Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00059/17.1BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/02/2023
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACIDENTE DE VIAÇÃO; RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL;
ATRAVESSAMENTO DE ANIMAL;
PRESUNÇÃO DE CULPA DA CONCESSIONÁRIA;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Objecto:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA» instaurou ACÇÃO ADMINISTRATIVA contra [SCom01...] E ALTA, [SCom02...], SA, todos melhor identificados nos autos, pedindo:
“Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência:
I. Deve a Ré ser condenada a pagar ao Autor a quantia de € 2.250,00 a que se referem os artigos 50º a 63º desta petição e referente ao custo de reparação da viatura em questão.
II. Deve a Ré ser condenada a pagar ao Autor, indemnização por danos de privação de uso da sua viatura JR, no valor de 50,00 euros por dia, desde o dia 22.04.2014 até ao dia 25.06.2014, à razão de 50,00€/dia, no valor de € 3.250,00, conforme alegado em 62º;
III. Deve a Ré ser condenada a pagar ao Autor a título de danos morais, a quantia de € 1.000,00, conforme alegado em 73º.
IV. Deve a Ré ser condenada a pagar juros de mora à taxa legal, sobre cada uma das quantias referidas em I, II e III desde pedido, desde a citação até integral pagamento.
V. Deve a Ré ser condenada em custas.
Para tanto requerer a citação da Ré para contestar, querendo, no prazo e sob a legal cominação.”
Requereu ainda a intervenção principal provocada da seguradora “[SCom03...], S.A - Sucursal em Portugal, S.A”, a qual veio a ser admitida por despacho de 23.06.2017.

Por sentença proferida pelo TAF de Viseu foi julgada parcialmente procedente a acção e:
a) Condenada a Ré [SCom01...] a pagar ao Autor a quantia de € 2.850,00 (dois mil oitocentos e cinquenta euros), acrescido de juros de mora desta a sua citação;
b) Absolvida a interveniente [SCom03...], S.A Sucursal em Portugal, S.A. do pedido.
Desta vem interposto recurso pela Ré [SCom01...].
Alegando, formulou as seguintes conclusões:
I. Entende a R. que o tribunal a quo não analisou correctamente a prova produzida, incorrendo em claro erro de apreciação da prova no que se refere às alíneas t), y), ff), gg) e hh) dos factos provados, além de que incorreu em não menos clara omissão de pronúncia sobre a matéria constante dos artigos 12°, 13°, 14°, 26° e 27° da contestação da R./recorrente, matéria esta que, ademais, de importante para a defesa da R. é sobretudo essencial para uma boa decisão da causa;
II. Assim, e desde logo quanto às alíneas t) e y) dos factos provados, tendo por base – note-se - única e exclusivamente o que foi “dito” pelo A. e declarante de parte e pela testemunha que com ele, A., “participou” pelo menos numa descaradamente confessada contra-ordenação fiscal, nem com essa facilidade toda (ou seja, sem quaisquer documentos ou sem que a R. tivesse, devido a uma intolerável inércia do A. no que respeita ao cumprimento de repetidos despachos judiciais, “acesso” à contraprova que requereu e foi, como dito, repetidamente ordenada) este A. conseguiu sequer provar as quantias (€ 250,00 e € 2.000,00) que a sentença do tribunal a quo decidiu dar como provadas em tais alíneas da matéria de facto provada;
III. Na verdade, e para lá de evidentes incertezas quanto a ter sido efectuada uma ou mais reparações, sobre o que terá sido reparado (e parece claro que a testemunha «BB» não foi quem terá reparado o veículo) e em que altura, entre outros “pormaiores”, falou-se (o A.) de € 250,00, mas também de € 300,00, de € 200,00, € 300,00 ou ainda € 400,00 (a testemunha «BB») e em relação aos € 2.000,00 dados como provados, tanto se achou (o A.) que podia ter sido € 2.000,00, como também podia ter sido («BB») “(...) Na ordem dos € 2.000,00 ou € 2.000,00 e não sei quantos euros (...)”;

IV. Assim, respeitando a “pífia” prova produzida a este respeito, aquelas alíneas t) e y) devem ser reunidas numa só resposta para o que se sugere a seguinte redacção:
- provado que “Em data ou datas que não foi possível precisar, o A. procedeu à reparação de danos no veículo que também não foi possível precisar, tal como sucedeu ainda com o(s) respectivo(s) custo(s).”;
V. Cabe também dizer que a resposta à alínea ee) dos factos provados, ainda que correcta, é nitidamente curta e está longe de reflectir, por si só, a alegação da R. nos artigos 25° e 26° da sua contestação e sobretudo a prova que o doc. n° ... junto com aquela peça processual conjugado com o depoimento de «CC», designadamente;
VI. Assim, e respeitando escrupulosamente a prova “legal”, documental e testemunhal, importa que, a este respeito, seja acrescentada à matéria de facto provada a considerar na decisão a seguinte factualidade:
- provado que “A R., de acordo com a obrigação que assumiu com o concedente a respeito dos patrulhamentos, organizou os patrulhamentos diários a toda a extensão da sua concessão, de forma a efectuar habitualmente passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 3 horas.
VII. Por outro lado, e mais uma vez socorrendo-nos da prova produzida pela R./recorrente, particularmente aquela testemunhal de «CC» transcrita no corpo destas alegações (mas também o depoimento de «DD»), não pode senão concluir-se que a resposta decidida na sentença do tribunal a quo à alínea gg) dos factos provados é inequivocamente incorrecta e peca por claro defeito, pois que não é rigoroso que a extensão de vedação verificada a que se refere aquela alínea tenha sido apenas aquela de “(...) um quilómetro para cada lado a contar do local do acidente (...)”;
VIII. Assim, e porque nomeadamente essa extensão foi inequivocamente do dobro dessa (1 km para cada lado a contar do local do acidente, mas em ambos os sentidos de marcha, ou seja, 4 Km – e não apenas 2 - no total), impõe-se que a redacção daquela alínea gg) dos factos seja reformulada e passe antes a ser a seguinte:

- provado que “Cerca de um mês após a ocorrência do acidente, a Ré, na sequência de um procedimento interno por si internamente estabelecido, através dos seus colaboradores e de forma apeada, verificou a vedação na extensão de um quilómetro para cada lado a contar do local do acidente, e em ambos os sentidos de marcha, não tendo sido detectadas quaisquer anomalias na vedação.”;
X. Além disso, e tal como sucedeu relativamente à clara omissão de pronúncia em relação aos artigos 26° e 27 da contestação da R. a que acima nos referimos, essa omissão de pronúncia (ou, pelo menos, a sua flagrante incorrecção, atenta designadamente a prova produzida) repete-se pelo menos no que diz respeito ao alegado em 12°, 13° e 14° da mesma peça processual, o que, de resto, pode ser facilmente concluído das respostas decididas nas alíneas ff) e hh) que se ficam pela “indefinição”, pela não concretização do que se pretendia, foi claramente provado e é indiscutivelmente relevante para a boa decisão da causa;
XI. Com efeito, pretendendo-se também saber/apurar (e o argumentário seguido na sentença de que alegadamente a vedação tem de ser “idónea” para impedir a entrada de animais só vem reforçar a total “legitimidade” dessa pretensão) se a vedação existente no local era ou não aquela que ali estar colocada e qual(ais) a(s) obrigação(ões) da concessionária R., perante o concedente e perante terceiros, em matéria de inspecção de vedações, atendendo até ao que decorre do diploma legal relevante (DL n° 142-A/2001, de 24.04, na redacção do DL n° 44-D/2010, de 05.05 (cfr. Bases XXX, n° 4, al. a), XXXI, XXXVIII e XLV, n°s 4 e 8, al. f), p. ex.) e outra vez do depoimento de «CC», não sobra dúvida nenhuma que, tal como sucede em relação à questão dos patrulhamentos/vigilância, a prova (até “legal”, por assim dizer) é inequívoca e vai precisamente naquele sentido do alegado pela R.:
XII. De sorte que deve ser aditada à factualidade provada e, naturalmente, deverá ser considerada na decisão a proferir por este Venerando T. C. A. N. a seguinte:
- ff 1) “As vedações daquela auto-estrada A...5 merecem a prévia aprovação por parte do concedente (Estado Português) através dos organismos competentes.”;
- ff 2) “À data do sinistro as vedações que se encontravam colocadas no local do sinistro e suas imediações respeitavam o respectivo projecto e mereceram prévia aprovação por parte dos organismos competentes do Estado Português,

designadamente no que se refere às suas características, tais como a sua dimensão e altura, por exemplo, pois se assim não fosse a auto-estrada A...5 não teria aberto ao tráfego.”;
- hh 1) “Para além da vistoria referida em gg), é efectuada uma inspecção anual ao estado da vedação, de acordo com o estabelecido no plano de controlo de qualidade.
Isto posto,
XIII. Não sobra qualquer dúvida que a conclusão que se pode tirar do argumentário resultante da sentença do T. A. F. de Viseu é que, sem que se perceba porquê (e sem que a sentença o diga expressamente, como certamente se lhe impunha, em nome da “coerência” e da clareza), esta R. foi condenada com base em duas ideias principais (ainda que não expressamente assumidas, diga-se assim), ou seja, numa ideia de ubiquidade/omnipresença a que supostamente estaria “obrigada” e também numa lógica (ideia) de responsabilidade objectiva que sobre si alegadamente impenderia;
XIV. Com efeito, isso resulta absolutamente inequívoco de algumas afirmações como p. ex. a putativa obrigação de demonstração por parte da R. que “(...) a vedação era idónea a impedir a entrada de animais (...)” ou que “(...) empregou todos os meios ao seu alcance para assegurar as boas condições de utilização da via, dentro do que é exigível na perspectiva do homem médio colocado naquelas concretas condições (...)” ou ainda (e já faltava!!!) a demonstração da “reconstituição histórica” do ingresso do animal na via, entre outras (poucas, é certo) sempre na mesma linha;
XV. Porém, o que é verdadeiramente (e a um mesmo tempo) problemático e incontornável é que nenhuma dessas ideias/afirmações/fundamentos tem consagração legal (nem sequer com o recurso esforçadíssimo ao advérbio de modo permanentemente ou ao adjectivo permanente que – é óbvio – não pode senão ser entendido cum grano salis, ante nomeadamente a irrecusável evidência de que a omnipresença não é consabidamente possível, exigível e/ou sequer exequível), sendo que também não se conhece (e também não se vê como podia ser isso possível) qualquer “histórico” jurisprudencial que defenda, “preto no branco”, que as concessionárias devem ser omnipresentes, por um lado, e que a responsabilidade das concessionárias de auto-estrads é objectiva, sem culpa, por outro;

XVI. E pior ainda, salvo, evidentemente, o devido respeito, é a circunstância de se persistir de forma completamente infundada no puro e simples “achismo”, numa linha que se pode resumir, em traços gerais, na ideia errada (legalmente insustentável) de que alegadamente a R. teria de provar que não teve culpa no sinistro (e nas suas várias “variantes” mais ou menos imaginativas, como p. ex. aquela de ter de provar por onde ingressou o animal na via).
Segue-se que
XVII. A sentença não valorizou devidamente (e como se impunha) a matéria de facto e particularmente aquela que a R., ora recorrente, logrou provar, ou seja, as alíneas bb) a hh) (com as alterações propostas, como é lógico), bem como aqueles factos que, de acordo com a primeira parte deste recurso, devem constar do acervo a considerar na decisão, decisão essa que devia ter sido norteada designadamente pelo disposto na Base LXXIII do diploma legal relevante;
XVIII. Com efeito, em vez de o fazer optou por “embarcar” numa linha de argumentação “redonda” e inconsistente, argumentação essa não concreta, não concretizável e sobretudo irrazoável que, além do mais, não tem o mínimo apoio legal, mormente na legislação especial relevante;
XIX. Na verdade, quando se chama à colação para servir de fundamentação p. ex. que “(...) a Ré sempre teria de demonstrar que o animal surgiu na faixa de rodagem de forma inesperada e incontrolável, por um motivo de força maior, nomeadamente através de actos de terceiros (um javali?!!!) que não podia impedir”, isso é o mesmo que dizer nada, sobretudo se nos lembrarmos que, p. ex., tanto a questão da vedação da(s) auto-estrada(s) (vide designadamente a alínea a) do n° 4 da Base XXX), como aqueloutra igualmente relevante dos patrulhamentos (e a sua periodicidade – cfr. 1ª parte da alínea e) do n° 4 da Base LV), têm previsão legal no citado diploma legal;
XX. De forma que não é certamente ao “sabor das conveniências argumentativas” ou da ideia (do “achismo”) que se possa ter sobre o que será eventualmente correcto e/ou justo que nos temos de movimentar em matéria de fundamentação de direito, mas é antes atendo-nos ao direito (positivo) que, no caso, é constituído nomeadamente pelo disposto no Decreto-Lei n° 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção aplicável;

XXI. Muito curiosamente, aliás, é de reter neste ponto que a “evolução” que tem vindo a registar aquele diploma legal, em especial, e para o que aqui interessa, a sua Base LXXIII (redacção do DL n° 111/2015, de 18 de Junho) que prevê claramente uma exclusão de responsabilidade da concessionária caso sejam observados os critérios definidos no seu n° 2, mostra-nos até que p. ex. a periodicidade dos patrulhamentos passou a obedecer a critérios “mais largos” ou “menos apertados” (uma periodicidade de 4 em 4 horas em vez de 3 em 3 horas e sem obrigatoriedade de patrulhamento durante o turno nocturno entre as 23 h e as 7 h), sem que se tenha deixado cair (leia-se: retirado do texto legal) o advérbio de modo – permanentemente (cfr. Base XLIV) – de que frequentemente se lança mão;
XXII. Ora, considerando que se trata de avaliar, neste como em qualquer outro acidente ocorrido numa auto-estrada concessionada, nomeadamente em que consistem (e qual será, por assim dizer, o respectivo conteúdo) as obrigações de segurança cuja demonstração de cumprimento lhe cabe, entende a R. que esta alteração à mencionada Base LXXIII é também claramente interpretativa e deve ser vista como um importante – decisivo mesmo – contributo para uma avaliação/interpretação necessariamente mais correcta e mais conforme à lei, o mesmo é dizer ao “preenchimento do conteúdo e dos limites” do que são as obrigações de segurança previstas no artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de Julho;
XXIII. Sucede, porém, e como, aliás, é manifesto, que a sentença não o fez, “preferindo” um raciocínio e uma linha de argumentação/fundamentação que não tem o mínimo suporte legal e que não permite sequer (por nítida falta de informação/concretização) que se possa perceber em que circunstâncias concretas (e não, aqui sim, meramente “genéricas”) – e desde que legais, como é óbvio - poderia a R. legitimamente (sim, porque é natural que tenha essa expectativa) aspirar a ser absolvida do pedido formulado.
Dito isto,

XXIV. É verdade que com o advento da Lei n° 24/2007, de 18 de Julho se procedeu a uma inversão do ónus da prova (que não da ausência de culpa, mas apenas do cumprimento das obrigações de segurança) que agora impende sobre as concessionárias de AE, assim se criando um regime especial e inovador para este tipo de acidentes, embora – insista-se – sempre filiado na responsabilidade extracontratual;
XXV. Contudo, e como bem se percebe do espírito e do texto da lei (dos n°s. 1 e 2 do artigo daquela lei), mas também do elemento histórico de interpretação (vide projecto de lei n° 164/X do BE), já não corresponde à verdade que com essa lei se tenha estabelecido uma presunção de culpa (ou de incumprimento, ou de ilicitude, ou do que quer que seja) em desfavor das concessionárias, pois que se assim fosse a redacção do citado artigo 12° n° 1 seria seguramente outra, bem diferente e seguramente bem mais próxima daquela constante do artigo 493° n° 1 do Cód. Civil que não tem aqui o seu terreno de eleição;
XXVI. Com efeito, e quanto à dita presunção de culpa nem tal decorre da referida lei, nem tal resulta da Base LXXIII do DL n° 142-A/2001, de 24 de Abril (com as alterações subsequentes), podendo tão-só concluir-se que com a entrada em vigor da lei citada passou a impender um ónus de prova (com aquelas características) sobre as concessionárias de auto-estradas (e nada mais que isso, tal como se pode concluir do ac. RG de 23.09.2010, relatado por Amílcar Andrade). Isto para além de não se poder, de forma alguma, concluir que sempre há situações de inversão de ónus de prova se quer(quis) consagrar uma presunção legal de culpa (cfr. Cód. Civil, artigo 344° n° 1);
XXVII. De outra parte, sendo verdade que a R. se obrigou a vigiar e a patrulhar a auto-estrada, assim envidando os seus melhores esforços no sentido de assegurar a circulação na auto-estrada em boas condições de segurança e comodidade, daí não decorre que essa sua obrigação implica uma omnipresença em todos os locais da sua concessão como, na realidade (ainda que não o diga de forma expressa), considerou a sentença, mormente nos locais de eclosão de acidentes ou onde possam estar a deambular animais;
XXVIII. O artigo 12° n° 1 da citada lei faz recair sobre as concessionárias, entre as quais, a recorrente, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, sendo que no caso dos autos é nítido e indiscutível que a R. satisfez o ónus que lhe competia, i. e., demonstrou que cumpriu com aquelas suas obrigações de segurança, particularmente no que se refere à integridade da vedação e à conformidade desta com as normas em vigor e à vigilância da via no local de eclosão do sinistro nos moldes (leia-se: dentro do intervalo temporal que estava obrigar a respeitar antes da eclosão do sinistro) que lhe podiam ser exigíveis;

XXIX. Efectivamente, a definição destas obrigações de segurança passa essencial e obrigatoriamente (como é até intuitivo), num acidente com animais, pela prova de que as vedações ali instaladas eram aquelas que ali deviam estar, que à data do acidente essas vedações já tinham sido objecto da inspecção anual a que a R. estava obrigada perante o concedente e perante os utilizadores da auto-estradas, ademais de se ter concluído (como “plus”, por assim dizer), no seguimento de um procedimento interno instituído pela R./concessionária, que as ditas vedações se encontravam intactas e sem rupturas nas imediações do local do acidente – e a verdade é que essa prova foi claramente feita pela R./recorrente;
XXX. A não ser assim – i. e., a situarmo-nos num plano em que acaba por se colocar (mesmo que de forma pouco ou nada esclarecida) a sentença em matéria de exigência probatória (p. ex. de ter de se provar por onde o animal entrou na AE ou então provar a acção de terceiro, “hipótese” que é ainda mais curiosa no caso de um animal selvagem como é reconhecidamente o javali) -, cairíamos necessariamente – lá está outra vez - no âmbito da responsabilidade objectiva, na prova impossível (e não apenas extremamente difícil ou na chamada probatio diabolica) para a concessionária que não se vê onde esteja prevista, nomeadamente na lei citada;
XXXI. É, por isso, visível que o raciocínio seguido pela sentença é nitidamente especulativo, pois que parte claramente do princípio (e sem base factual para que o possa fazer) que o animal só poderia ter ingressado na AE devido a uma qualquer anomalia/falha (na vedação?), sem considerar qualquer outra possibilidade/explicação perfeitamente plausível para a presença de animais na via (como p. ex. mercê das suas “capacidades” e “características” – tais como saltar, trepar, voar, forçar, escavar, etc. - e independentemente, portanto, da vedação e do seu bom estado). E a verdade é que essas possibilidades/explicações existem, não se podendo concluir automaticamente que o animal acedeu à via porque p. ex. as vedações apresentavam deficiências ou então que ocorreu uma qualquer anomalia, seja ela qual for;

XXXII. Por outro lado, a R. também demonstrou, sem qualquer espécie de dúvida ou reserva, que desconhecia a presença do animal na via apesar do cumprimento integral (e permanente, no sentido de estar sempre no terreno, embora não esteja, como é evidente, em todo o lado ao mesmo tempo) da sua missão de vigilância e patrulhamento;
XXXIII. De modo que, e não podendo a recorrente (nem tal lhe sendo exigível) ser omnipresente, não se vislumbra como podia (ou pode) ser responsabilizada pela eclosão deste acidente, tanto mais que nos parece pacífico e totalmente indiscutível que as obrigações a seu cargo são claramente obrigações de meios. E não, portanto, obrigações de resultado, como acaba por concluir – sem o dizer da forma clara que se lhe imporia, no entanto - a sentença do T. A. F. de Viseu (e isto sim, ou seja, a natureza das obrigações da concessionária, merecia uma outra análise bem mais ponderada por parte do tribunal, o que, como se vê, não sucedeu);
XXXIV. De resto, não sendo possível à recorrente evitar em absoluto que os animais ingressem na AE (cfr. p. ex. Carneiro da Frada, “Sobre a Responsabilidade das Concessionárias por acidentes ocorridos em auto-estradas”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, Setembro de 2005, pgs. 407 – 433, mas também do mesmo autor, agora com a colaboração de Diogo A. Costa Gonçalves, o mais recente “Diligência e prova de cumprimento das obrigações da concessionária em acidentes de viação ocorridos em auto-estradas”, págs. 155 – 202, integrado na publicação do Instituto Jurídico da F. D. U. C. intitulada “Responsabilidade Civil. Cinquenta Anos em Portugal, Quinze Anos no Brasil”) e, face ao que ficou provado e também ao que decorre do diploma legal que versa sobre a sua concessão, nada mais lhe devendo ser exigível em termos de conduta e de prova, parece claro que se impunha (e isso ainda sucede) a sua absolvição, já que esta demonstrou que cumpriu de forma positiva, em concreto, com todas as suas obrigações, designadamente aquelas de segurança;
XXXV. Por outro lado, e ademais de se recordar que a verificação dos pressupostos/requisitos da responsabilidade extracontratual prevista na Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro é (obrigatória e inegavelmente) cumulativa e bem assim da constatação (legal também) que inexiste culpa da R. neste caso e muito menos que esta R. não tem de fazer prova que não teve culpa no acidente e também não tem de provar p. ex. por onde ou de que modo acedeu o animal à via (cfr., outra vez, Manuel A. Carneiro da Frada, ob. cit.), impõe-se a conclusão e a decisão de que falha inegavelmente neste caso também o requisito da ilicitude (dado que não se apurou – bem pelo contrário, aliás – nenhuma acção ou omissão da R. que tivesse violado “(...) disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares (...)” ou que tivesse infringido “(...)regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado (...)”), razão pela qual falha inevitavelmente qualquer possibilidade de à R. poder ser assacada a responsabilidade pela eclosão do sinistro dos autos;

XXXVI. Tudo visto, a sentença violou, salvo o devido respeito, o artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de Julho, mas igualmente o que se dispõe na Base LXXIII do Decreto-Lei n° 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção aplicável, os artigos 483° e 487° n° 2 do C. C. e ainda os artigos 7°, 9° e 10° do RRCEEP (Decreto-Lei n° 67/2007, de 31 de Dezembro), razão pela qual deve ser revogada e substituída por outra douta decisão que absolva a recorrente do pedido formulado pelo A..
Por último, sem prescindir e, ao menos, por mera cautela de patrocínio,
XXXVII. A ser outro o entendimento deste tribunal ad quem, o que se admite apenas para efeitos deste raciocínio, atendendo ao “peso” que nos parece decisivo designadamente do argumento “legal” (e de legislação especial, note-se também) que, salvo o devido respeito e mormente por melhor entendimento, põe claramente a nú a inconsistência da linha de argumentação seguida pela sentença do tribunal a quo, e havendo, como há, clara violação do disposto no artigo 661°, n° 2 do C. P. C., pela circunstância de o A. não ter de forma alguma logrado provar a “quantidade” do dano, inexiste outra solução válida e legítima que não seja a de relegar para incidente de liquidação a parte respeitante à(s) reparação(ões) do veículo e respectivo(s) custo(s), embora, naturalmente, limitado esse incidente ao que a lei também prevê.


Termos em que se deve dar total provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão de que se recorre e substituindo-se por uma outra que reaprecie e decida a prova nos moldes defendidos nestas linhas pela recorrente e que julgue totalmente improcedente a presente acção com base nos argumentos de facto e de direito expendidos nesta peça processual, bem como absolva a recorrente do pedido, tudo com as necessárias consequências legais e como é de inteira justiça.

Se assim não se entender, o que se admite apenas para efeitos deste raciocínio,

deve ser dado parcial provimento a este recurso, relegando-se para incidente de liquidação, ao abrigo do disposto no artigo 661°, n° 2 do C. P. C., o montante/custo respeitante à(s) reparação(ões) do veículo melhor identificado nos autos, mas, evidentemente, com o limite legalmente previsto.

O Autor juntou contra-alegações sem conclusões, finalizando assim:
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso, devendo todas as Conclusões da sua Alegações serem julgadas improcedentes e não provadas, mantendo-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos,
Assim se fazendo JUSTIÇA

A Senhora Procuradora Geral Adjunta, notificada nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
a) O Autor é proprietário do veículo ligeiro de passageiros SEAT TOLEDO, com a matrícula ..-..-RJ - cfr. doc. ... junto com a petição inicial;

b) No dia 17.02.2014, pelas 20:00 h, o referido veículo, conduzido pelo Autor, circulava na A...5, sentido ..., quando ao passar pelo Km 120,300, na freguesia ..., concelho ..., sofreu um acidente - cfr. participação do acidente junto como doc. ... da petição inicia conjugado com as declarações do Autor e das testemunhas «EE» e «FF»;

c) No veículo, na qualidade de passeiros, encontrava-se ainda a esposa do Autor, «FF», bem como o filho do casal, à data do acidente com um ano de idade - cfr. declarações do Autor e das testemunhas «EE» e «FF»;

d) O local onde ocorreu o acidente é uma auto-estrada, destinado ao tráfego motorizado de alta velocidade, com duas faixas de rodagem, configurando uma recta - cfr. participação do acidente, declarações do Autor;

e) O local do acidente situa-se aproximadamente a 2/3 km do nó de ..., o qual não tem portagens ou qualquer barreira que impeça o acesso à auto-estrada (nó aberto) - cfr. participação do acidente, declarações do Autor e «EE» e «DD»;

f) O local não é iluminado, era de noite e estava a chover - cfr. participação do acidente e declarações do Autor, «EE» e «FF»;

g) O Autor circulava na via da direita a uma velocidade não superior a 100 km/h – cfr. participação do acidente e declarações do Autor;

h) Ao passar pelo Km 120,300, já referido, sem que nada o fizesse prever e de forma repentina, deparou-se com um javali que atravessava a faixa de rodagem onde o veículo circulava, vindo da esquerda – cfr. participação do acidente, declarações do Autor e «FF»

i) O Autor ainda travou, mas atenta a forma repentina como o animal surgiu na faixa de rodagem, não conseguiu evitar o embate entre a parte frontal do veículo (lado esquerdo) e o animal, tendo este “rodopiado” e embatido também na lateral esquerda da viatura - cfr. participação de acidente junto com a petição inicial conjugado com as declarações do Autor;

j) O Autor imobilizou o veículo após o embate, a cerca de 10/20 metros do local, tendo o animal ficado caído na faixa de rodagem onde o Autor circulava, mas já perto da berma – – cfr. participação do acidente, declarações do Autor;

k) O embate com o animal provocou vários danos ao veículo do Autor, nomeadamente na parte frontal e lateral da viatura - cfr. declarações do Autor, declarações da testemunha «FF» e doc-. 10 junto com a petição inicial;

l) No referido dia, a Ré recebeu uma chamada no Centro de Controlo de Tráfego, informando a ocorrência do acidente - cfr. depoimento «GG»;

m) Em virtude dessa comunicação, o operador de serviço, accionou os meios de socorro, dando indicação ao oficial de assistência e vigilância de serviço, «HH», para se deslocar ao local –cfr. depoimento de «HH»;

n) O animal foi retirado da via pelo oficial de assistência e vigilância, «HH» – cfr. depoimento de «HH»;

o) A Guarda Nacional Republicana também se deslocou ao local tendo elaborado o auto de ocorrência - cfr. participação de acidente junto como doc. ... da petição inicial e depoimento de «EE»;

p) Do acidente supra descrito resultaram danos materiais na frente do veículo do Autor, nomeadamente: pára-choques frente, guarda lamas frente esquerdo, grelha central para choques frente, portas laterais esquerdas, guarda-lamas traseiro e pára-choques traseiro, farol da frente esquerdo, farol nevoeiro frente esquerdo, grelha de farol de nevoeiro, cava plástica roda frente esquerda e friso porta traseira esquerdas, elementos que se encontravam amolgados ou partidos- doc ... junto com a petição inicial;

q) A reparação dos danos identificados na alínea o) foi orçamentada em € 2.248,75 pela empresa “[SCom04...], SA - cfr. doc. ...0 junto com a petição inicial e declarações «II»;

r) Após o acidente o veículo continuou a circular – cfr. declarações do Autor,

s) reprovado em virtude dos danos referidos em p) dos factos provados, nomeadamente no que respeita aos danos nas luzes do veículo e deformação do guarda-lamas esquerdo– cfr, doc. ...8 junto com a petição inicial;

t) O Autor procedeu à reparação dos danos referidos na inspecção periódica a fim de que a viatura fosse aprovada na inspecção, tendo pago a quantia de € 250,00 – cfr. declarações do Autor e «BB»;

u) Em virtude do descrito na alínea anterior, o Autor ficou impedido de circular com o veículo ..-..-RJ durante dois meses – declarações do Autor, «FF» e «JJ»;

v) O Autor exerce a profissão de segurança e utilizava a viatura nas suas deslocações diárias entre a sua residência e o local de trabalho que se localiza a 5 km da sua residência – cfr. declarações do Autor, «FF» e «JJ»;

w) O seu agregado familiar possuía outra viatura, o qual é utilizado pela sua esposa nas respectivas deslocações para o trabalho e também nas demais deslocações familiares e com o filho menor – cfr. declarações do Autor, testemunhas «FF» e «JJ»;

x) Para a deslocações para o trabalho o Autor passou a recorrer a boleia de amigos e familiares – cfr. depoimento do Autor

y) Em 2017, o Autor procedeu à reparação dos demais danos da viatura, tendo gasto a quantia de € 2.000,00 – cfr. declarações do Autor e da testemunha «BB»;

z) O acidente causou incómodos e transtornos ao Autor – cfr. declarações do Autor e «FF»;

aa) A Ré é a concessionária da Auto-Estrada A...5 – por acordo

bb) A auto-estrada é patrulhada em permanência por equipas da Guarda Nacional Republicana e equipas de patrulha da Ré - cfr. depoimento de «CC»;

cc) A Ré dispõe de serviços de patrulhamento 24h/dia, todos os dias do ano, três patrulhas em simultâneo, em toda a extensão da auto-estrada - cfr. depoimento da «GG»;

dd) O patrulhamento no local do acidente é efectuado por uma viatura que circula entre o nó de .../ ... - cfr. depoimento da testemunha «GG» e «KK»

ee) A última passagem pela patrulha da Ré [SCom01...], no local e sentido do acidente, ocorreu entre as 17:36 e as 17:59, tendo existido uma passagem anterior entre as 15:39 e as 16:00, não tendo sido detectado a presença de qualquer animal na via - cfr. depoimento de «GG» e «HH»;

ff) No local do acidente existe uma vedação com 1,60 m de altura, junto à berma, que acompanha a totalidade da via (excepto nos nós de acesso), composta de prumos e rede de malha progressiva, encimada por arame farpado - depoimento de «CC» e «DD»;

gg) Cerca de um mês após a ocorrência do acidente, a Ré, através dos seus colaboradores e de forma apeada, verificou a vedação na extensão de um quilómetro para cada lado a contar do local do acidente, não tendo sido detectadas quaisquer anomalias nas vedações - depoimento de «CC» e «DD»;

hh) Para além da vistoria referida na alínea anterior é efectuada uma inspecção anual ao estado da vedação - depoimento de «CC» e «DD»;
ii) A Ré celebrou com a Interveniente contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ..., em vigor à data do acidente, através do qual, a interveniente garante o pagamento de indemnizações que possam ser exigidas ao segurado, resultantes de lesões materiais e/ou corporais causadas a terceiros na sua actividade de exploração e conservação dos troços da A...5, e do qual resulta uma franquia de € 5.000,00 por sinistro – cfr. doc. ... junto com a contestação.

DE DIREITO
Atente-se no discurso fundamentador da sentença:
Nos presentes autos o Autor peticiona que a Ré seja condenada ao pagamento da quantia de € 6.500,00, a título de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, devido ao sinistro que envolveu o Autor por ter embatido num javali quando este circulava na A...5.
Alega para tanto que os danos sofridos na viatura foram causados pelo facto de a Ré ter omitido o dever de o dever de vigilância e segurança do tráfico a que está obrigada na qualidade de concessionária da via.
No entendimento do Tribunal, apesar do Autor invocar o regime do artigo 483° e seguintes do Código Civil, o regime aplicável é o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, constante em anexo à Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro.
O n.° 5 do artigo 1° do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas estende o regime da responsabilidade civil do Estado às pessoas colectivas de direito privado, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prorrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições e princípios de direito administrativo.
Deste modo, face a esta norma, a submissão ao regime de Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas é efectuado casuisticamente em função da natureza jurídica dos poderes que tais entidades tenham exercitado na situação concreta, só sendo aplicável este regime quando tenha actuado investida de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo.
De acordo com o artigo 2° do Decreto-Lei n.° 142-A/2001, de 24 de Abril e das bases da concessão constantes em anexo, (posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.° 44-D/2010, de 5 de Maio), o Estado concessionou na Ré (anteriormente designada por [SCom05...], S. A), a concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos vários associados, designada por Beira Litoral/Beira Alta, a que se refere a alínea f) do n.° 2 do artigo 2° do Decreto-Lei n.° 267/97, de 2 de Outubro (troço ... (IP1 – ..., actualmente a A...5).
Dúvidas não temos que, por via da concessão, foram-lhe delegadas a execução de uma tarefa administrativa de gestão pública consistindo na promoção e gestão da infra-estrutura rodoviária referida, pelo que, nesta parte, actua no exercício de prerrogativas de poder público.
No âmbito a concessão compete-lhe a manutenção e disciplina do tráfego bem como a vigilância das condições de circulação (Base LIIII, anexo ao Decreto-Lei n.° 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.° 44-D/2010, de 5 de Maio), incumbências públicas que foram delegadas na Ré por via do contrato de concessão.
Assim, nos presentes autos, alegando o Autor o incumprimento daquelas obrigações, está em causa o exercício função administrativa, entendido como acto adoptado no exercício de
prorrogativas de poder público ou por disposições próprias de direito administrativo, pelo que lhe é aplicável o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
No entanto, não deixamos de nos mover no âmbito da responsabilidade civil por facto ilícito. Com tem sido assinalado pela jurisprudência para que ocorra responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas por actos ilícitos e culposos dos seus órgãos ou agentes, no exercício das suas funções e por causa delas, é necessária a verificação cumulativa dos pressupostos constantes do artigo 483º do Código Civil (cfr. nesse sentido, por exemplo, o sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 13.02.2020, processo n.º 313/09.6BECTB), nomeadamente:
a) Facto voluntário, enquanto facto, positivo ou negativo, controlável pela vontade humana;
b) Ilicitude, enquanto violador de um direito de outrem, sejam eles direitos absolutos ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) Culpa, enquanto nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante, enquanto juízo de censurabilidade pessoal por o lesante não ter agido de acordo com o direito, quando podia e devia ter agido de outro modo;
d) a existência de danos;
e) nexo causal entre o facto praticado pelo lesante e os danos, em termos de causalidade adequada.
Vejamos se esses pressupostos se encontram verificados nos presentes autos.
Antes de mais é necessário a existência de um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana – pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia de ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe.
Este facto consiste, em regra, num acto, numa acção, ou seja, num facto positivo, que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto. Mas pode traduzir-se também num facto negativo, numa abstenção ou numa omissão (artigo 486° Código Civil e n.° 1 do artigo 7° do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas), quando havia, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.
Transpondo para o caso concreto, dos factos provados resulta que a 17.02.2014 ocorreu um acidente de viação na A...5, aproximadamente ao Km 120,300, por se ter embatido um javali na frente e lateral esquerda do ..-..-RJ, por a Ré não ter prevenido a entrada do animal ou removê-lo em tempo útil, isto é, está em causa uma conduta omissiva da Ré.
Pelo que se monstra preenchido o primeiro pressuposto legal.
Contudo, não basta apenas a existência de uma conduta omissiva para que exista dever de indemnizar, é ainda necessário que esse facto seja ilícito e culposo.
Vejamos:
A Lei n. ° 24/2007, de 18 de Julho, tal como resulta do artigo 1°, "veio definir os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares e estabelece, nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos utentes estabelecidos ou a estabelecer.
No seu artigo 12º, sob a epígrafe "responsabilidade” resulta que:
“1 - Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança.
3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:
a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;
b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.”
No n.° 1 do artigo 12° da Lei n.° 24/2007, de 18 e Julho, o legislador vem determinar que é à concessionária que cabe o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, por forma a ilidir a presunção legal contra si estabelecida.
Da análise do normativo em questão, o n.° 1 do artigo 12° consagra uma presunção de culpa da concessionária, visando fazer recair o ónus da prova sobre aquele que está em melhor condições para fornecer os elementos de prova relativo às circunstâncias em que ocorreu o acidente, mas também funcionar como um incentivo ao reforço, por parte das concessionárias, das medidas destinadas a evitar a ocorrência daquele tipo de sinistros (vide, nesse sentido, o Acórdão do
Tribunal Constitucional n.° 597/2009, de 18 de Novembro, processo n.° 918/09).
No entanto, encerra também uma presunção de ilicitude que onera a parte com a prova de que a falta de cumprimento não é proveniente de culpa sua. Isto é, face à ocorrência de danos por parte dos utilizadores da auto-estrada em virtude de uma das causas elencadas no artigo 12°, presume-se ter existido incumprimento por parte da concessionária dos deveres de agir que lhe impõe o contrato de concessão, nomeadamente o de assegurar a segurança da circulação e a respectiva vigilância, deveres que, a não serem cumpridos representa a prática, por omissão, de um facto ilícito.
No caso em análise nos autos, resulta da matéria dada como provada, que o veículo ..-..-RJ, conduzido pelo Autor, quando circulava na A...5, deparou-se com um javali que atravessava a faixa de rodagem, não tendo o Autor conseguido evitar o embate do veículo no animal, em consequência do qual o veículo sofreu vários danos.
Ora, resulta do n.° 2 da Base LIII (em anexo ao Decreto-Lei n.° 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.° 44-D/2010, de 5 de Maio) que é obrigação da concessionária “estudar e implementar os mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a identificação de condições climatéricas adversas à circulação, a detecção de acidentes e a consequente e sistemática informação de alerta ao utente, no âmbito da Concessão, em articulação com as acções a levar a cabo na restante rede nacional, designadamente com o projecto SICIT”.
Para além do mais, nos termos do n.° 3 da Base LIII cabe-lhe “assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e de comodidade para os utentes, a circulação ininterrupta na Auto-Estrada, salvo a ocorrência de caso de força maior, devidamente comprovado, que a impeça de cumprir tal obrigação, e sem prejuízo do disposto na Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, e respectiva regulamentação”.
Acresce ainda que, nos termos do n.° 1 da Base LIV da concessão cabe-lhe ainda “assegurar assistência aos utentes da Auto-Estrada, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação, nomeadamente no que respeita à sua fiscalização e à prevenção de acidentes.”
Assim, podemos concluir que é dever da concessionária de assegurar a circulação em condições de segurança e comodidade e a vigilância sobre as condições de circulação, os quais, aliado ao dever de colocar vedações legitima que perante a presença de um animal na via se possa presumir o incumprimento desses deveres por parte da Ré (conforme previsto, respectivamente, na alínea a) do n.° 4 da Base XXX constante do anexo ao Decreto-Lei n.° 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.° 44-D/2010, de 5 de Maio).
Exige também o n.° 2 do artigo 12° da Lei n.° 24/2007, de 18 e Julho, que para funcionar a presunção da culpa “a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente”.
No caso concreto, como ficou demonstrado, a Guarda Nacional Republicana não só se deslocou ao local como ocorreu o sinistro, como fez o registo da ocorrência.
Assim sendo, haverá que considerar que no caso concreto as autoridades procederam à verificação das causas do acidente, verificando-se assim a condição constante do n.° 2 do artigo 12° da Lei n.° 24/2007, de 18 e Julho, para que o Autor beneficie da presunção de incumprimento dos deveres de agir que lhe são impostos pelo contrato de concessão.
Beneficiando o Autor da presunção estabelecida no n.° 1 do artigo 12° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, a Ré, na qualidade de concessionária, para se exonerar de qualquer responsabilidade, terá de provar que cumpriu todos os deveres de segurança susceptíveis de impedir a presença do animal na auto-estrada.
Como assinalou o Tribuna Central Administrativo Norte no seu acórdão de 28.02.2014 (processo n.° 48/10.7BEBRG) para a concessionária ilidir a presunção de culpa:
“deveria ter alegado e provado não só que dispunha em abstracto dum serviço devidamente organizado que fiscaliza, com diligência, regular e sistematicamente as vias rodoviárias sob sua exploração, mas ainda que concretos meios técnicos e humanos são alocados à vigilância [número e tipo de brigadas/patrulhas utilizadas; existência ou não de dispositivos de registo/captação de imagem no local], bem como que horários e com que frequência são feitas as passagens em concreto na zona do viaduto em questão pelas patrulhas em operação, a fim de se poder aferir da correcção do grau ou standard de diligência empregue pela R. na observância dos seus deveres e responsabilidades, bem como ponderar do grau de previsibilidade do evento para os utentes, por um lado, e para a concessionária, por outro”
Assim, para ilidir a presunção de culpa, como bem assinalou o aresto citado, não basta a demonstração genérica dos deveres de conservação e vigilância contratualmente estabelecidos, nomeadamente que faz patrulhamentos, com determinada periodicidade, e que não foi detectada a presença de qualquer animal.
Ao invés, é imposto à concessionária que demonstre que empregou todos os meios ao seu alcance para assegurar as boas condições de utilização da via, dentro do que é exigível na perspectiva do homem médio colocado naquelas concretas condições (vide, nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.09.2012, processo n.° 128/10.9TBGMR.G1).
No caso concreto, ficou demonstrado nos autos que a Ré faz o patrulhamento da A...5 de forma permanente, 24 horas por dia, todos os dias do ano, com três patrulhas em simultâneo que cobrem a totalidade da auto-estrada e que no local do acidente o patrulhamento é efectuado por uma viatura que circula entre o nó de .../... (e vice-versa).

A última patrulha da Ré [SCom01...], no local e sentido do acidente, ocorreu cerca de duas horas antes do acidente (entre as 17.36h e as 17.59h), tendo existindo uma passagem anterior pelas 15:39 e as 16:00, não tendo sido detectada a presença de qualquer animal da via.
Resulta ainda dos factos provados que a A...5 tem uma rede de vedação instalada em toda a sua extensão.
Provou-se também que a Ré efectua inspecções à rede da A...5 de forma anual, não se tendo apurado em concreto a data da última inspecção. Para além disso, a seguir ao acidente, foi verificada a rede de vedação no local do acidente, numa extensão de 1 km, não se tendo verificado qualquer dano que pudesse explicar a presença do javali na via de circulação.
Contudo, tal não é suficiente para demonstrar que a Ré cumpriu todos os deveres de segurança susceptíveis de impedir a presença do animal na via de forma ilidir a presunção estabelecida no n.° 1 do artigo 12° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho.
Antes de mais impunha-se à Ré provar que a vedação instalada é idónea a prevenir a entrada de animais, não sendo suficiente a existência, em termos abstractos de meios direccionados a prevenir a entrada de animais, sem a demonstração que aqueles meios são, em concreto e perante a natureza específica dos animais, aptos a prevenir a sua entrada e permanência para a via.
Estando em causa um animal selvagem, por natureza de comportamento imprevisível e que percorre longas distâncias, a mera prova que a vedação no local do acidente não apresentava anomalias não quer dizer que o animal não se tenha introduzido na via por outro ponto da A...5, para além da área verificada pela Ré após a verificação do acidente.
Para além do mais, também não foi demonstrado que a vedação instalada na A...5 conforme indicação do Estado é apta a impedir a introdução daquele tipo de animais na via, tanto mais que os nós da auto-estrada são abertos, isto é, não possuem qualquer barreira ou vedação.
Para lograr ilidir a presunção de culpa, haveria, pelo menos, que identificar, segundo critérios de razoabilidade e de experiência, os pontos da infra-estrutura em que tal introdução poderá ter ocorrido e descrever os comportamentos que adoptou para, em relação a cada um dos pontos sensíveis, prevenir acidentes.
Por outro lado, os patrulhamentos diários efectuados pela Ré, da forma como são feitos, não são aptos a verificar o estado das vedações, as quais muitas vezes nem sequer são visíveis da via de circulação.
Do mesmo modo, dado que os animais se movimentam, os patrulhamentos efectuados não garantem, por si só, a inexistência de animais na via, pelo que os patrulhamentos deveriam ser acompanhados por outros meios (por exemplo câmaras de vigilância) destinados especificamente a detectar a presença de animais na via, tanto mais que a ultimo patrulhamento tinha acontecido cerca de duas horas antes do acidente.
Na verdade, tendo em conta a velocidade normalmente permitida nas auto-estradas (120 km/h), a presença de animais na via, como no caso presente, é uma situação de grande perigo para a circulação automóvel.
Deste modo, para cumprimento da obrigação de assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade e de assegurar a vigilância das condições de circulação, imposta no n.° 2 e 3 da Base LIII e n.° 1 da Base LIV, caberia não só à Ré demonstrar que possui vedações e meios de vigilância e patrulhamento, mas também que tomou medidas especificas destinadas a evitar a presença de animais, enquanto factor de elevado risco para a circulação automóvel.
Para além disso, provado a existência de esses meios (o que não é caso em concreto), a Ré sempre teria de demonstrar que o animal surgiu na faixa de rodagem de forma inesperada e incontrolável, por um motivo de força maior, nomeadamente através de acto de terceiros que não podia impedir (vide, nesse sentido, o Acórdão do Tribuna Central Administrativo Norte de 30.11.2017, processo n.°00951/14.5BEBRG).
No caso concreto não se apurou a proveniência do animal, sendo que este surgiu de forma inesperada e súbita na via de circulação onde seguia o Autor, não tendo este conseguido evitar o embate no mesmo.
Não sendo conhecida a efectiva razão do inesperado atravessamento de animal na via e não tendo sido demonstrado pela Ré cumpriu os deveres de vigilância e de assegurar a segurança do tráfico automóvel, nomeadamente fazendo prova que possui meios adequados a detectar a presença de animais na via e que actuou de acordo com o cuidado que lhe era exigível.
Para além do mais não foi demonstrado sequer que a ocorrência do sinistro se ficou a dever à intervenção de terceiro e/ou caso furtuito ou de força maior, não se poderá deixar de concluir que a Ré não ilidiu a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho.
Assim sendo, mostra-se assim preenchido o pressuposto da ilicitude e da culpa.
Importa, portanto, verificar se existem danos.
No que respeita aos danos, resulta do artigo 3º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Pessoas Colectivas que:
1 - Quem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente lei, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
2 - A indemnização é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa.
3 - A responsabilidade prevista na presente lei compreende os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como os danos já produzidos e os danos futuros, nos termos gerais de direito.
O n.º 1 do artigo 3º reproduz a norma do artigo 562º do Código Civil, consignando como princípio geral quanto à indemnização que o lesado deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Nos termos do n.º 2 do artigo 3º, sempre que a reconstituição não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização será fixada em dinheiro, sendo aplicável a teoria da diferença, ou seja, a indemnização é fixada tendo
por medida a situação patrimonial do lesado na data mais recente que poder ser atendida pelo Tribunal e a que teria nessa data se não existissem os danos.
Por outro lado, qual como refere o n.° 3 do artigo 3°, o dano pode ser patrimonial ou não patrimonial. No primeiro caso estamos perante danos que são susceptíveis de avaliação pecuniária e os segundo estamos perante prejuízos não passíveis de avaliação pecuniária e nessa medida apenas podem ser compensados e não indemnizados, devendo ser atendidos apenas os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (n.° 1 do artigo 496° do Código Civil).
No caso concreto, provou-se que o veículo após o embate com o javali apresentou danos na zona frontal do veículo e lateral do veículo.
Demonstrou-se também que o autor fez uma primeira reparação aos danos resultantes do acidente, na medida do necessário para que o mesmo fosse aprovado na inspecção técnica periódica, na qual despendeu 250€. Já em 2017 procedeu á reparação dos demais danos, reparação com a qual gastou € 2.000,00.
Assim a reparação dos danos no veículo ..-..-RJ importou a quantia de € 2.250,00, já pagos pelo Autor, constituindo dano patrimonial verificado na esfera jurídica do Autor.
Pede ainda o autor que seja ressarcido com a quantia de € 3.250,00, por ter ficado impedido de utilizar o veículo durante 65 dias, à razão de € 50,00/dia, por ser o valor praticado pelo aluguer de uma viatura com idênticas características.
Quanto à indemnização pela privação do uso há quem entenda que a indemnização pela privação do uso de um bem depende da prova de um dano concreto, ou seja, da demonstração de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem, outros sustentam que a simples privação do uso, por si só, constitui um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça ou não do bem em causa durante o período da privação
Ora, no entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 3.05.2011, proc. n.° 2618/08.06TBOVR.P1, nenhuma das duas teses, na sua totalidade, colhe provimento, dado que tal como resulta deste acórdão “não existem dúvidas que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício de direitos inerentes à propriedade, consagrados no artigo 1305.º do Código Civil. Mas tal não é suficiente só por si: torna-se necessário que o lesado prove que a detenção ilícita da coisa frustrou um propósito real de proceder à sua utilização.”
Isto porque se podem configurar situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse em usá-la, nem a utilize. Por exemplo, se tiver o veículo constantemente estacionado à sua porta. Em situações como esta, se o titular não se aproveitar das vantagens da coisa, também não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação.
Assim, não chega ao lesado provar a privação da coisa pura e simples, antes tendo também de demonstrar que pretendia retirar as utilidades que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privada pela actuação ilícita do lesante.
Mas não terá de provar os danos concretos ocorridos em virtude da paralisação, nomeadamente, com junção de comprovativo de aluguer de veículo, compra de passes sociais, ou pagamento de táxis, a não ser que pretenda ser indemnizado pelos danos concretos sofridos.
Assim, em acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário usaria o veículo normalmente para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos (vide, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça datados de 06-05-2008, 02-06-2009, 09-03-2010, e de 16-03-2011).
No caso o dano ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem qualquer fosse a actividade a que o veículo estava afecto ao mesmo, o qual não se anula pela utilização de outro veículo, a título substitutivo.
Se é certo que a possibilidade de utilizar outro veículo não erradica o dano, tal circunstância não deixará de ser atendida na fixação do quantum indemnizatório, chegando-se à conclusão que tal montante será inferior face aos casos em que o sinistrado não tenha outro veículo para satisfazer a necessidade de se deslocar (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.12.2019, proc. n.º 3088/19.7YRLSB-2).
No caso dos autos ficou demonstrado que o após o acidente o Autor continuou a circular com o veículo. No entanto, o mesmo foi reprovado na inspecção técnica periódica que ocorreu a 22.04.2016, devido aos danos que apresentava a nível da iluminação e deformação do guarda-lamas esquerdo decorrentes do acidente nos autos.
Deu-se também como provado que, em virtude desse facto ficou impedido de utilizar o veículo durante dois meses, tempo necessário para que o mesmo fosse parcialmente reparado e novamente submetido à inspecção periódica.
Durante esse período de tempo o Autor passou a deslocar-se para o trabalho mediante boleias de amigos e familiares. É certo que possuía outra viatura, mas a mesma era utilizada pela sua esposa nas deslocações desta para o trabalho e também nas demais deslocações pessoais, pelo que não podia ser utilizado pelo Autor nas suas deslocações diárias.
Dado que não se apuram gastos em concreto, haverá que efectuar a fixação da indemnização a título de danos pela privação do uso do veículo mediante o recurso à equidade nos termos do n.° 3 do artigo 566° do Código Civil.
Ao contrário do referido pelo Autor, não se pode considerar como valor a atribuir pela privação do veículo o valor praticado pelas sociedades “rent-a-car”, atendendo que no preço praticado por estas inclui custos operacionais e taxas de lucro que não poderão ser incluídas na indemnização.
Assi, utilizando para o efeito juízos de equidade e considerando ainda os valores que tem vindo a ser fixados pelos Tribunais em situações idênticas (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.06.2021, processo n.° 2125/18.7T8VNF.G2), entende o Tribunal fixar em € 10,00 (dez euros) por cada dia, durante os 60 dias (dois meses) dias em que o Autor esteve privado de utilizar o veículo, o que perfaz o valor total de € 600,00 (seiscentos euros).
Alegada ainda o Autor que sofreu incómodos e transtornos na sua vida pessoal e profissional, danos não patrimoniais que pretende ser ressarcido em indemnização não inferior a € 1.000,00 (mil euros).
Os danos não patrimoniais não passíveis de avaliação pecuniária e nessa medida apenas podem ser compensados e não indemnizados, devendo ser atendidos apenas os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (n.º 1 do artigo 496º do Código Civil).
Não obstante ser ter demonstrado que o Autor sofreu incómodos e transtornos com o acidente, tal não justifica a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais, uma vez que estão em causa meros incómodos ou contrariedades que não são susceptíveis de ressarcimento à luz do disposto no n.º 1 do artigo 496º do Código Civil.
Verificada que está a existência de uma omissão ilícita, culpa e danos, para haver dever de indemnizar é ainda necessário apurar a existência de um nexo causal entre o facto e os danos sofridos.
Nos termos do artigo 563º do Código Civil “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”
Embora o legislador não tenha tomado partido na questão, é entendimento pacífico que o artigo 563º do Código Civil consagra a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, isto é, uma conduta é causa de determinado dano sempre que esta se apresente como consequência normal ou típica e só não o será causa quando, tendo embora colocado uma condição para a sua produção, ela não se tenha revelado indiferente para a produção do dano por influência de circunstâncias extraordinárias ou anómalas (vide, nesse sentido, por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20.06.2018, processo 01471/17).
Pelo exposto, deverá interpretar-se aquela norma no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalisticamente ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado por ele. É ainda necessário que o evento danoso seja causa provável, como quem diz, adequada, desse efeito.
Ora, face aos factos provados, os danos verificados no veículo são causa adequada do embate do animal na parte frontal do veículo.
Deste modo, resultam preenchidos os pressupostos legais necessários à obrigação de indemnizar por parte da Ré [SCom01...], devendo a mesma ser condenada na quantia total de € 2.850,00 referente ao valor que o Autor desembolsou para proceder à reparação do veículo (€ 2.250,00) e pela privação de uso do veículo (€ 600,00)
Vejamos agora quanto à chamada [SCom03...], S.A Sucursal em Portugal, S.A.
Ficou demonstrado que entre a Ré [SCom01...] e a Chamada foi celebrado um contrato de seguro facultativo através do qual esta se obrigou a pagar as indemnizações que possam ser exigidas ao segurado resultantes dos danos causados a terceiros com a actividade de exploração e conservação da A...5.
Está provado que o contrato de seguro prevê uma franquia de € 5.000,00. por sinistro, pelo que a seguradora só respondera na parte em que esse valor é excedido.
No caso concreto o valor dos danos a ressarcir ao Autor não excede o valor da franquia, pelo que a Ré interveniente não pode condenada ao respectivo pagamento, impondo-se, por esse motivo, a sua absolvição.
O Autor solicita ainda o pagamento dos juros de mora.
Nos termos do n.º 3 do artigo 805º do Código Civil, estando em causa a responsabilidade for facto ilícito, o devedor constitui-se em mora desde a citação. Estando em causa uma obrigação pecuniária a indemnização devida pela mora corresponde aos juros legais a contar desde a data da constituição em mora conforme o disposto no n.º 1 e 2 do artigo 806º do Código Civil.
Assim, tem o Autor direito a juros de mora, calculado à taxa legal, desde a data a citação até efectivo e integral pagamento.
Ficando vencida o Autor e a Ré [SCom01...] as custas são a fixar de acordo com o respectivo decaimento, o qual se fixa em 57% para o Autor e 43% para a Ré [SCom01...], nos os termos do n.º 1 do artigo 527º e n.º 1 do artigo 529º do Código de Processo Civil.
Quanto às custas da Interveniente Seguradora, as mesmas ficam a cargo da Ré [SCom01...], visto ter solicitado a sua intervenção e, nesta parte ficou totalmente vencida, também nos termos do n.º 1 do artigo 527º e n.º 1 do artigo 529º do Código de Processo Civil.

X

É objecto de recurso esta sentença que julgou parcialmente procedente a acção.
Quanto à matéria de Facto -
Conforme tem sido sistematicamente entendido, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, no que respeita à modificação da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, o Tribunal de recurso só deve intervir quando a convicção desse julgador não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se, assim, a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, bem como à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto - cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19/10/2005 no proc. 0394/05. Aí se refere, no que aqui releva, que “o art. 690º-A do CPC impõe ao recorrente o ónus de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida. Este artigo deve ser conjugado com o 655° do CPCivil que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Daí que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deva resultar claramente uma decisão diversa. É por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”. Esta exigência decorre da circunstância de o tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos. (É pacífico o entendimento dos Tribunais da Relação, neste ponto. Só deve ser alterada a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando assim prevalência ao princípio da oralidade, da prova livre e da imediação - cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, 4ª edição, 2004, págs. 266 e 267, o Acórdão da Relação do Porto de 2003/01/09 e o Acórdão da Relação de Lisboa de 2001/03/27, em Coletânea de Jurisprudência, Ano XXVI-2001, Tomo II, págs. 86 a 88). Entendimento semelhante posto em causa no Tribunal Constitucional, por ofensa da garantia do duplo grau de jurisdição, foi considerado conforme à Constituição (...): “A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e fatores que não são racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal da 2.ª instância deverá circunscrever-se a “apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1.° grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” Acórdão de 13/10/2001, em Acórdãos do T. C. vol. 51°, pág. 206 e ss..)”. A este propósito e tal como sustentado pelo Professor Mário Aroso e pelo Conselheiro Fernandes Cadilha “(…) é entendimento pacífico que o tribunal de apelação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica (…). Por analogia de situação, o tribunal de recurso pode igualmente sindicar as presunções judiciais tiradas pela primeira instância pelo que respeita a saber se tais ilações alteram ou não os factos provados e se são ou não consequência lógica dos factos apurados. (…) ” - em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pág. 743).
“Retomando o que supra fomos referindo sobre a amplitude dos poderes de cognição do tribunal de recurso sobre a matéria de facto temos que os mesmos não implicam um novo julgamento de facto, porquanto, por um lado, tal possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorretamente julgados e desde que cumpra os pressupostos fixados no artº 690º-A n.ºs 1 e 2 do CPC, e, por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.

Como se consignou, entre outros, nos Acórdãos deste TCAN de 06/05/2010, proc. 00205/07.3BEPNF e de 22/05/2015, proc. 1625/07BEBRG: “Os poderes de modificabilidade da decisão de facto que o artigo 712º do CPC atribui ao tribunal superior envolvem apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e excecionais erros de julgamento e não uma reapreciação sistemática e global de toda a matéria de facto.” “Para que seja alterada a matéria de facto dada como assente é necessário que, de acordo com critérios de razoabilidade, apreciando a prova produzida, “salte à vista” do Tribunal de recurso um erro grosseiro da decisão recorrida, aparecendo a convicção formada em 1ª instância como manifestamente infundada”.


Ressalta ainda do sumário do proc. 00242/05.2BEMDL, de 22/02/2013, acolhido por este TCAN em 22/05/2015 no âmbito do proc. 840/05.4BEVIS I.“Como tem sido jurisprudencialmente aceite, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas (art. 655º, n.º 1 do CPC) já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que na formação dessa convicção não intervêm apenas fatores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para o registo escrito, para a gravação vídeo ou áudio.
II. Será, portanto, um problema de aferição da razoabilidade, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência da convicção probatória do julgador no tribunal «a quo», aquele que, no essencial, se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento de facto pelo tribunal «ad quem».

Assim, das considerações jurisprudenciais e doutrinais exemplificativamente referidas e em função dos elementos disponíveis, não se vislumbra a existência de fundamento para alterar a matéria de facto.
O Tribunal a quo explicou devidamente os alicerces da sua convicção. Em sede de factualidade não provada fez constar:
Inexistem factos que importa dar como não provados.
E no que à motivação da factualidade tida por assente respeita exarou:
A convicção do Tribunal baseou-se na análise dos documentos juntos aos autos, bem como dos documentos juntos ao processo e são especificados em cada um dos pontos.
Teve-se ainda em consideração o depoimento do Autor e das testemunhas inquiridas, indicada em cada facto.
Relativamente às características do local do acidente, foi levado em consideração a participação elaborada pela Guarda Nacional Republicana, conjugada com as declarações do Autor e da testemunha «FF», que tem conhecimento directo dos factos por à data dos factos também circular no veículo, na qualidade de passageira.
Foi ainda considerado o depoimento de «EE», da Guarda Nacional Republicana que se dirigiu ao local do acidente e que descreveu em pormenor e de forma assertiva, as características da via no local.

Relativamente ao acidente e respectiva dinâmica (alíneas f), g) h) i) e j), k) e l) dos factos provados) foi tida em consideração as declarações do Autor, o qual, de forma clara e sem contradições, descreveu o modo como aconteceu o acidente em causa. Tal depoimento foi corroborado pela testemunha «FF», que se encontrava no interior da viatura e presenciou o acidente, bem como o depoimento de «EE», da Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana, que se deslocou ao local e elaborou a participação do acidente, cujo teor é coincidente com as declarações do Autor em audiência.
Na verdade, a circunstância da testemunha «FF» ser esposa do Autor não retira credibilidade às suas declarações. O depoimento mostrou-se sincero, tendo explicado o acidente que envolveu a viatura onde circulava, nomeadamente o facto do mesmo ter embatido em algo que, mais tarde, verificou ser um javali.
Relativamente aos danos na viatura, teve-se em consideração o depoimento do autor, conjugado com os documentos referidos, dos quais consta a descrição dos danos.
Quanto ao montante pago na reparação da viatura tal resultou provado tendo por base as declarações do Autor conjugadas com a testemunha «BB», que é proprietário da oficina responsável pela reparação da viatura.
Quanto à primeira reparação efectuada, sendo certo que o veículo sofreu danos e precisaria de reparação para ser submetido novamente à inspecção, afigura-se adequado o valor avançado pelo Autor (€ 250,00). Apesar da testemunha «BB», responsável pela reparação do veículo, não se recordar do valor exacto pago, indicou limiares que estão concordantes com valor indicado pelo Autor, o que dá credibilidade às declarações do Autor nesta parte.
Quanto à reparação efectuada em 2017 para reparação dos demais danos do veículo, atento à concordância pelo valor avançado pelo autor e pela testemunha «BB» damos como provado o dispêndio realizado.
O tribunal levou ainda de conta o orçamento de reparação constante nos autos, não emitido pela oficina reparadora, o qual está em linha com os valores avançados pelo Autor nas suas declarações, o que reforça a credibilidade das declarações do Autor, nessa parte.
Quanto à circunstância do autor ter sofrido incómodos, tal resultou das declarações do Autor, conjugado com as declarações de «FF», que referiram que o Autor teve incómodos e despesas com a situação, nomeadamente por o obrigar a realizar várias deslocações no sentido de resolver a situação, acrescido do facto de terem ficado cerca de duas horas no local do acidente.
Quanto à utilização do veículo e facto do Autor ter ficou privado de utilizar a viatura foi considerado o depoimento do Autor que explicou em pormenor que o veículo era utilizado nas deslocações para o trabalho.
Mais referiu que ter ficado privado da sua utilização durante dois meses, após o mesmo ter reprovado na inspecção técnica periódica em virtude dos danos sofridos no acidente até à sua reparação e nova submissão à inspecção.
Mais referiu que possuía outra viatura, mas que a mesma era utilizada pela sua esposa para se deslocar para o trabalho e deslocações com o filho de ambos, pelo que foi obrigado a recorrer a boleias de familiares e amigos para se deslocar para o trabalho.
Apesar de ter interesse directo na causa, as suas declarações, nesta parte, foram coerentes, escorreitas e espontâneas e mereceram credibilidade do tribunal. Para além do mais, tais declarações foram ainda corroboradas pelas declarações de «FF», esposa do Autor, bem como de «JJ», amigo e vizinho do autor que refere que o mesmo ficou cerca de dois meses sem o carro e durante esse período o mesmo deslocava-se para o trabalho através de boleias.
Quanto ao modo como é efectuado o patrulhamento e vigilância da auto-estrada foi considerado o depoimento dos funcionários da Ré.
A testemunha «CC», chefe do Centro de Assistência e Manutenção, apesar de não ter qualquer intervenção directa no sinistro, esclareceu o modo como funcionam as patrulhas e os procedimentos da Ré para a vigilância da via e as medidas tomadas quando ocorre um acidente desta natureza.
Foi também considerado o depoimento de «HH», oficial de assistência e vigilância da Ré, e «GG», operador de gestão de tráfico da central de comunicações da Ré [SCom01...], que referiram o modo como são organizadas as patrulhas e respectiva frequência e que referiram que não foi reportada a presença de qualquer animal na via previamente à ocorrência do acidente.
A testemunha «CC» também descreveu as características da vedação da auto-estrada, a periodicidade das verificações e o estado em que a mesma se encontrava após o acidente dos autos. O seu depoimento foi secundado pelo depoimento de «DD», o qual, na qualidade de oficial de manutenção da Ré, fez a inspecção à vedação após o acidente e que não detectou qualquer anomalia.
Todas as testemunhas demonstraram ter pleno conhecimento dos factos que vieram relatar ao Tribunal até em razão das funções que exercem na Ré, por serem todos, em alguma medida, responsáveis pelas operações de vigilância, patrulhamento e conservação da Auto-estrada.
Os depoimentos das testemunhas indicadas pela Ré, mostraram-se coerentes entre si, assertivos e plenamente esclarecedores, o que permitiu dar como provada a matéria relativa ao modo como é efectuada habitualmente o patrulhamento e vigilância da via e também os meios accionados em virtude do acidente em causa.
Assim, não se bulirá no probatório pois não se deteta qualquer erro, mormente grosseiro, palmar, ostensivo na avaliação dos factos levada a cabo pelo Tribunal.
Veio o Recorrente arguir a nulidade da sentença, nomeadamente por ter incorrido em não menos clara omissão de pronúncia sobre a matéria constante dos artigos 12º, 13º, 14º, 26º e 27º da contestação da R./recorrente, matéria esta que, ademais importante para a defesa da R., é sobretudo essencial para uma boa decisão da causa.
Como é sabido, as causas de nulidade da sentença estão expressamente previstas no artigo 615.º do Código de Processo Civil:

1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões deque não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Como sintetizou o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 22.01.2019, (proc. 19/14.4T8VVD.G1.S1):

“Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade), quer pelo uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

As nulidades da sentença não se confundem com o erro de julgamento. No primeiro caso está em causa a regularidade formal da decisão, nomeadamente a existência de vícios de formação da decisão (referentes à inteligibilidade, estrutura ou limites) enquanto que no erro de julgamento está em causa o desacerto da sentença quando à realidade factual ou na aplicação do direito.

Só ocorre a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil quando o tribunal conheça uma questão que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou quando se de deixe de pronunciar sobre as questões ou pretensões suscitadas (omissão de pronúncia).

Existe omissão de pronúncia quando o Tribunal deixe de tomar posição ou decidir sobre matérias que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal e as que sejam de conhecimento oficioso (cfr. n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo
Civil).

Como é entendimento constante a expressão “questões” contida na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil “prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia. É em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver” (cfr. nesse sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2017, no proc. 2200/10.6TVLSB.P1.S1).

In casu, a matéria constante do 12º, 13º, 14º, 26º e 27º da contestação da Ré/Recorrente consiste em meros argumentos invocados no sentido de sustentar que deu cumprimento ao dever de vigilância e manutenção que sobre si recaía, sobre a qual o Tribunal se pronunciou na sentença, não incorrendo, por isso, a sentença da nulidade que lhe é assacada pelo Recorrente.

E o que dizer do apontado erro de julgamento de direito?
Apenas que pouco há a acrescentar à fundamentação da sentença recorrida.
Como resulta da transcrição que dela fizemos, a Senhora Juíza socorreu-se, e bem, da lei e da jurisprudência seguida em casos semelhantes.
Efectivamente constitui jurisprudência, uniforme e pacífica, do STA que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e outras pessoas colectivas públicas, por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes, assenta nos mesmos pressupostos previstos na lei civil para idêntica responsabilidade, com as especialidades advenientes das normas próprias relativas à responsabilidade dos entes públicos, o que pressupõe a prática de um facto - ou a sua omissão, quando exista o dever legal de agir - a ilicitude deste, a culpa do agente, o dano e o nexo causal entre o facto e o dano.
Quanto à culpa, o mesmo Supremo Tribunal firmou reiteradamente posição segundo a qual é aplicável à responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por facto ilícito de gestão pública a presunção (de culpa) consagrada no artigo 493º/1 do CC.
Com efeito, neste preceito prevê-se: “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, …, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
A transposição deste regime para o âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, por factos ilícitos praticados no âmbito de gestão pública, tem a sua razão de ser no facto de relativamente a danos que radiquem em actividades de gestão pública, tanto ou mais do que aqueles que provêm de actividades de gestão privada, a tarefa de demonstração do incumprimento culposo dos deveres de organização e de actuação necessários para prevenir o dano por coisas se apresentar excessivamente onerosa para o lesado. Trata-se de demonstrar factos negativos - a inobservância do dever de adequada, continuada e sistemática fiscalização técnica - que, por via de regra, não estão numa relação de simultaneidade com o evento e são relativos ao modo de organização ou disciplina de acção dos serviços e, portanto, sem a inerente visibilidade e acessibilidade de prova para o particular lesado. Por tudo isto, o lesado teria muita dificuldade em identificar e provar em juízo a conduta omissiva. Ao invés, o regime da presunção de culpa nada tem de violento, injusto, ou desrazoavelmente oneroso para os entes públicos, uma vez que o serviço público obrigado a vigilância pode elidir a presunção demonstrando quer a ocorrência de caso fortuito ou de força maior quer a adopção das providências para uma adequada, continuada e sistemática fiscalização do estado e comportamento da coisa em ordem a evitar o evento danoso. Trata-se de factos positivos, estes últimos inerentes à organização e desenvolvimento da actividade do ente público, cuja demonstração em juízo está ao seu alcance em regra por meios probatórios extraídos dos seus próprios serviços - vide o Acórdão de 16/05/1996 em AP. DR de 1998/10/23, pág. 3697.
O que significa que, anteriormente à entrada em vigor da Lei 24/2007, de 18 de julho, já o STA tinha consolidado o entendimento de que não estamos no domínio de uma probatio diabolica.
Por seu turno, com a vigência do artigo 12º da mencionada Lei, ficou estabelecido que o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, em caso de acidente rodoviário, cabe à concessionária. O que acarreta a inversão das regras do ónus da prova, incumbindo, assim, à ora Recorrente [SCom01...] o ónus de afastar aquela presunção, mormente através da prova da existência de culpa do lesado ou de terceiro (artigo 570º/2, do CC), desiderato esse aqui não alcançado. Dito de outro modo, a Recorrente não logrou afastar tal presunção, pois não provou ter actuado com o cuidado que lhe era exigível, nem demonstrou que a ocorrência do sinistro se ficou a dever à intervenção de terceiros e/ou a caso fortuito ou de força maior.
De resto, este TCAN já decidiu casos idênticos, tendo feito esta leitura: “Num caso em que a concessionária não demonstrou que a autoestrada estava efetivamente vedada em condições de segurança e em que não se sabe de onde surgiu o canídeo que inusitadamente se atravessou na faixa de rodagem, a dúvida resolve-se a favor do lesado/utente, de acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, conjugado com o n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil.” - sumário do Acórdão de 19/11/2015, no proc. 00217/13.8BEMDL.
Logo, ao contrário do alegado, temos como verificada a ilicitude e consequentemente a culpa na omissão dos deveres de segurança que sobre si recaíam, de acordo com o apontado artigo 12º/1.
E dado que a presença dos demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual não está afastada, forçoso é concluir-se que a Recorrente não pode deixar de ser responsabilizada pela ocorrência do acidente e pelos danos que dele resultaram - cfr. as alíneas a), b), d), e), h) e i) do probatório.
Improcedem as conclusões das alegações, pois que, além do mais, a decisão é perfeitamente coerente com a factualidade tida por assente.
Refira-se ainda a ausência de desconformidade entre a matéria dada como provada e a fundamentação da decisão do tribunal quanto às obrigações de vigilância e manutenção que eram exigíveis à Ré e aquilo que o Tribunal recorrido explanou:
Transpondo para o caso concreto, dos factos provados resulta que a 17.02.2014 ocorreu um acidente de viação na A...5, aproximadamente ao Km 120,300, por se ter embatido um javali na frente e lateral esquerda do ..-..-RJ, por a Ré não ter prevenido a entrada do animal ou removê-lo em tempo útil, isto é, está em causa uma conduta omissiva da Ré.
Pelo que se mostra preenchido o primeiro pressuposto legal.
E continuou:
(…)
Contudo, não basta apenas a existência de uma conduta omissiva para que exista dever de indemnizar, é ainda necessário que esse facto seja ilícito e culposo.
(…)
No caso em análise nos autos, resulta da matéria dada como provada, que o veículo ..-..-RJ, conduzido pelo Autor, quando circulava na A...5, deparou-se com um javali que atravessava a faixa de rodagem, não tendo o Autor conseguido evitar o embate do veículo no animal, em consequência do qual o veículo sofreu vários danos.
(…)
Assim, podemos concluir que é dever da concessionária de assegurar a circulação em condições de segurança e comodidade e a vigilância sobre as condições de circulação, os quais, aliado ao dever de colocar vedações legitima que perante a presença de um animal na via se possa presumir o incumprimento desses deveres por parte da Ré (conforme previsto, respectivamente, na alínea a) do n.° 4 da Base XXX constante do anexo ao Decreto-Lei n.° 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.° 44-D/2010, de 5 de Maio).
(…)
No caso concreto, como ficou demonstrado, a Guarda Nacional Republicana não só se deslocou ao local como ocorreu o sinistro, como fez o registo da ocorrência.
Assim sendo, haverá que considerar que no caso concreto as autoridades procederam à verificação das causas do acidente, verificando-se assim a condição constante do n.° 2 do artigo 12° da Lei n.° 24/2007, de 18 e Julho, para que o Autor beneficie da presunção de incumprimento dos deveres de agir que lhe são impostos pelo contrato de concessão.
Beneficiando o Autor da presunção estabelecida no n.° 1 do artigo 12° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, a Ré, na qualidade de concessionária, para se exonerar de qualquer responsabilidade, terá de provar que cumpriu todos os deveres de segurança susceptíveis de impedir a presença do animal na auto-estrada.
(…)
Assim, para ilidir a presunção de culpa, …, não basta a demonstração genérica dos deveres de conservação e vigilância contratualmente estabelecidos, nomeadamente que faz patrulhamentos, com determinada periodicidade, e que não foi detectada a presença de qualquer animal.
Ao invés, é imposto à concessionária que demonstre que empregou todos os meios ao seu alcance para assegurar as boas condições de utilização da via, dentro do que é exigível na perspectiva do homem médio colocado naquelas concretas condições (…).
No caso concreto, ficou demonstrado nos autos que a Ré faz o patrulhamento da A...5 de forma permanente, 24 horas por dia, todos os dias do ano, com três patrulhas em simultâneo que cobrem a totalidade da auto-estrada e que no local do acidente o patrulhamento é efectuado por uma viatura que circula entre o nó de .../... (e vice-versa).

A última patrulha da Ré [SCom01...], no local e sentido do acidente, ocorreu cerca de duas horas antes do acidente (entre as 17.36h e as 17.59h), tendo existindo uma passagem anterior pelas 15:39 e as 16:00, não tendo sido detectada a presença de qualquer animal da via.
Resulta ainda dos factos provados que a A...5 tem uma rede de vedação instalada em toda a sua extensão.
Provou-se também que a Ré efectua inspecções à rede da A...5 de forma anual, não se tendo apurado em concreto a data da última inspecção. Para além disso, a seguir ao acidente, foi verificada a rede de vedação no local do acidente, numa extensão de 1 km, não se tendo verificado qualquer dano que pudesse explicar a presença do javali na via de circulação.
Contudo, tal não é suficiente para demonstrar que a Ré cumpriu todos os deveres de segurança susceptíveis de impedir a presença do animal na via de forma ilidir a presunção estabelecida no n.° 1 do artigo 12° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho.
Antes de mais impunha-se à Ré provar que a vedação instalada é idónea a prevenir a entrada de animais, não sendo suficiente a existência, em termos abstractos de meios direccionados a prevenir a entrada de animais, sem a demonstração que aqueles meios são, em concreto e perante a natureza específica dos animais, aptos a prevenir a sua entrada e permanência para a via.
Estando em causa um animal selvagem, por natureza de comportamento imprevisível e que percorre longas distâncias, a mera prova que a vedação no local do acidente não apresentava anomalias não quer dizer que o animal não se tenha introduzido na via por outro ponto da A...5, para além da área verificada pela Ré após a verificação do acidente.
Para além do mais, também não foi demonstrado que a vedação instalada na A...5 conforme indicação do Estado é apta a impedir a introdução daquele tipo de animais na via, tanto mais que os nós da auto-estrada são abertos, isto é, não possuem qualquer barreira ou vedação.
Para lograr ilidir a presunção de culpa, haveria, pelo menos, que identificar, segundo critérios de razoabilidade e de experiência, os pontos da infra-estrutura em que tal introdução poderá ter ocorrido e descrever os comportamentos que adoptou para, em relação a cada um dos pontos sensíveis, prevenir acidentes.
Por outro lado, os patrulhamentos diários efectuados pela Ré, da forma como são feitos, não são aptos a verificar o estado das vedações, as quais muitas vezes nem sequer são visíveis da via de circulação.
Do mesmo modo, dado que os animais se movimentam, os patrulhamentos efectuados não garantem, por si só, a inexistência de animais na via, pelo que os patrulhamentos deveriam ser acompanhados por outros meios (por exemplo câmaras de vigilância) destinados especificamente a detectar a presença de animais na via, tanto mais que a ultimo patrulhamento tinha acontecido cerca de duas horas antes do acidente.
Na verdade, tendo em conta a velocidade normalmente permitida nas auto-estradas (120 km/h), a presença de animais na via, como no caso presente, é uma situação de grande perigo para a circulação automóvel.
Deste modo, para cumprimento da obrigação de assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade e de assegurar a vigilância das condições de circulação, imposta no n.° 2 e 3 da Base LIII e n.° 1 da Base LIV, caberia não só à Ré demonstrar que possui vedações e meios de vigilância e patrulhamento, mas também que tomou medidas especificas destinadas a evitar a presença de animais, enquanto factor de elevado risco para a circulação automóvel.
Para além disso, provado a existência de esses meios (o que não é caso em concreto), a Ré sempre teria de demonstrar que o animal surgiu na faixa de rodagem de forma inesperada e incontrolável, por um motivo de força maior, nomeadamente através de acto de terceiros que não podia impedir (…).
No caso concreto não se apurou a proveniência do animal, sendo que este surgiu de forma inesperada e súbita na via de circulação onde seguia o Autor, não tendo este conseguido evitar o embate no mesmo.
Não sendo conhecida a efectiva razão do inesperado atravessamento de animal na via e não tendo sido demonstrado pela Ré cumpriu os deveres de vigilância e de assegurar a segurança do tráfico automóvel, nomeadamente fazendo prova que possui meios adequados a detectar a presença de animais na via e que actuou de acordo com o cuidado que lhe era exigível.
Para além do mais não foi demonstrado sequer que a ocorrência do sinistro se ficou a dever à intervenção de terceiro e/ou caso furtuito ou de força maior, não se poderá deixar de concluir que a Ré não ilidiu a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho.
Assim sendo, mostra-se assim preenchido o pressuposto da ilicitude e da culpa.
Importa, portanto, verificar se existem danos.
(…)
No caso concreto, provou-se que o veículo após o embate com o javali apresentou danos na zona frontal do veículo e lateral do veículo.
Demonstrou-se também que o autor fez uma primeira reparação aos danos resultantes do acidente, na medida do necessário para que o mesmo fosse aprovado na inspecção técnica periódica, na qual despendeu 250€. Já em 2017 procedeu á reparação dos demais danos, reparação com a qual gastou € 2.000,00.
Assim a reparação dos danos no veículo ..-..-RJ importou a quantia de € 2.250,00, já pagos pelo Autor, constituindo dano patrimonial verificado na esfera jurídica do Autor.
Pede ainda o autor que seja ressarcido com a quantia de € 3.250,00, por ter ficado impedido de utilizar o veículo durante 65 dias, à razão de € 50,00/dia, por ser o valor praticado pelo aluguer de uma viatura com idênticas características.
Quanto à indemnização pela privação do uso há quem entenda que a indemnização pela privação do uso de um bem depende da prova de um dano concreto, ou seja, da demonstração de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem, outros sustentam que a simples privação do uso, por si só, constitui um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça ou não do bem em causa durante o período da privação.
(…)
No caso dos autos ficou demonstrado que o após o acidente o Autor continuou a circular com o veículo. No entanto, o mesmo foi reprovado na inspecção técnica periódica que ocorreu a 22.04.2016, devido aos danos que apresentava a nível da iluminação e deformação do guarda-lamas esquerdo decorrentes do acidente nos autos.
Deu-se também como provado que, em virtude desse facto ficou impedido de utilizar o veículo durante dois meses, tempo necessário para que o mesmo fosse parcialmente reparado e novamente submetido à inspecção periódica.
Durante esse período de tempo o Autor passou a deslocar-se para o trabalho mediante boleias de amigos e familiares. É certo que possuía outra viatura, mas a mesma era utilizada pela sua esposa nas deslocações desta para o trabalho e também nas demais deslocações pessoais, pelo que não podia ser utilizado pelo Autor nas suas deslocações diárias.
Dado que não se apuram gastos em concreto, haverá que efectuar a fixação da indemnização a título de danos pela privação do uso do veículo mediante o recurso à equidade nos termos do n.° 3 do artigo 566° do Código Civil.
(…)
Assim, utilizando para o efeito juízos de equidade e considerando ainda os valores que tem vindo a ser fixados pelos Tribunais em situações idênticas (…) entende o Tribunal fixar em € 10,00 (dez euros) por cada dia, durante os 60 dias (dois meses) dias em que o Autor esteve privado de utilizar o veículo, o que perfaz o valor total de € 600,00 (seiscentos euros).
(…)
(…)
Verificada que está a existência de uma omissão ilícita, culpa e danos, para haver dever de indemnizar é ainda necessário apurar a existência de um nexo causal entre o facto e os danos sofridos.
(…)
Ora, face aos factos provados, os danos verificados no veículo são causa adequada do embate do animal na parte frontal do veículo.
Deste modo, resultam preenchidos os pressupostos legais necessários à obrigação de indemnizar por parte da Ré [SCom01...], devendo a mesma ser condenada na quantia total de € 2.850,00 referente ao valor que o Autor desembolsou para proceder à reparação do veículo (€ 2.250,00) e pela privação de uso do veículo (€ 600,00)
Improcedem, pois, as conclusões das alegações.

DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Notifique e DN.
Porto, 02/6/2023

Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Isabel Jovita (em substituição)