Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00197/18.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/06/2025
Tribunal:TAF do Porto
Relator:ANA PAULA ADÃO MARTINS
Descritores:INFARMED; FARMÁCIA SOCIAL PRIVATIVA; INSTALAÇÃO;
ENTIDADE DO SECTOR SOCIAL DA ECONOMIA; NULIDADES DECISÓRIAS;
DECRETO-LEI Nº 307/2007, DE 31.08; DECRETO-LEI Nº 171/2012, DE 01.08;
DECRETO-LEI Nº 109/2014, DE 10.07; LEI 30/2013, DE 08.05
Sumário:
É de manter a sentença que anulou a deliberação do Infarmed, datada de 08.09.2016, que aprovou processo de instalação de farmácia social privativa, requerido em 15.07.2015, ao abrigo do n.º 4 da Base II da Lei n.º 2125 de 20/03/1965 e artigos 45.º, n.º 2 e 46.º do Decreto-Lei n.º 4857, de 27/08/1968.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

«AA», melhor identificada nos autos, intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, acção administrativa, contra o INFARMED - AUTORIDADE NACIONAL DO MEDICAMENTO E PRODUTOS DE SAUDE, LP., e em que era contra-interessada “A FAMILIAR - ASSOCIACAO DE SOCORROS MUTUOS DA ...”, pedindo a declaração de nulidade, ou a anulação, da deliberação, de 08/09/2016, do Conselho Diretivo do Infarmed que aprovou a esta o processo de instalação de farmácia social privativa com a designação de “Farmácia "A"...”, bem como a condenação da entidade demandada em indemnização, que vier a ser liquidada em execução de sentença, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que venha a sofrer.
*
Por sentença, de 04.10.2019, foi decidido considerar extinta a instância por inutilidade
superveniente da lide quanto ao pedido indemnizatório e, quanto ao mais, julgou-se a acção
procedente, anulando-se a deliberação impugnada.
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Inconformada, a Contra-interessada interpôs recurso para este Tribunal Central, concluindo assim as suas alegações:
“Pronúncia excessiva. Omissão do princípio do contraditório.
I. Na medida em que a douta decisão recorrida aplica (1) a norma do nº 2 do artigo 59º-A que manda desatender o nº 3 do artigo 14º, ambos do DL 307/2007, na redação do DL 171/2012; (2) entendimento esse vazado no douto acórdão do STA de 06.07.2018; (3) sem que o ato recorrido tenha por fundamento esse entendimento e sem que a recorrente e a recorrida tenham invocado essa factualidade ou este entendimento de direito e (4) sem que às partes fosse dada a oportunidade de se pronunciarem; ocorreu uma decisão surpresa proibida por lei.
II. Ocorreu, pois, a nulidade da parte final da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC - excesso de pronúncia e bem assim falta de prévio contraditório na dimensão do nº 3 do artigo 3º do CPC, normas aplicáveis ex vi CPTA, o que aqui se invoca.
III. Dessa nulidade, resulta nítido prejuízo para a ora recorrente, que assim viu ser-lhe retirado o meio de defesa que seria oportuno usar: alegar as inconstitucionalidades que aqui alega;
IV. Dessa nulidade e do não uso, na forma apontada, do dever de gestão processual (artigo 6º do CPC) resultou para a recorrente, ser-lhe retirado o meio de defesa que seria oportuno usar quando à decisão de revogar o ato impugnado quando à venda de MNSRM, daqui resultando notória ilegalidade assacada ao douto aresto recorrido, uma vez que tal atividade nada tem a ver com o regime do DL 307/2007 (LPF), o que aqui se invoca.
Falta de pronúncia - nulidade
V. Na medida em que o douto aresto recorrido (1) não se pronunciou quanto ao alegado nos artigos 49º a 57º da contestação (2) o próprio aresto recorrido se refere que as EES só podem aceder à propriedade de farmácias nos mesmos termos das entidades do sector lucrativo - através de sociedades comerciais e por concurso - em desacordo com o acórdão do TC 612/2011, (3) e faz de conta que ninguém trouxe para o pleito o regime de licenciamento que em concreto se reputa aplicável, para além do DL 307/2007; ocorre falta de pronúncia sobre a solução adiantada pela aqui recorrente.
VI. Daí que se verifique a nulidade da parte inicial da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, aplicável ex vi CPTA} que aqui se invoca.
Contradição entre factos provados e a decisão adotada. Ilegalidade notória da decisão recorrida
VII. A douta decisão recorrida quanto à anulação do ato recorrido na parte relativa à venda de MNSRM, constitui afronta ao regime jurídico de licenciamento de venda de MNSRM que consta dos 1) Decreto-Lei n.º 134/200S, de 16 de Agosto (2) Decreto-Lei n.º 238/2007, de 19 de Junho (3) Portaria n.º 827/2005, de 14 de Setembro e (4) Deliberação n.º 1706/2005, de 7 de Dezembro (5) Proibição da venda de tabaco em locais de venda de MNSRM Circular Informativa n.º 045/CD de 03/03/2008.
VIII. Pelo que deve ser substituída por outra que se conforme com a legalidade.
IX. Nessa medida, dando-se como provado no facto 3, em conjunto com o facto 6, de onde resulta que o licenciamento abrange a venda de MNSRM, que se rege por ordenamento jurídico diferente da LPF aplicável apenas à venda de MSRM e que foi a única citada no aresto ora recorrido, ocorre a nulidade da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, o que se invoca.
Da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 59ºA do DL 307/2007, na redação do DL 171/2012, na parte que desaplica às EE5 o nº 3 do artigo 142 do mesmo diploma legal
X. A matéria que se trata neste caso, tem a ver com a definição dos sectores de propriedade dos meios de produção, e por isso é uma competência exclusiva da AR, nos termos da alínea j) do nº 1 do artigo 165º da CRP.
XI. E isso resulta claro do próprio DL 307/2007, uma vez que a única lei de autorização legislativa conferida ao Governo, na matéria em causa, que foi a Lei n.º 20/2007, de 12 de Junho que "autoriza o Governo a legislar em matéria de propriedade das farmácias e a adaptar o regime geral das contraordenações às infrações cometidas no exercício da atividade farmacêutica",
XII. Mas tal autorização teve apenas a duração de 180 dias nos termos do seu ARTIGO 4º.
XIII. Muito embora o Decreto-Lei nº 171/2012, de 01.08, refira que é emitido "nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 198º da CRP", invocando-se matéria de reserva relativa da AR, o certo é que não invoca qualquer lei de autorização legislativa no sentido de permitir ao Governo alterar a lei, visando impossibilitar ou proibir as EES de aceder a "farmácias sociais" através das suas vestes próprias de associações, como resulta da alteração da redação do artigo 59ºA-2 do DL 307/2007, que impede a aplicação à EES do nº 3 do artigo 14º do mesmo diploma legal, a disposição que consagrava o acesso das EES a farmácias sociais, na leitura do acórdão do TC nº 612/2011.
XIV. Também, entre Janeiro de 2012 e Agosto de 2012, nenhuma lei foi emitida pela AR que permitisse ao Governo semelhante opção jurídica, conforme documento da AR em anexo.
XV. Pelo que a norma do nº 2 do artigo 59ºA do DL 307/2017, na redação do DL 171/2012, padece de inconstitucionalidade orgânica na medida em que manda desaplicar às EES o nº 3 do artigo 14º da mesma lei, devendo ser desaplicada pelo Tribunal, porque o Governo não tinha competência para o efeito.
XVI. Mesmo que existisse qualquer autorização legislativa, o que não se consente, a alteração da lei não se conteve nos seus limites e por isso sempre ocorreria ilegalidade, porquanto a norma aplicada (nº 2 do artigo 59ºA do DL 307/2007, na redação do DL 171/2012, na medida em que afasta a aplicação às EES do nº 3 do artigo 14º do mesmo diploma legal), por extravasar o sentido e extensão da respetiva lei de autorização seria ilegal, o que à cautela se invoca.
XVII. O único sentido e limites em que uma autorização legislativa poderia ser balizada pela AR, são revelados pelo próprio exórdio do DL 171/2012, que fala na adequação à jurisprudência do acórdão do TC 612/2011, o que, de forma escandalosa e grosseira não é feito, fazendo-se o inverso na medida em que (1) não se fixou prazo para as farmácias que vendiam ao público em geral se adaptarem (2) veio dizer-se diz-se no nº 2 do artigo 59ºA do DL 307/2007 que o nº 3 do artigo 14º do mesmo diploma, não se aplica às farmácias das EES, ou seja, vem dizer-se, implicitamente, que as EES, se quiserem aceder à propriedade da farmácia social, vão ter que se constituir em sociedades comerciais para acederem à propriedade das farmácias socais, mas nunca nas suas vestes de associação na venda de MSRM apenas aos membros do seu substrato associativo. Ou seja, faz-se o contrário do que diz o acórdão do TC.
XVIII. Cremos que este tipo de grosserias ostensivas, que não são admissíveis no plano técnico-jurídico, pelo que deveriam ser objeto de necessária investigação pelo MP.
XIX. Para além do mais, a norma do artigo 59º-A nº 2 do DL 307/2007, na medida em que aniquila o acesso das EES à instalação de farmácias sociais, nas vestes de associação, para venda de MSRM, apenas aos membros do seu substrato associativo e as obriga, caso queiram aceder a essa propriedade, a usar a forma travestida em sociedades comerciais (forma usada pelas entidades do sector privado especulativo), viola o princípio constitucional da coexistência do sector social com o sector privado consagrado no artigo 82º da CRP, viola o princípio da proteção do sector social previsto na alínea f) do artigo 80º da CRP e não se respeita o princípio consagrado no nº 5 do artigo 63º da CRP e viola o princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição. O que se invoca
XX. Pelo que deveria e deve ser desaplicada.
XXI. Viola-se ainda, de forma acintosa, a alínea c) do artigo 10º da Lei n.º 30/2013, de 8 de Maio (Lei de Bases da Economia Social), aprovada por unanimidade na AR, na medida em que compete aos poderes públicos "remover os obstáculos que impeçam a constituição e o desenvolvimento das atividades económicas das entidades da economia social", fazendo-se exatamente o contrário do que se diz, de forma inqualificável.
XXII. Foram violadas as disposições legais que se citaram e invocaram nos lugares próprios.
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O réu INFARMED apresentou contra-alegações, sem formular conclusões.
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A Autora apresentou as suas contra-alegações, nas quais concluiu:
“1- A douta sentença recorrida anulou o ato impugnado, consubstanciado na deliberação datada de 08/09/2016 do Conselho Diretivo do Infarmed, IP que aprovou, nos termos propostos pela contrainteressada e ora recorrente, o processo de instalação de farmácia social privativa na Av. ..., ..., por entender verificados os vícios de violação de lei que analisou sob as alíneas c) e f), que conduzem, ambos, à anulabilidade.
2- A entidade requerida e autora do ato anulado não interpôs recurso, tendo-se conformado com a douta sentença anulatória no seu todo.
3- Apenas a contrainteressada recorre, mas o facto é que a sentença recorrida não é merecedora de qualquer das críticas que aquela lhe tece, bem pelo contrário, como se demonstrará e resulta, aliás, da própria argumentação recursiva.
4- Desde logo, a decisão não padece de nenhuma das nulidades com que aquela a «ataca», na medida em que não só decidiu todas as questões jurídicas submetidas à sua apreciação, como não decidiu senão aquelas que tinha de apreciar, inexistindo vislumbre de uma decisão surpresa, tomada em violação do contraditório, como alega a recorrente absolutamente sem fundamento.
5- Resulta de forma clarividente dos autos que a questão jurídica abordada na sentença [interpretação dos artigos 59ºA e 14º do DL nº 307/2007 na redação dada pelo DL nº 171/2012] não é nova; tendo, ao invés, sido colocada para apreciação jurisdicional desde a apresentação a juízo da PI, portanto “ab initio”, tal como as demais e que, como esta, constituem fundamento legal da sentença. Leiam-se os artigos 99º, 107º, 108º, 110º da PI., bem como os artigos 125º a 127º da petição inicial para que fiquem arredadas todas e quaisquer dúvidas.
6- As normas aplicadas pelo douto aresto proferido, e cuja sucessão no tempo analisou, são aquelas que sempre, e só, foram chamadas à discussão nos autos, qual sejam as constantes do regime jurídico das farmácias.
7- Donde, nada impediu a recorrente de na sua defesa invocar o que quer que entendesse pertinente, quer quanto à venda de MSRM, quer quanto à inconstitucionalidade da interpretação defendida pela autora dos citados normativos, o que, está visto, não fez oportunamente, constituindo estas questões novas que não cumpre, nessa medida, ao Tribunal de recurso conhecer.
8- A recorrida está de acordo e acompanha a interpretação feita pelo Ac TCA Norte de 27/09/2019 que a recorrente juntou, no sentido de que os pedidos de farmácias sociais apresentados por entidades da economia social (EES) até 30.09/2012 (dia anterior à entrada em vigor do Decreto Lei nº 171/2012 de 1 de Agosto) têm cobertura legal, face à lei anterior e ao acórdão do TC nº 612/2011 publicado no DR I Série nº 17, de 24.01.2012 (...) Só o não terão a partir do DL 171/2012 de 1 de Agosto.
9- Ora, atendendo à data em que a recorrente apresentou o pedido de abertura de farmácia social em causa nos autos - 15/07/2015 – conforme ponto 3 dos Factos Provado, quase três anos após a publicação deste diploma, é forçoso concluir, talqualmente fez a sentença, que o mesmo não tem cobertura legal, face à lei então vigente.
10- Cai por terra a argumentação da recorrente, pois foi precisamente neste sentido que decidiu a douta sentença recorrida, a qual é absolutamente coincidente com a interpretação feita pelo douto acórdão do TCAN citado (de que, à luz do regime já em vigor à data da apresentação pela recorrente do seu requerimento, bem como da prática do ato impugnado, já não era possível o licenciamento de novas farmácias sociais privativas).
11- Salvo o devido respeito, a recorrente contradiz-se e enreda-se nos seus argumentos, esquecendo que foi ela que requereu ao Infarmed, IP. autorização para abertura de farmácia para venda de todos os produtos que uma farmácia pode vender e prestação dos inerentes serviços farmacêuticos e que enquadrou juridicamente a sua pretensão em quadro legal, já revogado, que defendia repristinado, questão essa que o tribunal «a quo» analisou, concluindo que qualquer efeito repristinatório decorrente do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 612/2011 seria de afastar, por falta do requisito necessário à produção desse efeito, a saber, existir declaração de inconstitucionalidade da norma revogatória.
12- Acresce ser por demais evidente que não houve qualquer falha no uso do dever de gestão, nem preterição de contraditório, invocações a que a recorrente se «agarra» numa débil tentativa de conseguir abordar a questão da inconstitucionalidade da norma aplicada no douto aresto recorrido, somente agora trazida aos autos.
13- Como tal, esta questão da inconstitucionalidade, porque não invocada oportunamente em sede de defesa para ser apreciada pelo Tribunal «a quo» e, pelas partes em contraditório, constitui uma questão nova que esse Tribunal de recurso está impedido de apreciar.
14- Como é pacífico, os recursos são um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas, nem discutidas nas instâncias, o que é precisamente o caso desta invocação de uma inconstitucionalidade orgânica.
15- Sem prescindir, a recorrente invoca “inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 59ºA do Decreto-Lei nº 307/2007 de 31.08, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 171/2012, de 01.08, na leitura implicitamente adotada no aresto recorrido”. Todavia nem explica qual é essa leitura, nem demonstra ter sido adotada pela sentença recorrida, confirmando-se tratar-se de questão que não foi apreciada pela sentença recorrida, e que não pode ora ser apreciada, em sede de recurso.
16- Ainda sem prescindir, no que concerne a esta questão totalmente nova da (in) constitucionalidade, que a recorrente ora traz para apreciação, a recorrida faz sua, data venia, a douta argumentação do acórdão do STA de 05/07/2018, no P. nº 0879/17 que, por cautela de patrocínio, dá por integralmente reproduzida; Donde sempre se concluiria soçobrar a pretensão da recorrente.
17- Refira-se, por último, e ainda sem prescindir, que a anulação do ato impugnado funda-se também no vício de violação de lei, por violação das regras da livre concorrência e do princípio da prossecução do interesse público (artigo 163º nº 1 do CPA), apreciado e julgado procedente em f) da sentença.
18- A sentença recorrida não é merecedora de qualquer censura. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, devendo ser mantida a decisão recorrida, por ser de lei e de direito.
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O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA, não emitiu parecer.
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Por acórdão deste TCAN, datado de 15.07.2020, foi concedido provimento ao recurso, “desaplicando-se o nº 2 Artº 59º-A do DL nº 307/2007, na redação introduzida pelo DL 171/2012, interpretado no sentido de não permitir às entidades do sector social da economia poderem ser titulares de farmácias sociais privativas, sem que se constituam em sociedade comerciais, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, principio consagrado no artigo 2.º da CRP, conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da mesma CRP”, revogando-se o segmento IV da sentença recorrida (anulação do acto impugnado) e mantendo-se na ordem jurídica o acto objecto de impugnação.
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Deste acórdão o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, o qual, por acórdão de 28.04.2022, decidiu não conhecer do seu objecto.
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Ainda, sobre o aludido acórdão deste TCAN recaiu recurso para o STA, interposto pela Autora.
Por acórdão de 15.06.2023, o STA decidiu conceder provimento à revista, “revogando o acórdão recorrido e determinando a baixa dos autos ao TCA-Norte para os fins que ficaram referidos”.
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Sem vistos, mas com envio prévio do projecto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, vem o processo submetido à conferência para julgamento.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DE RECURSO

Atentas as conclusões das alegações do recurso interposto, que delimitam o seu objecto, nos termos dos arts 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi art 140º, nº 3 do CPTA, a questão decidenda reside em saber se a sentença recorrida padece de:
- nulidade decisória;
- erro de julgamento de direito.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:
1) A Autora é proprietária da Farmácia "B"..., sita na Av. ..., freguesia e concelho ..., distrito ..., sendo detentora do alvará n.º ...26 – cfr. fl. 24 do suporte físico do processo cautelar n.º 2550/17.0BEPRT, apensado a estes autos (doravante abreviadamente designado por processo cautelar).
2) A abertura da referida Farmácia "B"... foi autorizada por despacho do Diretor Geral de Assuntos Farmacêuticos do Ministério da Saúde de 23 de Abril de 1985, nos termos do alvará n.º ...64, emitido em 14/01/1986 – cfr. fl. 25 do suporte físico do processo cautelar.
3) Por requerimento de 15/07/2015, a Contrainteressada requereu à Entidade Demandada que: “se pronunciasse acerca da verificação, quanto à Requerente, dos requisitos previstos no n° 4 da Base II (que não o n° 5) da Lei 2125, de 20.03.1965 e artigos 45° n° 2 e 46° ambos do Decreto-Lei 48547 de 27.08.1968, uma vez que estas disposições legais continuam substancialmente válidas e vigentes “ex vi” artigo 14° n° 3 e 59° 1 e 3 da LPF; que o Infarmed confira (...) o prazo de um ano para instalar a farmácia e ser requerida vistoria e, uma vez realizada esta, seja atribuído alvará, conforme alude o artigo 48° do Decreto-Lei 48547 de 27.08.1968; que o licenciamento tenha a seguinte amplitude: a farmácia só pode vender medicamentos ou especialidades farmacêuticas sujeitos a receita médica aos associados, beneficiários e pensionistas; que pode exercer a actividade de para-farmácia (medicamentos não sujeitos a receita médica); que pode prestar os serviços farmacêuticos previstos nas alíneas a) e h) do artigo 2.º da Portaria
1429/2007 de 02.11 a qualquer utente; que pode ter a sua designação no exterior com o logotipo; que pode ter porta aberta para o exterior (sem todavia poder atender pessoas singulares que não pertençam ao seu substracto associativo e estatutário quanto à venda de medicamentos sujeitos a receita médica) e pode colocar no exterior uma cruz verde identificativa de uma farmácia (…) ” – cfr. fls. 1 a 10 do processo administrativo.
4) Através de carta com o registo “...14...”, foi a Contra-interessada notificada, pela Entidade Demandada, além do mais, para apresentar documentos, entre os quais, a planta de localização da farmácia – cfr. fls. 64 a 67 do processo administrativo.
5) Por requerimento datado de 29/01/2016, a Contra-interessada remeteu à Entidade Demandada os documentos solicitados, dos quais constam, além do mais, a pretendida localização da farmácia: Av. ..., ... ... – cfr. fls. 68 a 90 do processo administrativo.
6) Em 24/03/2016, foi elaborada, pelos serviços da Entidade Demandada, proposta com o n.º ...91/450.10.216, da qual consta, em suma o seguinte:
“(…).
ASSUNTO: Instalação de farmácia privativa, na freguesia ..., conselho de ..., distrito ..., solicitada por A Familiar – Associação de Socorros Mútuos da ... (…)
Assim, após a análise do processo em apreço, dado que a documentação entregue se encontra integralmente de acordo com artigo 13.º da Portrai n.º 352/2012, de 30 de Outubro, parece nada haver a opor ao:
· Processo de instalação de nova farmácia social na Avenida ..., freguesia ... concelho ..., distrito ...;
· Nada a opor à nomeação da «BB», como directora técnica;
· Nada a opor à denominação de Farmácia "A".... À consideração superior. (…)” - cfr. fls. 63 verso a 64 do suporte físico do processo cautelar e fls. 106 a 107 do processo administrativo.

7) Sobre a informação referida no ponto anterior recaiu Deliberação do Conselho de Administração da Entidade Demandada, datada de 05/04/2016, com o seguinte teor: “Aprovado nos termos propostos” – cf. fls. 106 e 111 do processo administrativo.
8) Na sequência da Deliberação de 05/04/2016, referida no ponto antecedente, e no seguimento da recepção nos serviços da Entidade Demandada, de carta subscrita pelo Presidente da União das Mutualidades Portuguesas, submeteu-se à consideração superior o processo de instalação de farmácia social privativa respeitante à Contra-interessada – cfr. fls. 106 a 111 do processo administrativo.
9) Em 08/09/2016, o Conselho Diretivo da Entidade Demandada, deliberou a aprovação nos termos propostos pela "A Familiar - Associação de Socorros Mútuos da ...”, o processo de instalação de farmácia social privativa na Av. ..., freguesia e concelho ... – cfr. fls. 63 verso, 64 e 66 do suporte físico do processo cautelar e fls. 111 do processo administrativo.
10) Em 07/11/2017, a Autora, na qualidade de proprietária da Farmácia "B"..., melhor identificada em 1) deste probatório, deu entrada nos serviços da Entidade Demandada de um requerimento nos termos do qual solicitou a sua constituição como interessada, “nos termos dos artigos 67.º e 68.º do Código do Procedimento Administrativo, no processo relativo ao licenciamento e emissão de alvará de uma farmácia privativa” – cfr. fls. 608 a 611 do processo administrativo.
11) Por deliberação de 09/11/2017 foi reconhecido à ora Autora, pela Entidade Demandada, a qualidade de interessada no procedimento administrativo em causa – cfr. fls. 611 do processo administrativo.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 15.06.2023, determinou a baixa dos autos a este TCAN para “se proceder ao conhecimento das demais questões que haviam sido suscitadas na apelação, cuja apreciação foi considerada prejudicada”.
Vejamos que questões são essas.
Por sentença do TAF do Porto foi anulado o acto administrativo impugnado - deliberação, de 08.09.2016, do Conselho Diretivo do Infarmed que aprovou à Contra-interessada o processo de instalação de farmácia social privativa com a designação de “Farmácia "A"...” - “por padecer de vício de violação de lei, por assentar em preceitos legais inexistentes (já revogados); por violar o disposto nos art°s. 14.° e 59.°-A do DL n.° 307/2007, de 31/8, na sua redacção actual; e ainda por violar as regras da livre concorrência e do principio da prossecução do interesse publico”.

No recurso que interpôs para o TCA-Norte, a Contra-interessada imputou a sentença a violação do principio do contraditório, as nulidades das als. c) e d) do n.° 1 do art.° 615.° do CPC e a violação da al. c) do art.° 10.° da Lei n.° 30/2013, de 8/5 (Lei de Bases da Economia Social) e arguiu a inconstitucionalidade, orgânica e material, com a consequente desaplicação, da norma do n.° 2 do art.° 59.°-A do DL n.° 307/2007, na redacçao resultante do DL n.° 171/2012.
O TCAN conheceu de imediato, da arguida inconstitucionalidade, que julgou verificada, tendo por prejudicadas as demais questões.
Revogado este aresto do TCAN, com fundamento em erro de julgamento, por decisão definitiva do STA, importa agora conhecer das demais questões suscitadas pela Recorrente/Contra-interessada, quais sejam: “Pronúncia excessiva. Omissão do Princípio do Contraditório”; “Falta de pronúncia – nulidade”; “Contradição entre factos provados e a decisão adoptada. Ilegalidade notória da decisão recorrida”; e ainda a violação da al. c) do artigo 10º da Lei nº 30/2013 de 08.05.

“Pronúncia excessiva. Omissão do Princípio do Contraditório”
Alega a Recorrente que a decisão recorrida, na medida em que aplica a norma do nº 2 do artigo 59º-A que manda desatender o nº 3 do artigo 14º, ambos do DL 307/2007, na redacção do DL 171/2012, entendimento esse vazado no acórdão do STA de 06.07.2018, sem que o acto recorrido tenha por fundamento esse entendimento e sem que a Recorrente e a Recorrida tenham invocado essa factualidade ou este entendimento de direito e sem que às partes fosse dada a oportunidade de se pronunciarem; ocorreu uma decisão surpresa proibida por lei; ocorreu, pois, a nulidade da parte final da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC - excesso de pronúncia e bem assim falta de prévio contraditório na dimensão do nº 3 do artigo 3º do CPC; com nítido prejuízo para a ora recorrente, que assim viu ser-lhe retirado o meio de defesa que seria oportuno usar: alegar as inconstitucionalidades que aqui alega; dessa nulidade e do não uso, na forma apontada, do dever de gestão processual (artigo 6º do CPC) resultou para a recorrente, ser-lhe retirado o meio de defesa que seria oportuno usar quando à decisão de revogar o acto impugnado quando à venda de MNSRM, daqui resultando notória ilegalidade assacada ao douto aresto recorrido, uma vez que tal atividade nada tem a ver com o regime do DL 307/2007 (LPF), o que aqui invoca.
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Em síntese, a Recorrente invoca a nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, por entender que a mesma constitui uma violação do princípio do contraditório, configurando uma decisão-surpresa.
O art. 3º, nº 3 do CPC dita que o “juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Decorre da citada norma a proibição de decisões surpresa.
Como elucida aresto deste TCAN (de 28.01.2022, proc. 821/20.8BEPNF, publicado em www.dgsi.pt, como, de resto, todos os arestos citados infra, salvo menção expressa em contrário), na interpretação do conceito de “decisão-surpresa”, o Supremo Tribunal de Justiça tem defendido que “o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente e/ou recorrido, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efetuada” (cfr. ac. de 11.02.2015, proc. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1). Por outro lado, considera-se que o cumprimento do contraditório não significa “que o tribunal «discuta com as partes o que quer que seja» e que alivie as mesmas «de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão»” (cfr. ac. de 09.11.2017, Proc. 26399/09.5T2SNT.L1.S1 e ac. de 17.06.2014, Proc. 233/2000.C2.S1). Considera-se, ainda, que: “[h]á decisão surpresa se o Juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta e atinada decisão do litígio. Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever” (cfr. ac. de 19.05.2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.P1.S1).
O Tribunal Constitucional, ainda antes do CPC vigente, em apreciação do que se deveria entender por decisão surpresa, atendeu, nos Acs. 479/89, DR II s., de 24.04.92 e Ac. T.C. 367/96, DR II s. de 10.05.96, ao carácter insólito e imprevisível da decisão, afirmando que “não pode deixar de recair sobre as partes o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adotarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras), o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada”.
Na presente acção, e no que aqui releva, a Autora suscitou a invalidade da Deliberação do Conselho Directivo da Entidade Demandada, datada de 08.09.2016, que aprovou, nos termos requeridos e propostos pela Contra-interessada, o processo de instalação de farmácia social privativa com a designação de “Farmácia "A"...”, imputando-lhe uma série de vícios, entre os quais: o vício de violação de lei, por o acto ter na sua génese um pedido, formulado pela Contra-interessada, que assenta em normas que se encontram revogadas (n.º 4 da Base II da Lei n.º 2125 de 20/03/1965 e artigos 45.º, n.º 2 e 46.º do Decreto-Lei n.º 4857, de 27/08/1968); o vício de violação de lei, por violação dos artigos 14.º e 59.º-A do Decreto Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto; e o vício de violação de lei, por violação das regras da livre concorrência e do princípio da prossecução do interesse público.
Pediu, a final, a declaração de nulidade ou a anulação do referido acto administrativo.
A Contra-interessada foi citada e deduziu contestação.
A sentença recorrida conheceu dos imputados e identificados vícios e julgando-os procedentes, anulou o acto impugnado.
Donde, a sentença recorrida deu resposta à questão jurídica suscitada na petição inicial, qual seja a de saber se, em face do novo regime jurídico das farmácias de oficina, consagrado no Decreto-Lei n.º 307/2007, 31 de Agosto, subsiste a possibilidade de entidades do sector social promoverem a instalação de novas farmácias privativas. Ou, melhor e mais concretamente, se, subsistia tal possibilidade no momento em que a Contra-interessada formulou o pedido (de instalação de nova farmácia privativa) ao Infarmed, I.P., ou seja, a 15.07.2015.
Não se vislumbra, pois, qualquer questão nova que justificasse uma prévia intervenção jurisdicional de observância do disposto no nº 3 do art. 3º do CPC.
As normas aplicadas pelo Tribunal a quo, e cuja sucessão no tempo analisou, são aquelas que foram chamadas à discussão nos autos.
De resto, o que a Recorrente aponta como novo é o entendimento exarado no acórdão de revista do Supremo Tribunal Administrativo de 05.07.2018, proferido no âmbito do processo que correu termos no STA com o n.º 0879/17 (proc. 153/13.8BEPRT), e acolhido na sentença recorrida.
Todavia, nem mesmo o acórdão é “novo” para as partes e para o processo em causa pois que – em momento anterior à prolação da sentença - foi junta cuja cópia do mesmo com o requerimento apresentado em 31.01.2019 pela Entidade Demandada, tendo merecido a pronúncia da Contrainteressada através de requerimento apresentado em 11.06.2019.
O que sucedeu foi que o citado aresto do STA “rompeu” com a jurisprudência que vinha sendo seguida nos tribunais de 1ª e 2ª instância, optando pela solução oposta.
Tendo sido uma decisão que surpreendeu as partes, nomeadamente a Contra-interessada – por conter um desfecho com o qual não contava -, não integra o conceito decisão – surpresa, proibida pelo artigo 3º, nº 3 do CPC.
Termos em que improcede a arguida nulidade.
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“Falta de pronúncia – nulidade”
Aduz a Recorrente que se verifica a nulidade da parte inicial da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, na medida em que a sentença recorrida não se pronunciou quanto ao alegado nos artigos 49º a 57º da contestação, a própria decisão recorrida refere que as EES só podem aceder à propriedade de farmácias nos mesmos termos das entidades do sector lucrativo - através de sociedades comerciais e por concurso - em desacordo com o acórdão do TC 612/2011, e faz de conta que ninguém trouxe para o pleito o regime de licenciamento que em concreto se reputa aplicável, para além do DL 307/2007; ocorrendo falta de pronúncia sobre a solução adiantada pela aqui Recorrente.
Reporta-se a parte inicial da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC à nulidade por omissão de pronúncia, a qual ocorre – só ocorre - quando o julgador deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
Como tem sido reiteradamente afirmado pela jurisprudência, há que distinguir “questões” de “argumentos”, sendo incontroverso que o dever de pronúncia do tribunal se circunscreve às primeiras.
Explica José Alberto dos Reis que “são, na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in Código de Processo Civil, Anotado, volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Apenas a não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, mas já não a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.
Em suma: não constitui nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito invocados pelas partes.
Em causa nos autos está a (in)validade da deliberação do Infarmed que deferiu o pedido formulado pela Contra-interessada de abertura de farmácia social privativa.
Os artigos 49º a 57º da contestação da Contra-interessada versam sobre o regime jurídico das farmácias sociais após a Lei 2125, defendendo a parte que não é de aplicar o DL 307/2007.
Estamos, pois, perante argumentos invocados pela parte que se inserem no conhecimento de questão tratada na sentença: saber se, à data da prática do acto impugnado, é ou não possível o licenciamento de nova farmácia social privativa.
A questão foi identificada e tratada pelo Tribunal a quo, que assentou na aplicação do Decreto-lei nº 307/2007.
Nestes termos, inexiste omissão de pronúncia.
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“Contradição entre factos provados e a decisão adotada. Ilegalidade notória da decisão recorrida”
Alega a Recorrente que a decisão recorrida, quanto à anulação do acto recorrido na parte relativa à venda de MNSRM, constitui afronta ao regime jurídico de licenciamento de venda de MNSRM que consta dos Decreto-Lei n.º 134/2005, de 16 de Agosto, Decreto-Lei n.º 238/2007, de 19 de Junho, Portaria n.º 827/2005, de 14 de Setembro, Deliberação n.º 1706/2005, de 7 de Dezembro e Proibição da venda de tabaco em locais de venda de MNSRM Circular Informativa n.º 045/CD de 03/03/2008, pelo que deve ser substituída por outra que se conforme com a legalidade.
Acrescenta que, nessa medida, dando-se como provado no facto 3, em conjunto com o facto 6, de onde resulta que o licenciamento abrange a venda de MNSRM, que se rege por ordenamento jurídico diferente da LPF aplicável apenas à venda de MSRM e que foi a única citada no aresto ora recorrido, ocorre a nulidade da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A aludida nulidade resulta da verificação de um “vício lógico na construção da sentença”, pois, querendo a lei processual que o juiz justifique a sentença, os fundamentos que este invoca para a sua decisão “conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” (cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, Anotado, volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
A propósito desta nulidade, referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição, Almedina, págs. 736-737): “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”.
É manifesto que a sentença recorrida não incorreu em qualquer contradição, menos ainda aquela que é sancionada com o desvalor da nulidade.
O que vem apontado pelo Recorrente, a verificar-se, configura erro de julgamento.
Termos em que improcede a arguida nulidade. *
Aqui chegados, temos por improcedentes todas as nulidades imputadas à sentença recorrida.
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Erros de julgamento:
Alegou a Recorrente a que a norma do artigo 59º-A, nº 2 do Dl 307/2007, na redacção dada pelo Dl nº 171/2012Não são nomeadamente aplicáveis às farmácias privativas as disposições dos artigos 14.° e da alínea a) do n.° 2 do artigo 48.°” -, viola a alínea c) do artigo 10º da Lei n.º 30/2013, de 8 de Maio, na medida em que compete aos poderes públicos “remover os obstáculos que impeçam a constituição e o desenvolvimento das atividades económicas das entidades da economia social” (cfr. conclusão XXI).
A Lei n.º 30/2013, de 8 de Maio, estabelece, no desenvolvimento do disposto na Constituição quanto ao sector cooperativo e social, as bases gerais do regime jurídico da economia social, bem como as medidas de incentivo à sua atividade em função dos princípios e dos fins que lhe são próprios (cfr. art. 1º).
No artigo 10º, sob a epígrafe “Fomento da economia social”, determina que:
“1 - Considera-se de interesse geral o estímulo, a valorização e o desenvolvimento da economia social, bem como das organizações que a representam.
2 - Nos termos do disposto no número anterior, os poderes públicos, no âmbito das suas competências em matéria de políticas de incentivo à economia social, devem:
(…)
c) Facilitar a criação de novas entidades da economia social e apoiar a diversidade de iniciativas próprias deste sector, potenciando-se como instrumento de respostas inovadoras aos desafios que se colocam às comunidades locais, regionais, nacionais ou de qualquer outro âmbito, removendo os obstáculos que impeçam a constituição e o desenvolvimento das atividades económicas das entidades da economia social;
(…)”.
O presente fundamento de recurso configura questão nova, estando este Tribunal de recurso impedido dela conhecer.
Ainda que assim não fosse, sempre este fundamento recursivo haveria de improceder porquanto o alegado erro de julgamento se reporta a normativo que não foi aplicado na sentença recorrida e bem porquanto não estava já em vigor, não sendo aplicável ao procedimento administrativo em causa nos autos.
Sobre o que vem alegado no recurso, ditou o STA (acórdão de 01.06.2023, proc. nº 2748/13) que “porque esta lei não tem valor superior ao DL n.º 171/2012, poderia revogá-lo por ser posterior, mas não constitui fundamento da sua validade, nem, consequentemente, da sua desaplicação”.
Termos em que improcede o apontado erro de julgamento.
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Acima, a propósito da alegação de nulidade decisória, vimos que, no entender da Recorrente, a decisão recorrida, quanto à anulação do acto recorrido na parte relativa à venda de MNSRM, constitui afronta ao regime jurídico de licenciamento de venda de MNSRM que consta dos Decreto-Lei n.º 134/2005, de 16 de Agosto, Decreto-Lei n.º 238/2007, de 19 de Junho, Portaria n.º 827/2005, de 14 de Setembro, Deliberação n.º 1706/2005, de 7 de Dezembro e Proibição da venda de tabaco em locais de venda de MNSRM Circular Informativa n.º 045/CD de 03/03/2008, pelo que deve ser substituída por outra que se conforme com a legalidade; nessa medida, dando-se como provado no facto 3, em conjunto com o facto 6, de onde resulta que o licenciamento abrange a venda de MNSRM, que se rege por ordenamento jurídico diferente da LPF aplicável apenas à venda de MSRM e que foi a única citada no aresto ora recorrido.
Vejamos se ocorre erro de julgamento.
O Tribunal a quo foi chamado a conhecer e conheceu (da) invalidade da Deliberação do Conselho Directivo da Entidade Demandada, datada de 08.09.2016, que aprovou, o processo de instalação de farmácia social privativa com a designação de “Farmácia "A"...”, nos termos propostos pela Contra-interessada.
Como se mostra apurado, desde logo nos factos 3, 6, 7, 8 e 9, a Contra-interessada requereu à Entidade Demandada que: “se pronunciasse acerca da verificação, quanto à Requerente, dos requisitos previstos no n° 4 da Base II (que não o n° 5) da Lei 2125, de 20.03.1965 e artigos 45° n° 2 e 46° ambos do Decreto-Lei 48547 de 27.08.1968, uma vez que estas disposições legais continuam substancialmente válidas e vigentes “ex vi” artigo 14° n° 3 e 59° 1 e 3 da LPF; que o Infarmed confira (...) o prazo de um ano para instalar a farmácia e ser requerida vistoria e, uma vez realizada esta, seja atribuído alvará, conforme alude o artigo 48° do Decreto-Lei 48547 de 27.08.1968; que o licenciamento tenha a seguinte amplitude: a farmácia só pode vender medicamentos ou especialidades farmacêuticas sujeitos a receita médica aos associados, beneficiários e pensionistas; que pode exercer a actividade de para-farmácia (medicamentos não sujeitos a receita médica); que pode prestar os serviços farmacêuticos previstos nas alíneas a) e h) do artigo 2.º da Portaria 1429/2007 de 02.11 a qualquer utente; que pode ter a sua designação no exterior com o logotipo; que pode ter porta aberta para o exterior (sem todavia poder atender pessoas singulares que não pertençam ao seu substracto associativo e estatutário quanto à venda de medicamentos sujeitos a receita médica) e pode colocar no exterior uma cruz verde identificativa de uma farmácia”; e foi sobre este concreto requerimento que recaiu a deliberação em crise.
A Contra-interessada requereu e a Entidade Demandada autorizou a instalação e abertura de uma farmácia social privativa (para venda de medicamentos ou especialidades farmacêuticas sujeitas a receita médica aos associados, beneficiários e pensionistas e para venda de medicamentos não sujeitos a receita médica).
O quadro legal convocado pela Contra-interessada/Recorrente, em sede judicial, cuida da venda de medicamentos não sujeitos a receita médica (MNSRM) fora das farmácias, pretensão nunca formulada junto da Administração.
Termos em que improcede o presente fundamento recursivo.
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Aqui chegados, estamos convictos de ter apreciado todas as questões que restaram prejudicadas pelo aresto deste TCAN, de 15.07.2020, em observância do acórdão do STA, de 15.06.2023.
Com efeito, analisadas as alegações de recurso, é nosso entendimento que a Recorrente não desferiu qualquer ataque à sentença recorrida na análise que esta efectua da validade do acto impugnado, à luz da legislação vigente e aplicável ao procedimento em causa.
Não obstante e à cautela, acrescentar-se-á que sempre seria de manter a sentença em crise.
A mesma alicerçou-se no acórdão de do Supremo Tribunal Administrativo, tirado, por unanimidade, a 05/07/2018, no âmbito do processo n.º 0879/17 (que nas 1ª e 2ª instâncias correu termos com o nº 00153/13.8BEPRT). Acórdão que, não obstante as críticas tecidas em arestos dos Tribunais Centrais (como o que a Recorrente invoca), viu a sua posição confirmada, mais recentemente, em acórdão tirado, também por unanimidade, a 01.06.2023, no âmbito do processo nº 2748/13.0BEPRT.
Assinale-se que o aresto do TCAN que a Recorrente invoca em seu favor (acórdão de 27.09.2019, proc. 527/09.9BEAVR, não publicado, com revista admitida) não lhe é, em rigor, favorável.
Sendo certo que o citado aresto declara não acolher os fundamentos do acórdão do STA, de 05.07. 2018, o mesmo não deixou de concluir (a fls. 37) que “o Decreto-lei nº 307/2007, na redacção dada pelo Decreto-lei nº 171/2012, aniquilou a possibilidade legal de as entidades do sector social poderem ser proprietárias de farmácias privativas”.
Assim, ao contrário do caso concreto abordado naquele processo, ao caso concreto aqui em apreço – porque é sempre o caso concreto que releva – não é aplicável o Decreto-lei nº 307/2007, na sua versão originária. Enquanto que ali o pedido de instalação e abertura data de 02.02.2009, aqui data de 15.07.2015. Donde, também na linha do citado aresto do TCAN, estaria afastada a possibilidade legal de a ora Recorrida poder ser proprietária de farmácia social privativa.
Termos em que soçobra a totalidade do recurso interposto.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do TCA Norte em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
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Custas a cargo da Recorrente.
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Registe e notifique.
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Porto, 06 de Junho de 2025
Ana Paula Martins
Conceição Silvestre
Luís Migueis Garcia