Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00753/20.0BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/07/2025
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores:AÇÃO ADMINISTRATIVA CONTRA O MINISTÉRIO DA SAÚDE/MÉDICA;
PROCESSO DISCIPLINAR/SANÇÃO DISCIPLINAR DE SUSPENSÃO;
ACERTO DA DECISÃO RECORRIDA/NÃO PROVIMENTO DO RECURSO DO MINISTÉRIO;
Sumário:
Em sede disciplinar a descrição circunstanciada dos factos é absolutamente vital;
In casu, uma vez que da acusação não resulta a exposição dos factos e das circunstâncias de modo, tempo e lugar da prática da infração, de acordo com o que exige o artigo 213.º, n.º 3, da LGTFP, a decisão punitiva encontra-se ferida de anulabilidade, procedendo o invocado pela Autora;
À Autora não foi permitido concreta, seguramente e, em toda a linha, identificar todas as infracções que lhe foram imputadas, no que se traduziu numa restrição ao e no exercício do seu direito de defesa;
A irregularidade constatada é motivo bastante para afetar todo o procedimento, mormente o ato administrativo impugnado.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA» instaurou ação administrativa contra o MINISTÉRIO DA SAÚDE, ambos melhor identificados nos autos, pedindo a declaração de nulidade ou a anulação do despacho proferido pela Secretária de Estado do Ministério da Saúde, datado de 05-11­2020, que negou provimento ao recurso interposto da decisão do Conselho Diretivo da ARS Norte, I.P., de 16-07-2020, que lhe aplicou a sanção disciplinar de suspensão, e, ainda, a condenação da entidade demandada a repor «[o] tempo de serviço efetivo perdido em consequência da suspensão; todas as retribuições perdidas em consequência da suspensão, acrescidas de juros à taxa legal de 4% ano desde as datas em que eram devidas até efectivo pagamento» e à «anulação da pena no respetivo registo».
Por sentença proferida pelo TAF de Penafiel foi julgada procedente a acção.
Recorrendo, a Entidade Demandada formulou as seguintes conclusões:
A) Vem o presente recurso interposto da douta decisão que julgou procedente a presente ação, anulando o ato impugnado, por, no essencial, considerar que da acusação apenas resultam meras imputações, vagas e abstratas, não sustentadas em factos concretos e precisos, nem aludindo às circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática das infrações.
B) Resulta, aquela conclusão, de uma visão estreita da acusação, cujo conteúdo não pode ser lido sem os documentos juntos ao processo em fase de inquérito, sendo certo que tais documentos são expressamente referidos na acusação, sob a forma – evidente – de remissão, deles sendo dado conhecimento à arguida, ora recorrida, desse modo permitindo-lhe ter o pleno alcance do teor das acusações que, de forma genérica mas concretizada por aqueles documentos recolhidos no inquérito, lhe eram imputados.
C) A Recorrida evidenciou ter plena consciência dessa relevância – e do interesse desses documentos para a concretização das acusações - não só na defesa apresentada no processo disciplinar, em que procura confundir aquelas acusações revelando tê-las compreendido perfeitamente, mas, sintomaticamente, pondo em causa as suas próprias declarações, prestadas perante a Instrutora na fase de inquérito, repetindo (tantas vezes quantas as necessárias para poder impressionar o tribunal!) que não se revê nas declarações prestadas pelo perante a Instrutora e assinadas por si.
D) Note-se, aliás, a este propósito, que o comportamento da Recorrida era de tal modo reiterado, que não se tornava necessário – nem sequer adequado – indicar, de modo diverso do que foi feito pela Sr.ª Instrutora, as circunstâncias de tempo, modo e lugar de prática das infrações por serem, de facto, uma constante na atuação da Recorrida.
E) Todos os comportamentos imputados à Recorrida foram devidamente identificados e concretizados, resultando clara a sua descrição quando acompanhada dos documentos juntos com a acusação e nela mencionados no recurso, verificando-se, também ao contrário do que é afirmado na douta sentença recorrida, que os comportamentos imputados à Recorrida o foram a título de dolo e não mera negligência ...
F) Tudo isto resulta claríssimo dos autos de processo disciplinar, e tudo isto foi dado a conhecer à Recorrida quando notificada para o exercício do seu direito de defesa, e, finalmente, tudo isto foi bem compreendido pela Recorrida.
G) Não padece, assim, do vicio que lhe foi atribuído pela M.ª Juiz a quo, a acusação deduzida, devendo a douta decisão ser revogada, sendo a ação julgada improcedente uma vez que a sanção aplicada se revela adequada à gravidade dos comportamentos imputados à Recorrida ou, se entendido necessário, proferida decisão que determine o prosseguimento da ação para apuramento da verdade sobre os factos que suportam a acusação e, naturalmente, a decisão subsequente.
H) Ainda que se pudesse reconhecer um tom vago, genérico e indeterminado na acusação (o que não se aceita, mas admite por hipótese raciocínio) sempre teria de concluir-se que tal circunstância não afetou em nada as garantias constitucionais de audiência e defesa da Recorrida, uma vez que esta revelou na defesa apresentada, ter compreendido perfeitamente o âmbito, o sentido e alcance da acusação (ver, a este propósito, o Parecer 4/89 da Procuradoria Geral da República, publicado no Diário de República, nº 52, II Série, de 4 de Março de 1986).
I) A douta sentença recorrida fez má interpretação, e consequente má aplicação aos factos do disposto no nº 3 do artigo 213º do LGTFP, devendo ser revogada.

Termos em que, concedendo provimento ao recurso e, revogando a douta decisão proferida,
decidindo pela improcedência da ação com Absolvição do pedido
ou, se a matéria adquirida nos autos não for considerada suficiente,
ordenando o prosseguimento da ação para a prova dos factos que sustentaram a decisão,
assim fazendo
JUSTIÇA!
A Autora juntou contra-alegações, concluindo:
1 - A sentença recorrida não merece qualquer reparo e por isso deve manter-se.

2 - Subsidiariamente caso assim não se entenda, prevenindo a necessidade da sua apreciação a A./Recorrida requer a ampliação do âmbito do objeto do recurso nos termos do artigo 636º nº 1 do CPC, com os seguintes fundamentos:

3 - O processo disciplinar caducou tendo sido violadas, entre outras, as disposições do artigo 205º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, bem como os artigos 331.º e 333.º do Código Civil.

4 - A a acusação do procedimento disciplinar violou os artigos 203º nº 1 e 213 nº 3 do LGTFP, uma vez que não foram individualizados os preceitos legais punitivos em relação a cada tipo de infração.

5 - Não resultou alegado e provado quer na acusação quer na decisão do processo disciplinar, o elemento subjetivo do ilícito disciplinar.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1) A Autora é médica na área de medicina geral e familiar da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P., Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega III - Vale do Sousa Norte, a exercer funções na UCSP ... - facto não controvertido;

2) Em 10-05-2019, o diretor executivo do ACES Tâmega III - Vale do Sousa Norte, determinou a abertura do procedimento disciplinar n.º ...18/.../ACESVSN contra a Autora - cfr. pág. 12 do processo administrativo (fls. 318-345 do SITAF);

3) Em 22-07-2019, foi comunicado a «BB» a sua nomeação como instrutora do processo disciplinar referido no ponto antecedente - cfr. pág. 22 do processo administrativo (fls. 318-345 do SITAF);

4) Por Ofício de 24-07-2019, a instrutora do processo disciplinar comunicou à Autora que, nessa data, deu início à instrução do mesmo - cfr. pág. 33 do processo administrativo (fls. 294-315 do SITAF);

5) Em 16-10-2019, a Autora foi ouvida no âmbito do processo disciplinar referido em 2), tendo sido elaborado «auto de inquirição», cujo teor se reproduz:
«(...)
Tem conhecimento do motivo pelo qual hoje vai ser inquirida?
Não sei, não faço a mínima ideia.
A Dr.ª «AA» foi alvo de um processo de inquérito, esse processo de inquérito deu
origem a um processo disciplinar.
Qual o horário praticado pela Dr.ª «AA» na UCSP ...?
É das 89:00 às 17:00, com interrupção para almoço, das 13:00 às 14:00. Faço 35:00 por semana.
Qual o conteúdo funcional desse horário?
(A Dr.ª «AA» apresenta o horário expresso por escrito, que se anexa)
Tem muitos domicílios?
Tenho poucos domicilios
Quando não tenho domicílios, preencho esse tempo com Saúde de adultos
A Dr.ª tem o seu horário homologado?
Tenho sim, pelo Senhor Diretor.
O seu horário com o conteúdo funcional, foi solicitado pelo Srª Diretor à Dr.ª «AA».
Aliás: foi solicitado duas vezes (a instrutora apresentou à arguida o email e a ordem de serviço).
Penso que respondi, só se a administrativa não enviou.
Mas, se não apresentei o horário não me parece que isso seja grave. O Sr. Diretor e Presidente do CCS sabem muito bem o meu horário.
De qualquer maneira lembro-me de ter preenchido o horário com o conteúdo funcional.
Internamente foi solicitado, através de um documento o seu horário e o respetivo conteúdo. Este pedido foi solicitado duas vezes, com um prazo para a resposta de 15 dias.
Eu acho que fiz isso. Tenho a certeza por que preenchi esse documento. Se não foi enviado está na mão da Dª «CC».
O que tem a responder a isto?
Lembro-me de visualizar esse oficio e de o ter preenchido
O Secretariado Clinico tem conhecimento dos períodos definidos para as consultas de vigilância?
Claro, tem. E o Sr° Diretor e o presidente do CCS também têm conhecimento.
Eles sabem. (entregou documentos comprovativos, em anexo)
Dr.ª «AA» essas pessoas sabem o que está a fazer no momento mas, senão tiverem preenchimento do horário expresso, não sabem se o que está a fazer corresponde ao horário expresso.
Que resposta é dada a um pedido de consulta feito por um doente com uma situação aguda?
No próprio dia. Eu atendo todos os doentes que aparecem. A minha agenda está livre, pelo menos 15 dias para os agendamentos
E quando é solicitado um domicílio médico?
Tenho um horário fixo para isso mas nesta Unidade não existem muitos utentes a necessitarem de domicílios.
Se lhe solicitarem um domicílio, como faz?
Vou fazer o domicílio.
Qual a média de domicílios?
Poucos, talvez 2 domicílios por mês.
Na prática tem necessidade do tempo todo?
Sim, na prática ocupo esse tempo com saúde de adultos.
O n° de horas tem que estar adequado à sua lista e as características da população.
Sim, mas nunca nenhum chefe me sugeriu a troca desse horário
Com a consulta de adultos, se não houver um domicílio, troco esse horário.
Como é feito o seu registo biométrico?
Com o dedo
Quantas vezes põe o dedo?
À entrada e à saída do serviço
E quando vai almoçar?
Não, não ponho o dedo porque só tenho só uma hora para almoçar. Isso não está contemplado na Lei. Sigo a orientação do Sindicato.
O pedido do seu horário foi feito?
Sim mas o Sr° Diretor foi contactado pelo Sindicato e acatou a orientação.
Pela lei, tenho que ter uma hora e meia para o almoço, isso está na lei.
A Dr.ª assinou um horário que contempla uma hora para o almoço.
E à saída põe sempre o dedo?
Sim, mas desde que recebi a ordem por escrito do Sr.ª Diretor é que passei a por o dedo à saída. Tem que haver uma ordem para isso. A partir da ordem de serviço, cumpri sempre. Também não faço o registo à hora de almoço porque estou a seguir as orientações do Sindicato., que previamente entrou em contacto por escrito ao Sr. Diretor.
Na Unidade são realizadas reuniões de serviço, quem convoca?
Sim realizamos e até temos as atas. Estas atas estão com a D. «CC».
Como é convocada?
Por todos nós, quando entendemos que o devemos fazer.
E em que dia?
Todas as sextas feiras. Ainda na última sexta foi feita uma reunião sobre as orientações que vieram do chefe dos médicos.
Acha que há aqui uma equipa?
Sim
Sente-se integrada nesta equipa?
Sim
Com que periodicidade é que o CCS reúne com os profissionais desta Unidade?
Com o atual PCC só houve uma reunião. Com o CCS anterior houveram 3 ou 4 reuniões.
Acha que essa periodicidade é suficiente?
Penso que não.
Quando recebe uma reclamação que procedimento tem?
Respondo por escrito.
Recebo a carta do Sr° Diretor e respondo. O Sr° Diretor refere o n° da reclamação e nessa altura respondo num papel próprio do CS e entrego á Dª «CC». Mas de um modo geral até respondo no papel que o Srº Diretor me envia. Porque o papel pode perder-se. Perdem-se muitos documentos, e a D. «CC» tem feito muitas segundas vias.
Mas o Sr. Diretor nunca me disse que estava errada esta forma de resposta.
Quase sempre respondo no mesmo dia.
Acha que tem algum apoio da Direção do ACES?
Não, nenhum.
Tem consultório privado?
Sim
Mas onde é que fica localizado o consultório?
Na rua..., aqui em ....
Que horário faz?
Duas vezes por semana, às segundas e quartas feiras das 17:30 às 19:30.
Alguma vez informou o Sr. Diretor desse horário?
Nunca me informaram que era preciso apresentar. Eu fiz o pedido de acumulação de funções.
Pretende acrescentar mais alguma informação no presente Auto?
Sim
Estou cansada. Trabalhei muitos anos e agora com este Diretor já tenho 3 processos, quando em trinta e sete anos de serviço não tive nenhum.
Quero dizer que tenho aqui ordens do Sr. Diretor, dirigidas à D.ª «CC», sem sabermos. Tivemos mais do que um ano a ver os doentes da Dr.ª «DD» e nunca tivemos nenhum elogio. Eu entendo que há uma perseguição do Diretor. (entregou documento) porque quer fechar esta Unidade. Somos atacados por um lado mas não somos elogiados quando vemos muitos doentes.
Estive tão ocupada, em 2018, a ver os doentes. Estivemos a ver 2 400 utentes por médico. Desde novembro de 2017 a janeiro de 2019.
A justificação que dou para não responder ao Sr. Diretor é a de que tive tanto trabalho (doentes agendados e fora dos agendados) que não tive tempo para responder ao pedido de resposta do horário.
Agora vou perguntar à Dº «CC» onde está o papel de resposta.
Se encontrar a prova deve fazer-nos chegar o documento que faz prova. Por favor envia ao meu cuidado para a ARS em carta regista. E até deve dizer onde estava o documento (...)»
- cfr. págs. 93 a 97 do processo administrativo (fls. 223-249 do SITAF);

6) Em 11-02-2020, pela instrutora do processo disciplinar, foi deduzida acusação, da qual se extrai o seguinte:
«(...)
Assim, concluída a instrução e depois de analisadas e ponderadas as provas constantes dos Autos, é deduzida, nos termos do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 213.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, a seguinte acusação contra «AA», médica de clinica geral da Administração Regional de Saúde do Norte, IP, Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega III – ... a exercer funções na UCSP ..., arguida no processo disciplinar instaurado pelo Senhor Diretor Executivo do ... (...), por resultarem suficientemente indiciados os seguintes factos:
1ª.
Com as declarações prestadas pela arguida é assumido pela própria, o desconhecimento da legislação, nomeadamente relacionada com os horários e exercício de atividade médica privada na área de influência da UCSP ... dirigida ao mesmo círculo de destinatários, assim como o incumprimento ou apresentação insuficiente e extemporânea da informação solicitada pelo ACES. (cfr. fl. 94 a 97).
2ª.
A Arguida no seu depoimento assume que acumula funções de âmbito privado, localizado junto à UCSP ... e dirigida à população inscrita na Unidade pondo, em causa o interesse público, a isenção e a imparcialidade. (cfr fl. 94).
3ª.
Constata-se também que a arguida não acata as orientações emanada pelos superiores hierárquicos, violando o dever de obediência e zelo, nomeadamente através dos meios utilizados na resposta às reclamações. (cfr fl. 94).
4ª.
A arguida não cumpre o registo da assiduidade, conforme orientações provenientes da Direção Executiva, de forma consciente e intencional, optando por seguir orientações sindicais. (cfr fl. 90 e 95).
5ª.
A arguida apresentou comportamentos reiterados, voluntários e conscientes que incorrem na violação dos deveres previstos no art.º 73, ponto 2, alíneas: a), b), c), f) i) e j) da L nº 35/2014 de 20 de junho - Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, designadamente os deveres de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo, obediência, assiduidade e pontualidade.
6ª.
A arguida no seu depoimento corrobora o incumprimento dos supracitados deveres de modo livre e consciente. (cfr. fl. 97), demostrando reiterado desinteresse pelos seus deveres o que constitui infração disciplinar subsumível em abstrato com a pena de suspensão, de acordo com o art.º 185, alínea d), e), g), e l), da referida Lei.
7ª.
Contra a arguida constituem circunstância agravante especial a prevista na alínea
do ponto 1, artº 191 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
(...)» - cfr. documento n.º 1 junto a petição inicial (fls. 44-47 do SITAF);

7) Em 15-02-2020, a Autora foi notificada da Acusação – cfr. pág. 134 do processo administrativo (fls. 203-222 do SITAF);

8) Em 20-02-2020, a Autora apresentou defesa com o seguinte conteúdo:
«(...)
1./O presente procedimento disciplinar encontra-se já prescrito dado terem decorrido muito mais de 45 dias contados nos termos e a para os efeitos do art.205 da LGTFP.
2./Independentemente disso, os factos imputados à Arguida na Acusação não configuram a violação de qualquer dever profissional, mormente os de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo, obediência, assiduidade e pontualidade. Acresce que,
3./Não correspondem à verdade as imputações efectuadas à Arguida na Acusação. 4./Vejamos:
5/Convém desde logo assinalar que, quando a Arguida prestou declarações no processo disciplinar a Srª Instrutora, previamente não a informou dos factos e das imputações que lhe eram feitas no processo.
6./Por outro lado, a Srª Instrutora também não advertiu a Arguida de que as declarações por si prestadas poderiam ser usadas contra ela.
7./ Finalmente foi a Srª Instrutora que redigiu declarações da Arguida, descontextualizando o que a Arguida disse, não permitindo à Arguida que a final as lesse, tendo-se esta limitado esta a assinalas no local que lhe foi indicado para o efeito pela Srª Instrutora.
8./ Por isso a Arguida não se revê nas declarações por si assinadas (não prestadas) no processo disciplinar.
9./ Como quer que seja.
10./ A Arguida é uma trabalhadora que cumpre e sempre cumpriu os seus deveres laborais.
11./ É falso o alegado nos Pontos 1°, 2°, 3°,4°, 5°, 6° e 7º da Acusação.
12./ Jamais a Arguida assumiu desconhecer qualquer legislação nomeadamente relacionada com os horários e exercício da actividade médica privada na área de influência da UCSP ... dirigida ao mesmo círculo de destinatários, assim como o incumprimento ou apresentação insuficiente e extemporânea da informação solicitada pelo ACES. Acresce que,
13./ Jamais a Arguida assumiu que acumula funções de âmbito privado localizado junto à UCSP ... e dirigida à população inscrita na unidade pondo, em causa o interesse público, a isenção e a imparcialidade.
14./ Jamais a Arguida deixou de acatar as orientações emanadas pelos superiores hierárquicos, violando o dever de obediência e zelo, nomeadamente através dos meios utilizados na resposta às reclamações.
15./ É falso que a Arguida não cumpra o registo de assiduidade, conforme orientações provenientes da Direção Executiva, de forma consciente e intencional, optando por seguir orientações sindicais.
16./ É falso que a Arguida tivesse apresentado comportamentos reiterados, voluntários e conscientes violadores de qualquer dever laboral, ou que corrobore no seu depoimento o incumprimento de deveres laborais.
17./ Em rigor, a Arguida não percebe nem sabe a que é que a Srª Instrutora se refere na Acusação.
18./ Carece por isso de qualquer fundamento o presente procedimento disciplinar. (...)»
- cfr. págs. 155 a 158 do processo administrativo (fls. 176 a 202 do SITAF);

9) Em 20-05-2020, a instrutora do processo disciplinar elaborou Relatório Final, cujo teor se reproduz:
«(...)
II
Instrução
Diligências

a) A 24/07/2019, através de ofício n° 08422, registado com AR, informou-se a Sr.ª Dr.ª «AA» que se tinha dado início à instauração de um processo disciplinar, no qual era participante. - (cf. fl.33)
b) Na mesma data, através de ofício nº 08419 dirigido ao Sr. Diretor Executivo do ACES Vale Sousa Norte, a Instrutora informou a data de início da fase de instrução do respetivo processo. - (cf. fl.27)
c) No dia 20 de agosto de 2019 através do ofício é solicitado ao DRH que remeta à Instrutora, o Registo Biográfico/Disciplinar da Srª. Dr.ª «AA» - (cf. f1.35)
d) A 22 de agosto de 2019, através de ofício dirigido ao Sr. Diretor Executivo é solicitado o envio do horário de trabalho semanal da Dr.ª «AA» com a discriminação do horário desenvolvido. (cf. Fl.37)
e) Dia 3 de outubro de 2019 através de ofício n° 010106 registado com AR, dirigido à Srª. Dr.ª «AA», é solicitada a sua comparência para prestar declarações como arguida, às 09:00 horas do dia 16 de outubro de 2019. - (cf. f1.76)
f) A 14 de outubro de 2010, através de correio eletrónico é solicitado ao Sr. Diretor Executivo o envio de informação relativamente aos períodos de férias e de CIT profissional, o agendamento de consultas no SINUS, os procedimentos internos existentes para o tratamento de reclamações, os procedimentos internos de informação divulgados aos profissionais, o n° de reuniões agendadas com a equipa da UCSP ..., bem como o n° de participantes. - (cf. fl. 77)
g) A 17 de outubro foi solicitado ao Sr. Diretor Executivo o envio dos registos biométricos da Dr.ª «AA» e as folhas com os registos de assiduidade manual bem como as orientações divulgadas pelo ACES aos profissionais, relativamente ao registo Biométrico. - (cf. f1.99)
h) A 28 de novembro foi reiterado ao ACES, o pedido de envio dos documentos solicitados a 17 de outubro de 2019. - (cf.fl.99)
i) A 11 de novembro de 2019 através do ofício n° 10659, o Sr. Diretor Executivo Dr. «EE» é convocado para prestar declarações dia 19 de novembro às 9:30.- (cf. Fl. 123)
III
Apreciação
A análise dos depoimentos permitiu algumas constatações relativamente à atitude da arguida:
- Desconhecimento da legislação relacionada com os direitos e interesses dos cidadãos, revelado pela resposta extemporânea às reclamações apresentadas pelos utentes, em estilo displicente e desprezo;
- Incumprimento das ordens emanadas pelos superiores hierárquicos, através da falta de resposta às ordens e instruções provindas da Direção Executiva, nomeadamente no âmbito da acessibilidade aos cuidados de saúde, assiduidade e pontualidade;
- Exercício da profissão pública e privada na área de influência da UCSP ... dirigida ao mesmo círculo de destinatários, de forma habitual, sem a necessária equidistância.
IV
Acusação
Concluída a instrução e depois de analisadas e ponderadas as provas constantes dos Autos, é deduzida, nos termos do n.° 2 e do n.° 3 do artigo 213.° da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.° 35/2014, de 20 de junho, a seguinte acusação contra «AA», médica de clínica geral da Administração Regional de Saúde do Norte IP, Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega III - ... a exercer funções na UCSP ..., arguida no processo disciplinar instaurado pelo Senhor Diretor Executivo do ..., Dr. «EE», através do despacho n° 27/2019, de 10 de maio de 2019 (cfr. fl.10), por resultarem suficientemente indiciados os seguintes factos:
1ª.
Com as declarações prestadas pela arguida é assumido pela própria, o desconhecimento da legislação, nomeadamente relacionada com os horários e exercício de atividade médica privada na área de influência da UCSP ... dirigida ao mesmo círculo de destinatários, assim como o incumprimento ou apresentação insuficiente e extemporânea da informação solicitada pelo ACES. (cfr. fl. 94 a 97).
2ª.
A Arguida no seu depoimento assume que acumula funções de âmbito privado, localizado junto à UCSP ... e dirigida à população inscrita na Unidade pondo, em causa o interesse público, a isenção e a imparcialidade. (cfr fl. 94).
3ª.
Constata-se também que a arguida não acata as orientações emanada pelos superiores hierárquicos, violando o dever de obediência e zelo, nomeadamente através dos meios utilizados na resposta às reclamações. (cfr fl. 94).
4ª.
A arguida não cumpre o registo da assiduidade, conforme orientações provenientes da Direção Executiva, de forma consciente e intencional, optando por seguir orientações sindicais. (cfr fl. 90 e 95).
5ª.
A arguida apresentou comportamentos reiterados, voluntários e conscientes que incorrem na violação dos deveres previstos no art.º 73, ponto 2, alíneas: a), b), c),
f) i) e j) da Lei nº 35/2014 de 20 de junho - Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, designadamente os deveres de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo, obediência, assiduidade e pontualidade.
6ª.
A arguida no seu depoimento corrobora o incumprimento dos supracitados deveres de modo livre e consciente. (cfr. fl. 97), demostrando reiterado desinteresse pelos seus deveres o que constitui infração disciplinar subsumível em abstrato com a pena de suspensão, de acordo com o art.º 185, alínea d), e), g), e l), da referida Lei.
7ª.
Contra a arguida constituem circunstância agravante especial a prevista na alínea do ponto 1, artº 191 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
(...)
IV
Defesa
Em anexo ao presente Relatório a Exposição enviado pelo Advogado, representante da arguida.
V
Apreciação
Relativamente ao ponto 1.
- O processo disciplinar não se encontra prescrito pois a legislação refere um prazo meramente indicativo;
Relativamente ao ponto 2.
- Todos os factos imputados à arguida conferem violação de deveres profissionais nomeadamente: prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo, obediência, assiduidade e pontualidade, conforme factos apurados no Processo de Inquérito, que procedeu ao presente processo Disciplinar e constatados no decurso deste Processo;
Relativamente aos pontos 3. a 8.
- O depoimento da arguida, na fase de instrução, decorreu de forma isenta, correta, imparcial tendo a mesma respondido às questões formuladas e tendo sido dada oportunidade de acrescentar o que entendesse pertinente. Foi dado o tempo necessário para ler o seu depoimento, o qual leu e assinou. Em nenhum momento foi pressionada a alterar o que quer que fosse, assim como nada lhe foi omisso, quando formulou questões, pelo que não se entende como pode afirmar “não se rever nas declarações por si assinadas (não prestadas) no processo disciplinar”; Relativamente ao ponto 10.
- À arguida é aplicado um procedimento disciplinar, por falta de cumprimento dos seus deveres laborais;
Relativamente aos pontos 11 a 18.
- Os factos constantes na Acusação (pontos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º), resultaram das diligências verificadas nos Processos de Inquérito e Disciplinar;
IV
Conclusão
Concluídas as diligências instrutórias e analisadas todas as provas carreadas para o processo disciplinar, é possível provar que a Dr.ª «AA» no exercício do seu desempenho profissional apresenta comportamentos reiterados, voluntários e conscientes que incorrem na violação dos deveres presentes no art.° 73 da lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, designadamente nas alíneas: a), b),c), e), f), i) e j).
V
Proposta
Ponderados e provados os factos apurados no decorrer das diligências efetuadas no processo, considera-se justa a aplicação à arguida da pena de suspensão prevista no corpo do artigo 186°, e em conformidade com a alínea c) do n°.1, do art.° 180° graduada em 175 dias, nos termos do nº. 4 do artigo 181° todos da LTFP, aprovada em anexo à Lei nº. 35/2014, de 20/06.
(...)» - cfr. documento n.º 3 junto com a petição inicial (fls. 54-72 do SITAF);

10) Em 16-07-2020, o Conselho Diretivo da ARS Norte, I.P., deliberou a aplicação à Autora da sanção disciplinar de suspensão graduada em 175 dias, com os fundamentos constantes do Relatório mencionado no ponto antecedente – cfr. documento n.º 3 junto com a petição inicial (fls. 54-72 do SITAF);

11) Em 18-08-2020, a Autora foi notificada da decisão referida do ponto anterior – cfr. pág. 190 do processo administrativo (fls. 130-153 do SITAF);

12) Em 24-08-2020, a Autora interpôs recurso da decisão mencionada em 10) – cfr. documento n.º 4 junto com a petição inicial (fls. 73-83 do SITAF);

13) Em 05-11-2020, a Secretária Geral do Ministério da Saúde proferiu despacho negando provimento ao recurso mencionado no ponto antecedente, mantendo a decisão recorrida – cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial (fls. 84 a 96 do SITAF).
DE DIREITO
Está posta em causa a decisão que julgou procedente a acção.
Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Sem embargo, por força do artigo 149.º do CPTA, o Tribunal, no âmbito do recurso de apelação, não se quedará por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decidirá “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
Assim,
É objecto de recurso a decisão que julgou procedente a ação, anulando o ato impugnado por, no essencial, considerar que da acusação apenas resultam meras imputações, vagas e abstratas, não sustentadas em factos concretos e precisos, nem aludindo às circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática das infrações.
Cremos que se decidiu acertadamente.
Vejamos,
Estabelece o artigo 203.º nº 1 (Nulidades) da LGTFP que” 1- “É insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do trabalhador em artigos de acusação....” .
Por seu turno o artigo 213.º nº 3 do LGTFP refere que “A acusação contém a indicação dos factos integrantes da mesma, bem como das circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática da infração, bem como das que integram atenuantes e agravantes, acrescentando a referência aos preceitos legais respetivos e às sanções disciplinares aplicáveis.
Tem sido jurisprudência uniforme do STA que a falta de audiência do arguido e as situações à mesma equiparáveis, constituem ilegalidade, na modalidade de vício de forma.
Na expressão "falta de audiência do arguido" (nulidade insuprível segundo os próprios termos do citado normativo) tem sido integrada pela jurisprudência e pela doutrina por realidades diversas e várias, nomeadamente, nas situações em que a: “Acusação despida de qualquer expressão factual e contendo apenas juízos valorativos ou conclusivos, com remição para peças ou documentos do processo, que não identifiquem inteiramente as infracções”.
Nas palavras do Prof. Marcello Caetano (in: "Manual de Direito Administrativo", vol. II, 10ª ed., págs. 845, 846 e 854) "(...) A acusação deduz-se por artigos para tornar mais fácil a defesa. Cada artigo deve conter um facto imputado ao arguido, indicado "precisa e concretamente, com todas as circunstâncias de modo, lugar e tempo" (...).
A acusação deve ser tal que o acusado inocente a possa cabalmente destruir: sem imputações vagas, sem factos imprecisos, sem arguições genéricas. (...)
A redação dos artigos da acusação corresponde ao acto mais delicado do processo disciplinar, visto que neles se fixa a matéria de facto sobre a qual, daí por diante, versará a discussão processual e que pode servir de base à decisão final.
Factos não articulados não poderão mais ser invocados contra o arguido ou fundamentar a sua condenação. E têm-se por não articulados os factos apenas insinuados ou obscura, vaga ou confusamente apresentados. (...).
A "audiência do arguido" (...) compreende várias formalidades essenciais, a saber:
a) formulação clara e precisa de artigos de acusação; (...)".
O mesmo autor reportando-se ainda ao direito à audiência do arguido e à sua consequente defesa, refere: (em "Do Poder Disciplinar", págs. 181/182) que para que o mesmo "(...) se efetive nos termos em que a lei a concede e é de direito natural garantir, torna-se necessário que a nota de culpa contenha 'toda a individuação', isto é, discriminados um por um e acompanhados de todas as circunstâncias de modo, lugar e tempo, os factos delituosos de que o empregado é arguido. (...)".
Também a jurisprudência do STA vai no sentido de exigir que a acusação tem de ser formulada através da articulação de factos concretos e precisos, sem imputações vagas, genéricas, ou abstractas, devendo enunciar as circunstâncias conhecidas de modo, tempo e lugar e as infracções disciplinares que deles derivem, correspondendo a generalidade da acusação à falta de audiência do arguido geradora de nulidade insuprível- cfr., entre outros, os Acórdãos de 30/05/1985 in BMJ n.º 348, pág. 457, de 28/02/1989 in Ap. D.R. de 14/11/1994, págs. 1540 e segs., de 07/03/1989 in Ap. D.R. de 14/11/1994 - vide ainda Leal Henriques, em “Procedimento Disciplinar”, 1997, pág. 213; Acs. do TCA Sul de 26/11/1998, Proc. n.º 785/98 e de 29/05/2003, Proc. n.º 11.144/02.
Com efeito, o arguido tem de saber, de forma clara e concreta, os factos de que é acusado de molde a poder apresentar defesa pertinente a esses mesmos factos, quer no sentido de provar que os não praticou e como tal que é inocente, quer com o objectivo de demonstrar que não justificam a aplicação de sanções por não constituírem infracções disciplinares. Para além disso só uma enumeração precisa e concreta dos factos imputados ao arguido permite o seu adequado enquadramento jurídico-disciplinar, com a correspondente qualificação.
Como se pode ler no Ac. do STA de 20/03/2003, Proc. n.º 369/02, “(...) Ao mesmo tempo, uma acusação assim lavrada, clara e precisa, acode à garantia de audiência e defesa prevista no art. 269°, n.º 3, da CRP, enquanto, por outro lado, obriga o órgão competente para a censura a uma mais cuidada e ponderada análise de todo o circunstancialismo dos factos em discussão, de maneira a não bulir com direitos de personalidade e de imagem de seriedade e de dignidade que todo o indivíduo tem de si mesmo e pretende salvaguardar. É preciso não esquecer que por vezes a simples dedução do libelo é suficiente para a destruição do sentimento de honradez e de nobreza de carácter que o outro até então via no acusado: mesmo inocentado, mesmo que o procedimento disciplinar termine em nada, mesmo que não seja feita censura no final do processo, a circunstância de alguém até esse momento ter sido tocado pela lâmina de uma acusação disciplinar pode não mais apagar os vestígios de algo que o seu ego ferido sempre considerará achincalhamento e labéu vergonhoso.
Daí, o extremo cuidado na elaboração dessa peça procedimental. Por isso, a acusação deve expor os factos um a um, circunstanciados, precisos, concretizados pelo modus operandi, pela indicação cabal das circunstâncias de modo, lugar e tempo em que tenham ocorrido, sob pena de nulidade insuprível e, portanto, de anulabilidade da decisão punitiva (...).
Só não terá que ser assim se, independentemente da insuficiência factual e da generalidade com que a matéria de facto tiver sido narrada, tal não tiver impedido, frustrado ou limitado o acusado na compreensão, sentido e alcance da acusação. Em hipóteses assim, tendo ele podido defender-se, e defendendo-se, mostrando ter percebido as infracções imputadas, deixa de vingar a tese da nulidade procedimental daí resultante (...).”
Retomando o caso concreto e trazendo à colação a factualidade apurada, bem como os considerandos tecidos supra e os normativos reproduzidos, temos, para nós, que a acusação viola os artigos 203º nº 1 e 213º nº 3 do LGTFP.
Com efeito resulta claro que enferma a acusação, e o correspondente processo disciplinar que a ela conduziu, da impossibilidade de a A. ter podido contestar ou alegar factos em sua defesa, no que diz respeito ao teor das acusações formuladas nos Pontos 1º a 7º da acusação.
Vejamos exemplos:
No Ponto 1º da acusação a A. é acusada de: “Com as declarações prestadas pela arguida é assumido pela própria, o desconhecimento da legislação, nomeadamente relacionada com horários e exercício de actividade médica privada na área de influência da UCSP ... dirigida ao mesmo círculo de destinatários, assim como o incumprimento ou apresentação insuficiente e extemporânea de informação solicitada pelo ACES (cfr. fls. 94 a 97). Perante isto,
Ficou a A. sem saber: que legislação em concreto relacionada com horários e exercício de actividade médica privada na área de influência da ... a A. desconhecia?; Qual é o mesmo círculo de destinatários no qual a A. exercia actividade pública e privada? Qual a informação solicitada pelo ACES e se a A. tinha a obrigação de a prestar? Quem a pediu? Quando foi pedida? Se a violação do dever de apresentar informação foi pura e simplesmente incumprido? Qual foi o prazo que foi dado à A. para cumprir o dever de informação? A ter sido prestada porque é que a informação se revelou insuficiente?
No Ponto 2º da acusação a A. é acusada de: “A arguida no seu depoimento assume que acumula funções de âmbito privado, localizado junto à UCSP ... e dirigida à população inscrita na Unidade pondo em causa o interesse público, a isenção e a imparcialidade.”
Ficou a A. sem saber: Quais as funções que a A. acumula de âmbito privado? Em que sítio junto à ... exerce tais funções? Quando é que exerce tais funções? Porque razão põe em causa o interesse público, a isenção e a imparcialidade?
No Ponto 3º da acusação a A. é acusada de: Constata-se também que a arguida não acata as orientações emanadas pelos superiores hierárquicos, violando o dever de obediência e zelo, nomeadamente através dos meios utilizados na resposta às reclamações (cfr. fls. 94).
Ficou a Autora sem saber: Porque é que se constata que não acata as orientações? Quais são essas orientações? Quando, como e qual o superior hierárquico emanou tais orientações? Qual ou quais os meios utilizados pela A. nas suas respostas que implicam a violação dos deveres de obediência e zelo?
No Ponto 4º da acusação a A. é acusada de: A arguida não cumpre o registo de assiduidade, conforme orientações provenientes da Direção Executiva, de forma consciente e intencional, optando por seguir orientações sindicais (cfr. fls. 90 a 95).
Ficou a A. sem saber: Porque é que a A. não cumpre o registo de assiduidade? Quando é que a A. não cumpriu o registo de assiduidade? Quais foram as orientações provenientes da Direção Executiva? A não ter cumprido as orientações porque é que se conclui que o fez de forma consciente e intencional?
No Ponto 5º da acusação a A. é acusada de: ”A arguida apresentou comportamentos reiterados, voluntários e conscientes que incorrem na violação dos deveres previstos no art. 73, ponto 2, alíneas a), b), c), e), f), i) e j) da L. nº 35/2014 de 20 de junho - Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, designadamente os deveres de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo, obediência, assiduidade e pontualidade”
Ficou a A. sem saber: Quais os comportamentos a que se refere a Srª Instrutora? Porque é que tais comportamentos são reiterados, voluntários e conscientes?
Daqui decorre que só a identificabilidade das situações permitiria à A. uma defesa qualitativamente superior à que efectivamente produziu.
E note-se, na sua defesa a A. concretamente referiu: “Em rigor, a Arguida não percebe nem sabe a que é que a Srª Instrutora se refere na acusação”
Em face disto, cabia à Srª Instrutora concretizar os termos da acusação, designadamente corrigindo ou aditando a mesma.
Porém não o fez.
Ora, tais acusações, não contendo factos integrantes e precisos das infrações, impediram a A. de, na sua defesa, impugnar eficazmente as acusações formuladas em termos vagos e imprecisos, sem expressão factual concreta.
Na verdade, a falta de concretização dos factos constantes da acusação nos artigos 1º a 7º é geradora de nulidade procedimental do processo disciplinar, repercutindo-se na validade do acto punitivo e tornando-o anulável de acordo com o previsto no artº 203º, nº 1, da LGTFP, porquanto encerra em si articulação conclusiva, genérica e/ou abstrata que se traduziu numa efetiva falta de audiência e defesa da A..
Com efeito, a esta não foi permitido, concreta e seguramente, identificar todas as infracções que lhe foram imputadas, no que se traduziu numa restrição ao e no exercício do seu direito de defesa.
A nulidade insuprível verificada é, pois, motivo bastante para afectar todo o procedimento, mormente, o acto administrativo recorrido.
Bem andou por isso o Tribunal a quo ao anular o ato impugnado.
Como sentenciado:
Quanto à alegada preterição do direito de audiência, por omissão, na acusação, da descrição da factualidade imputada, adiante-se, desde já, que assiste razão à Autora.
Do artigo 1.º da acusação resulta que «[c]om as declarações prestadas pela arguida é assumido pela própria, o desconhecimento da legislação, nomeadamente relacionada com os horários e exercício de atividade médica privada na área de influência da UCSP ... dirigida ao mesmo círculo de destinatários, assim como o incumprimento ou apresentação insuficiente e extemporânea da informação solicitada pelo ACES».
E no artigo 2.º da acusação, a Autora vem acusada de pôr em causa o interesse público, a isenção e a imparcialidade, uma vez que «[a] Arguida no seu depoimento assume que acumula funções de âmbito privado, localizado junto à UCSP ... e dirigida à população inscrita na Unidade».
Resulta dos artigos 3.º e 4.º da acusação, que a ora Autora a(...) não acata as orientações emanada pelos superiores hierárquicos, violando o dever de obediência e zelo, nomeadamente através dos meios utilizados na resposta às reclamações» e que «não cumpre o registo da assiduidade, conforme orientações provenientes da Direção Executiva, de forma consciente e intencional, optando por seguir orientações sindicais».
E nos artigos 5.º e 6.º da acusação consta que «a arguida apresentou comportamentos reiterados, voluntários e conscientes que incorrem na violação dos deveres previstos no art.º 73, ponto 2, alíneas: a), b), c), e), f) i) e j) da L nº 35/2014 de 20 de junho - Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, designadamente os deveres de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo, obediência, assiduidade e pontualidade e que «a arguida no seu depoimento corrobora o incumprimento dos supracitados deveres de modo livre e consciente. (...), demostrando reiterado desinteresse pelos seus deveres o que constitui infração disciplinar subsumível em abstrato com a pena de suspensão, de acordo com o art.º 185, alínea d), e), g), e l), da referida Lei» [cfr. ponto 6) da factualidade julgada como provada].
É com base no teor da acusação referida que a instrutora do processo disciplinar concluiu que a Arguida, ora Autora, violou os deveres previstos nas alíneas a), b), c), e), f), i) e j), do n.º 2, do art.º 73.º, da LGTFP.
Ora, da acusação, tal como vem estruturada, não é possível à Autora perceber os factos que lhe são imputados de modo a poder defender-se cabalmente.
Desde logo, não consta da acusação factos concretos quanto ao vertido no artigo 1.º da acusação, designadamente qual a informação solicitada pelo ACES que a Autora não deu cumprimento ou que apresentou de modo insuficiente e extemporâneo, bem como qual a legislação relacionada com os horários e o exercício da atividade médica privada na área de influência da UCSP ... que a Autora desconhece.
Do mesmo modo, não resulta da acusação, designadamente, quais as funções que a Autora acumula, pormenorizadas no tempo e lugar, a que se refere o artigo 2.º da Acusação.
Acresce que não se encontram plasmados os concretos factos que fundamentam a conclusão de que a Autora «não acata as orientações emanadas pelos superiores hierárquicos», designadamente, as orientações que não foram por ela cumpridas, circunstanciadas no tempo, modo e lugar, bem como os meios utilizados na resposta às reclamações que colocam em causa os deveres de obediência e zelo.
Mais, não consta da acusação a factualidade que permita sustentar que a Autora não cumpre o registo de assiduidade conforme as orientações da Direção Executiva, bem como quais as orientações infringidas, de acordo com as exigências previstas no art.º 213.º, n.º 3, da LGTFP.
Deste modo, constata-se que da acusação apenas resultam meras imputações, vagas e abstratas, não sustentadas em factos concretos e precisos nem aludindo às circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática das infrações.
Aqui chegados, em face dos elementos constantes da acusação, conclui-se não estarem descritos de modo suficiente e claro, como exige o n.º 3, do art.º 213.º, da LGTFP, os factos indispensáveis à tomada de posição por parte da Arguida, ora Autora, em sede de direito de defesa, o que constitui nulidade insuprível do procedimento disciplinar, conforme resulta do disposto no art.º 203.º, n.º 1, da LGTFP.
Note-se que, já em sede de direito de defesa, a Autora sustentou a sua falta de perceção das infrações que lhe vinham imputadas [cfr. artigo 17 da defesa constante do ponto 8) da factualidade julgada como provada], o que demonstra que a insuficiência da matéria factual frustrou a compreensão da Autora do sentido e alcance da acusação.
Conclui-se, assim, que uma vez que da acusação não resulta a exposição dos factos e das circunstâncias de modo, tempo e lugar da prática da infração, de acordo com o que exige o art.º 213.º, n.º 3, da LGTFP, a decisão punitiva encontra-se ferida de anulabilidade, procedendo o invocado pela Autora nesta parte.
(…)
Aqui chegados, assistindo razão à Autora, é de anular o ato impugnado. Uma vez que as decisões dos tribunais administrativos são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas, a Administração fica obrigada à reconstituição da situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado (cfr. artigos 158.º e 173.º, do CPTA). Portanto, o pedido formulado pela Autora com vista à reposição do tempo de serviço perdido e das respetivas remunerações, acrescidas de juros, em consequência da suspensão e a anulação da pena no registo, decorre, necessariamente, da anulação do ato impugnado e da obrigação da reconstituição da situação que existia, ficando assim absorvido por tal decisão.
Em suma,
Existem três momentos que parecem ser essenciais na acção disciplinar: A acusação; a defesa do trabalhador; e a decisão;
Deste modo, é imperioso e absolutamente necessário, analisar de forma concreta como a inobservância de qualquer destes momentos ou uma irregularidade nos mesmos, poderá levar à nulidade do processo e através desta, à ilicitude da sanção;

Tal foi levado a cabo no caso dos autos;
Como se disse, a descrição circunstanciada dos factos é absolutamente vital;
In casu, uma vez que da acusação não resulta a exposição dos factos e das circunstâncias de modo, tempo e lugar da prática da infração, de acordo com o que exige o artigo 213.º, n.º 3, da LGTFP, a decisão punitiva encontra-se ferida de anulabilidade, procedendo o invocado pela Autora nesta sede;
Com efeito, à Autora não foi permitido concreta, seguramente e, em toda a linha, identificar todas as infracções que lhe foram imputadas, no que se traduziu numa restrição ao e no exercício do seu direito de defesa;
A nulidade insuprível constatada é motivo bastante para afectar todo o procedimento, mormente, o acto administrativo impugnado.
Improcedem as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente.
Notifique e DN.
Porto, 07/3/2025

Fernanda Brandão
Isabel Jovita
Paulo Ferreira de Magalhães