultado das manobras menos diligentes executadas pela enfermeira parteira no momento em que foi diagnosticada a distocia de ombros.
9. Os recorrentes não aceitam nem compreendem como é que o Tribunal “a quo” embora reconheça a verificação da lesão, dada desde logo como assente, considere, sem mais, que ela pode suceder, embora raramente, mesmo que as manobras de desencravamento dos ombros do bebé na altura do parto seja executada de forma perfeita e exemplar.
10. O Tribunal “a quo” nem sequer chega a colocar em questão a situação contrária, ou seja, que a lesão possa ter surgido como consequência de uma manobra menos diligente da enfermeira parteira. Aliás, na própria fundamentação da factualidade provada, faz-se referência às declarações prestadas pela referida enfermeira parteira MH. …, que embora não se lembrasse dos factos ocorridos naquele parto em concreto (um parto com consequências raras e imprevisíveis de paralisia do plexo braquial esquerdo), foi peremptória em referir que tudo fez conforme os procedimentos normais no Serviço onde trabalhava. Foi considerado credível o seu depoimento. Mas a verdade é que foram esses mesmos procedimentos, ditos “credíveis” face às razões da ciência (na opinião do Tribunal “a quo”), que inadvertidamente deixaram dentro da cavidade uterina da recorrente AS. … vestígios do parto que lhe provocaram dores e hemorragias, tendo esta última de ser submetida a raspagem para remoção dos mesmos, tendo aí sim, considerado o Tribunal “a quo” que houve violação de normas técnicas por parte dos profissionais da Ré que assistiram a recorrente Ana. Quais profissionais? A mesma enfermeira parteira.
11. Houve também violação de normas técnicas, é certo que negligentemente, no momento do parto, tendo havido puxão forçado da cabeça e do pescoço do bebé durante a libertação dos ombros o que provocou a lesão de que padece a recorrente MS. ….
12. Mas o Tribunal “a quo” entende que não. Em primeiro lugar, pelas declarações da própria enfermeira MH. … que não se lembra dos factos ocorridos neste parto em particular, mas é peremptória a dizer que seguiu todas as normas, mesmo ficando provado que a própria, inadvertidamente, deixou vestígios de parto na cavidade uterina da recorrente AS. ….
13. Em segundo lugar, na resposta dadas pelos peritos que também consideraram ter sido seguida a “leges artis”, tendo sido efectuadas todas as manobras necessárias, embora por várias vezes são os próprios peritos que referem não ser possível pela leitura do processo saber quais foram essas manobras e a sua sequência temporal.
14. E em terceiro lugar, simplesmente porque no entender do mesmo Tribunal, apesar de toda a factualidade assente e dada como provada, afinal, não se fez prova de qualquer acto ilícito por parte dos Serviços da Ré em conexão com a lesão da recorrente MS. ….
15. Os recorrentes, salvo melhor opinião, consideram que face a toda a factualidade assente e provada, o Tribunal “a quo” deveria ter considerado como provado ter havido conduta negligente por parte dos serviços da Ré, tendo como consequência uma paralisia do plexo braquial permanente da recorrente MS. …, devendo por isso a Ré ser condenada no pedido como sucedeu em relação aos vestígios de parto inadvertidamente deixados pelos profissionais da Ré na cavidade uterina da mãe AS. ….
16. Não o fazendo o Tribunal “a quo” pecou, devendo a sentença ser revogada nos termos e nas condições expostas, substituindo-a por outra que julgue a acção procedente por provada, condenado a Ré em todo o pedido».
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A recorrida Unidade de Saúde de Matosinhos, E.P.E. – Hospital Pedro Hispano, contra-alegou e deduziu recurso subordinado, formulando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida a fls… dos autos, através da qual a presente acção foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, a Ré foi condenada no pagamento à A. AS. … da quantia de 2.000 €, a título de danos não patrimoniais, absolvendo-se a Ré dos demais pedidos formulados pelos AA.
2. Salvo melhor opinião, e no que respeita à absolvição da Ré, decidiu bem o tribunal recorrido, pelo que, o presente recurso não tem qualquer fundamento, devendo, em conformidade, ser indeferido.
3. Para a apreciação dos factos em discussão dos presentes autos, a Lei não prevê qualquer regra especial de inversão do ónus da prova, tendo plena aplicação aos autos a regra geral definida no nº 1, do artº 342º do CC.
4. Deste modo, cabia aos AA, ora recorrentes, a prova dos factos que alegaram nos presentes autos – o que não lograram fazer.
5. Sobre a matéria descrita nas alegações de recurso apresentadas pelos recorrentes, foi produzida prova abundante, prova essa que foi devida e integralmente analisada a avaliada pelo Tribunal, e que impunha a absolvição da recorrida.
6. Dúvidas não existem sobre as lesões verificadas na recorrente MS. …. Contudo, o tribunal recorrido – e bem – também concluiu que as mesmas não se devem a qualquer acto ilícito e culposo praticado pelos funcionários da recorrida.
7. Não existe aqui qualquer contradição: as lesões verificadas na recorrente MS. … ocorrem na sequência do parto efectuado nas instalações da recorrida, auxiliado pela enfermeira parteira, mas essa conclusão – por si só – não determina que os actos praticados tenham sido ilícitos e/ou culposos.
8. Verificada e diagnosticada a distocia de ombros no momento do parto, impunha-se à enfermeira parteira que reagisse o mais rapidamente possível, por forma a evitar a morte ou danos graves para a saúde da criança.
9. A enfermeira parteira que assistiu o parto deparou-se com um quadro que impunha actuação rápida – de life-saving!. Se não fosse efectuada qualquer manobra, o feto ficaria vários minutos sem respirar, o que se traduziria na sua morte.
10. E como bem fundamentou o tribunal recorrido, a verificação de um episódio de distocia de ombros “implica que o profissional que se encontra a dar assistência ao parto, neste caso uma enfermeira parteira, tenha de agir rapidamente, efectuando as manobras necessárias, nomeadamente rodar a cabeça do feto para que os ombros se soltem, num curto espaço de tempo e de forma precisa, atenta a falta de oxigenação do bebé”. Assim, tinha plena justificação o recurso às manobras em causa.
11. Quanto à alegação dos recorrentes, segundo a qual nestas mesmas manobras a enfermeira parteira fez um uso excessivo e ilegítimo da força, em relação ao que seria necessário, nenhuma prova foi efectuada – nem sequer foi provado que as lesões verificadas na recorrente MS. … foram provocadas pelo uso excessivo e indevido da força.
12. Por outro lado, tais lesões podem efectivamente ocorrer, mesmo quando são respeitadas as Leges Artis, pois constituem um risco inerente às manobras em causa. Embora estas sejam executadas para afastar um perigo – no caso, um perigo para a vida do bebé – elas não estão isentas de risco, e tal como o Tribunal concluiu, existem casos, felizmente raros, em que se verificam tais lesões, mesmo que não tenham ocorrido violações das Leges Artis.
13. Repare-se, pois, que esta é a regra definida no nosso ordenamento jurídico, quando avaliamos actos praticados no âmbito da prestação de cuidados de saúde, conforme se vê do disposto no nº 1 do art. 150º do Código Penal.
14. E a prova produzida em sede de julgamento – testemunhal, documental e pericial – indicam que as manobras executadas pelos profissionais de saúde da ré, ora Recorrida, justificavam-se clínica e terapeuticamente e respeitaram as leges artis aplicáveis.
15. A este propósito, a prova pericial realizada é inequívoca: não havia indicações clínicas para realizar uma cesariana; atenta a distocia verificada, os profissionais de saúde deveriam ter actuado como actuaram, para evitar a morte da criança, e a lesão verificada não resulta de acto censurável ou erro das enfermeiras.
16. E perante todos estes factos, o Tribunal recorrido só poderia considerar que o comportamento dos profissionais de saúde da Ré não violou as leges artis, absolvendo a Ré do pedido.
17. Também não assiste razão aos recorrentes, quando alegam que o Tribunal recorrido, face à prova produzida, deveria ter considerado a possibilidade dos profissionais da ré não terem agido de forma diligente, uma vez que o próprio Tribunal considera ter havido prova suficiente de que houve violação de normas técnicas por parte daqueles profissionais, no que respeita ao episódio ocorrido duas semanas após o parto, em que a Autora mãe não teria sido devidamente assistida nos momentos em que se seguiram ao parto, tendo sido deixados resíduos na sua cavidade uterina, o que lhe provocou dores e hemorragias e que implicou a sujeição da mesma a raspagem para remoção dos ditos resíduos.
18. Porém, cumpre sublinhar que este episódio e condutas assinaladas não se relacionam com os factos acima identificados – assim, a conclusão que os recorrentes retiram, não tem qualquer fundamento, pois não é pelo facto de se considerar que houve negligência nos actos praticados no que respeita à remoção de vestígios do parto, que se poderá concluir que todos os outros factos relacionados com o parto também padecem dos mesmos vícios.
19. A demonstração do carácter ilícito e culposo de um determinado facto, não pode ser efectuada por mera dedução – tem de ser apreciada em termos concretos e à luz da prova produzida.
20. A conclusão que os recorrentes retiram – enquanto mera hipótese de raciocínio dedutivo que é – não tem qualquer evidência na prova produzida, pelo que, não poderá ser considerada. E, também por este motivo, deve ser mantida a sentença ora aposta em crise, no que respeita à absolvição da Ré.
21. Não obstante, certo é que a conclusão retirada pelo Tribunal quanto à remoção dos vestígios do parto, também não se encontra provada nos autos – pelo contrário, da prova produzida resulta evidência que, neste particular, os profissionais de saúde da Ré também actuaram em conformidade com as leges artis.
22. A ora recorrida não aceita, assim, esta interpretação e conclusão do Tribunal. Porém, atentas as regras processuais referentes à admissibilidade de interposição de recurso, não seria legalmente possível recorrer desta condenação, a não ser através do presente recurso subordinado, nos termos do disposto no art. 682º, nº 5 do CPC.
23. A decisão que condenou parcialmente a Ré no pedido, não tem qualquer suporte na prova produzida nos autos, estando aliás, em flagrante contradição com tais elementos de prova.
24. Repara-se naquilo que, a este propósito, resulta do relatório pericial da especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, em especial na resposta dada aos quesitos 53º, 54º e 61º a 63.
25. A prova produzida em sede dos presentes autos, contraria em absoluto a conclusão do Tribunal, conclusão esta que é meramente dedutiva – o Tribunal entende que os profissionais de saúde violaram a Lei, pela mera constatação da existência de vestígios de parto no útero da Autora mãe.
26. Porém, como os senhores peritos o atestaram, a verificação de tais vestígios – e repare-se, tratam-se de meros vestígios de parto, já não de fragmentos placentários – constitui uma situação perfeitamente normal, que ocorre em qualquer tipo de parto, não constituindo má prática médica.
27. Assim, pelos motivos expostos e por não ter qualquer fundamento na prova produzida em sede de julgamento, a sentença recorrida violou a Lei, em especial o disposto nos artº 483º do CC e artº 653º, nº 2 e 655º, nº 1 do CPC, razão pela qual deve ser revogada na parte ora em apreço, absolvendo-se a ré do pedido».
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Os recorrentes não se apresentaram contra alegações relativamente ao recurso subordinado interposto pela Unidade Local de Saúde de Matosinhos, E.P.E..
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O Digno Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos previstos no artº 146º do CPTA não se pronunciou.
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Os autos foram submetidos à Conferência para julgamento depois de colhidos os respectivos vistos.
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2.FUNDAMENTOS
2.1.MATÉRIA DE FACTO
Da decisão recorrida resultam assentes os seguintes factos:
«A) A Autora filha MS. … nasceu a 29 de Março de 2003, às 20.40h.
B) A autora mãe AS. …, desde Dezembro de 2002, foi seguida em consultas externas no serviço de Patologia Infecciosa e Gravidez no Hospital Pedro Hispano, ora réu, pela Drª LD. ….
C) Cerca de menos de um mês antes do nascimento - 3 de Março de 2003 - verificou-se, por estimativa, que o peso fetal seria de, aproximadamente, 3.130 gramas.
D) A Autora mãe já tinha tido dois filhos, que nasceram de forma natural, isto é, de parto eutócito, sendo certo que o primeiro havia nascido com 3.600 Kg e o segundo com 3,890 Kg.
E) A bacia da Autora Mãe era adequada ao nascimento da sua terceira filha por parto eutócito, como foi levado em conta e registado no processo clínico.
F) A cesariana não é uma mera opção de parto: a ela só se deve recorrer, caso existam indicações clínicas nesse sentido, ou seja, quando existam indícios que permitam concluir, com necessária segurança, que o parto eutócito poderá acarretar riscos acrescidos de saúde para a mãe e/ou para o feto.
G) Durante a gravidez, a Autora mãe assinou autorização necessária para lhe ser efectuada laqueação tubular.
H) Em 29 de Março, a Autora mãe foi admitida no serviço de urgência da ré em Matosinhos, já em trabalho de parto, pelas 18horas e 45 minutos.
I) A Autora mãe encontrava-se grávida por gestação de 40 semanas, tendo toda a gestação corrido sem incidentes.
J) Todos os exames realizados na altura da gestação foram considerados normais e decorrentes de uma gravidez sem qualquer factor de risco.
L) Quando admitida nas urgências, a autora mãe sentia já fortes dores abdominais, acompanhadas de hemorragia, mas nada lhe foi administrado para anestesiar as dores fortes.
M) Após a entrada no serviço de urgência da Ré, no dia 29 de Março de 2003, a Autora foi colocada no bloco de partos do Serviço de Obstetrícia.
N) No momento de admissão no serviço de urgência da Ré - cerca das 18h45m - a Autora Mãe foi observada, tendo-se constatado que apresentava a bolsa de águas intacta e uma dilatação de cerca de 4 cm.
O) A Autora esteve sempre monitorizada - por cardiotocografia - com resultado normal e constante, nunca tendo revelado mal-estar fetal.
P) E esteve constantemente vigiada por profissionais da Ré.
Q) Por volta das 19h30m houve ruptura artificial de membranas.
R) A enfermeira/parteira solicitou a presença de outra enfermeira para a ajudar com o parto.
S) A partir desse momento - a ruptura de membranas - o parto deu-se com muita rapidez, uma hora e dez minutos.
T) Atenta a ruptura de membranas e a dilatação observadas, iniciou-se o período expulsivo e assistiram a Autora mãe duas enfermeiras, conforme protocolo de serviço nestes casos.
U) Entretanto, a enfermeira/parteira disse à autora para ela fazer força, mas as dores que a autora Ana sentia eram tão fortes que se queixou pelo facto de não sentir nem as pernas, nem os braços, sentindo o resto do corpo todo dormente.
V) Mas, nada lhe foi administrado para colmatar essas fortíssimas dores.
X) A parteira dizia à autora para continuar a fazer força, mas as dores chegaram a ser tão fortes que a autora afirmou que ou a bebé nascia ou ela perdia os sentidos porque não conseguia tolerar as dores por mais tempo.
Z) A parteira continuou a dizer à autora mãe para fazer muita força, no intuito de fazer a bebé nascer.
AA) Mas a mãe não conseguia fazer mais força e nem sentia já os membros inferiores.
BB) Estes factos prolongaram-se até que a cabeça da bebé MS. … foi expulsa pelo canal de parto.
CC) No momento expulsivo, foi diagnosticada uma distocia de ombros.
DD) Então, a parteira colocou as mãos na cabeça da bebé MS. …, começou a rodá-la, mas não deixando de pedir à autora AS. … para fazer mais força, nem deixando ela própria de fazer força para fora, forçando dessa forma o nascimento da bebé.
EE) Continuando sempre a fazer puxões para fora foi expulso o ombro direito da bebé MS. ….
FF) A parteira continuou então a puxar para fora, fazendo força e com um puxão mais forte foi expulso o ombro esquerdo da MS. …, saindo de seguida o resto do corpo.
GG) Quando o bebé se apresenta, de cabeça, é normal que a parteira efectue manobras para facilitar e auxiliar o nascimento.
HH) Quando o bebé “se apresenta”, o parto tem de se dar com rapidez, pois neste período, atenta a pressão sobre a sua cabeça, pode ocorrer asfixia e lesões irreversíveis ou mesmo a morte.
II) A Autora mãe não foi observada por nenhum médico de serviço no hospital no decurso do período expulsivo do bebé.
JJ) Não tendo sequer o mesmo sido chamado para o efeito em nenhum momento do parto, pese embora existir nesse dia uma equipe médica de serviço.
LL) Ao nascer, a MS. … não mostrou qualquer reacção, nem sequer chorou.
MM) A parteira deu a habitual palmada no rabo da bebé, mas ela não chorou.
NN) A parteira colocou a bebé MS. … sobre a barriga da mãe e o braço esquerdo da bebé descaiu logo como se aquele membro superior estivesse morto.
OO) Ficaram a autora mãe e autor pai sozinhos no quarto, alarmados com o que teria acontecido com a bebé, pensando obviamente o pior, uma vez que a bebé MS. …, não chorou, não teve nenhuma reacção ao nascer.
PP) De seguida a parteira trouxe então a bebé MS. … para que a mesma mamasse, no entanto, a MS. … não mamou.
QQ) Tentou novamente a parteira que a bebé mamasse, mas a MS. … não mamou.
RR) Decidiram então trazer um biberão com leite adaptado, no entanto, nem este leite a bebé MS. … mamou.
SS) Então, a parteira utilizando o biberão como um copo conseguiu que a MS. … bebesse algum leite.
TT) Levaram depois a autora mãe para um quarto, enquanto que a bebé MS. … ficou no berço com as outras enfermeiras de serviço.
UU) Embora nada tenham dito à autora mãe, a MS. … necessitou de reanimação após o nascimento.
VV) A MS. … nasceu com índice de Apgar 5 ao primeiro minuto, que passou a Apgar 7 no quinto minuto, a Apgar 9 no décimo minuto.
XX) Um Apgar de 8 a 10, presente em cerca de 90% dos recém nascidos indica que o bebé nasceu em óptimas condições. Um Apgar 7 significa que o bebé teve uma dificuldade leve e um Apgar de 4 a 6 traduz uma dificuldade de grau moderado, enquanto que um Apgar de 0 a 3 é indicador de uma dificuldade mais grave.
ZZ) Na altura do parto, foi efectuada à autora mãe uma incisão na parede vaginal, designada de episiotomia, para ajudar no período expulsivo da criança e por isso, a mãe necessitava de ser assistida a fim de se proceder à sutura da referida incisão.
AAA) Depois da placenta extraída e de suturada a incisão que foi efectuada na parede vaginal, para ajudar ao período expulsivo, a Autora Mãe ficou sempre vigiada tendo sido transferida, por volta das 22h40m, para o internamento, ou seja, apenas duas horas depois de finalizado o parto.
BBB) No dia seguinte, no quarto, trouxeram a bebé MS. … para junto da autora mãe.
CCC) No dia 31 de Março, uma das enfermeiras informou-a que vinha buscar a MS. …, dizendo que a bebé ia fazer uma radiografia, um “RX” à clavícula, para examinarem a lesão com que tinha ficado no ombro desde o nascimento.
DDD) A autora mãe não acompanhou a bebé MS. … e não foi informada nesse momento, nem por nenhum médico, nem enfermeira, sobre o resultado desse “RX”.
EEE) Em 04 de Abril de 2003, a médica de serviço deu alta à autora mãe e à autora MS. …, dizendo, no entanto, que a criança tinha uma paralisia braquial esquerda, dizendo também que a bebé iria precisar de fisioterapia diária para ver se ficava bem e continuaria a ser observada pelo Hospital em consultas externas de fisiatria e neonatologia.
FFF) Nesse dia a autora mãe e a autora MS. … foram para casa.
GGG) Passados quinze dias após a data do parto, em 12 de Abril, a autora mãe começou a sentir fortes dores abdominais em tudo semelhantes às dores de parto, acompanhadas de uma grande hemorragia.
HHH) Deu novamente entrada a autora mãe nos serviços de urgência do Hospital Pedro Hispano no dia 12 de Abril, tendo sido assistida pelo médico de serviço que lhe administrou anestesia local, bem como soro.
III) Depois de examinada, a médica ginecologista de serviço informou a autora mãe que ela ainda possuía dentro do seu corpo vestígios do parto, que teriam sido inadvertidamente deixados na altura do mesmo.
JJJ) Por esse facto, iriam fazer-lhe uma raspagem, ou cortagem, de forma a retirar todos os vestígios do parto. O que de facto aconteceu.
LLL) Assim, após duas garrafas de soro e sem qualquer outra medicação a autora mãe foi para casa à 1:00 hora da manhã.
MMM) A A. mãe encontrava-se triste, deprimida e apática vendo diariamente o sofrimento da filha.
NNN) Posteriormente, na consulta de pediatria do segundo mês de vida da autora MS. …, realizada no mesmo Hospital Pedro Hispano, a bebé foi examinada pela Dra. A. … que lhe torceu o braço e fez-lhe outros exames de diagnóstico.
OOO) A referida Drª disse então à autora mãe que o problema da MS. … era uma pequena lesão, que com paciência, fisioterapia e com o tempo se resolvia.
PPP) Uns dias após o nascimento e até à data desta consulta, a MS. … fez fisioterapia no Hospital diariamente.
QQQ) Na 3ª consulta de pediatria a Dra. A. …, após examinar a MS. … disse à autora mãe que a bebé não apresentava nenhum problema grave, para além da paralisia e portanto, não precisava mais de ser seguida pelo Hospital, na área da pediatria.
RRR) Em 25 de Agosto de 2003, a MS. … fez um Electromiograma cujo relatório indicou que “Na contracção máxima voluntária dos músculos supra-espinhoso, deltóide, bicípede e tricípede esquerdos, foram detectados potenciais de baixa voltagem e que são a favor duma desnervação parcial dos referidos músculos, mas pouco acentuada”.
SSS) Em 28 de Agosto de 2003, foi elaborado um relatório de Medicina Física e de Reabilitação pela Dr.ª PA. … que refere que “ A menina MS. …, nascida em 29.03.2003 é seguida e tratada neste Serviço de Reabilitação por paralisia perinatal do plexo braquial esquerdo. Nascida de termo e parto eutócito com distorcia de ombros. Orientada para nossa consulta e orientação desde o internamento. Apresenta lesão moderada das raízes superiores do plexo braquial com limitação da mobilidade activa do ombro e cotovelo. Evolução lentamente favorável, devendo permanecer em tratamento de reabilitação”.
TTT) A referida Dra. PA. … disse à autora mãe, na habitual sessão de fisioterapia, que seria melhor para a MS. … a frequência numa clínica fisioterapeuta, por conta do hospital, mas mais perto de casa.
UUU) Por isso a referida Drª PA. … entregou à mãe um “P1” - uma credencial - para que a MS. … pudesse fazer fisioterapia fora do hospital.
VVV) Assim, a MS. … foi admitida na clínica “CLI. …”, sita em Guifães, que possuía também um serviço de fisioterapia, sendo que no início a MS. … fazia fisioterapia apenas 2 a 3 vezes por semana.
XXX) Todas estas despesas foram pagas integralmente pelo Hospital Pedro Hispano ora ré.
ZZZ) A MS. … frequentou a CLI. … desde Agosto até Dezembro de 2004, mas mesmo 18 meses após o seu nascimento e com as sessões diárias de fisioterapia, a paralisia da MS. … manteve-se.
AAAA) Na verdade, em 22 de Outubro de 2004 foi emitido mais um relatório de Medicina Física e de Reabilitação, onde se refere que:
“A menina MS. … (…) é seguida no Serviço de MFR deste Hospital desde 02.04.03 com o diagnóstico de paralisia perinatal do plexo braquial esquerdo com atingimento das raízes C5-C6-C7 (paralisia de Erb.) Iniciou tratamento neste Serviço a 24.04.03. Apresentava atingimento grave (negrito nosso) com plegia a nível do ombro, cotovelo e parésia dos extensores do punho com boa preensão a nível da mão.
Evolução Favorável, embora lenta, pelo que a 24.06.03 foi enviada a Consulta de Cirurgia Plástica no sentido de ponderação de eventual indicação de cirurgia.
A 17-05.04 mantinha evolução favorável mas franca assimetria do movimento espontâneo com utilização preferencial do membro superior não atingido, elevações activas do ombro esquerdo a cerca de 50 graus, utilização do membro superior em actividades bimanuais, limitação de alguns graus da rotação externa passiva do ombro, ligeira rigidez do cotovelo e muito ligeira gibosidade dorsal esquerda. Passou a tratamento de diário a 2x/semana e, dada a necessidade de manutenção deste tratamento por período prolongado, foi orientada para continuidade do mesmo em clínica de reabilitação na sua área de residência. Mantém consultas neste Serviço, a última das quais efectuada a 23.09.04. Mantém tratamento em clínica de reabilitação”.
BBBB) Na clínica FIS. …, Gabinete de Fisioterapia Lda. sito na Maia a autora mãe pagou € 20 mensais em Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Outubro e Novembro de 2005.
CCCC) Mas, mesmo após todas as referidas sessões de fisioterapia, a paralisia no ombro e braço esquerdo da MS. … manteve-se.
DDDD) Numa consulta mensal de reabilitação a Drª PA. …, que seguia a MS. …, disse à mãe que o problema da menina era mais grave do que eles pensavam, referindo-se aqui à paralisia do ombro e do cotovelo.
EEEE) Segundo nota clínica datada de 13/09/2005 que a autora mãe analisou através da consulta do processo clínico em nome da MS. …, com o número 401965, refere-se o seguinte:
“… - flexão do ombro - 45º
- rotação externa - 0º
- levar a mão ao pescoço – impossível
- rotação interna impossível
- défice extensão cotovelo e supinação passivamente: extensão do cotovelo (-20º)
- restantes amplitudes conservadas
- ligeira melhoria da situação clínica.
Plano: passo credencial para continuação de MFR no exterior.”
FFFF) A MS. … deu entrada em 13 de Novembro de 2005 no Hospital Pedro Hispano e foi operada no dia 14 de tarde.
GGGG) A MS. … foi examinada no dia seguinte à operação. E o ortopedista de serviço no hospital Pedro Hispano, Dr. LC. …, disse à mãe que a MS. … tinha sido operada só para fazer a rotação do ombro esquerdo, uma vez que a criança não o fazia.
HHHH) Segundo Carta de Transferência de Enfermagem, a MS. … foi submetida a cirurgia para correcção de sequelas de paralisia obstétrica no membro superior esquerdo que não foram corrigidas por fisioterapia.
IIII) Foi-lhe dada alta no dia 17 de Novembro, com prognóstico reservado, com indicação para continuar com as sessões de fisioterapia e para colocar tala para rotação externa.
JJJJ) Uma semana mais tarde quando a MS. … foi retirar os pontos no serviço de ortopedia do hospital, estava presente também o Dr. LC. … e o cirurgião que operou a MS. …, o Dr. PC. ….
LLLL) A MS. … continua a frequentar a sessões de fisioterapia, diariamente, na Clínica Fis. …, bem como consultas de fisioterapia com a Dr.ª PA. … no Hospital Pedro Hispano ora Ré.
MMMM) Por isso, a referida Drª PA. … entregou à autora mãe uma carta para ser entregue à fisioterapeuta que segue a MS. … na Fis. …, Lda, nela se referindo que: “ A menina MS. … (…) fez libertação anterior do ombro com capsulotomia anterior e secção do subescapular. Tem necessidade de mobilização passiva diária no controlo de ….(imperceptível) do ganho actual da rotação externa do ombro. O objectivo é o ganho de amplitudes articulares no controlo de normal …(imperceptível) da cabeça umeral e prevenção de subluxação posterior”….
NNNN) Em 15 de Dezembro, a MS. … foi novamente à consulta de fisioterapia, tendo sido examinada pela Drª PA. ….
OOOO) Nessa consulta verificou-se não ter havido evolução na situação da MS. …. A menina continua a não fazer a rotação externa do ombro.
PPPP) Em consequência do parto efectuado pela parteira, a MS. … ficou com uma Paralisia Braquial Obstétrica do plexo braquial esquerdo com atingimento das raízes C5-C6-C7, designada de Paralisia de Erb.
QQQQ) A paralisia braquial obstétrica é uma paralisia do membro superior que pode ocorrer com a criança no momento do parto e resulta da lesão do plexo braquial, ou seja, dos nervos responsáveis pelo movimento e sensibilidade das mãos, braços e dedos.
RRRR) A paralisia referida em PPPP) e QQQQ) é atribuída como resultado do puxão forçado da cabeça e do pescoço durante a libertação dos ombros nos partos eutócitos.
SSSS) Em resultado desta paralisia e do atingimento das raízes C5-C6 e C7 o braço afectado da MS. …, o esquerdo, apresentou-se após o nascimento sem movimento, pendente ao lado do corpo, com o ombro rodado internamente e com perda da rotação externa do braço.
TTTT) Um dos factores de risco associados a este tipo de paralisia são bebés grandes para a idade gestacional.
UUUU) A MS. … obteve melhoras com as sessões de fisioterapia que frequentou, no entanto, a paralisia manteve-se mesmo após todas as sessões de fisioterapia e mantém-se até hoje sem indicações de recuperação por parte dos médicos da Ré.
VVVV) Mesmo após a operação a que foi submetida para rotação do ombro, a MS. … não diminuiu a situação de paralisia obstétrica que apresenta.
XXXX) Apenas consegue levantar o braço em cerca de 50% e apresenta uma constante flexão do cotovelo, o que a impede de estender o braço como seria normal.
ZZZZ) Por indicação dos médicos que seguem a MS. … nas instalações da ré, a mesma ficará para sempre com esta paralisia, não podendo nunca deixar de frequentar as sessões de fisioterapia.
AAAAA) A MS. … com esta paralisia estará para sempre incapacitada de realizar determinadas tarefas, mesmo que já adulta intensifique voluntariamente os exercícios e as sessões de fisioterapia.
BBBBB) Não poderá escolher livremente uma profissão que a realize pessoalmente.
CCCCC) Nem praticar determinados tipos de desportos por que se apaixonar, uma vez que estará sempre limitada pelo braço deficiente.
DDDDD) O braço ficará para sempre flectido.
EEEEE) A MS. … foi submetida a operação cirúrgica que não visava o tratamento da lesão inicial do plexo braquial, pretendendo antes minorar as sequelas ao nível do ombro. Dessa operação resultaram incómodos, dores, medicações e anestesia geral.
FFFFF) A MS. … necessitará de fisioterapia até concluir a fase de crescimento, por forma manter a mobilidade que possui no braço esquerdo.
GGGGG) O que lhe acarretará custos e incómodos.
HHHHH) A MS. … usa uma tala pediátrica que foi adquirida e para a qual foi despendido o valor de 25,42€ (vinte e cinco euros e quarenta e dois cêntimos).
IIIII) A MS. … efectuou em 25/08/2003 um electromiograma, tendo sido despendido mais 75,00€ (setenta e cinco euros).
JJJJJ) Desde o nascimento da MS. …, e por aproximadamente 3 anos, a autora mãe esteve de baixa médica, para acompanhar o seu bebé às sessões de fisioterapia.
LLLLL) Deixou por isso de contribuir com o seu salário, que na data do nascimento da MS. … cifrava-se em 381,50€ (trezentos e oitenta e um euros e cinquenta cêntimos) para as despesas domésticas, vestuário, alimentação e outras, sendo que só agora o seu marido trabalha e aufere rendimentos para sustentar três filhos, todos menores e a cargo de seus pais.
MMMMM) A autora mãe foi obrigada a solicitar à Segurança Social um subsídio por assistência a doentes crónicos que apenas lhe foi concedido a partir de 26 de Janeiro de 2004 e pelo valor de 304,20€ (trezentos e quatro euros e vinte cêntimos).
NNNNN) Para além disso, nos primeiros meses de vida da MS. …, porque não possui viatura própria e porque tinha de levar a menina, tão pequenina, diariamente às sessões de fisioterapia, deslocava-se de táxi para o hospital.
OOOOO) Mas logo abandonou aquele meio de transporte, passando a deslocar-se em transportes públicos, uma vez que não possuía rendimentos que lhe permitissem custear as tarifas de táxi diárias.
PPPPP) Despendeu até 27 de Outubro de 2003, o valor global de 733,00€ (setecentos e trinta e três euros), resultantes de 10,00€ (dez euros) por cada viagem para e do hospital.
QQQQQ) O autor, pai da MS. …, desde o nascimento da filha é uma pessoa triste, apática e desgostosa.
RRRRR) Sente grande sofrimento ao ver a sua menina com o braço esquerdo quase imóvel.
SSSSS) Sabendo o quanto sofre e sofrerá a MS. … em toda a sua vida, deixando-o ainda mais sofrido o facto de sentir que nada pode fazer por ela.
TTTTT) A distocia de ombros é um acontecimento raro, sim, mas imprevisível».
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2.2 – O DIREITO
O recurso jurisdicional interposto pelos recorrentes, será apreciado à luz dos parâmetros estabelecidos nos artºs 660º, nº 2, 664º, 684º, nº 3 e 4, e 690º todos do CPC aplicáveis, ex vi, do artº 140º do CPTA e, ainda, artº 149º do mesmo diploma legal, uma vez que, o Tribunal de recurso, em sede de apelação, não se limita a analisar a sentença recorrida, dado que, ainda que a declare nula, decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito” - cfr. o comentário a este propósito efectuado in “Justiça Administrativa”, Lições, pág. 459 e segs”, do Prof. Vieira de Andrade.
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Por sua vez, o recurso subordinado será apreciado nos mesmos termos em face do disposto no nº 5 do artº 682º do CPC.
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CUMPRE DECIDIR:
Os AA/recorrentes intentaram a presente acção de responsabilidade civil extra contratual alicerçada na conduta ilícita e culposa imputada ao pessoal médico e de enfermagem que prestava serviço na unidade hospital ré, no dia do nascimento da filha MS. … e que assistiu a A. durante o parto.
E fazem-no alegando que:
…tinha ficado acordado com a médica que seguiu a gravidez da A. AS. … que o parto seria efectuado por cesariana….
…o bebé teria um peso superior a 4.000gr…
…a recorrente parturiente deu entrada no hospital, já em trabalho de parto, mas não foi observada por nenhum médico de serviço no hospital… e ficou sozinha num quarto e não numa sala de partos…
…a enfermeira/parteira insistia para que a parturiente fizesse força, mesmo quando esta dizia que já não o conseguia fazer…
…situação que se prolongou até que a cabeça da bebé foi expulsa pelo canal de parto, altura em que a parteira colocou as mãos na cabeça da bebé, rodando-a e fazendo puxões para forçar o nascimento…
…foi com um destes puxões que foi expulso o ombro esquerdo da bebé MS. …
…e com outro puxão mais forte foi de seguida, expulso o ombro esquerdo, saindo depois o resto do corpo.
…a MS. … não teve qualquer reacção ao nascer, tendo nascido com uma paralisia braquial esquerda…
…situação que imputam unicamente ao trabalho desenvolvido durante o parto pelas enfermeiras/parteiras que a assistiram…
…alegando que devia ter sido realizada uma cesariana ao invés do parto eutócito…
E, antes de entrarmos na análise do objecto do recurso propriamente dito, importa ter em consideração alguns princípios norteadores deste tipo de responsabilidade que abordaremos de forma genérica, uma vez que a decisão recorrida igualmente a eles, correctamente, se refere.
Não restando dúvidas de que a situação concreta cai no âmbito de aplicação das regras da responsabilidade civil extra contratual, temos que, como se refere no Ac. do STA de 20/04/2004, in rec. nº 982/03, os AA/recorrentes ao recorrerem ao estabelecimento público ré, fizeram-no «ao abrigo de uma relação jurídica administrativa de “utente”, modelada pela lei, submetida a um regime jurídico geral estatutário, aplicável, em igualdade, a todos os utentes daquele serviço público, que define o conjunto dos seus direitos, deveres e obrigações e não pode ser derrogado por acordo, com introdução de discriminações positivas ou negativas»….
E, deste modo, «o enquadramento da pretensão indemnizatória no âmbito da responsabilidade civil extracontratual implica uma consequência importante quanto à repartição do ónus da prova, que é a da aplicação do regime geral do nosso ordenamento jurídico (art. 342º, nº 1 CC), conforme o qual, cabe ao Autor fazer a prova dos factos constitutivos do alegado direito à indemnização, salvo caso de presunção legal (art. 344, nº 1 CC) ou, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (art. 344, nº 2 CC) (cfr., entre outros, o acórdão de 9.3.2000 e, na doutrina, Miguel Teixeira de Sousa, «Sobre o ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica», in Direito da Saúde e Bioética, 1996, ed. AAFDL, pp. 130, ss..)».
E assim sendo, não se vêm razões, para no caso sub judice se verificar qualquer inversão do ónus da prova, nem funciona qualquer presunção legal sobre a ré, pelo que cabia aos AA/recorrentes fazer prova de todos os pressupostos da alegada responsabilidade civil extra contratual, que como se esclareceu na decisão recorrida, são de verificação cumulativa.
A presente acção vem, pois, fundada na responsabilidade civil extra contratual da Ré.
É ponto assente que essa responsabilidade decorre de actos de gestão pública e que assenta nos pressupostos da responsabilidade civil previstos nos artºs 483º e segs do CC, o que vale por dizer que a sua concretização depende da prática de um facto (ou da sua omissão), da ilicitude deste, da culpa do agente, do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr., a título meramente exemplificativo, Acórdãos do STA de 16/3/95, in rec. 36.993, de 21/3/96, in rec. 35.909, de 30/10/96 in rec. 35.412, de 13/10/98 in rec. 43.138, de 6/03/2002 in rec. 48.155, de 26/9/02 in rec. 487/02, de 6/11/02 in rec. 1.331/02 e de 18/12/02 in rec. 1.683/02.
E como objecto principal deste recurso interposto pelos recorrentes, o que importa apurar é se os factos provados permitem ou não concluir pela verificação da ilicitude e da culpa [uma vez que dúvidas não subsistem quanto ao dano e nexo de causalidade - diferente será o nexo de causalidade entre a violação do dever de cuidado e o resultado].
E porque assim é, não haverá que censurar a sentença se for de concluir que os funcionários da ré não infringiram as suas obrigações legais ou as regras de ordem técnica e de prudência comum que deviam ter observado na assistência prestada à recorrente e, portanto, não foi a má prática usada por eles a provocar os danos que os AA/recorrentes querem ver ressarcidos. E isto porque o citado normativo estabelece que só fica constituído na obrigação de indemnizar aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger os interesses alheios e o disposto no art. 6º do citado DL 48.051 prescrever que só se consideram «ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração».
Ou seja, só haverá que censurar a sentença e concluir pela responsabilidade da Ré no pagamento dos prejuízos peticionados se for entendido que os seus funcionários, no exercício das suas funções e por causa delas, praticaram os actos ilícitos e culposos determinantes daqueles danos.
E no que respeita à análise dos requisitos da ilicitude e da culpa, importa ter em consideração, algo que, não sendo novidade, tem de ser tido em conta na análise concreta da subsunção dos factos ao direito, ou seja, de que os actos médicos não decorrem de uma ciência exacta; ao invés, são muitas vezes praticados, sob pressão e em situações em que o profissional de saúde tem de tomar uma opção imediata, para evitar por vezes, males piores.
Neste sentido, permitimo-nos aqui citar o Ac. do STA, proferido em 09/05/2012, in rec. nº 093/12 quando aí se refere:
«É sempre difícil e delicado considerar se a realização de determinado acto ou tratamento de natureza médica foi o mais correcto e adequado às circunstâncias ou se, pelo contrário, na realização dessa actividade houve violação das regras de ordem técnica (as leges artis) e/ou das regras de cuidado e prudência comum que deviam ter sido observadas, pois não sendo o exercício da medicina uma ciência exacta em que o diagnóstico e o tratamento que lhe corresponde tenham de ser um único, é forçoso concluir que um mau resultado não prova, sem mais, um mau diagnóstico e/ou um mau tratamento. Dito de forma diferente, o facto do resultado pretendido com o tratamento prescrito não ser obtido não significa que isso se ficou a dever a falta censurável ou ilícita. E isto porque a obrigação do médico consiste, apenas e tão só, em prestar ao doente os tratamentos exigidos pelo seu estado, com vista a restituir-lhe a saúde ou minorar-lhe os padecimentos, nela não estando incluída a obrigação de garantir o seu êxito.
E, por ser assim, não é fácil definir quando é que no exercício dessa actividade - onde intervêm as mais variadas condicionantes e onde se colocam (ou podem colocar) inúmeras dúvidas e incertezas - foi cometido um erro e, mais difícil ainda, afirmar que esse erro resultou da falta de cuidado, da falta dos conhecimentos técnicos exigíveis – as designadas leges artis (as quais vêm sendo definidas como o conjunto de regras técnico-científicas que um médico medianamente competente, prudente e sensato tem obrigação de conhecer e de saber utilizar correctamente, tendo em conta o estado da ciência e a situação concreta do doente.) –, da imponderação, da falta de diligência ou da violação das regras legais, regulamentares, de experiência comum que deviam ter sido empregues. Tanto mais quanto é certo que o médico, quer no diagnóstico quer no tratamento, não pode prever todas as hipóteses nem antecipar todos os riscos pelo que é errado pensar que as leges artes e as demais regras só estão cumpridas quando a sua acção é coroada de êxito. Daí que só se lhe possa exigir que represente os riscos prováveis ou os que, comummente, se produzem e, “de entre os demais possíveis, os que, por não serem extraordinários ou fortuitos, possam ainda caber nas expectativas de um avaliador prudente” (Acórdão do STA de 29/01/2009, (REC. 966/08).).
Deste modo, a circunstância do resultado desejado não ter sido alcançado não significa que as opções tomadas não tenham sido as devidas ou as mais aconselháveis no momento em que ocorreram tanto mais quanto é certo que, sendo a natureza e a constituição física de cada doente diferente e única, não é possível garantir que a terapêutica que resultou nuns casos resulta em todos os demais. E, porque assim é, não se pode afirmar que o médico errou só porque o doente não reagiu ou reagiu mal ao tratamento ministrado (Vd. A. Henriques Gaspar “A Responsabilidade Civil do Médico”, in Colectânea de Jurisprudência, ano III, 1978, Tomo I, pg. 342).
Nesta conformidade, o erro médico capaz de desencadear os mecanismos indemnizatórios terá de ser aferido não em função do (mau) resultado obtido mas em função do juízo que se faça sobre a forma como o profissional agiu e desse juízo resultar a conclusão de que houve uma culposa violação das regras que ele devia respeitar e de que se ela não se tivesse verificado os danos cuja reparação se peticiona não teriam sido existido. Ou seja, a apontada responsabilidade pressupõe a formulação de um juízo de reprovação que parte da existência de um comportamento padrão que o agente podia e devia observar e de que ele não foi observado e que foi esse desvio que provocou os danos que se impõe ressarcir. O que, a contrario, quer dizer que se o médico usou do cuidado, da ponderação, dos meios e dos conhecimentos técnicos e científicos que lhe eram exigíveis e se, apesar disso, o resultado foi mau não se pode deixar de considerar que ele cumpriu o seu dever e, por isso, que se não lhe pode imputar responsabilidade civil extracontratual a título de ilicitude e culpa» - sub. nosso.
E na posse destas considerações e princípios norteadores, impõe-se agora, sim, analisar se os funcionários da ré incorreram em faltas ou nos comportamentos [activos] que os recorrentes lhes imputam, sendo que, para tanto, há que analisar os factos dados como provados [sem prejuízo de se analisarem também os não provados, pese embora, o julgar-se não provado um determinado quesito não equivale a dizer que se tenha por verificado o contrário do que nele se pergunta].
Assim, com interesse para este segmento do recurso, resulta assente, designadamente, da matéria assente, ou seja, antes mesmo do período de abertura de produção de prova, o seguinte:
….em 29 de Março a autora mãe foi admitida no serviço de urgência da ré em Matosinhos, já em trabalho de parto, pelas 18,45 minutos…
…era uma gestação de 40 semanas tendo a gestação decorrido sem incidentes…e sem qualquer factor de risco…
…a enfermeira/parteira disse à autora mãe para ela fazer força, mas as dores que sentia eram tão fortes que se queixou pelo facto de não sentir nem as pernas, nem os braços, sentindo o resto do corpo dormente…. Nada lhe foi administrado para colmatar essas fortíssimas dores…
…a parteira dizia à autora para continuar a fazer força, mas as dores chegaram a ser tão fortes que a autora afirmou que ou a bebé nascia ou ela perdia os sentidos porque não conseguia tolerar as dores por mais tempo…
…a parteira continuou a dizer à autora mãe para fazer muita força, no intuito de fazer a bebé nascer…
…mas a mãe não conseguia fazer mais força e nem sentia já os membros inferiores…
…estes factos prolongaram-se até que a cabeça da bebé MS. … foi expulsa pelo canal do parto…
…então a parteira colocou as mãos na cabeça da bebé MS. …, começou a rodá-la, mas não deixando de pedir à autora AS. … para fazer mais força, nem deixando ela própria de fazer força para fora, forçando dessa forma o nascimento da bebé…
…continuando sempre a fazer puxões para fora, foi expulso o ombro direito da bebé MS. … …
…a parteira continuou então a puxar para fora, fazendo força e com um puxão mais forte foi expulso o ombro esquerdo da MS. …, saindo de seguida o resto do corpo…
…ao nascer a MS. … não mostrou qualquer reacção, nem chorou…
…na altura do parto foi efectuada à autora mãe uma incisão na parede vaginal, designada episiotomia, para ajudar no período expulsivo da criança…
…a MS. … necessitou de reanimação após o nascimento…
…em 04 de Abril de 2003, a médica de serviço deu alta à autora mãe e à autora M. …, dizendo que a criança tinha uma paralisia braquial esquerda…
…a MS. … apresenta um diagnóstico de paralisia perinatal do plexo braquial esquerdo com atingimento das raízes C5, C6, C7…
…em consequência do parto efectuado pela parteira, a MS. … ficou com uma paralisia braquial obstétrica do plexo braquial esquerdo com atingimento das raízes C5, C6, C7, designada de paralisia de Erb…
…em resultado desta paralisia e do atingimento das raízes C%, C6, C7, o braço afectado da MS. …, o esquerdo, apresentou-se após o nascimento sem movimento, pendente ao lado do corpo, com o ombro rodado internamente e com perda da rotação externa do braço…
Produzida a prova, testemunha e pericial, resultaram ainda provados os seguintes factos, com relevo:
…a paralisia referida em MMM) e NNN) é atribuída como resultado do puxão forçado da cabeça e do pescoço durante a libertação dos ombros nos partos eutócitos…
…um dos factores de risco associados a este tipo de paralisia são bebés grandes para a idade gestacional…
…a autora mãe já tinha tido dois filhos que nasceram de forma natural, isto é de parto eutócito, sendo que o primeiro havia nascido com 3,600gr e o segundo com 3,890gr…
…a bacia da autora mãe era adequada ao nascimento da sua terceira filha, por parto eutócito, como foi levado em conta e registado no processo clínico…
…após a entrada no serviço de urgência da ré, no dia 29 de Março de 2003, a autora mãe foi colocada no bloco de partos do serviço de obstetrícia…
…no momento de admissão no serviço de urgência da ré – cerca das 18,45h – a autora mãe foi observada, tendo-se constatado que apresentava a bolsa de águas intacta e uma dilatação de 4cm…
…a autora esteve sempre monitorizada – por cadiotocografia – com resultado normal e constante, nunca tendo revelado mal estar fetal...
…e esteve constantemente vigiada por profissionais da ré…
…os quais constataram, por volta das 19,30h, a rotura de membranas espontânea e normal, conforme Partograma…
…a partir desse momento - a rotura de membranas -, o parto deu-se com muita rapidez, uma hora e dez minutos…
…atenta a rotura de membranas e a dilatação observadas, iniciou-se o período expulsivo e assistiram a autora mãe, duas enfermeiras conforme protocolo de serviço nestes casos…
…quando o bebé “se apresenta” de cabeça, é normal que a parteira efectue manobras para facilitar e auxiliar o nascimento…
…quando o bebé “se apresenta”, o parto tem de se dar com rapidez, pois, neste período, atenta a pressão sobre a sua cabeça, pode ocorrer asfixia e lesões irreversíveis ou mesmo a morte…
…foi diagnosticada uma distocia de ombros…
…foi realizada uma episiotomia…
…a distocia de ombros é um acontecimento raro, mas imprevisível…».
E é com base nestes factos que teremos de analisar os conceitos da ilicitude e da culpa, mesmo sob a forma de mera negligência, a que supra nos referimos.
E desta análise factual, é nosso entendimento, que a decisão recorrida não é passível da crítica que lhe vem assacada pelos recorrentes.
Com efeito, resulta claro, desde logo, da matéria assentes e antes mesmo da produção de prova que teve lugar nestes autos, que se verificou o dano e o nexo causal entre o dano e o facto, ou seja, foi em consequência do parto efectuado pela parteira que assistiu o nascimento da MS. … que esta ficou com paralisia braquial do plexo braquial esquerdo [cfr. alínea MMM dos factos provados].
Só que este facto, não pode ser lido e avaliado de forma desgarrada dos demais factos que resultaram provados.
Com efeito e, quanto à alegação dos recorrentes de que o peso do bebé justificaria a realização de uma cesariana, este facto ficou por provar, até porque, ao invés, o que resultou provado é que no decorrer da gravidez nada indiciava tal solução, designadamente porque a parturiente já havia sido mãe de duas crianças com 3,600gr e 3,890gr, que nasceram de parto normal e que a bacia da mãe era adequada ao nascimento desta terceira filha, por parto eutócito.
Por outro lado, também não se mostra provado que a parturiente não tivesse sido devidamente assistida, desde que deu entrada no serviço da ré.
Também não se mostra de relevo jurídico, o facto de ter sido assistida por uma enfermeira parteira, acompanhada de uma outra enfermeira, em vez de um médico, até porque os recorrentes não retiram daí a ilicitude e culpa, mas sim da forma como a enfermeira parteira realizou as manobras durante o parto.
E quanto a este, verificamos que a parturiente esteve sempre monitorizada, sem que algo tivesse sucedido que justificasse outro tipo de intervenção e que após a ruptura de membranas [vulgo rebentamento das águas], o parto se desenrolou de forma rápida, tendo-lhe sido feita inclusivé uma episiotomia (uma incisão na região perineal destinada a facilitar a extracção fetal).
Ou seja, esta incisão que foi feita, foi precisamente porque a parteira se apercebeu do tamanho do bebé e com vista a ajudar a expulsão do mesmo.
Quanto à força que a parteira terá utilizado para ajudar a mãe neste trabalho de parto final - de expulsão - não cremos que baste ter ficado provado que após a expulsão da cabeça do bebé, a parteira rodou a cabeça, continuando a fazer força para fora, forçando o nascimento da criança, até à saída do ombro direito e depois, com um puxão mais forte, o esquerdo, saindo de seguida o corpo inteiro, para se concluir que este trabalho não foi o mais correcto e adequado às circunstâncias e que houve violação das regras de ordem técnica [as leges artis] e ou das regras de cuidado e prudência comum que deveriam ter sido utilizadas.
Com efeito, nada nos autos nos permite concluir, que estas manobras não tenham sido as mais adequadas para evitar, designadamente, a asfixia da criança [recorde-se que mesmo assim a criança necessitou de reanimação, tendo nascido com um Apgar 5 [dificuldade de grau moderado].
Ou seja, pese embora, a paralisia da MS. … ter resultado do parto, não cremos que face a todo o circunstancialismo que o rodeou, se possa concluir que as manobras e tentativas de puxar o bebé para fora tenham sido efectuadas de molde a violar as leges artis.
Cremos, até, por toda a factualidade provada, que a enfermeira/parteira, depois de efectuar a episiotomia, com vista a obter melhor amplitude de abertura do canal de parto e, após verificarem que depois da saída da cabeça, o bebé não descia e, portanto, não era expulso o resto do corpo, perante a eminência de asfixia, tudo fizeram para conseguirem a expulsão dos dois ombros que estariam presos e encravados na cavidade pélvica [que salientar que, como é comummente sabido nestes momentos e até nos antecedentes, não se pode parar um trabalho de parto e fazer uma cesariana].
E deste modo, a única conclusão que nos é permitida extrair é que um mau resultado não prova, sem mais, um mau trabalho, numa área em que nada é exacto e tudo, pode, infelizmente, acontecer.
Assim, não cremos que se possa concluir que este mau resultado tenha sido ocasionado por uma conduta ilícita e culposa [nem mesmo a título de mera negligência] por parte das enfermeiras que assistiram o parto da autora.
Com efeito, mesmo a resposta positiva dada ao artº 29º da BI, não permite concluir que os puxões ou a força efectuada pela enfermeira/parteira, com vista a fazer sair os ombros durante a libertação tenham sido indevidos e incorrectos [em termos de boa prática médica] e a causa da paralisia do ombro esquerdo da bebé, mas apenas que esta paralisia é resultado de puxões forçados da cabeça e do pescoço durante a libertação dos ombros nos partos eutócitos.
Veja-se, aliás, que os recorrentes, pese embora, terem alegado factos que permitiram conduzir a outra conclusão, não lograram prová-los [mesmo não esquecendo, como supra se referiu que os factos não provados não equivale a dizer-se que se tenha por verificado o contrário do que neles se pergunta].
E, neste segmento, vejam-se as respostas dadas de “Não provado” aos artºs 42º, 43º, 44º, onde se perguntava, respectivamente.
“Artº 42º
A parteira no momento do parto ao aperceber-se das dores fortíssimas da mãe, que a MS. … tinha dificuldade em ser expulsa pelo canal de parto e que o próprio período expulsivo se estava a prolongar, não deveria ter forçado a expulsão da bebé MS. … através de grandes puxões?
Artº 43º
Deveria ter interrompido este procedimento, passando de imediato ao parto da MS. … através de cesariana?
Artº 44º
Mas, porque o parto foi realizado da maneira que acima se descreveu, a MS. …, face à paralisia resultante desse acto da parteira, ficará para sempre com o braço esquerdo limitado?
Face a tudo quanto se deixa exposto, somos forçados a acompanhar os fundamentos consignados na decisão recorrida no sentido de que os recorrentes não lograram provar que os procedimentos adoptados no decorrer do parto da MS. …, tivessem sido concretizados em desrespeito às boas práticas médicas, designadamente, em violação das leges artis.
E, deste modo, não padece de erro de julgamento o decidido, antes se impondo a sua manutenção:
«…. A distocia de ombros caracteriza-se como “uma complicação pouco frequente, que ocorre em cerca de 1 entre 1000 apresentações cefálicas, em que o ombro do feto está encaixado no osso púbico e fica preso no canal de parto.
Quando a cabeça aparece no exterior, parece que algo a puxa um pouco para trás no orifício vaginal. O tórax está comprimido pelo canal do parto e a boca fica fechada devido à pressão exercida contra o orifício vaginal, pelo que se torna difícil para o médico colocar um tubo de respiração. Como resultado, o feto não pode respirar e produz-se um défice de oxigénio durante 4 a 5 minutos. Esta complicação é mais frequente quando se trata de fetos grandes, sobretudo quando é necessário usar o fórceps antes de a cabeça ter descido por completo pelo canal de parto. No entanto, a distocia de ombro não se verifica em todos os casos de fetos grandes.
Rapidamente o médico tenta várias técnicas para desencaixar o ombro e conseguir que o bebé nasça por via vaginal. Se estas fracassarem, o bebé raramente consegue ser empurrado para trás para que volte à vagina e possa nascer por cesariana.” (Manual Merk, biblioteca médica online, http://www.manualmerck.net)
Como resulta da prova produzida, a distocia de ombros é um acontecimento raro e imprevisível, e a sua ocorrência implica que o profissional que se encontra a dar assistência ao parto, neste caso uma enfermeira parteira, tenha de agir rapidamente, efectuando as manobras necessárias, nomeadamente rodar a cabeça do feto para que os ombros se soltem, num curto espaço de tempo e de forma precisa, atenta a falta de oxigenação do bebé.
Uma vez que a parteira não possui qualquer visão do que se passa no canal de parto, tem de agir alicerçando-se nos conhecimentos científicos e preparação técnica que possui, naquilo que supõe que esteja a suceder no canal de parto, atento o desenrolar dos acontecimentos e ainda, eventualmente, na sua experiência.
No entanto, embora os AA. afirmem que foi feito uso de força superior ao que seria necessário, tal alegação não foi provada, nem foi sequer provado que a lesão se deveu a esse uso indevido da força.
Afirmar-se que a lesão do plexo de que sofre a MS. … resultou necessariamente de manobras mal executadas durante o parto não é suficiente nem significa que a existência de lesão implique aquela deficiente execução das mesmas manobras.
A ocorrência de lesão do plexo braquial não implica necessariamente que tenham sido violadas as “leges artis”, designadamente que a manobra desobstrutiva tenha sido mal executada. Simplesmente, essa lesão poderá, em alguns casos felizmente raros, ser uma consequência da manobra executada, mesmo que de forma perfeita e exemplar.
Também não concorrerá para a existência de acto ilícito e culposo por parte dos serviços da R. as considerações que são tecidas pelos AA. acerca da necessidade de ser feita uma cesariana, atentos os circunstancialismos que antecederam o parto. Não padecia a puérpera de qualquer sinal que evidenciasse tal necessidade. A A. já havia sido mãe duas vezes, com partos sem ocorrências anormais, o peso estimado do bebé não se encontrava acima do limite que recomendaria a cesariana imediata, confluindo todas essas indicações na recomendação de um parto eutócito, que é aliás o regime regra, atentos os riscos inerentes a uma cesariana (não lograram aqui os AA. provar que o peso estimado do bebé seria de 4000 g, nem que o parto foi prolongado). Também não procede a alegação de que quando foi diagnosticada a distocia de ombros se poderia ter optado por realizar uma cesariana. Isto porque quando é diagnosticada a distocia de ombros, como já foi referido, o bebé encontra-se já em posição de saída do canal de parto, sendo por isso praticamente impossível, nesse momento a realização de cesariana, entre outro motivos, porque tal procedimento implicaria uma demora no nascimento de vários minutos, atenta a necessidade de condução da grávida ao bloco operatório, a administração de anestesia e demais preparativos que antecedem qualquer cirurgia, o que mais uma vez, colocaria a vida do bebé em risco, ou pelo menos, potenciaria a existência de sequelas graves, por falta de oxigenação do cérebro.
Acresce ainda que embora os AA. aleguem factos relacionados com os procedimentos adoptados pela enfermeira/parteira durante o tempo que durou o parto, não juntaram prova, nomeadamente, do protocolo de serviço relevante no caso concreto, que poderia demonstrar, face à conduta da dita enfermeira, se a mesma respeitou ou não aquele protocolo, e por isso violou as “leges artis”, v.g. quanto à necessidade de chamar o médico obstetra de serviço ou quanto às manobras consideradas adequadas nos partos em que ocorre a distocia de ombros.
Considera assim o Tribunal, que quanto ao momento do parto e à lesão que adveio à MS. … em sua consequência, não se verifica a responsabilidade civil da R., por não se verificar o pressuposto da ilicitude dos actos praticados».
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E com os fundamentos supra expostos, improcede, na totalidade o recurso interposto pelos recorrentes, que como referimos, se circunscreveu a este segmento da decisão.
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E aqui chegados, impõe-se decidir o RECURSO SUBORDINADO interposto pela ré:
Quanto ao pedido formulado pelos recorrentes relativamente a danos morais sofridos pela Autora AS. … [dores, incómodos e hemorragias], no que respeita ao “episódio de urgência pós-parto” pelo facto de terem ficado, na cavidade uterina, vestígios de parto que obrigaram a que a mesma tivesse de ser submetida a uma cirurgia passadas duas semanas, para remoção destes vestígios, a sentença recorrida julgou verificados os pressupostos da ilicitude e da culpa, tendo condenado a ré no pagamento à A. da quantia de 2.000€ a título de indemnização.
E é contra esta decisão que a ré se insurge em sede de recurso subordinado alegando para o efeito que, da prova produzida, resulta que os vestígios de parto deixados na cavidade uterina, constituem uma situação perfeitamente normal que ocorre em qualquer tipo de parto, não constituindo má prática médica.
E fá-lo, com apelo ao relatório pericial efectuado e constante dos autos, designadamente, a resposta dadas pelos Srs. peritos, aos artºs 53º, 54º, 61º, 62º e 63º desse mesmo relatório.
Esquece-se, porém, a ré, que este relatório e as respostas que nele constam, constituem apenas um meio de prova, a que necessariamente se juntam outros, de molde a permitir ao julgador que faça uma apreciação global da prova e, na posse de todos os elementos, então, sim, julgue a matéria de facto controvertida e decida do mérito da causa [com uma tecnicidade tão específica].
E, assim sendo, obviamente, que as respostas dadas pelos Srs. peritos neste relatório, em especial as referidas nos artigos supra não se sobrepõem à matéria fixada pelo julgador e que constituem depois a “base” fáctica que permite fazer a respectiva subsunção jurídica.
Feito este enquadramento, temos que não pratica uma boa técnica, nem obedece às leges artis o profissional de saúde que após o parto deixa ficar inadvertidamente vestígios do parto, os quais produziram fortes dores abdominais e obrigaram a A., passados quinze dias, após o parto, a ter de ser submetida a uma “raspagem”.
Mesmo tendo em conta o circunstancialismo em que decorreu este parto e o facto da criança precisar de assistência, ainda assim impunha-se ao pessoal que assistiu ao parto – 2 enfermeiras - que tivessem usado de todos os procedimentos para verificarem se algum vestígio ficava na cavidade uterina, o que não foi feito, como quinze dias depois se veio a comprovar que lá existiam.
Deste modo, e apesar do relatório pericial considerar que os vestígios de parto podem ocorrer em situação normal em qualquer tipo de parto, é nosso entendimento que o terem deixado estes vestígios constitui um comportamento ilícito e negligente por parte das enfermeiras que realizaram o parto, uma vez que, neste momento, já não lidavam com uma situação de emergência, como anteriormente, em que havia de, com rapidez, evitar a asfixia do bebé ou lesões irreversíveis por falta de oxigenação.
E mesmo o facto da criança ter nascido com Apgar 5, obrigando por isso a cuidados imediatos de reanimação, estes cuidados são prestados por outros profissionais, sendo que, em todo o caso, mostrando-se provado que foi extraída a placenta e efectuada a sutura da incisão, se impunha que verificassem se existiam outros vestígios e fizessem desde logo a imprescindível limpeza/raspagem.
Não o tendo feito, quando o podiam e deviam, dado que não existiu qualquer facto que justificasse que assim não tivessem procedido, teremos de concluir que adoptaram uma prática passível de censura jurídica ao nível da culpa e da ilicitude em violação, portanto às regras leges artis.
Face ao exposto, improcede o recurso subordinado, impondo-se a manutenção deste segmento decisório, que não padece de qualquer erro de julgamento.
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3 - DECISÃO:
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento a ambos os recursos.
Custas a cargo dos 1ºs e 2ª recorrentes quanto ao recurso principal e subordinado, respectivamente, sem prejuízo do apoio judiciário que foi concedido aos 1ºs recorrentes.
Notifique.
DN.
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Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pela relatora (cfr. artº 138º, nº 5 do CPC “ex vi” artº 1º, do CPTA).
Porto, 22 de Junho de 2012

Ass. Maria do Céu Neves

Ass. José Augusto Araújo Veloso

Ass. Ana Paula Portela - Voto vencida relativamente ao recurso subordinado já que daria provimento ao mesmo por entender que não resulta provada a negligência médica relativamente a terem sido deixado resíduos de parto na cavidade uterina.