Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00532/04.1BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/18/2007
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Drº José Luís Paulo Escudeiro
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE POR ACTOS LÍCITOS
PREJUÍZO EFECTIVO CARÁCTER ESPECIAL E ANORMAL
SACRIFÍCIO ESPECIAL
Sumário:I - A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público no domínio dos actos de gestão pública encontra-se regulada pelo DL 48 051, de 21.NOV.67.
II-Tal responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas compreende a responsabilidade por actos ilícitos culposos, a responsabilidade por factos casuais e a responsabilidade por factos lícitos, regulada sob os artºs 2º e 3º, 8º e 9º daquele diploma legal, respectivamente.
III- No domínio da responsabilidade por actos ilícitos culposos, o Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício. É a chamada responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas colectivas públicas - Cfr. artº 2º do DL 48 051.
IV - Por seu lado, a responsabilidade por factos lícitos encontra o seu regime disciplinado pelo artº 9º, ainda, do DL 48 051.
V- Dispõe o nº 1 desse normativo legal que, o Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais (prejuízo efectivo de carácter especial e anormal).
VI - Por seu lado o nº 2 do mesmo preceito legal, estatui que quando o Estado e demais pessoas colectivas públicas tenham, em caso de necessidade e por motivo de imperioso interesse público, de sacrificar especialmente, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro, deverão indemnizá-lo (sacrifício especial de coisa ou direito de um particular).
VII - Tal responsabilidade assenta no princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos e exige-se a existência de um sacrifício especial não imposto à generalidade das pessoas e que não seja inerente aos riscos da vida em sociedade, condicionando-se o dever de indemnizar à verificação da existência dos requisitos da especialidade e da anormalidade do prejuízo.
VIII - Assim, em matéria de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, fundada em actos lícitos, só há obrigação de indemnizar os prejuízos especiais e anormais, considerando-se como tais aqueles que não sejam impostos a uma generalidade de pessoas, mas a pessoa certa e determinada, em razão de uma determinada posição relativa, e que não possam considerar-se como um risco normalmente suportado por todos os cidadãos, decorrente da vida em sociedade.
IX - Diferentemente, tratando-se de danos comuns e normais, entendendo-se como tais os que recaem genericamente sobre todos os cidadãos ou sobre categorias amplas e abstractas de pessoas e considerados habituais e aceitáveis dentro do mínimo risco próprio da vida em sociedade, não há, por parte da Administração Pública obrigação de indemnizar.
X - A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, na modalidade de responsabilidade por actos lícitos, pressupõe, assim, a existência de um acto de gestão pública lícito, a sua imputação a um agente (responsabilidade civil subjectiva), a verificação de danos e a qualificação destes como especiais e anormais, e a existência de um nexo de causalidade entre o acto lesivo e os dano - Cfr. artºs 9º do DL 48 051, de 21.NOV.67, e 483º, 487º-2, 564º e 563º do C.C..
XI - As obras levadas a cabo por autarquias locais consistentes na melhoria e beneficiação de via pública, mais propriamente de alargamento de um caminho municipal e na colocação de piso em betuminoso, confrontante com prédio particular, que determinaram o corte duma rampa ali existente, de acesso ao interior do prédio, nomeadamente ao seu logradouro, e que criaram um desnível com a altura que oscila entre 0,10 m junto à estrada e cerca de 0,60 m junto à parede do prédio, e que elevaram o nível do piso, configuram-se como operações materiais de gestão pública lícitas levadas a cabo no âmbito das suas atribuições legais.
XII - Os danos por elas causados configuram-se como especiais uma vez que afectam apenas o proprietário do prédio confrontante com a via pública intervencionada, dada a repercussão que neste tiveram, em termos de acessibilidade, tendo afectado de modo especial a esfera jurídica do proprietário, em questão, acarretando-lhe um sacrifício inequitativo com relação aos demais utentes da via pública, em causa.
XIII - Provocando aquelas obras o encrave do prédio confinante com a via pública, tal constrangimento configura-se como impeditivo do uso e fruição do imóvel, de acordo com a sua finalidade, sem que a realização de obras a efectuar pelo A. possam repor na sua plenitude o gozo e fruição do seu imóvel, nas condições e com as utilidades associadas à sua função.
XIV - Neste quadro, o dano sofrido, para além de especial deve qualificar-se também como anormal, sendo, nessa medida, e perante a existência de um nexo de causalidade adequada entre as obras e o dano, indemnizável nos termos previstos no art. 9º do DL nº 48 051.*

*Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:06/29/2006
Recorrente:Município de Oliveira de Azeméis e Freguesia de Cesar
Recorrido 1:C...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Conceder provimento ao recurso
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do TCAN:
I- RELATÓRIO
Freguesia de César e Município de Oliveira de Azeméis, inconformados com a sentença do TAF de Viseu, datada de 13.FEV.06, que, em ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM, oportunamente, contra eles interposta por C..., residente na Rua ..., Espinho, os condenou no pedido, recorreram para o TCAN, formulando as seguintes conclusões:
I. O Município de Oliveira de Azeméis e a Freguesia de César procederam ao corte e supressão de uma rampa de acesso à propriedade do A. por carro de bois e tractor, rampa essa que estava construída sobre a via municipal e que ocupava parte desta via;
II. Esta actuação teve lugar quando as recorrentes procederam à execução de obras de beneficiação da via através da sua pavimentação com tapete betuminoso, e constitui o exercício de um poder/dever, ou, mais propriamente, o exercício de uma competência exclusiva das Autarquias – v. artºs 14º, 16º, al. b), 18º, nº 1, al. c), da Lei 159/99; 34º, nº 3, al. f) e nº 6, al. n), 64º, nº 3, al. f) e nº 7, al. b), da Lei 169/99; artº 2º do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei nº 2110, de 19.8.1965;
III. A actuação do Município e da Freguesia são, por isso, lícitos, e correspondem ao exercício de atribuições e competências que a lei lhes confere;
IV. A decisão recorrida fez errada interpretação da lei aos factos ao considerar a actuação dos recorrentes como constituindo um facto ilícito e culposo subsumível nos artºs 2º e 4º do D.L. 48 051 e 483º do Código Civil;
V. A situação em apreço, isto é da actuação dos recorrentes, porque lícita, poderia eventualmente decorrer responsabilidade nos termos do disposto nos artºs 8º e 9º;
Porém,
VI. O dever indemnizatório por actos lícitos regulado pelos artºs 8º e 9º do D.L. 48 051 tem exclusivamente por objecto “prejuízos especiais e anormais resultantes do funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos” e desde que inexista culpa da vítima ou terceiros;
Ora,
VII. A rampa construída pelo A. em cima da via não foi autorizada nem licenciada pelo município, não sendo, e ainda que autorizada só o poderia ter sido a título precário atento o disposto no artº 62º do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais;
VIII. De resto a existência da rampa em apreço é proibida por lei, designadamente pelos artºs 39º, nºs 1 e 4, 5 e 12 do Regulamento citado;
IX. A lei – artº 62º do mesmo Regulamento – afasta expressamente a possibilidade de indemnização pela supressão da rampa;
X. Por imperativo legal decorrente das referidas disposições, não pode ser atribuída qualquer indemnização ao A.;
XI. A douta decisão fez errado enquadramento legal dos factos,
XII. E violou os artºs 8º e 9º (e 2º e 4º) do D.L. 48 051, 483º do C.C.; 39º, nºs 1, 4, 5 e 12 e 62º do Regulamento aprovado pela Lei nº 2110;
XIII. Pelo que deve ser revogada.
Caso assim se não entenda,
XIV. Deverá então revogar-se o despacho que indeferiu a reclamação dos R.R. de aditamento à Base Instrutória da matéria alegada nos nºs 29 e 30 da p.i.;
XV. Afim de se apurar se o A. tinha ou não autorização dos R.R. para construir e manter a rampa sobre a via, o que constitui matéria da maior relevância por força do disposto nos artºs 8º e 9º do D.L. 48 051;
XVI. Pois que, na ausência de autorização/licença a supressão da rampa constitui reposição da legalidade, como constitui (a ausência de autorização ou licença) facto culposo do A. que exclui o direito de indemnização que invoca;
Consequentemente,
XVII. Deve ser revogado o despacho que indeferiu a reclamação à Base Instrutória, o que implica a da sentença por força do regime da nulidade dos actos.
Finalmente,
XVIII. Ao A. não assiste o direito de pedir a reposição do acesso ao rés-do-chão do prédio, pois que tal implica alteração do arruamento e das condições de circulação, pelo que também nesta parte a decisão recorrida deve ser revogada.
O Recorrido contra-alegou tendo pugnado pela improcedência do recurso.
O Dignº Procurador-Geral Adjunto emitiu pronúncia nesta instância, no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, o processo é submetido à Secção do Contencioso Administrativo para julgamento do recurso.

II- QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
O erro de julgamento com violação do disposto nos artºs 2º, 4º, 8º e 9º do D.L. 48 051, de 21.NOV.67; 483º do CC; e 39º, nºs 1, 4, 5 e 12 e 62º do Regulamento aprovado pela L 2110, de 19.AGO.65.

III- FUNDAMENTAÇÃO
III-1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1 - 0 prédio de casas de habitação com um pavimento, com pátio, eira, casa da eira, sito no lugar de Vilarinho, da freguesia de César, do concelho de Oliveira de Azeméis, a confrontar do norte com o caminho público, do sul e nascente com terreno do A. e do poente com o rego foreiro, descrito na Conservatória sob o n° 5 da freguesia de César e inscrito na matriz sob o artigo 270, urbano, da mesma freguesia, de que é dono e legítimo proprietário o Autor – Alínea A) da Matéria Assente.

2 - O prédio identificado na alínea A) foi adjudicado na escritura de habilitação e partilha por óbito do pai do A., C..., outorgada no 1° Cartório da Secretaria Notarial da Feira em 26.03.1987 constante do livro n° 1073-A a partir de fls. 133 - Alínea B) da Matéria Assente.

3 - O mesmo prédio está identificado na verba n° 50 do documento elaborado nos termos do art. 78° do Cod. Notariado – Alínea C) da Matéria Assente.

4 - O prédio identificado em A) confronta pelo seu lado norte, com a estrada, hoje denominada de Rua Nossa Senhora da Esperança – Alínea D) da Matéria Assente.

5 – Os RR. procederam à melhoria e beneficiação da via identificada na alínea D) – Alínea E) da Matéria Assente.

6 - A estrada, hoje denominada de Rua Nossa Senhora da Esperança, foi recentemente melhorada pelas autarquias Rés em conjunto, melhoramento que consistiu no alargamento do caminho e na colocação de piso em betuminoso – Resposta ao artigo 1.º da Base Instrutória.
7 - Antes da realização das obras levadas a cabo em conjunto por ambas as Rés, o piso do caminho era em calçada – Resposta ao Artigo 2.º da Base Instrutória.
8 - Para proceder ao alargamento do caminho, as RR, procederam ao corte duma rampa que havia, com cerca de 2,40 m. de largura, ligeiramente inclinada em sentido ascendente a partir da estrada ou caminho e sobre a qual sempre passaram carros de bois e tractores para acesso ao interior do mesmo prédio, nomeadamente ao seu logradouro – Resposta ao Artigo 3.º da Base Instrutória.
9 - Em consequência de tal obra, feita pelas RR., com o corte da rampa, foi criado um desnível com a altura que oscila entre 0,10 m junto à estrada e cerca de 0,60 m junto à parede da casa – Resposta ao Artigo 4.º da Base Instrutória.
10 - Com o corte da rampa não é possível a utilização do acesso de carros de bois e tractores ao interior do prédio, nomeadamente ao seu logradouro – Resposta ao Artigo 5.º da Base Instrutória.
11 - Antes das obras identificadas no artigo 1.º sempre que havia necessidade, o acesso era feito pela rampa – Resposta ao Artigo 6.º da Base Instrutória.
12 - Ao construírem o piso em betuminoso ao longo da parede do lado norte da casa, as RR. elevaram o nível do piso, impedindo o acesso à casa (parte mais baixa) através dum portão em chapa, com duas folhas – Resposta ao Artigo 7.º da Base Instrutória.
13 - O edifício é de condições e materiais modestos, não possui reboco ou pintura nem massas grossas, existindo fendas na parede exterior do prédio – Resposta ao Artigo 10.º da Base Instrutória.

III-2. Matéria de direito
Constitui objecto do presente recurso jurisdicional, determinar se a factualidade constante dos autos deve merecer ser enquadrada em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público no domínio dos actos de gestão pública, por actos ilícitos e culposos, regulada sob os artº s 2º e 3º do DL 48 051, de 21.NOV.67, ou antes no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público no domínio dos actos de gestão pública, por actos lícitos, regulada sob os artºs 8º e 9º do mesmo diploma legal; e, em ambas as situações, saber se assiste no caso sub judice o dever de indemnização.
A sentença recorrida enquadrou o caso dos autos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público no domínio dos actos de gestão pública, por actos ilícitos e culposos, regulada sob os artºs 2º e 3º do DL 48 051.
É a seguinte a fundamentação da sentença proferida pelo Tribunal a quo:

“(...)

A lei aplicável aos presente autos é o D.L. n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, designadamente, o disposto no art. 2.º e 4.º, os quais apresentam como pressupostos, no essencial, e de acordo com jurisprudência constante do STA, os estatuídos na lei civil, ou seja, no art. 483º e seguintes do Código Civil onde se dispõe que só há responsabilidade civil se se verificarem, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
O facto: aquele que é dominável ou controlável pela vontade do órgão ou seu agente, no exercício das suas funções e por causa delas, excluindo assim os factos naturais;
a ilicitude: a violação ou desrespeito de um direito subjectivo ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios; pese embora este pressuposto e a culpa sejam realidades distintas e com regimes diferentes, quando, como “in casu”, é violado o dever de boa administração através de uma conduta ilegal, o elemento culpa dilui-se na ilicitude, assumindo aquela o aspecto subjectivo da ilicitude que se traduz então na culpabilidade do agente por ter violado regras jurídicas ou de prudência que tinha obrigação de conhecer ou de adoptar – Acs. do STA de 08-07-1999 e de 26-11-1998).
a culpa: revista a forma de dolo ou mera culpa, pelo que se impõe saber se o agente podia e devia ter agido de modo diferente; respeitando a facto negativo, omissão do dever de previsão ou do dever de prevenção, implica sempre o conhecimento (ou não conhecimento com omissão do dever de diligência exigível) da situação omissa; a conduta culposa é assim entendida como o nexo de imputação ético-jurídica, que, na forma de mera culpa, traduz a censura dirigida ao autor de facto por não ter usado da diligência que teria o homem normal - o “bónus pater familiae” - perante as circunstâncias do caso concreto, daquela que teria um funcionário ou agente típico, sendo a culpa dos órgãos e agentes da Administração apreciada abstractamente (art. 4º do DL n.º 48051, de 21/11/67 que remete para o art. 487º do CC; Ac. do STA, de 10-01-87, in AD 310-1243; Ac. de 27-01-87, in AD 311 e Ac. de 29.01.91, in AD 359) mas tendo sempre presente a submissão destes ao principio da legalidade.
o dano: a existência de danos patrimoniais ou de danos não patrimoniais, desde que revistam a forma de um prejuízo causado a outrem.
o nexo de causalidade: entre a prática do facto (acto ou omissão) e o dano apurado segundo a teoria da causalidade adequada, tal teoria foi acolhida pela doutrina e que tem assento na Lei (cfr. art. 563º do CC que a consagrou na formulação negativa proposta por Ennecerus-Lehman).
Uma vez identificadas as coordenadas, os factos e o direito, nas quais se alicerça a decisão das questões que vêm submetidas à apreciação deste Tribunal, importa averiguar, em face das circunstâncias concretas, se se mostram preenchidos todos os requisitos legais para que se verifique a obrigação de indemnizar, e em caso afirmativo, determinar qual o seu “quantum”.
Para o efeito mostra-se necessário ter presente que de acordo com o disposto nos arts. 487º, 493º, 342º e 350º do CC, ao lesado cabe provar a culpa do autor da lesão, a menos que, se esteja perante uma presunção legal de culpa, o que ocorre em concreto (cfr. art. 4º do D.L. n.º 48051 de 21/11/1967, art. 487º e 493º do CC e art. 96º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro com a redacção actualizada).
Para proceder ao alargamento do caminho, as RR, procederam ao corte duma rampa que havia, com cerca de 2,40 m. de largura, ligeiramente inclinada em sentido ascendente a partir da estrada ou caminho e sobre a qual sempre passaram carros de bois e tractores para acesso ao interior do prédio do Autor, nomeadamente ao seu logradouro e em consequência de tal obra, foi criado um desnível com a altura que oscila entre 0,10 m junto à estrada e cerca de 0,60 m junto à parede da casa, não sendo possível a utilização do acesso de carros de bois e tractores ao interior do prédio, nomeadamente ao seu logradouro. Por outro lado, ao construírem o piso em betuminoso ao longo da parede do lado norte da casa, as RR. elevaram o nível do piso, impedindo o acesso à casa (parte mais baixa) através dum portão em chapa, com duas folhas.
Ora, o interesse público que se pretendia alcançar com o novo pavimento do caminho era beneficiar o acesso das pessoas e bens às habitações servidas por ele e não em prejudicar os bens dos particulares.
Resulta dos autos que o Autor sofreu danos na sua propriedade provocados pelas obras levadas a efeito pelos RR., considerando-se ilícita e culposa a sua actuação nos factos descritos.
E sempre se dirá que nenhuma culpa pode ser imputada ao A. atento as circunstâncias fácticas dadas por provadas.
Pelo exposto e, sem necessidade de mais considerações, entendemos estarem verificados os pressupostos, facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade, pressupostos estes de que depende a obrigação de reparar.
(...)”.
Contra tal entendimento insurgem-se os Recorrentes, alegando, sumariamente o seguinte:

“(...)

O Município de Oliveira de Azeméis e a Freguesia de Cesar procederam ao corte e supressão de uma rampa de acesso à propriedade do A. por carro de bois e tractor, rampa essa que estava construída sobre a via municipal e que ocupava parte desta via.
Esta actuação teve lugar quando os Recorrentes procederam à execução de obras de beneficiação da via através da sua pavimentação com tapete betuminoso, o que constitui o exercício de uma competência exclusiva das Autarquias – Cfr. artºs 14º, 16º-. b) e 18º-1- c) da Lei 159/99; 34º-3-f) e 6- n), 64º-3-f) e 7-b) da Lei 169/99, de e 2º do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei nº 2110, de 19.AGO.65.
A actuação do Município e da Freguesia é, por isso, lícita e corresponde ao exercício de atribuições e competências que a lei lhes confere;
Da actuação dos Recorrentes, porque lícita, poderia eventualmente decorrer responsabilidade nos termos do disposto nos artºs 8º e 9º do DL 48 051.
Acontece que, o dever indemnizatório por actos lícitos regulado pelos artºs 8º e 9º do D.L. 48 051 tem exclusivamente por objecto “prejuízos especiais e anormais resultantes do funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos” e desde que inexista culpa da vítima ou terceiros;
Ora, no caso dos autos, a rampa construída pelo A. em cima da via não foi autorizada nem licenciada pelo município, e ainda que autorizada só o poderia ter sido a título precário atento o disposto no artº 62º do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais.
De resto a existência da rampa em apreço é proibida por lei, designadamente pelos artºs 39º, nºs 1 e 4, 5 e 12 do Regulamento citado.
Com efeito, o aquele normativo legal afasta expressamente a possibilidade de indemnização pela supressão da rampa, pelo que, não poderá ser atribuída qualquer indemnização ao A..
(...)”.
Vejamos se assiste razão aos Recorrentes.
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público no domínio dos actos de gestão pública encontra-se regulada pelo DL 48 051, de 21.NOV.67.
Tal responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas compreende a responsabilidade por actos ilícitos culposos, a responsabilidade por factos casuais e a responsabilidade por factos lícitos, regulada sob os artºs 2º e 3º, 8º e 9º daquele diploma legal, respectivamente.
Assim, no domínio da responsabilidade por actos ilícitos culposos, o Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício. É a chamada responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas colectivas públicas - Cfr. artº 2º do DL 48 051.
A responsabilidade por actos ilícitos culposos, o Estado e demais pessoas colectivas públicas corresponde, no essencial, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos consagrado no C.C. sob os artºs 483º a 498º, 499º a 510º e 562º a 572º, e pressupõe a existência de um acto ilícito, a sua imputação a um agente (responsabilidade civil subjectiva), e a verificação de danos, consequência directa e necessária daquele - Cfr. artºs 2º a 10º do DL 48 051, de 21.NOV.67, e 483º, 487º-2, 564º e 563º do C.C..
Por seu lado, a responsabilidade por factos lícitos encontra o seu regime disciplinado pelo artº 9º, ainda, do DL 48 051.
Dispõe o nº 1 desse normativo legal que, o Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais (prejuízo efectivo de carácter especial e anormal).
Por seu lado o nº 2 do mesmo preceito legal, estatui que quando o Estado e demais pessoas colectivas públicas tenham, em caso de necessidade e por motivo de imperioso interesse público, de sacrificar especialmente, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro, deverão indemnizá-lo (sacrifício especial de coisa ou direito de um particular).
Constituem exemplos de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, por acto lícito, entre outros, a expropriação e a requisição por utilidade pública, a servidão administrativa, a ocupação temporária de terrenos adjacentes às vias públicas para execução de obras públicas.
Tal responsabilidade assenta no princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos e exige-se a existência de um sacrifício especial não imposto à generalidade das pessoas e que não seja inerente aos riscos da vida em sociedade, condicionando-se o dever de indemnizar à verificação da existência dos requisitos da especialidade e da anormalidade do prejuízo.
Assim, em matéria de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, fundada em actos lícitos, só há obrigação de indemnizar os prejuízos especiais e anormais, considerando-se como tais aqueles que não sejam impostos a uma generalidade de pessoas, mas a pessoa certa e determinada, em razão de uma determinada posição relativa, e que não possam considerar-se como um risco normalmente suportado por todos os cidadãos, decorrente da vida em sociedade.
Diferentemente, tratando-se de danos comuns e normais, entendendo-se como tais os que recaem genericamente sobre todos os cidadãos ou sobre categorias amplas e abstractas de pessoas e considerados habituais e aceitáveis dentro do mínimo risco próprio da vida em sociedade, não há, por parte da Administração Pública obrigação de indemnizar.
(Cfr. neste sentido os Profs. Marcello Caetano, in Manual de Direito Administrativo, pp.1241 e segs. e Diogo Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, III, pp. 510 e segs.. e Parecer da PGR, in Proc. nº 137/83, publicado no DR, II Série, de 06.ABR.84).
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, na modalidade de responsabilidade por actos lícitos, pressupõe, assim, a existência de um acto de gestão pública lícito, a sua imputação a um agente (responsabilidade civil subjectiva), a verificação de danos e a qualificação destes como especiais e anormais, e a existência de um nexo de causalidade entre o acto lesivo e os dano - Cfr. artºs 9º do DL 48 051, de 21.NOV.67, e 483º, 487º-2, 564º e 563º do C.C..
No caso sub judice, temos que, tal como resulta da matéria de facto assente, os Recorrentes, autarquias locais, procederam à melhoria e beneficiação da via pública confrontante com prédio propriedade do Recorrido, melhoramento esse que consistiu no alargamento do caminho e na colocação de piso em betuminoso.
Antes da realização das obras levadas a cabo em conjunto pelos Recorrentes, o piso do caminho era em calçada.
Em ordem ao alargamento do caminho, os Recorrentes procederam ao corte duma rampa ali existente, com cerca de 2,40 m. de largura, ligeiramente inclinada em sentido ascendente a partir da estrada ou caminho e sobre a qual sempre passaram carros de bois e tractores para acesso ao interior do prédio do Recorrido, nomeadamente ao seu logradouro.
Em consequência da realização de tal obra, com o corte da rampa, foi criado um desnível com a altura que oscila entre 0,10 m junto à estrada e cerca de 0,60 m junto à parede do prédio do Recorrido.
Com o corte da rampa deixou de ser possível a utilização do acesso de carros de bois e tractores ao interior do prédio, nomeadamente ao seu logradouro.
Ao construírem o piso em betuminoso ao longo da parede do lado norte do prédio do Recorrido, os Recorrentes elevaram o nível do piso, impedindo o acesso ao prédio (parte mais baixa) através dum portão em chapa, com duas folhas.
Ora, de tal factualidade resulta tratar-se de danos causados por acto de gestão pública, mais propriamente, actos materiais lícitos.
Efectivamente, as obras realizadas pelos RR., ora Recorrentes, configuram-se como operações materiais de gestão pública levadas a cabo no âmbito das suas atribuições legais – Cfr. neste sentido os artºs 34º-3-f) e 6-n), 64º-2-f) e 7-b) da Lei 169/99, de 18.SET e 2º do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei nº 2110, de 19.AGO.65.
Mas configurar-se-ão tais prejuízos como especiais ou anormais?
Como atrás se deixou dito, por prejuízos especiais e anormais devem considerar-se aqueles que não sejam impostos a uma generalidade de pessoas, mas a pessoa certa e determinada, em razão de uma determinada posição relativa, e que não possam considerar-se como um risco normalmente suportado por todos os cidadãos, decorrente da vida em sociedade.
Ora, em consequência das obras realizadas pelos RR. com o corte da rampa, foi criado um desnível com a altura que oscila entre 0,10 m junto à estrada e cerca de 0,60 m junto à parede do prédio do Recorrido, tendo deixado de ser possível a utilização do acesso de carros de bois e tractores ao interior do seu prédio, nomeadamente ao seu logradouro; e com a construção do piso em betuminoso ao longo da parede do lado norte do prédio do Recorrido, os Recorrentes elevaram o nível do piso, impedindo o acesso ao mesmo prédio (parte mais baixa) através dum portão em chapa, com duas folhas.
Assim, tais prejuízos configuram-se como especiais uma vez que afectam apenas o A., ora Recorrido, dada a repercussão que a obra levada a cabo pelos RR., ora Recorrentes, teve no prédio daquele, em termos de acessibilidade ao mesmo, tendo afectado de modo especial a esfera jurídica do A., acarretando-lhe um sacrifício inequitativo com relação aos demais utentes da via pública, em causa.
As obras na via pública, constituindo uma intervenção legítima em ordem à prossecução do interesse público consubstanciado na melhoria da circulação e da rede viária, constituem causa de efeitos desfavoráveis desiguais para o património do A. Com efeito, enquanto os cidadãos em geral só beneficiaram, com os trabalhos públicos, o A. viu no seu prédio agravadas as condições de acessibilidade.
(No mesmo sentido, em casos paralelos, decidiu-se nos Acs. do STA de 25.MAI.00 e de 13.JAN.04, in Recs. nºs 41 420 e 40 681, respectivamente).
E configurar-se-ão também como anormais?
A este propósito, a Jurisprudência do STA tem lançado mão da teoria do gozo standard – Cfr. neste sentido os Acs. do STA de 21.MAI.91, 12.JAN.99, de 25.MAI.00, de 02.FEV.02 e de 13.JAN.04, in Recs. nºs 29 227, 42 175, 41 420, 44 443 e 40 681, respectivamente).
Esta teoria é enunciada por Gomes Canotilho, in “O Problema da Responsabilidade do Estado por actos lícitos”, pp. 280/281, nos seguintes termos:
“Perante a acção dos poderes públicos (...) é garantido o gozo médio ou standard dos bens pertencentes ao particular de modo que quando este gozo é tolhido por um acto normativo ou administrativo, estamos em presença de um acto ablatório gerador de indemnização.
O princípio segundo o qual a propriedade privada em sentido lato, no nosso actual sistema jurídico, orientado por determinadas finalidades sociais, é obrigada a admitir limites e vínculos, encontra um critério limite no conceito de gozo standard dos bens privados, como conceito atributivo de um significado à garantia constitucional da propriedade. Nestes termos, o critério indicado poderá constituir um índice de individualização das intervenções ablatórias que, embora feitas com instrumentos diversos da expropriação formal, dão lugar a uma diminuição ou subtracção do gozo standard da coisa”.
Do mesmo modo, como se ponderou no Ac. do STA de 13.JAN.04, atrás citado:
“A propriedade privada admite limites e vínculos impostos por razões sociais e condicionamentos administrativos. Além disso o valor dos bens sofre a ineliminável influência positiva ou negativa da situação ou de relações de vizinhança, designadamente a que resulta de actuação dos poderes públicos na promoção de obras públicas e operações de urbanização (as positivas, em certas circunstâncias atenuadas por via da tributação em mais valias)”.
Significa isto que o critério quantitativo, por si só, não é índice bastante da ocorrência de ingerência pública geradora de sacrifício indemnizável, nos termos previstos no art. 9º do DL nº 48 051; só o será se, associado a ele, houver privação do gozo standard do imóvel.
Numa situação de contornos mais ou menos semelhantes à dos presentes autos, escreveu-se no Ac. do STA de 25.MAI.00, in Rec. nº 41 420, o seguinte:
“(...)
A recorrente considera-se lesada pela alteração do nível do solo estradal. Obras de beneficiação da Rua (...), com abaixamento do leito, modificaram as condições de acesso de um prédio confinante da autora, impedindo o estacionamento e acesso de veículos ao interior do edifício - destinado a uso industrial - e dificultando as operações de carga e descarga, pois que passou a existir um desnível entre a cota de soleira do prédio e a plataforma da rua linearmente variável entre 1,10 m e 4,90 m. (...) Sofreu, portanto, a autora um decremento patrimonial em consequência de uma actuação lícita da Administração.
Será esta consequência negativa da alteração da estrutura viária sobre o valor de alguns dos prédios confinantes um dano ressarcível?
(...)
No nosso direito positivo o tratamento da questão está comprometido pelo disposto no art.° 108º do Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pela Lei n.° 2037, de 19/8/49 e no art.° 62° do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei n.° 2110, de 19 de Agosto de 1961. E este último o preceito aplicável ao caso, porque não há dúvida que a via cuja configuração foi alterada pertence ao domínio público da autarquia e que a acção que gerou essa alteração é imputável à ré.
Dispõe este último preceito que “As serventias das propriedades confinantes com as vias municipais são sempre executadas a título precário, não havendo direito a indemnização por quaisquer obras que os proprietários sejam obrigados afazer, quer na serventia, quer na propriedade servida, no caso de ser modificada a plataforma da via municipal (corpo do cit. art.° 62°).
Face a este regime legal, o Prof. AFONSO QUEIRÓ, Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. 1, pág. 74 (artigo também compilado em Estudos de Direito Administrativo, 1, pág. 33 e sgs.), considerando o acesso como um direito subjectivo público sui generis de natureza administrativa, defende que de lege lata a supressão do direito de acesso não gera qualquer indemnização.
Diz o Prof. A. Queiró, após demonstrar a referida qualificação publicística do direito de acesso, definido como “a faculdade conferida pela lei aos proprietários confinantes (com as vias públicas) de entrarem nos seus prédios a partir das vias públicas e de saírem daqueles por estas”:
“6. Quid júris se a Administração realizar obras na via pública, com vista a melhorá-la e, nestas condições, causar danos graves e permanentes aos proprietários confinantes, dificultando ou suprimindo o acesso pela ‘serventia” estabelecida para os seus prédios e obrigando a obras destinadas a substituí-la ou assegurá-la; Terão os proprietários direito a uma indemnização correspondente aos gastos com estas obras? O nosso direito não consagra esta orientação, que, pelo contrário, é perfilhada noutros sistemas. Quer o Estatuto das Estradas Nacionais, quer o Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais negam aos proprietários confinantes qualquer indemnização pelas obras que sejam obrigados a fazer na “serventia” ou na propriedade servida, no caso de ser modificada, por qualquer motivo, a plataforma da via (artigos 108º e 62°, respectivamente). Mas já não poderá haver dúvidas, cremos nós, de que os proprietários têm direito a ser indemnizados, nos termos gerais, se os danos resultarem de uma actividade ilícita e culposa dos agentes administrativos.
7. Dada a posição tomada pelo legislador nos referidos artigos 108° e 62°, na hipótese por eles contemplada, parece haver maioria de razão para se concluir que o sistema da nossa lei é adverso a reconhecer aos proprietários dos prédios confinantes direito a indemnização pela supressão do acesso, resultante da desafectação de uma via pública. Isto ainda que eventualmente seja de admitir, em geral, no nosso direito, responsabilidade da Administração por factos lícitos ou actos legais - problema que será naturalmente tratado noutra oportunidade, nesta publicação”.
Efectivamente, as referidas disposições têm natureza de lex specialis relativamente à regra geral de responsabilidade por actos lícitos geradores de danos especiais e anormais constante do art.° 9° do DL 48.051, de 21 de Novembro de 1968, pelo que no domínio coberto por aquele regime especial, excludente da responsabilidade, não chega a colocar-se a questão da qualificação do prejuízo como especial e anormal, que é problema que só interessa perante prejuízos que sejam abstracta e genericamente ressarcíveis.
Na verdade, o transcrito preceito afirma expressamente a precariedade da situação jurídica dos prédios confinantes relativamente ao estabelecimento de meios de acesso à via pública e, portanto, do modo e lugar desse mesmo acesso, que só pode fazer-se nos termos da autorização municipal (art.° 42° do Regulamento). Se as serventias são executadas sempre a título precário, a Administração age não só licitamente como não lesa qualquer posição juridico-patrimonial consolidada dos proprietários dos prédios confinantes quando, por actuação material ou jurídica, designadamente com obras na plataforma da via, afectar o valor dessas propriedades por efeito da alteração das condições de acesso.
Salvo, obviamente, se se tratar de actuação ilícita por inobservância das regras legais ou princípios gerais da actuação administrativa, mas aí a questão é já outra, de responsabilidade por factos ilícitos.
Será sempre assim, sejam quais forem as consequências para os proprietários dos prédios confinantes?
Pronunciando-se sobre esta questão (O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, pág. 301 e sgs.) o Prof. Gomes Canotilho escreve o seguinte:
“Parece-nos, porém, que a melhor orientação será a de restringir o efeito das disposições legais citadas e não a de extrair argumento a minore ad majus para justificar a irressarcibilidade no caso de desafectação. Com efeito, vigorando hoje no nosso direito uma cláusula geral de responsabilidade por actos lícitos, a solução mais adequada, para no operarmos uma inversão na tradicional regra da hermenêutica jurídica - lex generalis non derrogar specialis -, não obstante a lei introdutora da cláusula geral ser posterior aos textos citados, será a de considerar que no caso a alteração da plataforma, e só nesse, o legislador considerou expressamente os prejuízos advindos aos prédios marginais como vínculos sociais. Mas nada obsta que mediante uma punctualização tópica e típica se modele a cláusula geral de forma a admitir que certos casos de desafectação possam ser considerados originadores de sacrifícios especiais merecedores de reparação.”
Esta reserva vem a propósito de uma medida mais radical como é a desafectação, mas a reflexão que abre vale para a ressarcibilidade de danos resultantes de outras formas de privação definitiva de acesso à via pública, nomeadamente as causadas por abaixamento ou elevação da plataforma da estrada que impeçam o acesso dos prédios confinantes, necessário para a exploração das suas utilidades.
Na verdade, o citado art.° 62° apenas versa expressamente sobre a irressarcibilidade dos prejuízos decorrentes da necessidade de fazer obras na “serventia” - isto é, na ligação entre o prédio e a via para transpor os limites entre um e outra - ou na propriedade servida. Ou seja, o que se prevê e subtrai a indemnização são as situações em que as condições de acesso das propriedades confinantes à via sofrem alterações de configuração ou de localização, obrigando a fazer obras para reatar o acesso, e não as situações em que o acesso é tomado impossível ou determinado modo de acesso necessário para fruir as utilidades do prédio é irremediavelmente abolido.
No caso em apreço não está em causa, nem tal é possível face à configuração do local, vencer as consequências das alterações na plataforma da via mediante obras na “serventia” ou na propriedade servida, pelo que a aplicação do regime do art.° 62° do Regulamento só poderia alcançar-se através do argumento de identidade de razão, ou seja, por analogia. Ora, sendo a norma que exclui a indemnização excepcional face ao regime geral do art.° 9º do DL 48.051, essa aplicação está vedada (art.° 11º do Cod. Civ.).
Assim, não cabendo a situação sub judice na previsão estrita do cit. art.° 62° do Regulamento recupera interesse a averiguação da ressarcibilidade da perda de valor venal do prédio da recorrente face ao regime geral estabelecido pelo art.° 9° do DL 48.051.
O art.° 9°/l do DL 48 051 estabelece que o Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais.
O fundamento axiológico da indemnização de danos causados por ingerências estaduais lícitas reside na retracção do princípio geral da igualdade em igualdade de contribuição dos cidadãos para os encargos públicos.
A lei exige a especialidade e a anormalidade do dano, que se apresentam como elementos-travão de uma total socialização dos prejuízos, em ordem a (Gomes Canotilho, op. cit., pág. 283):
- Evitar a sobrecarga do tesouro público, limitando o reconhecimento de um dever indemnizatório do Estado e mais entes públicos ao caso de danos inequivocamente graves; e
- Procurar ressarcir os danos que, sendo graves, incidiram desigualmente sobre certos cidadãos.
Não é necessário determo-nos na demonstração de que as obras na plataforma da via, realizadas em prossecução legítima do interesse público de melhoria da circulação e da estrutura viária da cidade de Barcelos, teve resultados especiais desfavoráveis no património da recorrente. O seu prédio passou a ter, em consequência directa e imediata do abaixamento da plataforma da via, um valor de realização inferior àquele que tinha. A generalidade dos cidadãos beneficia da obra; a recorrente, perdendo o acesso directo de veículos ao seu prédio e o estacionamento de veículos a par dele para cargas e descargas, sofre a diminuição de valor do seu prédio.
A questão mais delicada está na avaliação da anormalidade desse prejuízo. A propriedade privada admite limites e vínculos impostos por razões sociais e condicionamentos administrativos. Além disso, o valor dos bens sofre a ineliminável influência positiva ou negativa da situação ou de relações de vizinhança, designadamente a que resulta de actuação dos poderes públicos na promoção de obras públicas e operações de urbanização (as positivas, em certas circunstâncias atenuadas por via da tributação em mais-valias).
Mas deve considerar-se garantido o gozo médio ou standard dos bens pertencentes ao particular. Se, por efeito de actos ou operações materiais lícitas da Administração, não é preservado esse gozo standard, estaremos perante intervenções ablatórias que, não sendo formalmente expropriativas, geram um efeito semelhante à expropriação e merecem por isso indemnização (expropriação de sacrifício). E índice de uma intervenção ingerente dessa natureza o facto de, através das intervenções dos poderes públicos consideradas, a destinação do bem ter sido alterada ou o seu uso deixar de estar de acordo com a sua função (teoria de alienação do escopo; cfr. Gomes Canotilho, op. cit.., p. 279).
(...)
E aqui, para concretizar o gozo standard por parte dos proprietários de prédios face a alterações das vias públicas com as quais confinam, volta a ganhar interesse o disposto nos referidos art.° 62° do Regulamento e art° 108° do Estatuto das Estradas Nacionais, que constitui ónus de socialidade.
Efectivamente, resultando das citadas disposições legais que os proprietários têm de suportar os encargos da reposição do acesso (obras na serventia ou na propriedade servida), porventura por caminho mais longo e inclusivamente os custos da constituição da servidão predial se a ligação só puder fazer-se através de prédio alheio (art°s 1550° e 1554° do Cód. Civil), é porque o legislador considera “extemalidade.negativas’ da gestão do domínio público de circulação, a sofrer pelos proprietários confinantes, tudo o que possa resolver-se sem encrave irremediável do prédio.
Mas esse é o limite a partir do qual o sacrifício aparece como anormal.
Com efeito, a comunicação com a via pública é um elemento imprescindível da propriedade imobiliária, juridicamente tutelado. A lei civil garante o acesso dos prédios à via pública, concedendo aos proprietários que não tenham comunicação (encrave absoluto) ou comunicação suficiente (encrave relativo) com a via pública, nem condições de estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, o direito potestativo de estabelecer passagem sobre os prédios rústicos vizinhos a partir dos quais seja material e juridicamente possível aceder à via pública. Logo, o estabelecimento de comunicação com a via pública é uma faculdade inerente ao direito de propriedade imobiliária.
Ora, a ordem jurídica no pode conter valorações contraditórias. O direito de propriedade sobre os prédios confinantes seria sacrificado, em violação do princípio da igualdade de contribuição para os encargos públicos, se a gestão do domínio público circulação pudesse deixar esses prédios irremediavelmente encravados sem indemnização compensatória da perda de valor correspondente.
É a partir desta ideia que cada caso deste género tem de ser analisado. E prejuízo anormal aquele que resultar de uma situação geradora de encrave do prédio confinante se a falta de comunicação com a via pública (não necessariamente com aquela concreta via na qual decorreram as obras) se apresentar como definitiva e não solucionável, ainda que à custa do proprietário, como resulta do referido art.° 62° do Regulamento.
(...)
Mais que caracterizar a posição do proprietário confinante como direito subjectivo ou interesse legítimo, haverá que indagar, perante uma situação concreta, se se trata de simples limitação não perturbadora do “gozo standard’ do bem, como tal abrangida no dever geral de socialidade ou se, ao contrário, a intervenção da entidade pública acarreta, com a limitação de determinada posição jurídica, a produção de resultados anormais e inusitados que apenas recaiam sobre alguns particulares”.
Apliquemos, então, esta doutrina.
Considera-se encravado não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública, mas também aquele que dispõe de comunicação insuficiente para as suas necessidades normais (P. de Lima e A. Varela Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 637).
Ora, a situação em que se encontra o prédio da autora, por causa da situação gerada, pelo abaixamento da plataforma da Rua (...), é de encrave relativo. Atendendo à utilização industrial, que é conforme à sua natureza e situação jurídico-administrativa, o prédio não dispõe de comunicação suficiente com a via pública, nem essa comunicação pode ser estabelecida.
Com efeito, pelo menos a possibilidade de o estacionamento de veículos se fazer ao nível das entradas para o prédio é indispensável para satisfazer as necessidades normais da actividade industrial. A comunicação com os outros arruamentos mais próximos, através de um passeio de 1,48 m de largura ao longo de 17 m, não garante a anterior normalidade das cargas e descargas. E, embora seja possível fazer cargas e descargas em veículos estacionados na Rua de Olivença, transpondo o desnível com meios mecânicos, atendendo a que o desnível é de 1,70 m em frente à porta do prédio, a que acresce cerca de 1 m do muro que bordeja o passeio, as operações de carga e descarga implicam uma elevação de 2,70 m, manobra tomada ainda mais difícil por envolver a transposição do murete.
Assim, não correspondendo a situação à previsão excludente de indemnização do art.° 62° do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais e estando preenchidos os requisitos da especialidade/e anormalidade do dano exigidos pelo art.° 9° do DL 48.051 e o nexo causal entre as obras de abaixamento da plataforma da via pública e esse dano, assiste à recorrente direito a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos (...).
(...)”.
Ora, no caso dos autos, perante as obras levadas a cabo pelos RR., com o corte da rampa, foi criado um desnível com a altura que oscila entre 0,10 m junto à estrada e cerca de 0,60 m junto à parede do prédio do Recorrido, tendo deixado de ser possível a utilização do acesso de carros de bois e tractores ao interior do seu prédio, nomeadamente ao seu logradouro; e com a construção do piso em betuminoso ao longo da parede do lado norte do prédio do Recorrido, os Recorrentes elevaram o nível do piso, impedindo o acesso ao mesmo prédio (parte mais baixa) através dum portão em chapa, com duas folhas.
De tal enquadramento fáctico parece resultar ter o prédio do A. ficado em encrave, pelo menos relativo, tendo deixado de ser possível a utilização do acesso de carros de bois e tractores ao interior do seu prédio, nomeadamente ao seu logradouro, e ficado impedido o acesso ao mesmo prédio (parte mais baixa) através dum portão em chapa, com duas folhas.
Tais constrangimentos configuram-se como impeditivos de um uso e fruição plenos do imóvel, de acordo com a sua finalidade, sem que a realização de obras a efectuar pelo A. possam repor na sua plenitude o gozo e fruição do seu imóvel, nas condições e com as utilidades associadas à sua função.
Neste quadro, o dano sofrido pelo A., ora Recorrido, deve qualificar-se como anormal, sendo, nessa medida, e perante a existência de um nexo de causalidade adequada entre as obras e o dano, indemnizável nos termos previstos no art. 9º do DL nº 48 051.
Acontece que nos autos não ficou apurado o valor dos danos sofridos pelo A., no seu prédio decorrente das obras levadas a cabo pelos RR..
Assim, como, com referência a tais danos, não resultou provado o seu montante, relega-se, por isso, a sua liquidação para uma eventual execução do julgado.
Deste modo, improcedem as conclusões de recurso e decide-se pela procedência parcial da acção, com os fundamentos que se deixam explanados.

IV- DECISÃO
Termos em que acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do TACN em decidir o seguinte:
a) Negar provimento ao recurso jurisdicional; e
b) Julgar parcialmente procedente a acção administrativa comum, com condenação dos RR. no pagamento ao A. da quantia que vier a liquidar-se em eventual execução do julgado, a título de ressarcimento de danos pela prática de acto lícito.
Custas por ambas as partes na proporção de metade, em ambas as instâncias.
Porto, 18 de Outubro de 2007
Ass. José Luís Paulo Escudeiro
Ass. Ana Paula Soares Leite Martins Portela
Ass. José Augusto Araújo Veloso