Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
Dr. «AA», residente na Rua ...., ... Coimbra, propôs ação administrativa contra o MINISTÉRIO DA SAÚDE, com sede na Avenida ..., ..., ... ..., pedindo que seja anulado o ato administrativo praticado por este, que julgou improcedente o recurso tutelar por si interposto e que concluiu pela não verificação dos pressupostos previstos no diploma de perdão de penas e amnistia de infrações, não considerando o A. amnistiado das infrações disciplinares que lhe foram imputadas.
Por decisão proferida pelo TAF de Coimbra foi julgada a ação improcedente e absolvido o Réu do pedido.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, o Autor formulou as seguintes conclusões:
I.
Vem o presente recurso interposto da decisão proferida nos autos que julgou improcedente a ação administrativa impugnatória apresentada pelo Recorrente,
A decisão em mérito encontra-se ancorada em quatro pilares fundamentais, a saber:
(v) a infração disciplinar constitui igualmente crime - crime de abuso de poder - não amnistiado;
(vi) o agente tinha mais de 30 anos e a
(vii) a moldura penal aplicável ao crime de abuso de poder é de até 3 anos (superior a 1 ano).
(viii) A pena aplicável é de demissão e a lei limita a aplicação aos casos em que a pena aplicada não seja superior à suspensão.II. Contudo, ressalvado o respeito devido, que se diga, é todo, não se pode o Recorrente conformar com o ali decidido por entender e sustentar que o Tribunal a quo, a quem se reconhece elevadíssima competência técnica, fez uma incorreta apreciação dos pressupostos de que depende a aplicação ao Recorrente da amnistia instituída por via da Lei n.° 38-A/2023, de 02/08
Senão vejamos,III. O artigo 2.°, n° 2, alínea b) da Lei n° 38-A-2023 de 02.08 determina que:
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
(...)
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.ºIV. Por seu turno, o artigo 6.° do mesmo diploma legal:
São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.V. Uma vez que o caso dos autos constitui igualmente crime e infração disciplinar (abuso de poder), impõe-se aquilatar se tal crime integral o elenco de crimes não amnistiados pela Lei n° 38-A-2023 de 02 de agosto.VI. E, como se pode extrair do elenco de crimes integradores das exceções à aplicação da amnistia prevista no artigo 7.° da lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto, de tal elenco não consta o crime de abuso de poder.VII. O qual, por via de uma interpretação à contrario sensu tal crime (de abuso de poder) integra o elenco de crimes passiveis de amnistia.VIII. Assim, falece desde logo os dois primeiros fundamentos para afastar a aplicação da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto - visto que o crime de abuso de poder, não integrando uma das exceções previstas no artigo 7.° do referido normativo, ter-se-á de ter como um dos crimes passiveis de amnistia.IX. Por outro lado e, relativamente ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. nos art.os 291.°, n.° 1, alínea a), e 69.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal a questão nem sequer se coloca,X. Porquanto, tal crime, não constituiu nenhum dos fundamentos terçados para a instauração do procedimento disciplinar em curso contra o Recorrente.XI. No que tange ao limite de idade imposto para beneficiar da amnistia, tal limite de idade (30 anos), como resulta do artigo 2.°, n° 1 da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto - apenas se aplica às sanções penais e, já não, à amnistia de infrações disciplinares contrariamente ao expendido na decisão em mérito.XII. Visto que o limite de idade ali estabelecido, constituí um pressuposto específico para a concessão da amnistia apenas relativamente às infrações penais.XIII. Ora, estando em causa nos autos, a amnistia de infrações disciplinares, tal limite de idade não é aqui aplicável - improcedendo, por essa via, outro dos fundamentos terçados na decisão recorrida.XIV. Já no que concerne ao fundamento da inaplicabilidade da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto, pelo facto da moldura penal aplicável ao crime de abuso de poder ser de até 3 anos (superior a 1 ano) - tal fundamento, a par da limitação de idade, não encontra qualquer respaldo legal - pelo menos, naquilo que contende com a amnistia aplicável às infrações disciplinar.XV. Pois, resulta de forma cristalina do diploma em análise que a moldura penal não constituí pressuposto de aplicação ou desaplicação da amnistia - pelo menos, naquilo que respeita à amnistia das infrações disciplinares.XVI. Na verdade, o legislador foi exaustivo no artigo 7.° ao elencar todo o tipo de crimes que não se mostram abrangidos pela amnistia.XVII. Aliás, mal se compreende o entendimento preconizado pelo Tribunal a quo a este respeito pois, se assim fosse, não existiria qualquer razão para a existência do artigo 7.° da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto - visto que o artigo 4.° do mesmo diploma resolveria a situação ao limitar a amnistia a todas infrações penais cuja pena aplicável não fosse superior a um ano.XVIII. Isto posto, o facto da moldura penal aplicável ao crime de abuso de poder ser de até 3 anos - tal facto, por si só, não impede a aplicação aos presentes autos da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto.XIX. Já no que concerne à (in) aplicabilidade da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto pelo facto de a pena aplicável ser de demissão e a lei limitar a aplicação aos casos em que a pena aplicada não seja superior à suspensão - também nos parece, não constituir fundamento para afastar a aplicação da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto aos casos como o dos presentes autos - como parece resultar da decisão recorrida.XX. Note-se, a este respeito, que no procedimento disciplinar subjacente aos presentes autos já foi proferida decisão final (entretanto anulada por recurso do Recorrente) que lhe aplicou a pena de 30 dias de suspensão.XXI. Elaborada nova nota de culpa, vem agora a instrutora do processo alvitrar que o procedimento disciplinar no qual é visado o Recorrente poderá culminar com o despedimento deste.XXII. Analisada a factualidade imputada ao Recorrente, facilmente se infere que tais factos não integram a previsão normativa no artigo 297.º da LGTFP e, como tal, a conduta imputada ao Recorrente em caso algum poderá constituir causa de despedimento, nos termos do artigo 297.º da LGTFP.XXIII. Mas ainda que assim não fosse, só com a defesa apresentada pelo Recorrente, com a produção de toda a prova por si convocada e produzidas as demais provas da acusação seria possível aquilatar, com alguma dose de certeza, qual a medida a aplicar no caso concreto, atento os critérios estabelecidos no artigo 184.º a 188.º da LGTFP.XXIV. Daí que, ressalvado o respeito devido, não se poderá falar, pelo menos ab initio - que a sanção disciplinar aplicável nos presentes autos de procedimento disciplinar é superior à suspensão.XXV. Algo que apenas se poderá almejar, como já se disse, após a finalização do procedimento disciplinar respetivo.XXVI. E, ainda assim, atento os factos imputados, em caso algum a medida concreta da sanção aplicável ao Recorrente poderá ultrapassar a medida da culpa e, como tal, terá sempre de se deter no limite máximo legalmente previsto - ou seja, pela sanção de suspensão!XXVII. Isto posto, dissecados todos os fundamentos apostos na douta decisão recorrida, facilmente se depreende que nenhum deles é capaz de afastar a aplicação aos presentes autos da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto.XXVIII. E, assim sendo, terá impreterivelmente de ser revogada a decisão recorrida, com a subsequente extinção do procedimento disciplinar instaurado contra o Recorrente, por lhe ser aplicável a Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto e dela poder beneficiar.XXIX. Ao decidir de modo diverso ao agora proposto, a douta decisão recorrida violou o conjunto normativo integrado pelas disposições dos artigos 2.°, 4.°, 6.° e 7.° da Lei n° 38-A/2023 de 02 de agosto,
TERMOS EM QUE,
Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta decisão recorrida, farão a acostumada,
JUSTIÇA!
O Réu juntou contra-alegações, concluindo:
1.ª Os factos provados em sede criminal, imputados ao arguido, ora Recorrente, consubstanciam comportamentos que integram infração disciplinar extremamente grave pois praticados com culpa muito grave, mais gravosos do que os que justificam a pena de suspensão e tornam o trabalhador indigno de permanecer ao serviço, sendo prejudicial para a imagem, prestígio e eficiência do serviço público, integrando a al. c) do n.º 3 do art.º 297.º da LTFP, que descreve exemplos padrão que entende inviabilizarem, em abstrato, manutenção da relação funcional: “No exercício das suas funções, pratique atos manifestamente ofensivos das instituições ...” ;
2.ª A gravidade objetiva do facto cometido, revela uma personalidade inadequada ao exercício de funções públicas, revelando um grave desrespeito pelas regras, pela entidade patronal, pelos seus superiores hierárquicos e pelos seus colegas;
3.ª Aliás, o comportamento do arguido é de tal maneira grave que normal é que inviabilize a continuação da relação funcional porquanto quebrou a confiança que nela era depositada pelo CHUC;
4.ª Prova de tal gravidade é que, no caso concreto, as infrações imputadas ao arguido, aqui Recorrente, foram enquadradas como sendo, em simultâneo, um ilícito penal como se comprova do teor do referido Acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, atrás citado;
5.ª Mostrando-se a pena de despedimento adequada à gravidade da infração disciplinar cometida, atentos os critérios definidos no art.º 189.º da LTFP;
6.ª Com efeito, na escolha concreta da pena disciplinar deverá atender-se, como impõe este preceito, à natureza, à missão e às atribuições do serviço e gravidade da infração, ao cargo e categoria do trabalhador, ao grau de culpa, à sua personalidade e a todas as circunstâncias em que a infração tenha sido cometida, que militem contra ou a seu favor;
7.ª Por ocasião da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal, entre os dias 1 e 6 de agosto de 2023, marcada pela visita do Papa ao país, foi publicada a Lei n.º 38¬A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações;
8.ª A amnistia é uma medida de clemência que o Estado concede, em certas circunstâncias, anulando o preenchimento de determinados tipos legais de crimes, cometidos por um conjunto mais ou menos amplo de pessoas, até determinada data;
9.ª No caso em apreço, ao contrário do que é defendido pelo Recorrente nunca poderia o mesmo estar abrangido pela amnistia a que se reporta a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;
10.ª Na verdade, é imputado ao aqui recorrente, a prática de infração de deveres profissionais que consubstancia, simultaneamente, um ilícito penal de abuso de poder, crime não amnistiado, não só pelo limite de idade de 30 anos previsto no n.º 1 do art.º 2.º ou seja, para “sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º 4 e 4.º 5.” como também pela pena aplicável a tal crime que é superior a 1 ano de prisão (até 3 anos);
11.ª Conforme defende Pedro Brito, “(...), o facto de um crime não constar no elenco daqueles que, por si só, determinam a exclusão das medidas estabelecidas na Lei em análise, não impede que o respetivo agente possa, ainda assim, não beneficiar destas por força das demais exceções igualmente previstas.”., como ocorre no caso dos autos;
12.ª Ademais, in casu, verifica-se a exceção prevista no n.º 1, al. l do art.º 7.º pois, efetivamente, o art.º 7.º do diploma em análise exceciona da aplicação da amnistia várias hipóteses, designadamente, e entre outros,
- na al. l, os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo;
13.ª Por outro lado, também não lhe seria aplicável o disposto no referido diploma legal, porque a sanção disciplinar a ser-lhe concretamente aplicada é a de despedimento que não cai na previsão normativa do art.º 6.º pois que aí apenas se prevê a amnistia de infrações que tenham sido punidas com pena disciplinar não superior a suspensão;
Ou seja,
14.ª A infração disciplinar em causa não só configura a prática de ilícito penal, pelo qual o aqui Recorrente já foi condenado por sentença transitada em julgado, como também a sanção disciplinar a aplicar é superior à suspensão, pelo que, consequentemente, a infração em causa nos autos não se encontra abrangida pela amnistia concedida nos artigos 2.º, n.º 2, al. b) e 6.º e 7.º da lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;
15.ª Desta forma, resta concluir pela não verificação dos pressupostos previstos no diploma de perdão de penas e amnistia de infrações e, assim, não considerar o arguido, ora Recorrente, amnistiado das infrações disciplinares que lhe foram imputadas.
Termos em que, pelos motivos expostos supra, considera-se que improcedem os fundamentos invocados pelo Recorrente no presente recurso jurisdicional e respetivas conclusões, não enfermando a douta sentença recorrida de 02-10-2024 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra proferida na sequência da interposição de ação de impugnação de ato administrativo, dos vícios que lhe são assacados, devendo manter-se e, consequentemente, ser negado provimento ao mesmo, com todas as consequências legais.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1) Por despacho de 08/06/2020, proferido pelo Ministério Público no âmbito do processo crime n.º 3673/17...., que correu termos no DIAP de Coimbra, foi deduzida acusação contra o A. pela prática, de forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de abuso de poder, p. p. pelos art.os 26.º e 382.º do Código Penal, e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. pelos art.os 291.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, em concurso aparente com um crime de condução em estado de embriaguez, p. p. pelos art.os 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por factos praticados em junho de 2017 (cfr. doc. de fls. 21 a 30 do processo administrativo).
2) Notificado o então Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE (CHUC), entidade empregadora do A., da acusação referida no ponto que antecede, o respetivo Conselho de Administração deliberou, em 25/06/2020, instaurar procedimento disciplinar contra o A., tendo por base os factos constantes daquela acusação, procedimento ao qual foi atribuído o n.º ...20 (cfr. doc. de fls. 212 do processo administrativo).
3) Em 02/12/2020 foi proferido acórdão pelo Juízo Central Criminal de Coimbra, no âmbito do processo n.º 3673/17...., que condenou o aqui A. pela prática de um crime de abuso de poder, p. p. nos art.os 26.º e 382.º do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, bem como pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. nos art.os 291.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de um ano, resultando na condenação do A., em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos e dez meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com o dever de entregar aos Bombeiros Voluntários a quantia de € 5.000,00 e, ainda, com regime de prova, que incluiu o curso de prevenção de sinistralidade rodoviária e, também, durante o período de suspensão da pena, com a proibição de proceder à recolha de sangue para efeitos de pesquisa de álcool no sangue, tendo sido, por fim, condenado na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de um ano (cfr. doc. de fls. 893 a 941 do processo administrativo).
4) O acórdão referido no ponto anterior transitou em julgado, relativamente ao A., em 30/03/2023 (cfr. doc. de fls. 942 do processo administrativo).
5) Em 07/06/2023, a instrutora do processo disciplinar n.º ...20 deduziu acusação contra o A., pelos factos praticados em junho de 2017, da qual consta, além do mais, o seguinte:
“29.º Do mesmo modo, atuou o arguido «AA», também livre, voluntária e conscientemente, ao concertar com os demais no plano que foi levado a cabo, plenamente ciente dos deveres de cargo a que o arguido «BB» estava sujeito, tal como sabia claramente que a conduta que este praticou era gravemente violadora desses deveres.
(...)
31.° Mais sabia o arguido «AA» que tinha ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução, as quais, pela sua quantidade e qualidade, determinariam, necessariamente, uma TAS superior a 1,20g/l.
32.° Não obstante, não se absteve de assim atuar, conduzindo o mencionado veículo na via pública nessas circunstâncias, perfeitamente ciente de que não se encontrava em condições de conduzir com segurança, atento o seu estado de embriaguez.
33.° Assim como sabia que, nessas condições, podia causar danos a bens alheios de valor elevado e sujeitar os demais utentes da via a um embate, pondo em perigo a sua vida ou integridade física, como efetivamente pôs, ao causar danos na saúde de «CC», como descrito.
(...)
35.° Todos os factos relatados, pela sua gravidade e consequência, minaram a necessária relação de confiança entre o trabalhador, «AA» e a sua entidade patronal, CHUC, o que impossibilita a manutenção da relação de trabalho estabelecida entre este trabalhador e a entidade patronal, nos termos do n.° 1 do art.° 297.° da LTFP.
36.° Desde logo, porque todos estes factos foram dados como provados por acórdão proferido no Processo 3673/17...., Juízo Central Criminal de Coimbra, Juiz ..., Processo Comum em que é arguido o referido trabalhador e que transitou em julgado em 30/03/2023, após ter sido interposto recurso em 19/01/2021 (...).
(...)
38.° Com este seu comportamento o trabalhador «AA» violou o dever de prossecução do interesse público, de isenção, de imparcialidade, de zelo e de lealdade, previstos nas alíneas a), b), c), e) e g) do n.° 2 do artigo 73.° e tipificados nos n.os 3, 4, 5, 7 e 9 do mesmo artigo.
39.° Se subsumem no disposto no n.° 1 do artigo 297.° e a que corresponde a respetiva sanção de demissão, prevista no artigo 187.°, caracterizada no n.° 6 do artigo 181.° e cujos efeitos estão previstos no n.° 4 do artigo 182.°.
40.° Sanção que se justifica pela gravidade dos factos, sendo por demais evidente a existência de culpa do trabalhador com a inerente censurabilidade ético-jurídica da sua conduta”
(cfr. doc. de fls. 945 a 956 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
6) Em 07/07/2023, o A. apresentou a sua defesa escrita à acusação deduzida no procedimento disciplinar (cfr. doc. de fls. 963 a 999 do processo administrativo).
7) Em 13/10/2023, o A. apresentou requerimento, dirigido ao Conselho de Administração do CHUC, a solicitar que fosse declarada a extinção do procedimento disciplinar n.º ...20, com todos os efeitos legais, mormente a extinção de qualquer responsabilidade disciplinar, com fundamento na entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 (cfr. docs. de fls. 1066 e 1067 do processo administrativo).
8) Sobre o requerimento que antecede foi elaborada informação, não datada, pela instrutora do processo disciplinar, que mereceu a concordância do Conselho de Administração do CHUC e da qual consta, além do mais, o seguinte:
“(...) Nos termos do art.° 6.°, são amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.
Nos termos do art.° 4.° são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
Ora, «AA» foi condenado pela prática de um crime de abuso de poder na pena de 2 anos de prisão.
O crime de abuso de poder praticado pelo arguido é punido com pena de prisão até 3 anos.
Nos termos da alínea d) ponto ii) do n.° 1 do art.° 7.°, não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei, os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.° e 292.° do Código Penal.
Ora, «AA» foi também condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário na pena de um ano e seis meses de prisão.
O crime de condução perigosa de veículo rodoviário praticado pelo arguido é punido com pena de prisão até 3 anos.
Nestes termos, face ao exposto, «AA» não beneficia do disposto na Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações, não havendo lugar à extinção do procedimento disciplinar conforme requerido, devendo continuar a correr os seus trâmites o procedimento disciplinar n.º ...20, em apreço”
(cfr. docs. de fls. 1074 a 1076 do processo administrativo).
9) Em 17/11/2023, o A. apresentou recurso tutelar, dirigido ao Ministro da Saúde, contra a decisão do Conselho de Administração do CHUC que entendeu que o mesmo não podia beneficiar do disposto na Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 (cfr. docs. de fls. 1079 a 1085 do processo administrativo).
10) Em 23/01/2024, a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde elaborou o parecer n.º 1696/2024 acerca do recurso tutelar interposto pelo A., do qual consta, além do mais, o seguinte:
“12. Os factos provados em sede criminal, imputados ao arguido, ora recorrente, consubstanciam comportamentos que integram infração disciplinar extremamente grave pois praticados com culpa muito grave, mais gravosos do que os que justificam a pena de suspensão e tornam o trabalhador indigno de permanecer ao serviço, sendo prejudicial para a imagem, prestígio e eficiência do serviço público, integrando a al. c) do n.º 3 do art.º 297.º da LTFP, que descreve exemplos padrão que entende inviabilizarem, em abstrato, a manutenção da relação funcional: (...).
(...)
14. Ou seja, tem de tratar-se, como ocorre no caso concreto, de comportamentos praticados com culpa muito grave, fundamentalmente dolosos e que tornam o trabalhador indigno de permanecer ao serviço.
(...)
18. Ora, é indubitável que esta atuação do arguido é de extrema gravidade, revelando um grave desrespeito pelas regras, pela entidade patronal, pelos seus superiores hierárquicos e pelos seus colegas,
19. atuando com dolo e grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres funcionais, violando os deveres de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo e lealdade, estabelecidos nas alíneas a), b), c), e) e g) do n.º 2 do art.º 73.º da LTFP, com o que praticou a infração prevista na al. c) do n.º 3 do art.º 297.º da mesma lei, punida nos termos dos artigos 180.º, 187.º e 297.º com a sanção de despedimento disciplinar.
(...)
21. Prova de tal gravidade é que, no caso concreto, as infrações imputadas ao arguido, aqui recorrente, foram enquadradas como sendo, em simultâneo, um ilícito penal como se comprova do teor do referido Acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, atrás citado.
22. Mostrando-se a pena de despedimento adequada à gravidade da infração disciplinar cometida, atentos os critérios definidos no art.º 189.º da LTFP.
(...)
30. Ora, no caso em apreço, nunca poderia o recorrente estar abrangido pela amnistia a que se reporta a Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto.
31. Como se viu, é imputado ao aqui recorrente a prática de infração de deveres profissionais que consubstancia, simultaneamente, um ilícito penal de abuso de poder, crime não amnistiado, não só pelo limite de idade de 30 anos previsto no n.° 1 do art.° 2.°, (...) como também pela pena aplicável a tal crime, que é superior a 1 ano de prisão (até 3 anos).
32. Por outro lado, também não lhe seria aplicável o disposto no referido diploma legal, porque a pena disciplinar a ser-lhe concretamente aplicada é a de despedimento que não cai na previsão normativa do art.° 6.° pois que aí apenas se prevê a amnistia de infrações que tenham sido punidas com pena disciplinar não superior a suspensão.
33. Desta forma, resta concluir pela não verificação dos pressupostos previstos no diploma de perdão de penas e amnistia de infrações e, assim, não considerar o arguido, ora recorrente, amnistiado das infrações disciplinares que lhe foram imputadas”
(cfr. doc. junto com a petição inicial).
11) Em 26/01/2024, a Secretária-Geral do Ministério da Saúde proferiu despacho de indeferimento do recurso tutelar que havia sido interposto pelo A., com base nos fundamentos e conclusão do parecer que antecede, mantendo a decisão recorrida (cfr. doc. junto com a petição inicial).
12) O A. foi notificado da decisão e do parecer referidos nos pontos anteriores através de ofício de 02/02/2024 (cfr. doc. junto com a petição inicial).
13) O A. nasceu no dia ../../1961 e detém a categoria de Assistente Graduado de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva e Queimados (cfr. doc. de fls. 51 do processo administrativo).
14) A petição inicial da presente ação deu entrada em juízo no dia 13/03/2024 (cfr. doc. de fls. 1 do processo eletrónico).
DE DIREITO
É objecto de recurso o saneador-sentença que concluiu que não se verificam, no caso concreto, os pressupostos (cumulativos) de que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, faz depender a amnistia da infração disciplinar de que o Autor vem acusado no âmbito do procedimento disciplinar n.º ...20 e, em consequência, julgou a ação administrativa improcedente e absolveu a Entidade Demandada.
Com a interposição da acção pretende o Autor que seja anulado o ato administrativo praticado pela Entidade Demandada, que julgou o recurso tutelar por si interposto e que concluiu pela não verificação dos pressupostos previstos na lei da amnistia, não considerando o Autor amnistiado das infrações disciplinares que lhe foram imputadas, com a subsequente extinção do procedimento disciplinar instaurado contra o Recorrente.
Como fundamentos do pedido invoca:
-A interpretação aposta na decisão de mérito contraria diretamente a letra da lei, sendo, por isso, ilegal;
Com efeito,
-Defende o Autor que, do elenco dos crimes integradores das exceções à aplicação da amnistia, prevista no art.º 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não consta o crime de abuso de poder pelo que ter-se-á de ter o mesmo como um dos crimes passíveis de amnistia;
-O limite de idade imposto para beneficiar da amnistia apenas se aplica às sanções penais, não sendo aplicável à amnistia de infrações disciplinares, que está aqui em causa;
-Quanto ao fundamento da inaplicabilidade da Lei da Amnistia pelo facto de a moldura penal aplicável ao crime de abuso de poder, ser até 3 anos, alega que a moldura penal não é pressuposto da aplicação ou desaplicação da amnistia porquanto o legislador, no art.º 7.º, foi exaustivo ao elencar o tipo de crimes que não são abrangidos pela Lei;
-E o facto de a moldura penal aplicável ao crime de abuso de poder ser até 3 anos, tal não impede a aplicação aos autos da lei da Amnistia;
-A factualidade imputada ao arguido no procedimento disciplinar, não integra a previsão normativa do art.º 297.º da LTFP e, portanto, em caso algum, pode constituir causa de despedimento e daí que não se poderá falar que a sanção disciplinar aplicável é superior à pena de suspensão;
-Defendendo que nenhum dos fundamentos da sentença recorrida é capaz de afastar a aplicação aos autos da Lei da Amnistia.
Por seu turno, a decisão recorrida considerou:
“(...)
No caso dos autos, no processo disciplinar em que o A. é arguido (n.º 12/2020), vem o mesmo acusado da prática de infração disciplinar grave consubstanciada na violação dos deveres de prossecução do interesse público, de isenção, de imparcialidade, de zelo e de lealdade a que estava adstrito, pelo facto de, no dia 24/06/2017, ter diligenciado no sentido de viciar o processo de recolha de sangue e de impedir, nesse novo exame, a quantificação da taxa de alcoolémia de que era então portador, na sequência do acidente de viação ocorrido naquela data, inviabilizando, dessa forma, a imputação do crime de condução sob o efeito do álcool. Mais vem o A. acusado de ter atuado com dolo e grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres funcionais, praticando uma infração subsumível ao disposto no n.º 1 do art.º 297.º da LGTFP e a que corresponde a sanção de despedimento ou demissão, por se ter entendido que a conduta infratora que lhe vem imputada, atenta a sua gravidade e consequências, minou a necessária relação de confiança entre si e a sua entidade empregadora («DD»), o que impossibilita ou inviabiliza a manutenção da relação de trabalho (...).
Sabe-se igualmente que, no âmbito do processo-crime que correu os seus termos no Juízo Central Criminal de Coimbra sob o n.º 3573/17.... (no qual o A. foi julgado pela mesma factualidade que está em causa no presente procedimento disciplinar n.º ...20), foi proferido acórdão, em 02/12/2020, que condenou o A. pela prática de um crime de abuso de poder, p.p. nos art.ºs 26.º e 382.º do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, bem como pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. nos art.ºs 291.º, n.º 1, alínea a), 69.º, n.º 1, alínea), do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de um ano, resultando na condenação do A., em cúmulo jurídico, na pena de dois anos e dez meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com o dever de entregar aos Bombeiros Voluntários a quantia de € 5.000,00 e, ainda, com regime de prova, que incluiu o curso de prevenção de sinistralidade rodoviária e, também, durante o período de suspensão da pena, com a proibição de proceder à recolha de sangue para efeitos de pesquisa de álcool no sangue, tendo sido, por fim, condenado na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de um ano. (...).
Ora, no caso em apreço, dúvidas não restam que se mostra verificado o primeiro dos requisitos acima enunciados (requisito geral) para a aplicação da Lei n.° 38-A/2023, pois que estamos em presença de uma infração disciplinar assente em factos que se reportam a junho de 2017, ou seja, que terá sido praticada até às 00:00horas de 19/06/2023.
Porém, o mesmo já não sucede quanto aos demais pressupostos ali descritos. Isto porque, por um lado, a infração disciplinar de que o Autor vem acusado constitui, em simultâneo, um ilícito penal não amnistiado.
Com efeito, nos termos das disposições conjugadas dos art.°s 2.°, n.° 1, e 4.° da Lei n.° 38-A/2023, só são amnistiadas as infrações ou ilícitos penais : (i) praticados até às 00:00horas do dia 19/06/2023 por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos; e (ii) cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
Resulta dos autos, como vimos, que, pela mesma factualidade que está em causa no procedimento disciplinar, o A. foi condenado (por acórdão já transitado em julgado) pela prática quer de um crime de abuso de poder, que é punido com pena de prisão até 3 anos (art.° 382.°° do Código Penal), quer de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, que é igualmente punido com pena de prisão até 3 anos (art.° 291.°, n.° 1, alínea a) do Código Penal). Acresce que, à data da prática do facto (junho de 2017), o A. contava com 55 anos de idade.
Não colhe, assim, o argumento do A. de que, não integrando o crime de abuso de poder o elenco de ilícitos penais que, nos termos do art.° 7.°, não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na Lei n.º 38-A/2023, deve tal crime considerar-se, a contrario sensu, como um dos que são passíveis de serem amnistiados, pelo que a infração disciplinar de que vem acusado não constituiria simultaneamente um ilícito penal não amnistiado.
O certo é que, a par destes crimes que se encontram excluídos, por definição, da amnistia, também não poderão ser amnistiados, evidentemente, todos aqueles crimes ou ilícitos penais que, pese embora não constem daquele elenco do art.º 7.º da Lei n.º 38-A/2023, não preenchem, numa avaliação casuística, os requisitos ou pressupostos de que depende essa amnistia: ou porque não foram praticados até às 00hoo do dia 19/06/2023, ou porque não foram praticados por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática do facto, ou porque a pena aplicável a esse ilícito é superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
E é precisamente esta última situação aquela que se verifica no caso do Autor/Recorrente; com efeito, mesmo admitindo que o crime de abuso de poder que lhe foi imputado e pelo qual já foi condenado, pela mesma factualidade subjacente à infração disciplinar em apreciação, não conste do elenco do art.º 7.º da Lei n.º 38-A/2023, o certo é que se trata de um ilícito penal não amnistiado porque foi praticado por pessoa com idade superior a 30 anos à data da prática do facto e, bem assim, porque a pena aplicável (e efetivamente aplicada) a esse ilícito é superior a 1 ano de prisão.
Ademais, o A., além da condenação pela prática de um crime de abuso de poder, também foi condenado, tendo por base a mesma factualidade constante do procedimento disciplinar, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário (...). Ou seja, também com este fundamento seria imperioso concluir que a infração de que o A. vem acusado constitui, em simultâneo, um ilícito penal (crime de condução perigosa de veículo rodoviário) não amnistiado, porque expressamente excluído da possibilidade de aplicação da amnistia.
Carece igualmente de fundamento a alegação de que da Lei n.º 38-A/2023 resulta que a moldura penal dos crimes não é pressuposto da aplicabilidade da amnistia, pelo que o facto de o crime de abuso de poder ser punível com pena de prisão até 3 anos não impede que o mesmo possa beneficiar da amnistia.
Não corroboramos essa leitura.
Efectivamente o Autor labora em erro (...) uma vez que, como decorre cristalinamente do art.º 4.º da Lei n.º 38-A/2023, apenas são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável (isto é, cuja moldura penal abstrata) não seja superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa, sempre só abrangendo os cidadãos entre os 16 e os 30 anos, à data do evento (...).
Por outro lado, temos que a sanção disciplinar aplicável à infração de que o A. vem acusado é superior à sanção de suspensão.
(...)
Ora, para efeitos de aferição da aplicabilidade da Lei nº 38-A/2023 numa situação como a dos autos, em que ainda não existe condenação efetiva, estando o processo disciplinar em curso, com dedução de acusação contra o arguido, o que importa ter em consideração é a concreta infração disciplinar que lhe vem imputada nessa acusação e a sanção que, atento, o enquadramento legal ali efetuado, lhe pode ser aplicada.
Compulsada a referida acusação, é manifesto que o A. vem acusado de ter praticado uma infração disciplinar que, pela gravidade da sua conduta e do juízo de censurabilidade que lhe é dirigido na acusação e, bem assim, pela descrição das consequências que os factos imputados têm na confiança que tem de existir na relação laboral com a sua entidade empregadora, é suscetível de inviabilizar a manutenção do vínculo e, nessa medida, é suscetível de ser sancionada com a pena de despedimento ou demissão.
Se os factos que vêm imputados ao A. não se verificaram ou se a entidade empregadora não chega a demonstrar a impossibilidade de manutenção do vínculo funcional, trata-se de questões que terão de ser apreciadas, se for esse o caso, na sede e no momento próprios, não relevando para a questão da aplicabilidade (ou não) da Lei nº 38-A/2023.
Como também se afigura irrelevante, para a questão a dirimir nos presentes autos, o facto de já ter sido proferida, no processo disciplinar aqui em crise, decisão final (entretanto anulada por recurso do A.) que lhe aplicou a pena de 30 dias de suspensão, pois que ali foi efetuado, certamente, um diferente enquadramento e valoração jurídico-disciplinar da conduta do arguido que em nada influencia a conclusão de que, in casu, atenta a (nova) acusação deduzida contra o A., é-lhe imputada a prática de uma infração passível de ser sancionada com a pena de demissão ou despedimento (superior, portanto, à suspensão).
(...)
E os demais argumentos avançados pelo A. também não podem ter acolhimento, pois, se é certo que o limite de idade (30 anos) apenas se aplica à amnistia dos ilícitos penais, não menos certo é que a não verificação desse requisito/limite foi invocada como fundamento, precisamente, para a conclusão de que o ilícito penal igualmente imputado ao A. não podia ser amnistiado e, como tal, a infração de que este foi acusado, por constituir simultaneamente um ilícito penal não amnistiado, não podia beneficiar dessa amnistia.
(...).
Segundo o Recorrente, uma vez que o caso dos autos constitui igualmente crime e infração disciplinar (abuso de poder), impõe-se aquilatar se tal crime integra o elenco de crimes não amnistiados pela Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto.
E de tal elenco não consta o crime de abuso de poder. O qual, por via de uma interpretação a contrario sensu tal crime (...) integra o elenco de crimes passíveis de amnistia.
No que tange ao limite de idade para beneficiar da amnistia, tal limite de idade (30 anos), como resulta do artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto - apenas se aplica às sanções penais e, já não, à amnistia de infrações disciplinares contrariamente ao expendido na decisão sob recurso.
Ora, estando em causa nos autos, a amnistia de infrações disciplinares, tal limite de idade não é aqui aplicável - improcedendo, por essa via, outro dos fundamentos vertidos na decisão recorrida.
Já no que concerne ao fundamento da inaplicabilidade da Lei n.° 38-A/2023 de 02 de agosto, pelo facto da moldura penal aplicável ao crime de abuso de poder ser de até 3 anos (superior a 1 ano) - tal fundamento, a apar da limitação de idade, não encontra qualquer respaldo legal - pelo menos naquilo que contende com a amnistia aplicável às infrações disciplinares. Pois a moldura penal não constitui pressuposto de aplicação ou desaplicação da amnistia - pelo menos, naquilo que respeita à amnistia das infrações disciplinares.
Na verdade, o legislador foi exaustivo no art.º 7.º ao elencar todo o tipo de crimes que não se mostram abrangidos pela amnistia.
Pois, se assim não fosse, não existiria qualquer razão para a existência do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto - visto que o artigo 4.º do mesmo diploma resolveria a situação ao limitar a amnistia a todas as infrações penais cuja pena aplicável não fosse superior a um ano.
Isto posto, o facto da moldura penal aplicável ao crime de abuso de poder ser de até 3 anos - tal facto, por si, não impede a aplicação aos presentes autos da Lei n.° 38-A/2023, de 02 de agosto.
Já no que concerne à (in) aplicabilidade da Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto pelo facto de a pena aplicável ser de demissão e a lei limitar a aplicação aos casos em que a pena aplicada não seja superior à suspensão - também nos parece, não constituir fundamento para afastar a aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto aos casos como o dos presentes autos - como parece resultar da decisão recorrida.
E continua o Recorrente, analisada a factualidade que lhe é imputada, facilmente se infere que tais factos não integram a previsão normativa do artigo 7.º da LGTFP e, como tal, a conduta imputada ao Recorrente em caso algum poderá constituir causa de despedimento, nos termos do artigo 297.º da LGTFP.
Mas ainda que assim não fosse, só com a defesa apresentada pelo Recorrente, com a produção de toda a prova por si convocada e produzidas as demais provas da acusação seria possível aquilatar, com alguma dose de certeza, qual a medida a aplicar no caso concreto, atentos os critérios estabelecidos no artigo 184.º a 188º da LGTFP.
Daí que não se poderá falar, pelo menos ab initio - que a sanção disciplinar aplicável nos presentes autos de procedimento disciplinar é superior à suspensão; algo que apenas se poderá almejar, como já se disse, após a finalização do procedimento disciplinar respetivo.
E, ainda assim, atentos os factos imputados, em caso algum, a medida concreta da sanção aplicável ao Recorrente poderá ultrapassar a medida da culpa e, como tal, terá sempre que se deter no limite máximo legalmente previsto - ou seja, pela sanção de suspensão.
Vejamos,
Fundamenta, o Autor/Recorrente a ilegalidade do ato administrativo de
26-01-2024 da Senhora Secretária-Geral do Ministério da Saúde, no entendimento de que, do elenco dos crimes integradores das exceções à aplicação da amnistia, prevista no art.º 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não consta o crime de abuso de poder pelo que ter-se-á de ter como um dos crimes passíveis de amnistia.
Não secundamos este entendimento.
Em primeiro lugar, temos que por Acórdão, proferido nos autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) com o n.º 3673/17...., em que é autor, o Ministério Público e arguido, o ora Recorrente (conforme consta da certidão do Tribunal Judicial de Coimbra - Juízo Central Criminal de Coimbra - Juiz ...), proferido em 02-12-2020 e já transitado em julgado, o aqui Recorrente foi condenado, como autor dos crimes de abuso de poder e de condução perigosa de veículo rodoviário em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com o dever de entregar aos Bombeiros Voluntários a quantia de 5.000,00€ no prazo de 60 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão e, ainda, com regime de prova, durante o período de suspensão, que inclua o curso de prevenção de sinistralidade rodoviária, e, também na proibição de proceder à recolha de sangue para efeitos de pesquisa de álcool no sangue, bem como na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de uma ano.
Ora, os factos provados em sede criminal, imputados ao arguido, aqui Recorrente, consubstanciam comportamentos que integram infração disciplinar extremamente grave pois praticados com culpa muito grave, mais gravosos do que os que justificam a pena de suspensão e tornam o trabalhador indigno de permanecer ao serviço, sendo prejudicial para a imagem, prestígio e eficiência do serviço público, integrando a al. c) do n.º 3 do art.º 297.º da LTFP, que descreve exemplos padrão que entende inviabilizarem, em abstrato, a manutenção da relação funcional: “No exercício das suas funções, pratique atos manifestamente ofensivos das instituições ...”.
Na verdade, a gravidade objetiva do facto cometido, revela uma personalidade inadequada ao exercício de funções públicas, revelando um grave desrespeito pelas regras, pela entidade patronal, pelos seus superiores hierárquicos e pelos seus colegas.
Aliás, o comportamento do arguido é de tal maneira grave que normal é que inviabilize a continuação da relação funcional porquanto quebrou a confiança que nela era depositada pelo CHUC.
Prova de tal gravidade é que, no caso concreto, as infrações imputadas ao arguido, aqui Recorrente, foram enquadradas como sendo, em simultâneo, um ilícito penal como se comprova do teor do referido Acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, atrás citado. Mostrando-se a pena de despedimento abstratamente adequada à gravidade da infração disciplinar cometida, atentos os critérios definidos no art.º 189.º da LTFP.
Com efeito, na escolha concreta da pena disciplinar deverá atender-se, como impõe este preceito, à natureza, à missão e às atribuições do serviço e gravidade da infração, ao cargo e categoria do trabalhador, ao grau de culpa, à sua personalidade e a todas as circunstâncias em que a infração tenha sido cometida, que militem contra ou a seu favor.
É certo que, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal, entre os dias 1 e 6 de agosto de 2023, marcada pela visita do Papa ao país, foi publicada a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações.
Pode ler-se o seguinte no seu art.º 2.º:
“Artigo 2.º
Âmbito
1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) (...)
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º.”
Por outro lado, dispõe o art.º 6.º do mesmo diploma:
“Artigo 6.º
Amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares
São amnistiadas as infrações disciplinares (...) que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”
Em traços gerais, a amnistia é uma medida de clemência que o Estado concede, em certas circunstâncias, anulando o preenchimento de determinados tipos legais de crimes, cometidos por um conjunto mais ou menos amplo de pessoas, até determinada data.
É “(...) o ato de graça pelo qual o poder político (a Assembleia da República) declara, por uma lei formal, geral e abstrata, extinta a responsabilidade (...) derivada de factos cometidos dentro de um período de tempo, por uma categoria geral de pessoas” - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Universidade católica Portuguesa, 2021, p. 537.
Ora, no caso em apreço, ao contrário do que é defendido pelo Recorrente nunca poderia o mesmo estar abrangido pela amnistia a que se reporta a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Como se viu, é imputado ao aqui recorrente, a prática de infração de deveres profissionais que consubstancia, simultaneamente, um ilícito penal de abuso de poder, crime não amnistiado, não só pelo limite de idade de 30 anos previsto no n.º 1 do art.º 2.º, ou seja, para “sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º 1e 4.º 2.” como também pela pena aplicável a tal crime que é superior a 1 ano de prisão (até 3 anos).
O facto de um crime não constar no elenco daqueles que, por si só, determinam a exclusão das medidas estabelecidas na Lei em análise, não impede que o respetivo agente possa, ainda assim, não beneficiar destas por força das demais exceções igualmente previstas, como ocorre no caso dos autos.
Ademais, in casu, verifica-se a exceção prevista no n.º 1, al. l do art.º 7.º pois, efetivamente, o art.º 7.º do diploma em análise exceciona da aplicação da amnistia várias hipóteses, designadamente, e entre outros,
- na al. l, os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo.
Desta forma, conclui-se pela não verificação dos pressupostos previstos no diploma de perdão de penas e amnistia de infrações e, assim, não considerar o arguido, ora Recorrente, amnistiado das infrações disciplinares que lhe foram imputadas. Isto é, a infração disciplinar em causa não só configura a prática de ilícito penal, pelo qual o aqui Recorrente já foi condenado por sentença transitada em julgado, como também a sanção disciplinar a aplicar é superior à suspensão, pelo que, consequentemente, a infração em apreço não se encontra abrangida pela amnistia concedida nos artigos 2.º, n.º 2, al. b) e 6.º e 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Em suma,
Como referido na sentença:
(…)
O A. insurge-se, na presente ação, contra o ato administrativo (decisão do recurso tutelar) que, no âmbito do procedimento disciplinar que contra si foi instaurado e que corre os seus termos sob o n.° 12/2020, decidiu não ser aplicável o disposto na Lei n.° 38-A/2023, de 02/08, por não se verificarem os pressupostos de que depende a amnistia das infrações disciplinares que ali vêm imputadas ao arguido. Entende, em suma, o A. que, dissecados todos os fundamentos apostos na decisão impugnada, nenhum deles é capaz de afastar a aplicação da Lei n.° 38-A/2023, de 02/08, ao procedimento disciplinar aqui em causa, concluindo que as infrações de que vem acusado devem ser declaradas amnistiadas e que este procedimento deve ser impreterivelmente extinto.
(…)
Ou seja, no que se refere às infrações disciplinares, são pressupostos cumulativos de aplicação da Lei n.° 38-A/2023, de 02/08: (i) que a infração disciplinar tenha sido cometida até às 00h00 do dia 19/06/2023 (requisito geral); (ii) que tal infração disciplinar não constitua simultaneamente um ilícito penal não amnistiado; e (iii) que a sanção disciplinar aplicável (ou já aplicada) não seja superior à sanção de suspensão (requisitos especiais). E basta que um destes requisitos não se mostre verificado para que a amnistia não possa ser aplicada.
No caso dos autos, no processo disciplinar em que o A. é arguido (n.° 12/2020), vem o mesmo acusado da prática de infração disciplinar grave consubstanciada na violação dos deveres de prossecução do interesse público, de isenção, de imparcialidade, de zelo e de lealdade a que estava adstrito, pelo facto de, no dia 24/06/2017, ter diligenciado no sentido de viciar o processo de recolha de sangue e de impedir, nesse novo exame, a quantificação da taxa de alcoolémia de que era então portador, na sequência de acidente de viação ocorrido naquela data, inviabilizando, dessa forma, a imputação do crime de condução sob o efeito de álcool. Mais vem o A. acusado de ter atuado com dolo e grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres funcionais, praticando uma infração subsumível ao disposto no n.° 1 do art.° 297.° da LGTFP e a que corresponde a sanção de despedimento ou demissão, por se ter entendido que a conduta infratora que lhe vem imputada, atenta a sua gravidade e consequências, minou a necessária relação de confiança entre si e a sua entidade empregadora (CHUC), o que impossibilita ou inviabiliza a manutenção da relação de trabalho (cfr. ponto 5 dos factos provados).
Sabe-se igualmente que, no âmbito do processo crime que correu os seus termos no Juízo Central Criminal de Coimbra sob o n.° 3673/17.... (no qual o A. foi julgado pela mesma factualidade que está em causa no presente procedimento disciplinar n.º ...20), foi proferido acórdão, em 02/12/2020, que condenou o A. pela prática de um crime de abuso de poder, p. p. nos art.os 26.° e 382.° do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, bem como pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. nos art.os 291.°, n.° 1, alínea a), e 69.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de um ano, resultando na condenação do A., em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos e dez meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com o dever de entregar aos Bombeiros Voluntários a quantia de € 5.000,00 e, ainda, com regime de prova, que incluiu o curso de prevenção de sinistralidade rodoviária e, também, durante o período de suspensão da pena, com a proibição de proceder à recolha de sangue para efeitos de pesquisa de álcool no sangue, tendo sido, por fim, condenado na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de um ano. Este acórdão transitou em julgado, relativamente ao A., no dia 30/03/2023 (cfr. pontos 3 e 4 dos factos provados).
Ora, não temos dúvidas de que, no caso em apreço, se mostra verificado o primeiro dos requisitos acima enunciados (requisito geral) para a aplicação da Lei n.° 38-A/2023, pois que estamos em presença de uma infração disciplinar assente em factos que se reportam a junho de 2017, ou seja, que terá sido praticada até às 00:00 horas de 19/06/2023.
Mas assim já não sucede quanto aos demais pressupostos ali descritos.
Isto porque, por um lado, a infração disciplinar de que o A. vem acusado constitui, em simultâneo, um ilícito penal não amnistiado.
(…)
Não colhe o argumento do A. de que, não integrando o crime de abuso de poder o elenco de ilícitos penais que, nos termos do art.º 7.º, não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na Lei n.º 38-A/2023, deve tal crime considerar-se, a contrariu sensu, como um dos que são passíveis de serem amnistiados, pelo que a infração disciplinar de que vem acusado não constituiria simultaneamente um ilícito penal não amnistiado.
Note-se que o art.º 7.º da Lei n.º 38-A/2023 prevê um conjunto de crimes que se encontram, por si só, excluídos do âmbito de aplicação do referido diploma - não podendo o respetivo infrator beneficiar, em qualquer caso, da amnistia -, mesmo que se tratasse de um ilícito penal praticado até às 00h00 do dia 19/06/2023 por pessoa que tinha entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto e cuja pena aplicável não fosse superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa. Independentemente da verificação destes pressupostos ou requisitos para a amnistia dos ilícitos penais, se se tratar de um dos crimes elencados no art.º 7.º da Lei n.º 38-A/2023, os mesmos estão excluídos da aplicação do referido diploma, não podendo, pois, ser alvo de declaração de amnistia (por outras palavras, são forçosamente e por natureza ilícitos penais não amnistiados).
O certo é que, a par destes crimes que se encontram excluídos, por definição, da amnistia, também não poderão ser amnistiados, evidentemente, todos aqueles crimes ou ilícitos penais que, pese embora não constem daquele elenco do art.º 7.º da Lei n.º 38A/2023, não preenchem, numa avaliação casuística, os requisitos ou pressupostos de que depende essa amnistia: ou porque não foram praticados até às 00h00 do dia 19/06/2023, ou porque não foram praticados por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, ou porque a pena aplicável a esse ilícito é superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
E é precisamente esta última situação aquela que se verifica no caso do A.: mesmo admitindo que o crime de abuso de poder que lhe foi imputado e pelo qual já foi condenado, pela mesma factualidade subjacente à infração disciplinar em apreciação, não conste do elenco do art.° 7.° da Lei n.° 38-A/2023, o certo é que se trata de um ilícito penal não amnistiado porque foi praticado por pessoa com idade superior a 30 anos à data da prática do facto e, bem assim, porque a pena aplicável (e efetivamente aplicada) a esse ilícito é superior a 1 ano de prisão.
Sem prejuízo do acima exposto, a verdade é que o A., além da condenação pela prática de um crime de abuso de poder, também foi condenado, tendo por base a mesma factualidade constante do procedimento disciplinar, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. nos art.os 291.°, n.° 1, alínea a), e 69.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal. Ora, dispõe o art.° 7.°, n.° 1, da Lei n.° 38-A/2023 que “não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (..) d) no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: (..) ii) crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.° e 292.° do Código Penal” (sublinhado nosso). Ou seja, também com este fundamento seria imperioso concluir que a infração disciplinar de que o A. vem acusado constitui, em simultâneo, um ilícito penal (crime de condução perigosa de veículo rodoviário) não amnistiado, porque expressamente excluído da possibilidade de aplicação da amnistia.
Carece igualmente de fundamento a alegação de que da Lei n.° 38-A/2023 resulta que a moldura penal dos crimes não é pressuposto da aplicabilidade da amnistia, pelo que o facto de o crime de abuso de poder ser punível com pena de prisão até 3 anos não impede que o mesmo possa beneficiar da amnistia. Labora o A. em erro, salvo o devido respeito, uma vez que, como decorre cristalinamente do art.° 4.° da Lei n.° 38-A/2023, apenas são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável (isto é, cuja moldura penal abstrata) não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, sempre só abrangendo os cidadãos entre os 16 e os 30 anos, à data do evento (cfr., por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/03/2024, proc. n.º 31/19.7JACBR.C2, publicado em www.dgsi.pt).
Por outro lado, temos que a sanção disciplinar aplicável à infração de que o A. vem acusado é superior à sanção de suspensão.
Basta, para tanto, ter presente que, como já dissemos supra e conforme resulta da acusação que foi deduzida contra o arguido no procedimento disciplinar (ainda em curso), o A. foi aí acusado da prática de infração disciplinar grave consubstanciada na violação dos deveres de prossecução do interesse público, de isenção, de imparcialidade, de zelo e de lealdade a que estava adstrito, com dolo e grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres funcionais, praticando uma infração subsumível ao disposto no n.º 1 do art.º 297.º da LGTFP e a que corresponde a sanção de despedimento ou demissão, por se ter entendido que a conduta infratora que lhe vem imputada, atenta a sua gravidade e consequências, minou a necessária relação de confiança entre si e a sua entidade empregadora (CHUC), o que impossibilita ou inviabiliza a manutenção da relação de trabalho.
Ora, para efeitos de aferição da aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023 numa situação como a dos autos, em que ainda não existe condenação efetiva, estando o processo disciplinar em curso, com dedução de acusação contra o arguido, o que importa ter em consideração é a concreta infração disciplinar que lhe vem imputada nessa acusação e a sanção que, atento o enquadramento legal ali efetuado, lhe pode ser aplicada.
Compulsada a referida acusação, é manifesto, para nós, que o A. vem acusado de ter praticado uma infração disciplinar que, pela gravidade da sua conduta e do juízo de censurabilidade que lhe é dirigido na acusação e, bem assim, pela descrição das consequências que os factos imputados têm na confiança que tem de existir na relação laboral com a sua entidade empregadora, é suscetível de inviabilizar a manutenção do vínculo e, nessa medida, é suscetível de ser sancionada com a pena de despedimento ou demissão.
Se os factos que vêm imputados ao A. não se verificaram ou se a entidade empregadora não chega a demonstrar a impossibilidade de manutenção do vínculo funcional, trata-se de questões que terão de ser apreciadas, se for esse o caso, na sede e no momento próprios, não relevando para a questão da aplicabilidade (ou não) da Lei n.º 38-A/2023. Como também se afigura irrelevante, para a questão a dirimir nos presentes autos, o facto de já ter sido proferida, no processo disciplinar aqui em crise, decisão final (entretanto anulada por recurso do A.) que lhe aplicou a pena de 30 dias de suspensão, pois que ali foi efetuado, certamente, um diferente enquadramento e valoração jurídico-disciplinar da conduta do arguido que em nada influencia a conclusão de que, in casu, atenta a (nova) acusação deduzida contra o A., é-lhe imputada a prática de uma infração passível de ser sancionada com a pena de demissão ou despedimento (superior, portanto, à suspensão).
Razão pela qual também não faz qualquer sentido, salvo o devido respeito, pugnar pela declaração de amnistia da infração disciplinar e pela extinção do procedimento, ao abrigo da citada Lei n.º 38-A/2023, com fundamento em que só com a defesa escrita ali apresentada pelo A., com a produção de toda a prova por si convocada e das demais provas da acusação seria possível aquilatar qual a medida a aplicar no caso concreto, atento os critérios estabelecidos nos art.os 184.º a 188.º da LGTFP.
A factualidade que vem imputada ao A. na acusação e o enquadramento jurídico-disciplinar que é efetuado denotam - bem ou mal, o que aqui não cabe apreciar, como se disse - que a infração disciplinar em causa é passível de ser sancionada com pena superior à da suspensão (in casu, com a pena de demissão).
E os demais argumentos avançados pelo A. também não podem ter acolhimento: se é certo que o limite de idade (30 anos) apenas se aplica à amnistia dos ilícitos penais, não menos certo é que a não verificação desse requisito/limite foi invocada como fundamento, precisamente, para a conclusão de que o ilícito penal igualmente imputado ao A. não podia ser amnistiado e, como tal, a infração disciplinar de que este foi acusado, por constituir simultaneamente um ilícito penal não amnistiado, não podia beneficiar dessa amnistia.
Revemo-nos, pois, na assertiva fundamentação do Tribunal a quo.
Logo, não se verificando, no caso concreto, os pressupostos (cumulativos) de que a Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, faz depender a amnistia da infração disciplinar de que o Autor/Recorrente vem acusado no âmbito do procedimento disciplinar n.º ...20, tem de manter-se no ordenamento jurídico o aresto recorrido.
Como sumariado no Acórdão do STA de 24/10/2024, proc. nº 01619/23.7BEPRT:
I - A amnistia dirige-se à infração enquanto tal, impedindo a sua punição ou extinguindo-a, determinando mesmo a extinção das penas já aplicadas.
II - De acordo com a doutrina e jurisprudência maioritária, tratando-se a amnistia e o perdão de providências de exceção, não comportam, por essa mesma razão, aplicação analógica (art. 11.º do C.Civil), nem sequer admitem interpretação extensiva ou restritiva. Assim sendo, devem ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, com respeito pelo preceituado no artigo 9.º do C.Civil.
III - A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, não estabelece no seu artigo 2.º, n.º 2, al. b), qualquer limitação etária para a sua aplicação no âmbito das infrações disciplinares que ao mesmo tempo não possam configurar ilícitos penais.
(sublinhado nosso).
Improcedem as Conclusões das alegações.
DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente.
Notifique e DN.
Porto, 07/02/2025
Fernanda Brandão
Isabel Jovita
Paulo Ferreira de Magalhães |