Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00303/23.6BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/03/2024
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:RICARDO DE OLIVEIRA E SOUSA
Descritores:OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário:
I – A nulidade de sentença, por omissão de pronúncia [art. 615.º n.º 1 d) do CPC], é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito, situação que se divisa na decisão judicial recorrida.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Indeferir a arguição de nulidade do Acórdão.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos:
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I – RELATÓRIO

1. [SCom01...], LDA., com os sinais dos autos, notificada do Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 01.03.2024, que concedeu provimento ao recurso jurisdicional interposto da sentença promanada nos autos, vem atravessar requerimento destinado a interpor Recurso de Revista, dirigido ao colendo S.T.A, nele suscitando o incidente de arguição de nulidade de acórdão, por omissão de pronúncia.

2. É o seguinte o teor das conclusões do recurso de revista:”(…)

A. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), que deu provimento ao recurso intentado pelo Requerido, Município ... e revogou a decisão cautelar decretada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF Mirandela).

B. Este Acórdão do TCAN, datado de 01.03.2024, fundamenta a sua decisão, na ausência, que invoca, de apreciação do “Abuso de Direito” pelo Tribunal de 1.ª instância; substituindo-se a este e decidindo, em sentido diametralmente oposto, quanto ao concreto preenchimento do fumus boni iuris, pela impossibilidade - que refere - da ilegalidade consequencial da deliberação suspendenda, tal como convocada no âmbito da presente ação cautelar.

C. Com o devido respeito, que é muito, entende a Recorrente que o TCAN, fez uma incorreta aplicação do direito, pois que, em face da situação concreta dos autos, das razões e fundamentos expendidos na Providência Cautelar (todos, e não apenas os selecionados pelo TCAN), impunha-se uma solução jurídica diferente da produzida no Acórdão agora em crise.

D. Razão pela qual a Recorrente manifesta a sua discordância relativamente ao mérito da decisão proferida pelo TCAN e que motiva a interposição do presente recurso, de revista, para este venerando Supremo Tribunal Administrativo, nos termos previstos no artigo 150.° do CPTA e pressupostos que infra sumariamente se elencam.

E. Considera a Recorrente que o presente recurso de revista deverá ser admitido, por necessário, desde logo, para uma melhor aplicação do direito, mas também porque a matéria objeto do recurso se reveste de importante relevância jurídica e social, nos termos prescritos no n.° 1 do artigo 150.° do CPTA.

F. E começando pela necessidade de melhor aplicação do direito, tal resulta desde logo da circunstância do acórdão recorrido sustentar uma posição diametralmente divergente da do TAF de Mirandela e sempre ilegal por errónea apreciação e interpretação do artigo 120.° n.° 1 do CPTA, quanto à apreciação e verificação dos pressupostos aí consagrados e de que depende a procedência da decisão cautelar requerida,

G. Por assente na apreciação que fez de apenas um dos fundamentos invocados pela Recorrente - a questão da ilegalidade da deliberação camarária de 17.03.2023 (a ilegalidade consequencial) - eximindo-se a apreciar e decidir sobre a ilegalidade do ato suspendendo (deliberação de 16.08.2023) e, em concreto, sobre os vícios invocados: A preterição de audiência previa; a falta de fundamentação formal e substancial do ato sindicado nos autos,

H. Configurando esta omissão de pronúncia, nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no artigo 615.°, n.° 1, al. d) do CPC.

I. O Acórdão aqui em crise, limitou-se a apreciar a questão da ilegalidade da deliberação camarária de 17.03.2023 (a ilegalidade consequencial), por entender que o TAF Mirandela não apreciou a questão do abuso de direito, mas omitiu todas as demais questões com que a Recorrente fundamentou, de fato e de direito, a providência cautelar.

J. Entende, por isso, a Recorrente, que o TCAN errou na apreciação e aplicação que fez do artigo 120.° do CPTA, ao negar com a sua decisão redutora (por alicerçada apenas num dos fundamentos invocados a este título), o decretar da providência cautelar em causa, por considerar que a decisão da verificação dos seus pressupostos não pode ficar pela simples apreciação de uns e omissão de outros fatos alegados pelas partes, de forma arbitraria, como assim resulta do douto acórdão do TCAN.

K. E contra isto não se diga que o alegado abuso de direito da Recorrente (abuso que esta não aceita, mas que, por envolver também matéria de facto, não é aqui sindicável) consome os outros fundamentos que o TCAN ignora e sobre os quais o Tribunal a quo não se pronunciou, porque julgando procedente a exceção de caso julgado (no processo n.° 377/22.8BENDL), considerou aquela matéria prejudicada,

L. É que os vícios suscitados pela Recorrente na Primeira Instância e não decididos por esta, por logo o ter considerado desnecessário face à procedência da exceção de caso julgado, conduzem diretamente à nulidade do ato administrativo objeto da presente ação.

M. Ora a nulidade é do conhecimento oficioso do tribunal, estabelecida a favor do interesse público e não carecida de ser invocada por nenhum interessado, pelo que não podiam as instâncias deixar de conhecer dos outros vícios invocados e da eventual nulidade a que os mesmos conduziriam,

N. Mas não o fizeram,

O. E, não o fazendo, não se substituindo o TCAN ao TAF de Mirandela na sua apreciação, há um evidente e manifesto erro de Direito.

P. Até porque, ao reverter a decisão da Primeira Instância sobre a procedência da exceção de caso julgado, estava o TCAN obrigado a devolver o processo a essa Primeira Instância, para que esta se pronunciasse sobre a outra matéria alegada pela Recorrente, por ser esta de conhecimento oficioso.

Q. Houve, assim, uma clara omissão de pronúncia que determina - como é o caso - um claro erro de julgamento, a violação dos normativos fixados pelo legislador e uma decisão totalmente oposta à que decorre da aplicação deste artigo 120.° do CPTA.

R. A análise de todos os fatos, e a exigência desta análise, no seu todo, é que permite a correta aplicação deste normativo e concluir se estão preenchidos os pressupostos para decretar da providência cautelar.

S. O que o acórdão recorrido, não fez.

T. Razão pela qual se impõe, in casu, a necessidade de intervenção do Supremo Tribunal Administrativo para uma melhor aplicação do Direito, já que o TCAN, na decisão proferida, interpretou e aplicou, erradamente, a norma do artigo 120.° do CPTA, agindo, assim, contra o Direito.

U. Cumulativamente, a relevância jurídica e social, evidencia-se nos efeitos que o sentido das decisões sufragadas pelo Tribunal de 1ª instância e pelo Tribunal a quo - por diametralmente divergentes e opostas - pode causar na opinião pública, sem esquecer a controvérsia que se instalará relativamente a casos futuros do mesmo tipo,

V. Que justificam, por isso, a utilidade de uma decisão que extravase os limites do presente caso e que o STA elucide sobre este tema, porquanto os fatos assentes nos autos não poderão dar para fundamentar, de forma arbitrária, a verificação/não verificação dos pressupostos do artigo 120.° do CPA.

W. Quando, ainda por cima, a apreciação que se reclama que o Tribunal efetue sobre a aparência do “bom direito” necessário ao decretamento da providência cautelar, é que esta deve ser sumária e sintética, não se exigindo para o decretamento desta, um juízo de certeza - conferido pela ação principal - mas, antes, um juízo sobre o grau de probabilidade da procedência da pretensão da Requerente no processo declarativo.

X. Razão pela qual se justifica, in casu, o afastamento da regra da excecionalidade das revistas, impondo-se a necessária admissão do presente recurso.

Y. Nesta Providencia Cautelar, o TCAN decidiu reduzir a apreciação e verificação dos pressupostos previsto no artigo 120.° do CPTA - e em concreto sobre a aparência do “bom direito - a um só dos vários vícios invocados pela Recorrente e, em concreto, a deliberação camarária de 17.03.2023,

Z. Quando, até pelas razões já expostas, se exigia do TCAN que apreciados fossem, obrigatoriamente, todos os vícios da deliberação de 16.08.2023, por ser esta o ato impugnado na ação principal.

AA. Ora, neste acórdão recorrido, apenas se relevou a deliberação de 17.03.2023. Tudo o mais acabou por ser elíptico para o TCAN que se abstém de considerar que os atos decorrentes de um ato nulo, nulos são.

BB. Ora, com a devida vénia, não pode a Recorrente concordar com o juízo tecido pelo TCAN e a interpretação que faz da postura da Recorrente quanto à sobredita deliberação de 17.03.2023,

CC. Como ainda não pode aceitar que o TCAN desconsidere todos os demais fundamentos que alegou e os concretos vícios assacados à deliberação de 16.08.2023, que densificam e comprovam a verificação do requisito fumus boni iuris”.

DD. É que, do mesmo modo que o TCAN, decidiu no seu acórdão que “não tendo o Senhor Juiz a quo suprido tal nulidade, cumpre a este tribunal de recurso apreciar do invocado abuso de direito, em obediência ao disposto no artigo 149°, n.° 1 do C.P.T.A". também, e em obediência a este mesmo normativo legal, impunha-se que o mesmo TCAN, apreciasse as questões prejudiciais ou, no limite, repete-se, devolvesse o processo ao Tribunal de 1.ª instância para apreciação das questões que este, anteriormente, havia considerado prejudiciais.

EE. Considera a Recorrente ter demonstrou, de forma cabal, quanto ao requisito “fumus boni iuris”, que a deliberação de 16.08.2023, estava ferida de vícios, vários, desde logo (i) de nulidade, pela circunstância da deliberação que adjudicou estes contratos (de 17.03.2023), contrariar a decisão judicial proferida pelo TAF de Mirandela, no processo n.°337/22.8BEMDL, já transitada em julgado e (ii) De nulidade/anulabilidade, por preterição de audiência previa; falta de fundamentação formal e substancial do ato deliberativo de 16.08.2023.

FF. E que, por isso, a providência cautelar deveria ser concedida, como o foi, pelo TAF de Mirandela,

GG. E nunca revogada por este Acórdão recorrido, que fundamenta a sua decisão no seu entendimento quanto aos “comportamentos da Recorrente”, que é muito pouco, insiste-se, para sustentar o sentido da decisão. É que, além do que já se disse sobre os vícios invocados serem do conhecimento oficioso e não poderem, em caso algum, deixar de ser apreciados, acresce que a decisão recorrida incorreu, ainda, em erro de julgamento, ao decidir revogar a decisão do Tribunal de Mirandela e julgar improcedente a presente providência cautelar, tendo por referência, e apenas, uma deliberação de 17.03.2023, que não a deliberação sindicada nos autos,

HH. MAIS, como fundamento para a tutela cautelar que requereu, e para além de defender a nulidade do ato, nos termos vindos de evidenciar, a Recorrente alegou, ainda, outros factos que tornam o ato suspendendo (praticado pelo executivo camarário em 16.08.2023), anulável, por padecer de vícios, vários: Desde a falta de fundamentação do ato/errada fundamentação e falta de pressupostos para tal decisão, exigidos nos artigos 333.° e 405.°, ambos do CCP; até à preterição da audiência prévia (Cfr. artigos 50.° a 84.°).

II. Note-se, que a apreciação destes vícios é completamente independente da posição e da legitimidade da aqui Recorrente para arguir os efeitos do caso julgado na anulação da deliberação objeto do processo número 337/22.8BEMDL.

JJ. É que, ainda que a Recorrente carecesse de legitimidade para arguir aqueles efeitos (o que só por mera hipótese académica e dever de patrocínio se concede), subsistiam os seguintes factos: (i) a Recorrente foi contratada para executar uma obra pública; (ii) Iniciou a respetiva execução; (iii) o dono de obra (o Município) decidiu resolver os contratos, sem fundamentar as razões dessa resolução e (iv) sem, sequer, conceder à Recorrente o obrigatório exercício do direito de audiência prévia, ameaçando participar - sem oposição nem direito de defesa - a sua posição ao IMPIC, prejudicando assim gravemente a imagem e o crédito da Recorrente.

KK. Relevante, neste contexto, é que o Município ... não resolveu o contrato com fundamento na impossibilidade física ou legal do seu objeto. E era apenas com base neste fundamento que, em abstrato, se podia discutir a legitimidade ou ilegitimidade da Recorrente para impugnar esse ato por, supostamente, ter sido dele beneficiária.

LL. O Município ... resolveu o contrato, invocando (sem fundamentar) o respetivo incumprimento.

MM. E contra este ato não pode a Recorrente deixar de ter o direito de ser ouvida, de exercer o contraditório e de ver apreciados os argumentos aduzidos no exercício desse direito ao contraditório.

NN. Ora, nada disto aconteceu.

OO. O Tribunal a quo decidiu que a Recorrente não podia invocar os efeitos do caso julgado e, com base nessa decisão, desconsiderou tudo o mais, como se os demais meios de defesa e argumentos aduzidos na Providência intentada fossem uma mera decorrência acessória daquele primeiro fundamento. Não eram.

PP. Constituíam, também eles, elementos decisivos para fundar os direitos da Recorrente. A Primeira Instância não se pronunciou sobre eles, porque os considerou prejudicados pela sua decisão inicial de decretamento da procedência da exceção de caso julgado.

QQ. Revogada pelo TCAN esta decisão, renascem e subsistem as demais causas de pedir aduzidas pela Recorrente. Causas materiais que se prendem com a negação da existência de qualquer incumprimento da sua parte.

RR. Independentemente da questão formal das consequências da declaração judicial de nulidade da deliberação de 17.03.2023 e da legitimidade da Recorrente para invocar essas consequências, subsistem as razões materiais invocadas para justificar a ausência do incumprimento da Recorrente e o vício de violação de lei, consubstanciado na preterição da formalidade essencial de concessão à Recorrente do exercício do direito de audição prévia.

SS. Estas razões não foram apreciadas nem pela Primeira Instância nem pelo TCAN. E não podiam deixar de o ser.

TT. Houve, pois, uma grave omissão de pronúncia.

UU. Ainda mais, Apesar do Acórdão recorrida fixar no Ponto 37 da sua decisão que "... resulta inequívoca a inexistência de qualquer excesso manifesto suscetível de integrar abuso do seu direito no tocante ao exercício do direito de ação, aferido na vertente da ilegalidade própria da deliberação suspendenda”, que, por isso, exigiria sempre deste Tribunal a quo, pronuncia sobre todos os vícios que a Recorrente assacou ao ato suspendendo (o proferido em 16.08.2023, repete-se),

VV. Logo de seguida refere que “A mesma asserção, porém, não é atingível no tocante ao exercício do direito de ação com reporte à alegação de ilegalidade consequencial da deliberação suspendenda" (Ponto 38) e que “...os comportamentos da Requerente/Recorrida traduzidos na (i) aceitação da adjudicação concursal; (ii) celebração dos contratos de empreitada n°.s 11/2023 e 12/2023; e a (iii) permanência em obra durante quase 4 meses na prossecução da atividade de execução de tais empreitadas são plenamente incompatíveis com a invocação atual de ilegalidade da deliberação suspendenda com fundamento em violação do caso julgado operado no processo n°. 377/22.8BEMDL". Ponto 39 do Acórdão do TCAN.

WW. O que não corresponde à verdade, antes falsas tais considerações.

XX. Repondo a verdade, a Recorrente aceitou a adjudicação da empreitada dos autos; celebrou os respetivos contratos; aceitou a consignação das obras em 16.06.2023 e deu início à execução das obras no dia 20.06.2023, por estar convicta da plena legalidade dos procedimentos concursais e da decisão da Câmara Municipal tomada na reunião de 17.03.2023, porque acreditou que o Município cumpriu com todas as normas e procedimentos concursais.

YY. Ademais, a invocada ilegalidade da adjudicação desta empreitada - confirmada nos autos pelo TAF de Mirandela - apenas chegou ao conhecimento da Recorrente logo após o início da obra, pelo que a Recorrente nunca poderia invocar tal ilegalidade “antes e na data da prática da mesma e recusar a adjudicação e a contratualização da execução das empreitadas ..."como resulta do aresto aqui em crise.

ZZ. Daí jamais poder a Recorrente ser acusada de exceder os limites impostos pela boa- fé e de atuar em abuso de direito, nos termos do artigo 334.°, do Código Civil, na modalidade de venire contra factum próprio

AAA. E, nunca por nunca o Tribunal a quo decidir que a ilegalidade da deliberação de 17.03.3023, não pode ser invocada pela Recorrente, por abuso de direito.

BBB. Por tudo o que vem exposto, dúvidas não podem restar, que o Tribunal a quo, errou, de direito, ao decidir contra legem (por clara violação do artigo 120.° do CPTA), pela revogação da sentença proferida pelo Tribunal de Mirandela, e julgar improcedente a presente providência cautelar, sendo sempre tal aresto do TCAN nulo, por omissão de pronúncia quanto aos vícios invocados do ato suspendendo (a deliberação de 16.08.2023),

CCC. Razão pela qual, a decisão recorrida terá de ser revogada e novamente decretada a providência cautelar dos autos (…)”.


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Notificado da interposição do presente recurso de revista, o Recorrido Município ... produziu contra-alegações, defendendo a rejeição do presente recurso de revista ou, quando assim não se entenda, a improcedência do mesmo.

Não se antolham obstáculos de natureza adjetiva - legitimidade e tempestividade - impeditivos nesta sede de admissão da revista.


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II – DA NULIDADE DO ACÓRDÃO SOB REVISTA

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3. Vem a Recorrente arguir a nulidade do Acórdão proferido nos autos, por omissão de pronúncia.

Invocou, para tanto, no mais essencial, que “(…) O Acórdão aqui em crise, limitou-se a apreciar a questão da ilegalidade da deliberação camarária de 17.03.2023 (a ilegalidade consequencial), por entender que o TAF Mirandela não apreciou a questão do abuso de direito, mas omitiu todas as demais questões com que a Recorrente fundamentou, de fato e de direito, a providencia cautelar (…)”

Vejamos, sublinhando, desde já, que, conforme o art. 608.º n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), “(…) O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, (...).”

A inobservância de tal comando é, como se sabe, sancionada com a nulidade da sentença: art. 615º, n.º 1 al. d) CPC.

O exato conteúdo do que sejam as questões a resolver de que falam tais normativos foi objeto de abundante tratamento jurisprudencial.

Destaca-se, nesta problemática, o Acórdão produzido por este Tribunal Central Administrativo Norte de 07.01.2016, no processo 02279/11.5BEPRT, cujo teor ora parcialmente se transcreve: “(…)

As causas determinantes de nulidade de decisões judiciais correspondem a irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua validade encontrando-se tipificadas, de forma taxativa, no artigo 615.º do CPC. O que não se confunde, naturalmente, com errados fundamentos de facto e/ou de direito.

Determina o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 1.º do CPTA, que a nulidade por omissão de pronúncia ocorre “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Este preceito relaciona-se com o comando ínsito na primeira parte do n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, e não todos e cada um dos argumentos/fundamentos apresentados pelas partes, e excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras – cfr. Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão); e os acórdãos, entre outros, do STA de 03.07.2007, rec. 043/07, de 11.9.2007, recurso 059/07, de 10.09.2008, recurso 0812/07, de 28.01.2009, recurso 0667/08, e de 28.10.2009, recurso 098/09 de 17/03/2010, rec. 0964/09).

Do mesmo modo estipula o artigo 95.º do CPTA que “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, o tribunal deve decidir, na sentença ou acórdão, todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras”.

Questões, para este efeito, são pois as pretensões processuais formuladas pelas partes no processo que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os específicos de qualquer ato (processual), quando realmente debatidos entre as partes – cfr. Antunes Varela in RLJ, Ano 122.º, p. 112 – a decidir pelo Tribunal enquanto problemas fundamentais e necessários à decisão da causa – cfr. Teixeira de Sousa in “Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, Lx 1997, págs. 220 e 221.

Exige-se pois ao Tribunal que examine toda a matéria de facto alegada pelas partes e analise todos pedidos formulados por elas, com exceção das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se torne inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões – cfr. M. Teixeira de Sousa, ob. e pp. cits.”.

Posição que se manteve no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 20.10.2017, no Procº. n.º 00048/17.6, que: “(…) A questão está desde logo em saber se o tribunal se deixou de pronunciar face ao suscitado e, em qualquer caso, se teria de o fazer.

Referiu a este propósito o STJ, no seu acórdão de 21.12.2005, no Processo n.º 05B2287 que:

“A nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (art. 668º nº 1 d) do CPC), traduzindo-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever consignado no art. 660º nº 2 - 1ª parte - do CPC, só acontece quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes das posições dos pleiteantes, nomeadamente as que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções (excetuados aqueles cuja decisão esteja prejudicada por mor do plasmado no último dos normativos citados), não, pois, quando tão só ocorre mera ausência de discussão das "razões ou dos "argumentos" invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas.”

Como se refere no Acórdão, desta feita do STA nº 01035/12, de 11-03-2015, “a nulidade de sentença por omissão de pronúncia só ocorre quando o tribunal deixar de apreciar questão que devia conhecer (artigos 668.º, n.º 1, alínea d) e 660.º, n.º 2 do Código de Processo Civil revogado, aplicável no caso sub judice).

(…)

Resulta também do artº 95º, nº 1, do CPTA que, sem prejuízo do disposto no número seguinte, o tribunal deve decidir, na sentença ou acórdão, todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras.

Como este Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo, haverá omissão de pronúncia sempre que o tribunal, pura e simplesmente, não tome posição sobre qualquer questão que devesse conhecer, inclusivamente, não decidindo explicitamente que não pode dela tomar conhecimento – cf. neste sentido Acórdãos de 19.02.2014, recurso 126/14, de 09.04.2008, recurso 756/07, e de 23.04.2008, recurso 964/06.

Numa correta abordagem da questão importa ainda ter presente, como também vem sublinhando de forma pacífica a jurisprudência, que esta obrigação não significa que o juiz tenha de conhecer todos os argumentos ou considerações que as partes hajam produzido. Uma coisa são as questões submetidas ao Tribunal e outra são os argumentos que se usam na sua defesa para fazer valer o seu ponto de vista.

Sendo que só têm dignidade de questões as pretensões processuais formuladas pelas partes ao tribunal e não os argumentos por elas usados em defesa das mesmas, não estando o tribunal vinculado a apreciar todos os argumentos utilizados pelas partes.”

Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no Acórdão do S.T.A. de 12.06.2018 [processo n.º 0930/12.7BALSB], consultável em www.dgsi.pt: “(…)

24. Caraterizando a arguida nulidade de decisão temos que a mesma se consubstancia na infração ao dever que impende sobre o tribunal de resolver todas as questões que as partes hajam submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja ou fique prejudicada pela solução dada a outras [cfr. art. 608.º, n.º 2, CPC].

25. Com efeito, o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos/pretensões pelas mesmas formulados, ressalvadas apenas as matérias ou pedidos/pretensões que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se haja tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões.

26. Questões para este efeito são, assim, todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que exigem decisão do julgador, bem como, ainda, os pressupostos processuais [gerais e específicos] debatidos nos autos, sendo que não podem confundir-se aquilo que são as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com o que são as razões de facto ou de direito, os argumentos, ou os pressupostos em que cada a parte funda a sua posição nas questões objeto de litígio (…)”.

Munidos destes considerandos de enquadramento jurisprudencial, considera-se que o aresto promanado nos autos não violou as normas processuais citadas.

Na verdade, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, conforme o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

Pois bem, escrutinado o teor das conclusões do recurso interposto pela Recorrente, facilmente se apreende que o “objeto confesso” do mesmo era composto pelas questões decidendas de saber se a sentença recorrida enfermava de (i) nulidade de sentença, por omissão de pronúncia; (ii) de erro de julgamento de facto, por errada apreciação e fixação da matéria de facto; e (iii) ainda de erro de julgamento de direito quanto à decidida verificação dos legais requisitos de que depende a concessão da tutela cautelar requerida nos autos.

Ora, conforme se extrai inequivocamente do aresto censurado, essas questões decidendas foram, efetivamente, objeto de pronúncia efetiva por parte deste Tribunal Superior, não se divisando, por isso, quanto a estas, a existência de qualquer nulidade de sentença, por omissão de pronúncia.

Com reporte ao invocado erro de julgamento de direito quanto à decidida verificação dos legais requisitos de que depende a concessão da tutela cautelar requerida nos autos, cabe notar que a Requerente, aqui Recorrente, por intermédio da presente providência cautelar, visa[va] a suspensão de eficácia da “(…) Da deliberação da Câmara Municipal ..., de 16.08.2023, que decidiu, para além do mais, resolver os contratos de empreitada n.º 11/2023 e 12/2023, e suas adendas, celebrados em 23 de março de 2023, referentes à empreitada “Parque ... – (…)”.

Assim, para que procedesse a pretensão cautelar da Requerente, era necessária a verificação cumulativa dos seguintes legais pressupostos de que depende a concessão das providências cautelares, a saber: o (i) periculum in mora; o (ii) fumus boni iuris; e a (iii) ponderação de interesses [cfr. artigo 120º, nº.1 e 2 do CPTA].

Não bastava, portanto, a verificação de (i) perigo na demora da decisão judicial, tornando-se ainda necessário a (ii) aparência do bom direito e a (iii) majoração acrescida do interesse particular face ao interesse público.

No quadro que se vem de assinalar, assoma evidente que a inverificação de qualquer dos supra aludidos requisitos, mormente o da aparência do bom direito, determina a prejudicialidade do conhecimento dos demais legais requisitos de que depende a concessão da tutela cautelar.

Ora, tendo o Tribunal a quo considerado que “(…) o exercício do direito de ação aferido na vertente de ilegalidade consequencial da deliberação suspendenda situa-se fora do seu objetivo natural e da razão objetiva da sua existência em termos manifestamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico, configurando, assim, um claro abuso de direito (…)”, e, nessa medida, concluído “(…) que a supressão da possibilidade de invocação da ilegalidade consequencial atinge a sentença recorrida no seu âmago, ferindo-a com erro de julgamento de direito quanto à decidida verificação do requisito do fumus boni iuris (…)”, resulta evidente que não se verifica qualquer omissão de pronúncia, uma vez que esta não se abrange as questões submetidas pelas partes cujo conhecimento resulte prejudicado pela solução dada a outras, como sucede no caso dos autos.

Não se divisa, portanto, a existência de qualquer nulidade de sentença, com fundamento em omissão de pronúncia.

Poderemos questionar-nos, ademais e especialmente, se o assim decidido é o mais correto e adequado em face das questões envolvidas.

Mas tal interrogação não se insere no vício de nulidade de sentença, por omissão de pronúncia, antes se incluindo no âmbito de eventual erro de julgamento.

De facto, e facto, saber se o Tribunal a quo decidiu com acerto, ou se pelo contrário fez incorreta interpretação e/ou aplicação da lei, são questões que já não contendem com a nulidade da sentença, mas sim com o erro de julgamento - este, traduzindo uma apreciação da questão em desconformidade com a lei [vd. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., p. 686, sublinham que não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário].

Derradeiramente, saliente-se que, tal como já assinalado no parágrafo 28) do aresto recorrido, o eventual conhecimento dos demais vícios imputados ao ato suspendendo em sede de recurso estava dependente da ampliação do objeto do recurso por parte da Recorrida [SCom01...], Lda.

De modo que, se esta optou por não o fazer, sibi imputet, não podendo, por isso, vir agora, reclamar o conhecimento adicional de tais vícios.

Concludentemente, o acórdão sob censura não padece da assacada nulidade de sentença fundada na violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, a qual improcede.


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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em:

(i) JULGAR INVERIFICADA a nulidade invocada no recurso jurisdicional interposto do acórdão proferido por este Tribunal Central Administrativo Norte em 01.03.2024; e

(ii) ORDENAR A REMESSA dos autos ao Colendo Supremo Tribunal Administrativo para a apreciação preliminar e sumária prevista no art.º 150.º n.ºs 1 e 6, do C.P.T.A., quanto ao recurso de revista interposto nos autos.

Notifique-se.


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Ricardo de Oliveira e Sousa

Tiago Afonso Lopes de Miranda

Clara Ambrósio

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Decisão Texto Integral: