Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
| Processo: | 00155/06.0BEPNF |
| Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
| Data do Acordão: | 05/08/2008 |
| Tribunal: | TAF de Penafiel |
| Relator: | Drº Carlos Luís Medeiros de Carvalho |
| Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL. FACTO LÍCITO. NULIDADE SENTENÇA |
| Sumário: | I. São pressupostos da responsabilidade civil fundada na prática de acto lícito (art. 09.º do DL 48051): a) O facto; b) O dano especial e anormal resultante da ofensa dos direitos e interesses legalmente protegidos de um alguns administrados na prossecução do interesse geral; c) O nexo de causalidade entre o facto e o dano. II. Por prejuízo especial entende-se aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa, sendo que por prejuízo anormal se entende aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração. III. O nexo de causalidade deve fixar-se não somente em termos de “adequação” concreta entre o facto e o dano de acordo com o entendimento aberto, mas também em termos de imediatividade entre um certo facto e um determinado dano. * * Sumário elaborado pelo Relator |
| Data de Entrada: | 11/20/2007 |
| Recorrente: | Junta de Freguesia de Lordelo |
| Recorrido 1: | J... e M... |
| Votação: | Unanimidade |
| Meio Processual: | Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional |
| Decisão: | Concede parcial provimento ao recurso |
| Aditamento: |
| Parecer Ministério Publico: | Negar provimento ao recurso |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: 1. RELATÓRIO JUNTA FREGUESIA DE LORDELO, devidamente identificada nos autos a fls. 02, inconformada veio interpor recurso jurisdicional da sentença do TAF de Penafiel, datada de 02/03/2007, que julgou totalmente procedente a acção administrativa comum, sob forma sumária, que contra a mesma havia sido instaurada por J... e M... condenando-a “… construir ao longo de toda a faixa de terreno dos AA., que confronta com a via pública, um muro que garanta a estabilidade das terras, bem como realizar as obras necessárias a garantir a estabilidade do muro …” e, bem assim, a “… colocar uma nova rede de vedação em substituição da que existia …”. Formula, nas respectivas alegações (cfr. fls. 129 e segs. - paginação processo em suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário), as seguintes conclusões: “... A - Vem o presente recurso interposto da aliás douta sentença final que julgou totalmente procedente a acção a favor dos AA. B - A sentença recorrida padece de nulidade nos termos do artigo 668.º porquanto são abundantes factos não provados que per si implicam necessariamente decisão diversa da proferida. Sem prescindir C - A sentença recorrida condena a Ré com base nos pressupostos da responsabilidade extra contratual os quais, no caso em concreto, não estão preenchidos. D - Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos e agentes assenta na verificação cumulativa dos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na Lei civil extracontratual e que são o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade. E - Sendo a ilicitude um dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual e não se provando factos que possam considerar-se ilícitos, em face do artigo 6.º daquele DL n.º 48051, a acção tem que improceder. F - Não tendo os Recorridos alegado ou sequer provado que normas, princípios ou regras foram violadas pela Recorrente, que protegessem os seus interesses materiais, nem os factos provados permitem concluir por essa violação e não resultando a mesma da matéria levada ao probatório da decisão recorrida, há que decidir que não se verifica o requisito da ilicitude e julgar improcedente a acção, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos. G - Igualmente é de não manter a decisão recorrida, na parte em que julgou também procedente a acção, com base em responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos (obras municipais de interesse publico), invocada a titulo subsidiário, se os Recorridos não provam, como lhe competia, os prejuízos alegadamente sofridos com a realização dessas obras, e consequentemente o seu carácter anormal. H - Mesmo no domínio da responsabilidade civil extracontratual onde seja aplicável a presunção de culpa, a que se refere o artigo 493.º do CC, tal presunção não se repercute sobre o ónus da prova do nexo de causalidade. Ao Autor da lesão cabe primeiramente o ónus da alegação e prova da base de presunção, ou seja, da ocorrência do facto causal dos danos. I - Na hipótese da causa de pedir ser a prática de actos dolosos cumprirá ao AA. alegar que o órgão ou Agente do Estado, no exercício das suas funções e por causa destas, agiu com vontade livre e consciente de o prejudicar, (o que não foi o caso, bem pelo contrário, os AA saíram bastante beneficiados das obras levadas a cabo pela Ré) e que o fizera por meios ilícitos e censuráveis …”. Conclui no sentido de que deve dar-se provimento ao presente recurso jurisdicional. Os AA., ora recorridos, apresentaram contra-alegações (cfr. fls. 161 e segs.), nas quais pugnam pela manutenção do julgado e improcedência do recurso, concluindo nos termos seguintes: “… 1 - Não assiste qualquer razão à Recorrente, já que a sentença não enferma qualquer vício. 2 - Verificam-se todos os requisitos da responsabilidade extracontratual da Recorrente. 3 - É correcta a decisão da Meritíssima Juiz a quo que julgou a acção procedente e condenou a Ré/Recorrente a construir ao longo de toda a faixa de terreno dos Autores que confronta com a via pública, um muro que garanta a estabilidade das terras, bem como a realizar as obras necessárias a garantir a estabilidade do muro e a colocar uma nova rede de vedação em substituição da que existia …”. O Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA emitiu pronúncia no sentido da improcedência do recurso jurisdicional (cfr. fls. 197/199), pronúncia essa que objecto de contraditório não mereceu qualquer resposta (cfr. fls. 201 e segs.). Na sequência de despacho veio a Mm.ª Juiz “a quo” a sustentar a improcedência da arguição da nulidade de sentença (cfr. fls. 204 e 210/211). Colhidos os vistos legais foram os autos remetidos à Conferência para julgamento. Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, sendo certo que, pese embora por um lado, o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 690.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” art. 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal “ad quem” em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a sentença recorrida, porquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito”, pelo que os recursos jurisdicionais são “recursos de ‘reexame’ e não meros recurso de ‘revisão’” [cfr. J.C. Vieira de Andrade in: “A Justiça Administrativa (Lições)”, 8.ª edição, págs. 459 e segs.; M. Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha in: “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2.ª edição revista, págs. 850 e 851, nota 1; Catarina Sarmento e Castro em “Organização e competência dos tribunais administrativos” - “Reforma da Justiça Administrativa” – in: “Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra - Stvdia ivridica 86”, págs. 69/71]. As questões suscitadas reconduzem-se, em suma, em determinar, por um lado, se a sentença enferma de nulidade [cfr. art. 668.º, n.º 1, al. c) do CPC] e, por outro, se a mesma ao julgar procedente a pretensão o fez em violação do disposto nos arts. 06.º do DL n.º 48051, de 21/11/1967, e 493.º do CC [cfr. conclusões de recurso supra reproduzidas]. 3.1. DE FACTO Da decisão recorrida resultaram provados os seguintes factos: I) Os AA. são os donos do prédio urbano sito na Rua da Rampinha constituído por casa de rés-do-chão, andar e sótão, para habitação, com logradouro junto com 1173m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... - Lordelo e inscrito na matriz sob o artigo ... (cfr. doc. de fls. 06 a 08 dos autos). II) Em meados do ano de 2005, a R. procedeu à pavimentação de diversas ruas da cidade de Lordelo, bem como ao alargamento e construção de muros, nomeadamente na Rua da Rampinha (cfr. fls. 10 dos autos). III) Na sequência de tais obras e devido à necessidade de alargar e pavimentar a referida rua a R. procedeu à movimentação de terras, escavando-as e retirando-as. IV) Em 31 de Outubro de 2005 os AA. solicitaram à R. a resolução da situação (cfr. doc. de fls. 16 e 16 v.). V) Falta proceder à colocação de uma nova rede de vedação em substituição da destruída (admitido, art. 09.º da contestação). VI) Como consequência das obras o prédio dos AA. sofreu vários danos. VII) As obras entraram dentro do prédio dos AA.. VIII) A cota da estrada contígua à casa dos AA. baixou, obrigando a diversas alterações na entrada da casa dos mesmos. IX) Existe um desnível entre o terreno dos AA. e a Rua. X) Os alicerces do muro estão suspensos. XI) A rede caiu. XII) Devido ao corte do terreno o caminho existente na extremidade do terreno dos AA. e que permitia o acesso ao logradouro foi completamente destruído, ficando apenas a cancela que lhe dava acesso. XIII) A R. procedeu à colocação do portão frontal. XIV) As obras realizadas são da responsabilidade da R.. «» 3.2. DE DIREITO Assente a factualidade apurada que não se mostra devida e eficazmente posta em causa cumpre, agora, entrar na análise das questões suscitadas para se concluir pela procedência ou improcedência da argumentação desenvolvida pela recorrente no recurso jurisdicional “sub judice”. * 3.2.1. Da nulidade da decisão judicial recorrida A recorrente sustenta que a decisão judicial lavrada nos autos enferma da nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, al. c) do CPC porquanto existe oposição entre a fundamentação de facto e de direito e a decisão, sendo que os factos elencados e os não provados (itens 07.º e 11.º da base instrutória) estão em “manifesta oposição com a decisão final” apontando para a decisão inversa. Estipula-se no art. 668.º do CPC, sob a epígrafe de “causas de nulidade da sentença”, que: “1 - É nula a sentença: … c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão; …”. As situações de nulidade da decisão encontram-se legalmente tipificadas no art. 668.º, n.º 1 do CPC, cuja enumeração é taxativa (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 25/11/2004 - Proc. n.º 04B3540 in: “www.dgsi.pt/jstj”), comportando causas de nulidade de dois tipos: uma causa de carácter formal [art. 668.º, n.º 1, al. a) CPC] e várias causas respeitantes ao conteúdo da decisão [art. 668.º, n.º 1, als. b) a e) CPC]. Note-se, todavia, que a qualificação como nulidade de sentença de ilegalidades integradoras de erro de julgamento não impede o Tribunal de proceder à qualificação jurídica correcta e apreciar, nessa base, os fundamentos do recurso (cfr. Acs. do STA de 17/03/1992 - Proc. n.º 26.955 in: Ap. DR de 30/9/94, págs. 215 e segs.; de 13/02/2002 - Proc. n.º 47.203, de 20/10/2004 - Proc. n.º 748/03, de 10/03/2005 - Proc. n.º 46.862 in: «www.dgsi.pt/jsta»). Entremos na análise da arguida nulidade. Como tem sido decidido e afirmado em vários arestos [cfr. entre outros, Acs. do STJ de 20/03/2003 - Proc. n.º 03B62, de 04/12/2003 - Proc. n.º 03B2667 in: «www.dgsi.pt/jstj»; Acs. do STA de 17/03/1992 (Pleno) - Proc. n.º 17017 in: Ap. DR de 30/09/1994, págs. 163 e segs., de 13/02/2002 - Proc. n.º 047203, de 04/03/2004 - Proc. n.º 0391/03, de 23/06/2004 - Proc. n.º 047738, de 29/06/2004 - Proc. n.º 01666/02, de 29/06/2004 - Proc. n.º 0292/04, de 20/10/2004 - Proc. n.º 01939/03 demais in: «www.dgsi.pt/jsta»], a contradição que, segundo a referida alínea c), é causa de nulidade da sentença é unicamente a que se localiza no plano da sua expressão formal, redundando num vício insanável do chamado “silogismo judiciário”, ou seja, é uma contradição de ordem formal, que se refere aos fundamentos estabelecidos e utilizados na sentença, e não aos que resultam do processo. Na verdade, esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos arts. 158.º e 659.º, n.ºs 2 e 3 do CPC de o juiz fundamentar os despachos e as sentenças e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da conjugação da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Tal significa, como ensinava J. Alberto dos Reis "… a sentença enferma de vício lógico que a compromete …", isto é, "… a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas a resultado oposto …"(in: "Código Processo Civil Anotado", vol. V, pág. 141), (cfr., no mesmo sentido, Antunes Varela, M. Bezerra e Sampaio e Nora in: "Manual de Processo Civil", págs. 689/690). Refere a este propósito Miguel Teixeira de Sousa que “… a decisão é nula quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória (…), isto é, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem logicamente a uma conclusão oposta ou, pelo menos, diferente daquela que conta da decisão (…). Esta nulidade é o correspondente, quanto à decisão do tribunal, da ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir …” (in: “Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, Lx 1997, pág. 224). E na mesma linha Lebre de Freitas sustenta que entre “… os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial …” (in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, pág. 670). Aliás, conforme se decidiu no acórdão do STJ de 30/09/2004 (Proc. n.º 04B2894 in: «www.dgsi.pt/jstj») “… o vício de nulidade a que se reporta a alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º e o n.º 1 do artigo 716.º do Código de Processo Civil é o que ocorre quando os fundamentos de facto e de direito invocados conduzirem logicamente ao resultado oposto àquele que integra o respectivo segmento decisório. Isso significa que os fundamentos de facto e de direito do acórdão devem ser logicamente harmónicos com a pertinente conclusão ou decisão, como corolário do princípio de que o acórdão deve ser fundamentado de facto e de direito, e que tal se não verifica quando haja contradição entre esses fundamentos e a decisão nos quais assenta. Mas uma coisa é a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão da sentença ou do acórdão, e outra, essencialmente diversa, o erro de interpretação dos factos ou do direito ou a aplicação deste, que não raro se confunde com aquela contradição …” (neste sentido para além da jurisprudência supra citada ver ainda Ac. do STJ de 22/01/2004 - Proc. n.º 03B4278 in: «www.dgsi.pt/jstj») Com efeito, esta nulidade nada tem que ver com "o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro da construção do silogismo judiciário", que atrás se referiram, ou com a “inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão”, porquanto não existe a oposição, geradora desta nulidade, se o julgador erra na subsunção, que fez, dos factos à norma jurídica aplicável ou se, porventura, ele errou na indagação da norma aplicável ou na sua interpretação. Se o juiz tiver entendido, erradamente, que os factos apurados acarretam determinadas consequências jurídicas e conseguiu exprimir tal entendimento nos fundamentos invocados e destes retira a conclusão lógica, haverá um erro de julgamento e mas não há a nulidade da oposição entre os fundamentos e a decisão. Ora à luz do enquadramento supra efectuado temos que, na situação vertente, analisada a estrutura global da decisão recorrida verifica-se que a respectiva conclusão decisória (condenação da R. nos termos peticionados) está logicamente encadeada com a respectiva motivação fáctico-jurídica desenvolvida pela Mm.ª Juiz “a quo” que a elaborou (procedência da pretensão formulada por verificação dos requisitos/pressupostos da responsabilidade civil extracontratual), não ocorrendo, por conseguinte, o vício de nulidade invocado pela recorrente enquanto fundado no art. 668.º, n.º 1, al. c) do CPC. Na verdade, o invocado pela recorrente enquanto fundamentador da pretensa nulidade da decisão recorrida constitui ou integra, ao invés, um eventual erro de julgamento, pois, no caso “sub judice”, não resulta das conclusões, nem das próprias alegações em si, nem da decisão recorrida, a existência de contradição lógica entre os fundamentos indicados na mesma e a decisão tomada, mas apenas a indicação de que, com os elementos existentes nos autos, se devia ter chegado a conclusões diferentes e que, consequentemente, a decisão devia ter sido diferente. Improcede, assim, a arguida nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, prevista no art. 668.º, n.º 1 al. c) do CPC. * 3.2.2. Do erro de julgamento A decisão judicial recorrida condenou a R., ora recorrente, por entender que, nos termos, nomeadamente, dos arts. 02.º, 04.º, 06.º do DL n.º 48051, 96.º da Lei n.º 169/99, 483.º, 487.º, 493.º n.º 1 do CC, estavam na situação vertente reunidos todos os pressupostos de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito. Sustenta a recorrente enquanto fundamento material de recurso que a decisão judicial em crise foi lavrada em infracção do disposto nos arts. 06.º do DL n.º 48051, 493.º do CC, porquanto no caso não estavam reunidos os pressupostos/requisitos cumulativos condicionadores da sua responsabilidade civil extracontratual, em especial, o da ilicitude. Analisemos, pois, da procedência desta argumentação. Decorre do art. 22.º da CRP que: “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”. O DL n.º 48051, de 21/11/1967, regulava à data dos factos o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de “gestão pública”, sendo que a apreciação e efectivação da mesma responsabilidade decorrente de actos de “gestão privada” está prevista nos arts. 500.º e 501.º do C.Civil. Para as autarquias locais no que tange à responsabilidade civil extracontratual das mesmas no domínio dos actos da denominada “gestão pública” rege o que se preceitua nos arts. 96.º e 97.º da Lei n.º 169/99, de 18/09 (quanto à responsabilidade por facto ilícito) e pelo preceituado no DL n.º 48051 (quanto à responsabilidade por facto lícito e pelo risco), sendo que, tal como tem vindo a ser defendido o referido DL n.º 48.051 e, bem assim, a Lei n.º 169/99 não contêm uma regulamentação fechada e acabada daquela matéria pelo que a mesma deve ser analisada nos moldes traçados no Código Civil, para o qual aquele diploma remete (cfr. art. 04.º - quanto à culpa). Decorre do art. 96.º da Lei n.º 169/99 o seguinte: “1 - As autarquias locais respondem civilmente perante terceiros por ofensa de direitos destes ou de disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultante de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes no exercício das suas funções ou por causa desse exercício. 2 - Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, as autarquias locais gozam do direito de regresso contra os titulares dos órgãos ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo. Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”. Assim e quanto às autarquias locais tal regime prevê e regula três tipos de responsabilidade civil extracontratual destes. A saber: a) A responsabilidade por actos ilícitos culposos (cfr. arts. 96.º e 97.º da referida Lei - onde existe o requisito culpa dos órgãos ou agentes da autarquia local para além dos demais requisitos da responsabilidade civil); b) A responsabilidade por factos causais ou pelo risco (cfr. art. 08.º do DL n.º 48051 - onde se prescinde do requisito ou pressuposto da culpa dos órgãos ou agentes da autarquia local, mas se exige que os prejuízos sejam "especiais e anormais" e resultem de serviços excepcionalmente perigosos); e c) A responsabilidade por actos lícitos (cfr. art. 09.º do citado diploma - na qual se prescinde não só do elemento culpa, mas, ainda, da ilicitude e se exige, em contrapartida, que os prejuízos causados sejam "especiais e anormais"). Ora tendo presente os termos em que a presente acção se mostra deduzida, factualidade alegada e pretensão ali formulada, não se vislumbra, ao invés do que foi considerado na sentença recorrida, que estejamos em presença de acção de responsabilidade civil extracontratual emergente de facto ilícito mas antes emergente de facto lícito. Na verdade, não se descortina em momento algum do articulado inicial que os AA. hajam alegado factos nos e através dos quais pretendessem assacar conduta/omissão ilícita à R. na ou durante a execução das obras de pavimentação pela mesma levadas a cabo. Nada foi dito pelos AA. no sentido de que a execução das obras tenha decorrido de forma negligente, sem fiscalização e vigilância por parte da R. e com infracção às regras construtivas. Os AA., em termos de alegada actuação ilícita da R., referem, quanto muito, a invasão, durante a execução das obras, do seu prédio em cerca de 60 cm ao longo de 100 metros, sem que daí, todavia, retirem qualquer consequência danosa e formulem qualquer pretensão indemnizatória. Nessa medida e com esta motivação, assistirá parcial razão à R., aqui recorrente, quando assaca erro de julgamento à sentença, visto a mesma haver procedido à análise dos requisitos/pressupostos da responsabilidade civil extracontratual decorrente de facto ilícito quando se estava perante pretensão indemnizatória emergente de facto lícito, erro que conduz à sua revogação, impondo-se, então, nos termos do art. 149.º do CPTA, aferir da pretensão dos AA. à luz do adequado e correcto enquadramento jurídico supra definido. Note-se, ainda, que compulsados os autos "sub judice" temos que também a responsabilidade pelo risco (art. 08.º do DL n.º 48051) inexiste visto não se estar perante facto ou conduta relativamente à qual se possa qualificar como envolvendo “periculosidade excepcional da coisa, actividade ou serviço a que está ligada a produção dos danos”, como decorre do citado normativo. Se é certo que a execução de obras públicas anda associada uma especial perigosidade que justifica que o ressarcimento dos danos causados por aquela sejam indemnizáveis a título de risco, importa, no entanto, ter presente que apenas cabem na previsão e esfera desta responsabilidade objectiva a indemnização pelos prejuízos “relacionados com um qualquer acidente resultante da execução da empreitada” e já não todos os danos derivados da obra pública, incluindo os que lhes foram voluntariamente impostos (cfr. Ac. STA de 13/01/2004 - Proc. n.º 040581 in: «www.dgsi.pt/jsta»). E, como no caso concreto, nenhum dos danos provados (veja-se a factualidade assente) teve essa origem não haverá lugar à aplicação do art. 08.º do DL n.º 48051 ao caso vertente. Daí que na situação em presença importa, tão-só, entrar na apreciação dos requisitos ou pressupostos da responsabilidade civil fundada na prática de acto lícito e verificar se "in casu" estão preenchidos todos esses pressupostos de modo a que à aqui R. possa ser imputada responsabilidade civil, já que para que esta exista necessário se torna que estejam preenchidos os respectivos pressupostos condicionadores da existência da mesma (cfr. art. 09º do citado DL). Da leitura do aludido normativo inferem-se vários pressupostos, os quais, em nosso entendimento, se podem reconduzir: A) Ao facto; B) Ao dano especial e anormal resultante da ofensa dos direitos e interesses legalmente protegidos de um alguns administrados na prossecução do interesse geral; C) Ao nexo de causalidade entre o facto e o dano. Entrando na caracterização de cada um dos requisitos ou pressupostos temos que o facto se traduz na prática pelo órgão ou agente da Administração de acto ou operação que formal e substancialmente se confine nos limites do poder que legalmente dispõe. O DL n.º 48051 não distingue, no domínio dos factos causadores do prejuízo, entre actos jurídicos e operações materiais, pois, as duas modalidades de actuação são susceptíveis de criar a obrigação de indemnizar, se provocarem prejuízos anormais e especiais na esfera jurídica dos particulares. Frise-se, ainda, que tal conclusão não é de estranhar já que a CRP, no seu art. 22.º, põe em pé de igualdade acções e omissões da máquina estadual, reconhecendo a ambas a possibilidade de constituírem violação dos direitos, liberdades e garantias ou causarem “prejuízo para outrem”. Quanto ao segundo requisito temos que o mesmo representa na responsabilidade objectiva do Estado e demais entidades públicas um plano de central relevo, visto o prejuízo sofrido na esfera jurídica dos particulares pela actuação da Administração reveste-se de particulares e específicas exigências. Importa, assim, analisar em concreto esse prejuízo, na perspectiva de averiguar que prejuízo é susceptível de ser indemnizado em sede de responsabilidade objectiva do Estado e demais entidades públicas. Ora, na verdade, sempre que o interesse público exigir a imposição, a um particular, de um sacrifício que ultrapasse os encargos normais que decorrem da vida em sociedade (ou de um sacrifício que seja grave e especial), o Estado/demais entes públicos constituem-se em dever de indemnizar, dever esse que nasce, assim, à margem de qualquer repreensibilidade jurídica, à margem de qualquer culpa ou de qualquer ilicitude. Tal imposição de sacrifício, e o dever de compensação a que ele dá origem, podem resultar de duas fontes essencialmente distintas: ou de factos não intencionalmente a ele dirigidos (cfr. art. 08.º do DL n.º 48051) ou de actos cuja intenção é, precisamente, a da imposição do referido encargo (cfr. art. 09.º, n.º 1 do citado DL). Note-se, no entanto, que a esta distinção fundamental - de inintencionalidade ou intencionalidade do facto gerador do sacrifício – contrapõe-se, porém, o elemento comum que une as duas formas de “responsabilidade”, e que é revelado pela própria letra da lei: a natureza especial ou anormal do prejuízo causado na prossecução lícita do interesse público, ou seja, a sua transcendência face aos encargos correntes, e impostos a todos, resultantes do custo comum da vida colectiva. A necessidade de compensar a injustiça inscrita nesta transcendência aparece, portanto, como o grande elemento comum que une e identifica as duas formas distintas de responsabilidade objectiva, demarcando-as do outro grande pólo formado pela responsabilidade por violação culposa de deveres jurídicos por parte da Administração. O Estado e as demais entes públicos não podem exigir de ninguém um sacrifício ao interesse público superior e mais intenso do que o normalmente imposto a todos os membros da colectividade: a ideia da necessária igualdade de todos perante os encargos públicos justificava aquele dever público de compensar que decorria do sofrimento dos prejuízos especiais e anormais a que se alude nos arts. 08.º e 09.º do citado DL. A obrigação estadual de compensar todos e quaisquer sacrifícios privados que sejam de índole grave e especial tem o seu fundamento último nos arts. 02.º, 13.º e 18.º da CRP. Estes preceitos consagram, em geral, a proibição de condutas estatais arbitrárias; nos seus termos, os poderes públicos não poderão nunca vir a agir nem de forma desigual nem de modo desproporcional. O direito a exigir do Estado o pagamento de justa indemnização em todos os casos de “privação” lícita da propriedade deixou de ser direito só oponível à Administração e só existente na esfera jurídica dos particulares nos termos e nas condições livremente definidas por lei ordinária, para passar a valer como direito superior à lei, necessariamente aplicável a todos os domínios do património privado e necessariamente oponível a todos os actos jurídico-públicos que introduzissem, nesse domínio, rupturas na ideia da igualdade, ou seja, a todos os actos que, por qualquer forma, impusessem aos particulares o sofrimento de sacrifícios graves e especiais. Note-se, contudo, que no nosso ordenamento vigente não vigora um direito geral à reparação dos danos graves que atinjam genericamente os particulares. Vejamos, então, em que consiste a especialidade e a anormalidade do prejuízo. A especialidade decorre da incidência desigual do prejuízo sobre um cidadão ou grupo de cidadãos, ou seja, por outras palavras: para que um prejuízo se possa ter por especial é necessário que se prove que um cidadão ou grupo de cidadãos tenham sido, através de um encargo público, colocado em situação desigual em relação à generalidade das pessoas. Assim, o sacrifício será especial na medida em que viole o princípio da igualdade, a que a Administração Publica está vinculada na sua actuação (cfr. art. 266.º, n.º 2 da CRP). O entendimento a que chegámos do que seja o dano especial encontra o seu fundamento na “teoria da intervenção individual”, que põe o seu acento tónico na incidência do acto sobre uma só pessoa ou grupo de pessoas – na especialidade do resultado – e não na consideração do aspecto formal do acto impositivo do sacrifício, como acto individual. Mas não basta que o prejuízo seja especial ou iniquamente desigual para ser ressarcível. É ainda necessário que o prejuízo, pela sua gravidade, pela sua importância, pelo seu peso, ultrapasse o carácter de um ónus natural decorrente da vida em sociedade, mesmo no âmbito de um Estado intervencionista como é o Estado moderno. Aceita-se que o cidadão suporte pequenos constrangimentos, contrapartida natural dos benefícios que recebe, mas já não se aceita que fique de braços cruzados perante danos anormalmente onerosos provocados por uma determinada actuação pública, seja ela estatal ou de origem noutro ente público. A anormalidade, ou gravidade, do prejuízo é, pois, um novo traço distintivo do prejuízo ressarcível relativamente ao ónus natural, no domínio da responsabilidade pelo risco ou por actos lícitos. A especialidade e a anormalidade do dano, impostas pelos arts. 08.º e 09.º do DL n.º 48051, como conceitos indeterminados que são carecem de um preenchimento valorativo na sua aplicação ao caso concreto, tarefa na qual os tribunais desempenham papel relevante nessa operação de interpretação e subsunção. Se o interesse público justifica que não sejam ressarcidos os danos não especiais nem de suficiente gravidade, a verdade é que, preenchidos os requisitos da especialidade e da anormalidade, os danos deverão integralmente reparados, tal como acontece no âmbito dos danos decorrentes de factos ilícitos e culposos, sem sequer excluir os danos morais que, a coberto de uma pretensa defesa a dignidade dos bens violados, durante muito tempo se defendeu que não deviam ser objecto de indemnização. Para J.J. Gomes Canotilho (in: "O Problema da Responsabilidade Civil do Estado por Actos Lícitos", Coimbra 1974) as situações subjectivas relevantes para efeitos de indemnização não devem ser caracterizadas a partir “... duma simples bipartição conceitual direito subjectivo-interesse legítimo ...”, isto é, não se deve ser conduzido a “... aprioristicamente deduzir do círculo cerrado conceitos as posições jurídicas dos cidadãos merecedoras de protecção ressarcitória ...”, antes se deve estimular “... a adesão a um pensamento concreto, prático, funcional, teleológico que possibilite uma ‘punctualizada’ fixação de interesses com relevância indemnizatória .... Perdem, assim, força os contornos distintivos entre direitos subjectivos e interesses legítimos; por outras palavras, falece razão para se afastarem da tutela reparatória todas as situações subjectivas não reconduzíveis a um direito subjectivo perfeito ...”. É que, no entender do citado Professor, “... o ordenamento jurídico não pode ser indiferente a outras situações subjectivas, menos perfeitas e menos juridicamente protegidas que os verdadeiros direitos subjectivos, mas, de qualquer modo, com consistência jurídica suficiente para, no caso de compressão grave, poderem justificar, a favor do seu titular, uma protecção ressarcitória ...”. Daí que por prejuízo especial se entende aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa, sendo que por prejuízo anormal se entende aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração (cfr., entre outros, Acs. STA de 10/10/2002 - Proc. n.º 048404, de 03/10/2003 - Proc. n.º 0936/03, de 05/11/2003 - Proc. n.º 01100/02, de 18/12/2003 - Proc. n.º 0910/03, de 02/12/2004 - Proc. n.º 0670/04, de 09/02/2005 - Proc. n.º 01348/03, de 21/06/2007 - Proc. n.º 0110/06 in: «www.dgsi.pt/jsta»). Atente-se ainda que para além da gravidade do dano temos, no que tange à questão da sua anormalidade, que nos socorrer dum critério operativo para determinação do sacrifício relevante. Nessa sede a jurisprudência do STA tem lançado mão da chamada “teoria do gozo standard”, teoria essa que é enunciada por J.J. Gomes Canotilho do seguinte modo: “… Perante a acção dos poderes públicos (...) é garantido o gozo médio ou standard dos bens pertencentes ao particular de modo que quando este gozo é tolhido por um acto normativo ou administrativo, estamos em presença de um acto ablatório gerador de indemnização. O princípio segundo o qual a propriedade privada em sentido lato, no nosso actual sistema jurídico, orientado por determinadas finalidades sociais, é obrigada a admitir limites e vínculos, encontra um critério limite no conceito de gozo standard dos bens privados, como conceito atributivo de um significado à garantia constitucional da propriedade. Nestes termos, o critério indicado poderá constituir um índice de individualização das intervenções ablatórias que, embora feitas com instrumentos diversos da expropriação formal, dão lugar a uma diminuição ou subtracção do gozo standard da coisa …” (in: ob. cit., págs. 280 e 281). Quanto ao terceiro requisito temos que a delimitação das situações merecedoras de tutela legal - e a consequente individualização de uma situação como merecedora de protecção - pode não ser suficiente para assegurar a reparabilidade do prejuízo, quando a ligação entre a actuação administrativa concreta e o dano efectivamente produzido seja tão remota ou ténue que exclua a possibilidade da imputação do prejuízo ao ente estadual, e com isso afaste a possibilidade de configuração do instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos por actos lícitos. O nexo de causalidade ou, em particular, a sua determinação, adquire um relevo autónomo no âmbito da responsabilidade objectiva da Administração, já que esta se não pode socorrer dos instrumentos próprios da responsabilidade subjectiva, concretamente a ilicitude do acto ou operação material e a culpa do agente. A doutrina da causalidade adequada, traduzida no facto de encontrar a existência de “um dever indemnizatório quando a medida estadual, segundo a sua espécie, era adequada a provocar o dano”, parece-nos dever ser o ponto de partida na resolução prática das situações de responsabilidade objectiva, tudo sem prejuízo dos ajustamentos e dos desvios necessários impostos pela especialidade da matéria. A menor densificação que se verifica nas normas que prevêem a responsabilidade objectiva do Estado e demais entidades públicas justifica um papel mais activo e determinante do aplicador do Direito e, em última análise, do julgador. Esta é também a posição adoptada por J.J Gomes Canotilho quando refere na obra supra citada (pág. 316) “... se não quisermos abandonar a teoria da causalidade adequada, o caminho será o de, através da interpretação de normas, verificar se o sentido destas normas foi o de incluir a cargo do responsável todos os danos compreendidos numa certa zona de riscos. O recurso ao sentido das leis e da Ordem Jurídica será, assim, susceptível de conduzir a uma solução diferente da causalidade adequada ...”. Na opinião daquele ilustre Professor “... a pretensão de indemnização só existe a favor do destinatário imediato do acto impositivo de sacrifício …” ou, o mesmo é dizer, “... na responsabilidade estadual por actos lícitos o dever reparatório dos entes públicos não deve ser largado às vítimas mediatas dos actos administrativos ...”. Daí que o nexo de causalidade deve fixar-se não somente em termos de “adequação” concreta entre o facto e o dano, de acordo com o entendimento aberto antes referido, mas, igualmente, em termos de imediatividade entre um certo facto e um determinado dano, o que significa que, por esta via, o citado Autor encontra um novo “travão” - ao lado do prejuízo especial e anormal e das posições jurídico-subjectivas indemnizatoriamente relevantes - ao princípio de que o Estado/demais entes públicos devem reparar os prejuízos decorrentes da sua crescente actividade. Feitos estes considerandos sobre os requisitos/pressupostos condicionadores da existência de responsabilidade civil por facto lícito importa, então, entrar na análise da factualidade que se logrou provar e apurar da verificação ou não “in casu” dos mesmos. Quanto ao primeiro requisito ou pressuposto temos que face à factualidade supra apurada se verifica já que estamos perante o desenvolvimento de acto/operação por parte da R. perfeitamente lícito e legítimo, no uso dos poderes que lhe são conferidos em matéria de rede e acessibilidades viárias, sua construção, alteração, conservação/manutenção. Em relação ao segundo requisito temos que no caso vertente está em causa a alegada afectação do direito de propriedade dos AA. quanto ao seu prédio descrito nos autos. Em especial, importa considerar que com a realização das obras levadas a cabo pela R. em 2005 de pavimentação de diversas ruas na cidade de Lordelo, teve lugar o alargamento e construção de muros, nomeadamente na Rua da Rampinha, sendo que na sequência de tais obras houve lugar à movimentação de terras (escavação e retirada), passando a cota da estrada contígua à casa dos AA. a ser mais baixa e a existir um desnível entre o terreno dos AA. e aquela Rua, desnível esse que se evidencia de forma inequívoca da documentação junta aos autos a fls. 11 a 15 (cfr. documentos n.ºs 03 a 07 juntos com a petição inicial). Em decorrência das obras os alicerces do muro dos AA. ficaram suspensos e a rede de vedação ali existente caiu, reconhecendo a R. que no âmbito das obras que levou a cabo lhe faltaria colocar uma nova rede de vedação do prédio dos AA. em substituição daquela que ali existia. Pretendem os AA. que a R. colocasse a rede de vedação, que executasse um muro ao longo da faixa de terreno do seu prédio que confronta com a via pública garantindo a estabilidade do terreno e as condições de segurança e que realizasse as obras necessárias para a consolidação dos muros. Dúvidas não se colocam nos autos e face ao posicionamento das partes quanto à obrigação da R. de proceder à colocação da rede de vedação, obrigação essa que a mesma reconheceu e confessou, procedendo, desde logo, a pretensão e pedido formulado na acção nesse âmbito. Ao invés aquilo em que divergem as partes prende-se com a obrigação ou não da execução do muro ao longo da faixa de terreno do prédio dos AA. que confronta com a via pública e com a realização das obras necessárias para a consolidação do muro que delimita aquele terreno na parte frontal e cujos alicerces haviam ficado suspensos. No caso vertente não resulta minimamente demonstrado que a obra, pela sua natureza e dimensão, tenha implicado prejuízos e encargos como os infligidos aos aqui AA., termos em que não se está perante prejuízos/danos generalizados aos demais fregueses vizinhos daqueles. De igual modo, não se descortina que os danos gerados no prédio dos AA. ao nível do muro que delimita aquele prédio na sua parte frontal, que conduziu a que os seus alicerces tivessem ficado suspensos, pela execução da obra levada a cabo pela R. se possam considerar como prejuízos/danos normais, inerentes aos riscos normais da vida em sociedade e que são suportados por todos os cidadãos e sem que se mostrem ultrapassados os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração. O deixar os alicerces dum muro suspensos na sequência dos trabalhos de pavimentação da via realizados pela R. na prossecução das suas competências e atribuições envolve directamente a deterioração do muro e, por outro lado, põe em causa a sua robustez actual e futura, sendo imposta, à luz das boas e elementares regras de construção e de prudência, a eliminação daquelas fragilidades com a realização de todas as obras necessárias para a consolidação do mesmo, prejuízo esse que se produziu na esfera jurídica dos AA. em resultado de acção da R. e que pelo seu carácter especial e anormal importa ser reparado. Não se vislumbra que os danos provocados no prédio dos AA. quanto ao muro em questão se tratem de simples limitação não perturbadora de “gozo-standard” do bem, como tal abrangida no dever geral de sociabilidade. Já quanto à obrigação ou não da execução do muro ao longo da faixa de terreno do prédio dos AA. que confronta com a via pública que garanta a segurança, estabilidade do terreno e das condições de segurança deparamo-nos com realidade que, sendo controvertida (cfr. arts. 02.º e 06.º da contestação), mereceu resposta negativa por parte da Mm.ª Juiz “a quo” [cfr. respostas aos itens 04.º)-2.ª parte e 11.º) da base instrutória], constituindo, por conseguinte, realidade factual que não ficou provada. Tal julgamento de facto não foi objecto de qualquer impugnação, mormente por parte dos aqui AA. enquanto sujeitos prejudicados com tal decisão, nem este Tribunal dispõe de elementos que habilitem o operar do regime da modificabilidade da decisão de facto nos termos do art. 712.º do CPC. Nessa medida, inexistindo à data dos factos, ao que parece, um muro delimitador do prédio dos AA. na zona onde se verifica actualmente o desnível entre o prédio e a via na sequência das obras de alargamento e construção efectuadas pela R., muro esse que tivesse sido destruído ou danificado com a execução daquelas obras e que importasse ou se impusesse, agora, ser reparado e sendo que os AA. não lograram provar, como lhes era imposto nesse âmbito (prova dos danos) [cfr. respostas aos referidos itens 04.º)-2.ª parte e 11.º) da base instrutória], que exista a necessidade de realização dum muro com as características e natureza peticionados ou que tal construção tivesse sido acordada ou assumida pela R. como sua obrigação e responsabilidade na execução daquelas obras, nomeadamente, como eventual contrapartida da cedência de terreno, terá de improceder o pedido formulado sob a al. a). Na verdade, e como se comprova pela análise do documento junto a fls. 11 a R. terá efectuado a construção do muro em blocos de cimento, com cerca de duas fiadas, em toda a extensão do terreno cedido do prédio dos AA. ao longo daquela via, o que alegadamente teria sido aquilo a que a mesma se obrigou fazer perante aqueles além da colocação naquela zona/extensão da rede de vedação. Assim, não demonstrando os AA. a obrigação da R. de executar naquela extensão um muro com as características invocadas, nem que havendo anterior delimitação por muro esta tivesse sido danificada com a execução das obras de alargamento e pavimentação, caberá aos mesmos, no uso dos seus direitos civis de edificação (cfr. arts. 1356.º e segs. do CC) e cumpridos os demais normativos em sede de construção de muros confrontantes com via pública, mormente, de autorizações para esse efeito, proceder à realização do muro nessa parte. Assim, de harmonia com a factualidade apurada e os considerandos/normativos atrás invocados temos que a decisão judicial recorrida não poderá ser mantida na sua integralidade, procedendo em parte o recurso jurisdicional “sub judice”. Registe-se e consigne-se, no entanto, que a manter-se a delimitação do prédio com a via pública nos termos em que se mostram documentados a fls. 11 dos autos certamente a via pública irá sofrer consequências com a normal e natural erosão e degradação do terreno do prédio dos AA., sendo certamente do mais elementar bom senso que as partes, ambas, ponderem uma solução de consenso que resolva de uma forma consistente e definitiva tal delimitação e que permita não só melhorar a aparência, mas, essencialmente, que dote a via, em termos de futuro, de adequadas condições de segurança na circulação de pessoas e de bens, prosseguindo e aprofundando o desiderato que esteve na génese da execução da própria obra de alargamento e de pavimentação da via em crise. Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em: A) Conceder parcial provimento ao recurso jurisdicional; e, em consequência, B) Revogar a decisão judicial recorrida no que tange à condenação da R. na construção dum muro que garanta a estabilidade das terras ao longo de toda a faixa de terreno dos AA. que confronta com a via pública [pedido formulado sob a al. A)], mantendo no mais, com a fundamentação/motivação antecedente, aquela decisão. Custas em ambas instâncias a cargo dos AA. e da R., na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente, sendo que nesta instância a taxa de justiça é reduzida a metade [cfr. arts. 73.º-A, n.º 1, 73.º-E, n.º 1, al. a), 18.º, n.º 2 todos do CCJ, 446.º do CPC e 189.º do CPTA]. Notifique-se. DN. Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho Ass. José Augusto Araújo Veloso Ass. Maria Isabel São Pedro Soeiro |